movimento surta o efeito desejado. A selecçäo dos padröes que acabam
por constituir os «sintagmas» e as «frases» na nossa mente e os do mo
vimento partem de uma exposiçäo paralela das possibilidades. E como
tanto O pensamento como o movimento requerem processamentos
concomitantes, a organizaçäo das diversas sequenclas ordenados deve
decorrer continuamente.
Quer concebamos a razäo como sendo baseada na selecçäo automa
tizada, quer a concebamos como baseada na deduçäo lógica por inter
médio de um sistema simbólico, quer de preferência como sendo ba
seada em ambas, näo podemos esquecer o problema da ordem. Proponho
i seguinte soluçäo: (1) se a ordem tiver de ser criada entre as possibilida
des disponíveis, nesse caso, elas teräo de ser ordenados; (2) se tiverem de
ser ordenados, entäo säo necessários critérios (valores ou preferências säo
aqui termos equivalentes); (3) os critérios säo fornecidos pelos marca
dores somáticos, que exprimera, em qualquer altura, as preferências
cumulativas que recebemos e adquirimos.
da Ciêneia 29 14
210 O ERRO DE DESCARTES
Mas de que modo funcionam os marcadores somáticos como critérios?
Uma possibilidade é a de que, quando diferentes marcadores somáticos
se justapöem a diferentes combinaçöes de imagens, alterem a maneira
como o cérebro as trata. Esta influência poderia fazer que fosse dispen
sada uma quantidade diferente de atençäo a cada componente, donde
resultaria a atribuiçäo natural de diversos graus de atençäo a diversos con
te@idos, o que se traduziria numa paisagem irregular. O foco do processa
mento consciente passaria, nesse caso, de componente para componente,
por exemplo, de acordo com a sua ordenaç~ao numa progressäo. Para que
tudo isto suceda, as componentes têm de ficar expostas durante um in
tervalo que vai de centenas a milhares de milissegundos, de uma forma
relativamente estável, e tal só é possivel através da memória de trabalho.
(Encontrei apoio para esta ideia geral nos estudos recentes sobre a neuro
fisiologia da decisäo perceptual, efectuados por William T. Newsome e
pelos seus colegas. O aumento de quantidade de sinais aplicados a uma
determinada populaçäo de neurónios que representa um determinada
conteúdo resultou numa «decisäo» favorável a esse conteúdo através de
um mecanismo do tipo «o vencedor leva tudo» 13.)
O conhecimento e os movimentos normais requerem a organizaçäo de
sequências concomitantes e interactivas. Onde existe uma necessidade de
ordem, haverá umá necessidade de decisäo, e, sempre que houver uma
necessidade de decisäo, deverá existir um critério para se tomar essa deci
säo. Dado que muitas decisöes têm impacte sobre o futuro de um orga
nismo, é possivel que alguns critérios estejam enraizados, directa ou indi
rectamente, nos impulsos biológicos do organismo (as razöes do orga
nismo, por assim dizer). Os impulsos biológicos podem ser expresses de
forma manifesta ou oculta e usados como um marcador estabelecido pela
atençäo num campo de representaçöes mantida activo pela memória de
trabalho.
O dispositivo automatizado de marcaçäo somática da maior parte de
nós que tiveram a sorte de ser criados numa cultura relativamente
saudável tem se acomodado, por via da educaçäo, aos padröes de rl
cionalidade dessa cultura. Näo obstante as suas raizes se encontrarem na
regulaçäo biolôgica, o dispositivo está sintonizado para as prescriçöes
culturais que se destinam a garantir a sobrevivênci@l numa determinada
sociedade. Se o cérebro é normal e a cultura em que se desenvolve é saudá
vel, o dispositivo funciona de modo racional relati\,amente às convenç öes
sociais e à ética.
A acçäo dos impulsos biolôgicos, dos estudos do corpo e das emoçöes
pode ser uma base indispensável para a racionalidade. Os niveis in
feriores do edificio neural da razäo säo os mesmos que regulam o
A HIPOTESE DO MARCADOR SOMATICO 211
processamento das emoçöes e dos sentimentos, juntamente com o das
funçöes globais do corpo, de modo a que o org@inismo consiga sobreviver.
