reduz a nossa panorâmica do futuro a ponto de só o presente ser proces
sado com clarezal.
Poderiamos concluir que o resultado das lesöes destes doentes é o
abandono daquilo que os seus cérebros adquiriram através da educaçäo
e da socializaçäo. Um dos traças mais distintivos dos seres humanos é a
sua capacidade de aprender a nortear se näo pelos resultados imediatas
mas pelas perspectivas futuras, algo que começamos a adquirir na in
fäncia. Nos doentes frontais, as lesöes cerebrais comprometem näo só o
repositório de conhecimentos pertinentes para essa orientaçäo, que se foi
acumulando até entäo, mas também a capacidade de adquirir novos
conhecimentos do mesmo tipo. O único aspecto compensatório desta
TESTES A HIPOTESE DO MARCADC)R SOMATICO 227
tragédie, como sucede com frequência nos casos de lesöes cerebrais, re
side na janela que abre para a ciência.
Sabemos onde se situam as lesöes causadoras do problema. Sabemos
algo sobre os sistemas neurais contidos nas áreas afectadas por essas le
söes. Mas como é que a sua destruiçäo reduz o impacte das consequências
futuras na tomada de decisöes? Quando analisamos o processo nas suas
componentes, deparam se nos diversas possibilidades.
É concebivel que as imagens que constituera um cenário futuro sej am
fracas e instáveis. As imagens seriam activadas mas näo seriam conserva
das o tempo suficiente para desempenharem um papel no raciocinio. Em
termos neuropsicológicos, isto é equivalente a dizer que a memória de tra
balho e / ou a atençäo näo funcionam bem no que diz respeito às imagens
sobre o futuro. Esta justificaçäo aplica se quer as imagens sej am relativas
aos estudos do corpo quer aos factos exteriores ao corpo.
Uma outra abordagem faz uso da ideia dos marcadores somáticos.
Mesmo que as imagens de consequências futuras sejam estáveis, as lesöes
nos córtices ventromediais pré frontais impossibilitariam a evocaçäo de
informaçöes pertinentes sobreo estado somático (quer através docircuito
do corpo quer do circuito «como se») e, consequentemente, os cenários
futuros relevantes deixariam de ser marcados. A sua importäncia näo
seria notada e o seu impacte sobre o processo de decisäo seria facilmente
superado pela importäncia de perspectivas imediatas. O que se perderia
desta forma era um mecanismo capaz de gerar previsöes automáticas so
bre a importäncia de um resultado futuro. Nos individuos normais que
participaram na experiência do jogo atrás mencionada, essa importäncia
teria sido adquirida pela exposiçäo repetida a diferentes níveis de castigo
e recompensa em relaçäo a um determinada baralho. Por outras palavras,
o cérebro associaria um determinada grau de «negatividade» ou «posi
tividade» a cada baralho, A, B, C e D. O processo básico näo seria cons
ciente e consistiria em valorizar a frequência e a quantidade de estudos
negativos ou positivos. Este meio oculto e näo consciente de valorizaçäo
seria baseado nos estudos somáticos.
A minha perspectiva actual combina estas duas possibilidades. A acti
vaçäo de estudos somáticos pertinentes é o factor critico. Mas suspeito
também que o mecanismo do estado somático actua como impulsionador
para conservar e optimizar a memória de trabalho e a atençäo no que se
refere a cenários do futuro.
228 O ERRO DE DESCARTES
PREVER O FUTURO:
CORRELATOS FISIOLOGICOS
Hanna Damásio sugeriu uma continuaçäo para as experiencias do
jogo a dinheiro. A sua ideia era a de verificar o desempenho de individuos
normais e de doentes com lesäo frontal em termos de respostas de con
dutividade dérmica durante as experiências do jogo. De que forma dife
ririam os doentes dos individuos normais?
Antoine Bechara e Daniel Tranel propuseram se investigar esta ques
täo estudando os doentes e os individuos durante o jogo enquanto esta
vam ligados ao poligrafo. Recolheram se, deste modo, dois conjuntos de
dados paralelos: as escolhas sucessivas que os individuos efectuavam à
medida que prosseguiam nojogo e o perfil continue das respostas de con
dutividade dérmica criadas durante o processo.