Estes niveis inferiores mantêm relaçöes directas e mútuas com o corpo
propriamente dito, integrando o deste modo na cadeia de operaçc)es que
permite os mais altos voos em termos da razäo e dá criatividade. Muito
provavelmente, a racionalidade é configurada e modlilada por sinais do
corpo, mesmo quando executa as distinçöes mais sublimes e age em con
formidade com elas.
Pascal, que afirmou que «o coraçäo tem r@izöes que a própria razäo
desconhece», deveria ter achado plausivel o argumente que acabo de
ipresentar". Se me fosse permitido alterar a sua afirmaçäo, diria: O or
,gains mo tein algititias razöes que a raziio tem de iitilizar. Näo duvido que o
processo continua para lá das razöes do coraçäo. Por um lado, usando os
úistrumentos da lógica, podemos verificar a validade das selecçöes que as
nossas preferências ajudaram a fazer. Por outro, podemos ultrapassá las
recorrendo às estratégias de deduçäo e induçäo sobre proposiçöes linguisti
c@is imediatamente disponiveis. (Depois de ter terminado este manuscrite,
ei icontrei três vozes compativeis. J. St. B. T. Evans propós recentemente
que existera dois tipos de racionalidade, que respeitam basicamente aos
dois dominios que aqui mencionei [pessoal / social e näo pessoal / social 1;
o filásofo Ronald De Sousa defende que as emoçöes säo inerentemente
racionais, e P. N. johnson Laird e Keith Oatley sugerem que as emoçöes
básicas ajudam a controlar as acçöes de forma racional".)
Parte
3
Nove
Testes a@ hipo 'tese
do marcador soma'tico
SABER MAS NAO SENTIR
omecei a investigar a hipétese do marcador somático recorren
C do às respostas do sistema nervoso autónomo, numa série de
estudos em que colaborei com Daniel Tranel, psicofisiólogo e neuropsi
cólogo experimental. O sistema nervoso autónomo é constituido tanto pe
los centros de controlo autónomos, localizados no sistema limbico e no
tronco cerebral, como pelas projecçöes de neurónios provenientes desses
centros e destinadas às visceras do organisme inteiro. Todos os vasos san
guineos, incluindo os do mais espesso e extenso órgäo do corpo, a pele,
säo inervados por terminais do sistema nervoso autónomo, o mesmo su
cedendo ao coraçäo, pulmöes, intestinos, bexiga e órgäos reprodutores.
Até um órgäo como o baço, que está sobretudo associado à imunidade, é
inervado pelo sistema nervoso autónomo.
As ramificaçöes dos nervos autónomos estäo organizadas em duas
grandes divisöes, o sú npático e o parassimpático, e partem do tronco cere
bral e da espinal medula, umas vezes de forma isolada, outras acom
panhando ramificaçöes nervosas näo autónomas. (As acçöes das divisöes
simpática e parassimpática, que säo assistidas por neurotransmissores
diferentes, säo, em larga medida, antagónicas, isto é, enquanto uma
216 O ERRO DE DESCARTES
promove a contracçäo dos músculos lisos, a outra promove a sua dila
taçäo.) As ramificaçöes nervosas autónomas que regressam ao sistema
nervoso, trazendo informaçöes respeitantes ao estado das visceras, tendem
a usar os mesmos percursos.