A primera série de resultados mostrou um perfil extraordinário. Tan
to os controlos normais como os doentes do lóbulo frontal originaram res
postas de conduçäo dérmica à medida que cada recompensa ou castigo
iam tendo lugar, depois de virada a carta apropriada. Quer isto dizer que,
nos escassos segundos imediatamente após o recebimento da recom
pensa monetária ou o pagamento da multa, os individuos normais, assim
como os individuos com lesäo frontal, eram afectados de acordo com o
acontecimento em questäo, e se seguia uma resposta de condutividade
dérmica. Este aspecto é importante, pois demonstra, mais uma vez, que
os doentes podem originar respostas de condutividade dérmica em
determinadas condiçöes, mas näo noutras. Por aqui se vê que reagem a
estimulos que ocorrem no momento presente uma luz, um som, uma
perda, um ganho mas que näo reagiräo se o activador for uma repre
sentaçäo mental de algo relacionado com o estimulo, mas inacessivel em
termos de percepçäo directa. A primera vista, poderiamos descrever a
sua situaçäo recorrendo ao provérbio «longe da vista, longe do pen
samento», com que Patricia Goláman Rakic sugestivamente se refere à
deficiência da memória de trabalho resultante da disfunçäo frontal dorso
lateral. Mas sabemos que, nestes doentes, «Ionge da vista>@ pode ser
«ainda no pensamento», só que näo tem qualquer importäncia. Talvez
uma descriçäo mais adequada para os nossos doentes seja «longe da vista
e no pensamento, mas pouco importa»*.
* Nooriginal: out ofsight and in mind, but never mind. A palavra «mind» tem du
plo significado mente ou pensamento, por um lado, e importar ou cuidar, por
outro. (N. do R.)
TESTES A HIPOTESE DO MARCADOR SOMATICO 229
Mas também começou a suceder algo de extremamente curioso com os
individuos normais, após um certo número de cartas serem viradas. No
periodo imediatamente anterior à selecçäo de uma carta de um baralho
mau, isto é, enquanto os indivíduos estavam a deliberar sobre a escolha
daquilo que o experimentador sabia ser um mau baralho, era gerada uma
resposta de condutividade dérmica cuja amplitude aumentava com a
continuaçäo do jogo. Por outras palavras, os cérebros dos individuos
normais começavam gradualmente a «prever» um mau resultado e in
dicavam até a relativa negatividade do baralho em questäo, antes de a
carta ser virada'.
O facto de os individuos normais näo exibirem estas respostas quando
o j ogo começava, o facto de as respostas serem adquiridas com a experiên
cia, com o decorrer do tempo, e o facto de a sua grandeza näo parar de
crescer à medida que se iam somando mais experiências positivas e ne
gativas constituiam evidência forte de que os cérebros dos individuos
normais estavam a aprender algo de importante sobre a situaçäo e tenta
vam assinalar, de forma antecipada, o que näo seria bom para o futuro.
Se a presença destas respostas nos individuos normais ja era fasci
nante, aquilo que vimos nos registos de doentes com lesöes frontais ainda
o foi mais: os doentes näo evidenciavain quaisqiter respostas antecipatérias. Näo
havia qualquer indicio de que os seus cérebros estivessem a desenvolver
uma previsäo para um resultado futuro negativo.
Talvez mais do que qualquer outro resultado, este demonstra tanto a
situaçäo de que sofrem estes doentes como uma parte significativa da sua
neuropatologia. Os sistemas neurais que lhes teriam permitido aprender
o que deveriam evitar ou preferir funcionam mal e näo conseguem desen
volver respostas adequadas a uma nova situaçäo.
Desconhecemos ainda o modo como se desenvolve a previsäo de um
resultado futuro negativo na nossa experiência de jogo. Pode se pergun
tar, por exemplo, se os individuos procedem a uma estimativa cognitiva
do carácternegativo de um certobaralho e se esse palpite leva a um estado
somático que signiíica algo negativo e pode, porsua vez, começar a actuar
como sinal de alarme. Nesta formulaçäo, o raciocinio e a consequente es
timativa cognitiva precedem o marcador somático; embora este continue
a ser a componente critica da implementaçäo (sabemos que os doentes
näo jogam «normalmente», mesmo quando sabem quais os baralhos que
säo bons e quais os que säo maus).
Mas existe uma outra possibilidade. Esta possibilidade postula que
uma estimativa oculta, näo consciente, precede qualquer processo cogni
tivo. As redes pré frontais «calculam» a proporçäo do mau versas bom em
cada baralho, com base na frequência dos estudos somáticos positivos ou
230 O ERRO DE DESCARTES
negativos que se verificam apôs o castigo ou a recompensa. Ajudado por
esta selecçäo automática, o indivíduo seria «levado a pensar» na proba
bilidade do aspecto mau ou bom de cada baralho, isto é, seria «orientado»
para uma teoria sobre o jogo. Os sistemas reguladores básicos do orga
nismo preparariam O terreno para o processo consciente, cognitivo. Sem
essa preparaçäo, a percepçäo do que é positive e do que é negativo nunca
ocorreria, ou ocorreria tarde de mais e seria pequena de mais.
Dez
O Cérebro dum Corpo
com Mente
NENHUM CORPO, NENHUMA MENTE
corpo subiu lhe para os miolos» é, de entre os famosos epigra
mas de Dorothy Parker*, um dos menos conhecidos.
Podemos ter a certeza de que o espirito verrinoso de Miss Parker
nunca se ocupou com a neurobiologia, que näo estava a referir se a
William james e que nunca ouvira falar de George Lakofí ou de Mark
johnson, um linguiste e um filásofo que têm, de facto, o corpo em mente'.
Mas o seu dito pode trazer algum alivio aos leitores que se impacientam
com as minhas divagaçöes sobre o cérebro que tem em mente um corpo
com mente. Nas páginas que se seguem, retomo a ideia de que o corpo é
referência fondamental.
Imagine que vai a pé para casa sozinho, porvolta da meia noite, numa
qualquer cidade onde se pode ainda ir a pé para casa e se apercebe de
repente que alguem, logo atrás de si, o vem a seguir insistentemente.
* Dorothy (Rothschild) Parker (1893 1967). Escritora e poeta americana cé
lebre pelos seus comentários jocosos. Autora de poemas ligeiros e irónicos, es
creveu também contos satiricos e por vezes comoventes como os que se incluem
na colectänea «Laments for the Living», de 1930, editada em Portugal com o titulo
«Lamentos da Vida». (N. da T.)
232 O ERRO DE DESCARTES
Usando uma descriçäo informal, o que sucede é o seguinte: o seu cérebro
detecta a ameaça; reúne algumas opçöes de resposta; escolhe uma; actua
com base nela; reduz ou elimina assim o risco. No entanto, como tivemos
oportunidade de ver quando falámos de emoçöes, as coisas säo bem mais
complicadas. Os aspectos neurais e químicos da resposta do cérebro pro
vocam uma alteraçäo profunda da maneira como os tecidos e os sistemas
de órgäos funcionam. A disponibilidade de energia e a taxa metabólica de
todo o organisme säo alteradas, assim como a prontidäo de resposta do
sistema imunitário; o perfil bioquimico geral do organisme flutua rapida
mente; a musculatura esquelética que permite mover a cabeça, o tronco
e os membros centrai se; e os sinais sobre todas estas alteraçöes säo re
transmitidos ao cérebro, alguns por vias químicas através da corrente
sanguines, de modo a que o estado do corpo, que se modifica constan
temente segundo após segundo, vá afectar o sistema nervoso central a
nivel neural e químico em vários locais. A consequência final de o cérebro
detectar o perigo (ou qualquer situaçäo emocional semelhante) traduz se
num afastamento marcado da sua actividade habitual, tanto em sectores
especificos do organisme (alteraçöes «Iocais») como no organisme em
geral (alteraçöes «globais»). É importante notar que as a'Iteraçöes se regis
tam no cérebro e no corpo.
Apesar de exemplos como este, de ciclos complexes de interacçäo
corpo e o cérebro, cérebro e corpo continuam a ser concebidos como es
tando separados em termos de estrutura e de funçäo. A ideia de que é o
organisme inteiro, e näo apenas o corpo ou o cérebro, que interage com
o meio ambiente é menosprezada com frequencia, se e que se pode dizer
que chega a ser considerada. No entanto, quando vemos, ouvimos,
tocamos, saboreamos ou cheiramos, o corpo e o cérebro participam na
interacçäo com o meio ambiente.
Imagine a visäo de uma paisagem predilecta. Encontram se envol
vidos nessa visäo muito mais do que a retina e os córtices visuais do cére
bro. De certo modo, a córnea é passiva, mas tanto o cristalino como a iris
näo só deixam passar a luz, como também ajustam as suas dimensöes e
forma em resposta à cena que presenciam. O globo ocular é posicionado
por vários músculos de modo a detectar objectes de forma eficaz, e a
cabeça e o pescoço deslocam se para a posiçäo adequada. A menos que
estes e outros ajustamentos tenham lugar, näo se consegue ver grande
coisa. Todos estes ajustamentos dependem de sinais vindos do cérebro
para o corpo e de sinais correspondentes do corpo para o cérebro.