Dum ponto de vista evolutivo, o sistema nervoso autónomo foi o meio
neural encontrado pelo cérebro de organismos bem menos soíisticados
que o nosso para intervir na regulaçäo da sua economia interne. Quando
a vida consistia sobretudo em garantir o fuilcionamento equilibr@ido de
alguns órgäos, e quando havia uma gama limitada e um limitado número
de transacçöes com o meio ambiente, os sistemas imunológico e endó
crino controlavam a maior parte do que era preciso controlar. Aquilo de
que o cérebro necessitava era de informaçöes sobre o estado dos dife
rentes órgäos e de um meio para alter@ir esse estado face a uma determi
nada circunstäncia externe. Foi exactamente isso que o sistema nervoso
autónomo tornou possivel: uma rede para a entrada da sinalizaçäo sobre
as alteraçöes registadas nas visceras e uma rede para a saida de ordens
motoras a caminho dessas visceras. Mais tarde, desenvolveram se for
mas mais complexes de resposta motora, como aquelas que acabaram por
vir a controlar as mäos e o mecanismo vocal. Respostas deste último tipo
necessitavam de uma diferenciaçäo cada vez mais complexe do sistema
motor periférico para que fosse possivel controlar o funcionamento dos
músculos finos e das articulaçöes e receber sinais referentes ao tacto, à
temperatura, à dor, à posiçäo das articulaçöes e ao grau de contracçäo
muscular.
É preciso näo esquecer que a ideia do marcador somático diz respeito
a uma alteraçäo integral do estado do corpo, a qual inclui modificaçöes,
tanto nas visceras como no sistema músculo esquelético, que säo induzi
das quer por informaçöes neurais quer por informaçöes quimicas, ainda
que a componente visceral se afigure um pouco mais critica que a mu's
culo esquelética na criaçäo de estados de fundo e estados emocionais.
Para começarmos a explorar em termos experimentais a hipótese do
marcador somático, tivemos de escolher alguns aspectos deste vasto pa
norama de alteraçöes, e fazia sentido começar por estudar as respostas do
sistema nervoso autónomo. Afinal, quando geramos o estado somático
que caracteriza uma determinada emoçäo, o sistema nervoso autónomo
constitui provavelmente a chave para se obter a @ilter@lçäo adequada dos
parâmetros fisiológicos no organisme, apesar da importäncia das vias
quimicas que säo activadas em simultäneo.
De entre as respostas do sistema nervoso autónomo que é possivel in
vestigar em laboratório, a resposta de condutividade dérmica afigura se
talvez como a mais útil. É fácil de detectar, é fidedigna e tem sido estudada
TFSTES A HIPOTESE DO MARCADOR SOMATICO 217
com minúcia pelos psicofisiólogos em individuos normais de diversas
idades e cultures. (Muitas outras respostas, como o ritmo cardiaco e a
temperatura da pele, também têm sido estudadas.) É possivel registar a
resposta de condutividade dérmica sem qualquer dor ou mal estar para
o individus, usando um par de eléctrodos ligados à pele e a um poligrafo.
O principio subjacente à resposta é o seguinte: à medida que o nosso orga
nismo se começa a alterar apés uma determinada percepçäo ou pensa
mento e começa a registar se o estado somático correspondente (por
exemplo, o estado relative a uma determinada emoçäo), o sistema ner
voso autónomo aumenta subtilmente a secreçäo das gländulas sudori
paras. Embora o aumenta da quantidade de fluido seja habitualmente täo
pequeno que näo é detectável a olho nu ou pelos sensores neurais da
nossa própria pele, é suficiente para reduzir a resistência à passagem da
corrente eléctrica. Para medir a resposta, o investigador passa entäo uma
corrente eléctrica de baixa voltagem na pele entre os dois eléctrodos de
tectores. A resposta de condutividade dérmica consiste numa alteraçäo
da quantidade de corrente eléctrica conduzida. A resposta é registada
como uma onda, que leva algum tempo a subir e depois a descer. Pode
medir se a amplitude da onda (em microsiemens), assim como o seu per
fil no tempo; pode medir se também a frequência com que as respostas
se registam em relaçäo a um determinada estímulo durante um determi
nado periodo de tempo.
As respostas de condutividade dérmica têm constituido um elemento
central na investigaçäo psicofisiológica, tendo desempenhado igual
mente uma funçäo importante, e controverse, nos chamados testes de
detecçäo de mentiras lie detector tests, cuja finalidade é claramente di
ferente da das nossas experiências. Estes testes visam determinar se as
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