A seguir, os sinais sobre a paisagem säo processados dentro do cére
bro. Säo activadas estruturas sub corticais, como os coliculos superiores;
säo também activados os córtices sensoriais iniciais e as várias estaçöes do
O CÉREBRO DE UM CORPO COM MENTE 233
córtex de associaçäo, assim como o sistema limbico que se encontra
interconectado com elas. Quando o conhecimento relative à paisagem é
activado no interior do cérebro a partir de representaçöes disposicionais
em diversas áreas cerebrais, o resto do corpo também participa no pro
cesso. Mais cedo ou mais tarde, as visceras säo levadas a reagir às imagens
que está a ver e áquelas que a memória está a criar internamente, relativas
ao que vê. Por fim, quando se formar a memória da paisagem que agora
observa, essa memória será um registo neural das muitas alteraçöes do
organisme que acabou de descrever, algumas das quais tiveram lugar no
cérebro (a únagem construida para o mundo exterior, juntamente com as
imagens constituidas a partir da memória), enquanto outras tiveram
lugar no próprio corpo.
Ter percepçäo do meio ambiente näo é, pois, apenas uma questäo de
fazer que o cérebro receba sinais directes de um determinada estimulo, e
muito menos imagens fotográficas directas. O organisme altera se activa
mente de modo a obter a melhor interface possivel. O corpo näo é passive.
Cabe notar também um outro aspecto talvez näo menos importante: a ra
zäo pela qual têm lugar a maioria das interacçöes com o meio ambiente
deve se ao facto de o organisme necessitar que elas ocorram a fim de
manter a homeostase, ou seia, um estado de equilibrio funcional. O orga
nismo actua constantemente sobre o meio ambiente (no principio foram
as acçöes), de modo a poder propiciar os actos necessários à sobrevi
vência. Mas, para evitar o perigo e procurar de forma eficiente alimenta
sexoe abrigo, é necessáriosentiromeio ambiente (cheirar, saborear, tocar,
ouvir, ver), para que se possam formuler respostas adequadas ao que foi
sentido. A percepçäo é tanto actuar sobre o meio ambiente como dele
receber sinais.
A primera vista, a ideia de que a mente emerge do organismo como
um todo pode parecer contra intuitive. Ultimamente, o concerto de men
te tem passado do nenhures etéreo que ocupou no século xvn para a sua
morada actual no ou em redor do cérebro uma certa despromoçäo,
mas, mesmo assim, um posto digno. Pode parecer exagero sugerir que a
mente depende das interacçöes cérebro corpo em termos de biologie
evolutiva, ontogenia (desenvolvimento individual) e funcionamento
actual. Mas o leitor näo deve desanimar. O que estou a sugerir é que a
mente surge da actividade nos circuitos neurais, sem sombra de dúvida,
mas muitos desses circuitos säo configurados durante a evoluçäo por re
quisitos funcionais do organisme. Só poderá haver uma mente normal se
esses circuitos contiverem representaçöes básicas do organisme e se
234 O ERRO DE DESCARTES
continuarem a representar os novos estudos do organisme em acçäo. Em
suma, os circuitos neurais representam o organisme continuamente, à
medida que é perturbado pelos estimulos do meio ambiente fisico e socio
cultural, e à medida que actua sobre esse meio. Se o tema básico dessas re
presentaçöes näo fosse um organisme ancorado no corpo, é possivel que
tivéssemos alguma mente, mas duvido que fosse a mente que agora
temos.
Näo estou a afirmar que a mente se encontra no corpo. Estou a afirmar
que o corpo contribui para o cérebro com mais do que a manutençäo da
vida e com mais do que efeitos modulatórios. Contribui com um conteúdo
essencial para o funcionamento da mente normal.
Retomemos o exemplo da caminhada nocturne. O seu cérebro de
tectou uma ameaça, nomeadamente a pessoa que o segue, e deu inicio a
diversas cadeias complicadas de respostas bioquimicas e neurais. Al
gumas das linhas deste guiäo estäo escritas no próprio corpo e outras no
cérebro. No entanto, seria possivel näo distinguir com clareza o que se
está a passar no seu cérebro e o que se está a passar no seu corpo, mesmo
que fosse perito na neurofisiologia e na neuroendocrinologia. Dar se à
conta de que corre perigo, de que está alarmado e de que talvez deva estu
gar o passo, de que já estugou o passo e que está fora de perigo. O protago
nista deste episódio é feito de um só bloco: na verdade, é uma construçäo
mental muito real, que designarei por self (à falta de uma palavra mais
adequada) e que se baseia nas actividades em curso em todo o seu orga
nismo, ou seja, no corpo propriamente dito e no cérebro.
Apresento de seguida um esboço daquilo que considero sernecessário
para a base neural do self, mas devo dizer desde já que o self é um estado
biológico constantemente reconstituido; näo é o infamehomúnculo dentro
do cérebro que contempla o que se passa. Menciono mais uma vez essa
criatura para que se saiba que o näo vou utilizar. De nada serve invocar
um homúnculo a ver ou a pensar ou a fazer qualquer outra coisa no nosso
cérebro, porque a questäo que se deve colocar em seguida é a de se o cére
bro desse homúnculo tem também uma pequena pessoa no seu cérebro
que vê e pensa por ele, e assim sucessivamente. Esta explicaçäo levanta o
problema do chamado retrocesso infinito* e, no fundo, näo explica nada.
Devo referir também que ter um self, um self único, é perfeitamente
*Trata senaverdade,deumretrocessoinfinito öespaço.Overdadeiropro
blema reside na criaçäo de um encadeamento infinito de bonecas russas umas
dentro das outras, cada uma olhando para aquela que imediatamente a contém.
O CÉREBRO DE UM CORPO COM MENTE 235
compativel com a noçäo de Dennett de que näo possuimos um teatro
cartesiano algures nos nossos cérebros. Existe, isso sim, um selfpara cada
organisme, excepte naquelas situaçöes em que a doença mental criou
mais de um (como sucede nos casos de personalidade múltipla) ou dimi
nuiu ou eliminou o selfnormal (como sucede em determinadas formas de
anosognosia e em determinados tipos de epilepsia). Mas o self, que confe
re subjectividade à nossa experiencia, näo é um inspector central de tudo
o que acontece nas nossas mentes.
Para que o estado biológico do selfse verifique, é necessário que diver
sos sistemas cerebrais, bem como os inúmeros sistemas do corpo, estejam
a funcionar plenamente. Se cortasse todos os nervos que levam sinais do
cérebro para o corpo, o seu estado do corpo alterar se ia radicalmente e,
como consequência, o mesmo sucederia com a sua mente. Se desligasse
apenas os sinais do corpo para o cérebro, a sua mente também se alteraria
Mesmo o bloqueio parcial do circuito cérebro corpo, como sucede em
doentes com lesöes na espinal medula, basta para ocasionar alteraçöes no
estado mental'.
Existe uma experiência filos()fica imaginarla conhecida por
nO tanque», que consiste em imaginar um cérebro removido do corpo,
mantido vivo numa soluçäo de nutrientes, e estiinulado através dos seus
nervos pendentes exactamente do mesmo modo como seria estimulado
caso estivesse dentro do cränio3 . Há quem acredite que tal cérebro teria ex
periências mentais normais. Deixando de lado a suspensäo da descrença
necessária para se imaginar tal coisa (e para se imaginar todas as experien
cias Gedanken*), julgo que este cérebro näo teria uma mente normal. A au
sência de estimulos que saem para o corpo como campo de actuaçäo,
capazes de contribuirem para a renovaçäo e modificaçäo dos estudos do
corpo, teria como resultado a suspensäo do desencadeamento e modula
çäo dos estudos do corpo, os quais, quando representados de volta para
o cérebro, constituera o que considero ser a pedra basilar do sentido de se
estar vivo. Poder se ia argumentar que, se imitasse, ao nivel dos nervos
pendentes, as configuraçöes realistas de sinais recebidas como se provies
sem do corpo, nesse caso, o cérebro retirado do corpo teria uma mente
normal. Essa seria uma experiência interessante, e suspeito que o cérebro
nessas condiçöes podia ter, de facto, alguma mente. Mas o que essa ex
periência mais elaborada teria criado era um substituto do corpo, con
firmando assim que, afinal, «os sinais vindos do corpo» sao necessarios
* Experiências Gedankeii ou thoright experin ents säo experiências imaginárias.
(N. da T.)
236 O ERRO DE DESCARTES
para um cérebro com mente normal. E näo seria nada provável conseguir
fazer que os «sinais do corpo» correspondessem de modo realista à varie
dade de configuraçöes que os estudos do corpo normalmente assumera
quando esses estudos säo activados por um cérebro envolvido em pro
cesses de avaliaçäo.
Em conclusäo, as representaçöes que o nosso cérebro cria para des
crever uma situaçäo e os movimentos formulados como resposta a essa si
tuaçäo dependem de interacçöes mútuas cérebro corpo. O cérebro cria
representaçöes do corpo à medida que este vai mudando sob iníluências
de tipo químico e neural. Algumas dessas representaçöes permanecem
näo conscientes, enquanto outras se tornam conscientes. Ao mesmo tem
po, os sinais do cérebro väo continuando a fluir até ao corpo, alguns de
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