Marcos não possui uma narrativa do nascimento, pelo que existe menos oportunidade de discutir a genealogia de Jesus; no entanto, este Evangelho também é situado no contexto da História judaica da salvação, como vemos nas referências a Marcos no parágrafo sobre Mateus. Além disso, os Evangelhos estão todos profundamente marcados por palavras, frases e motivos bem conhecidos na Escritura judaica.
Todos sabem que o Novo Testamento se segue ao Antigo Testamento. Um acaba e o outro começa. É assim que os Evangelhos apresentam a situação. Os autores dos Evangelhos fazem um trabalho tão bom neste como em outros casos que nem sequer reparamos como o seu ponto de vista é surpreendente. A história é extremamente seletiva, os acontecimentos decisivos aparecem com grandes intervalos uns entre os outros e as pessoas esquecem frequentemente que há séculos de distância entre os vários acontecimentos. Mais ainda: há
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vários séculos que desaparecem completamente; o leitor da Bíblia protestante tem pouquíssima informação sobre o período entre 400 e 4 a.e.c., o leitor da Bíblia católica dispõe de um pouco mais." Um historiador normal esperaria que as pessoas que pensavam que Jesus era «rei» discutissem a sua figura à luz de reis mais recentes do que David - Herodes, por exemplo, ou um dos Asmoneus. O número dos séculos não desempenha qualquer papel na história da salvação, visto que é Deus que governa. Segundo uma cronologia bíblica tradicional (que data a criação no an;-de 4004 a. C.), Deus chamou-Abraão em 1921 a. C., enquanto Moisés libertou os israelitas do Egipto por volta de 1500 a. C. e David estava na época áurea do seu poder em 1030 a. C. Estes foram o; principais antecessores de Jesus na história &salvação. Um paralelo da atualidade para o tratamento que os Evangelhos dão a Jesus seria descrever Isabel II da Inglaterra dizendo que ela é a herdeira do trono de Guilherme, o Conquistador, que ela cumpre a promessa do rei Artur e que ela é o que o seu nome implica: uma segunda Isabel, portanto, a imagem de Isabel I - e fazê-lo sem a mínima referência ao derrube de Carlos I por Cromwell, à restauração de Carlos II, à revolução sangrenta que levou Guilherme de Orange e Maria ao trono da Inglaterra, processo através do qual o rei se tornou dependente de um governo eleito, etc.
O historiador atual quer saber em que circunstâncias Jesus operou, porque teve sucesso umas vezes e outras vezes fracassou, porque evoluiu o cristianismo assim, etc. Os Evangelhos respondem: Deus decidiu completar agora um processo de salvação que iniciou com o chamamento de Abraão. É difícil a um historiador estudar o plano de Deus. Retomando a nossa analogia, suponhamos que alguém que está absolutamente convencido de que Isabel II cumpre as promessas de grandeza futura contidas nas histórias do rei Artur, de Guilherme, o Conquistador, e de Isabel I, escreveu uma biografia de Isabel II
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baseada parcialmente em histórias sobre os seus antecessores. É neste ponto que a nossa analogia começa a ceder, visto que sabemos tanto sobre Isabel Il. Ninguém acreditaria num autor que afirmasse que ela é virgem (como Isabel I), que a sua espada se chama Excalibur (como a de Artur) e que a sua língua materna é o francês (como era o caso de Guilherme, o Conquistador). É certo que o nosso suposto autor poderia estabelecer autênticos paralelos para fundamentar a sua comparação: hoje, há problemas com os irlandeses, tal como no tempo de Isabel I; Isabel II sabe francês. Mas estes paralelos não nos provariam que outros aspetos do reinado de Isabel I ou de Guilherme, o Conquistador, forneçam informações sobre Isabel Il.
Os autores dos Evangelhos fornecem-nos este tipo de informações sobre Jesus, informações que se baseiam na suposição de que ele cumpriu as profecias bíblicas. Isto não significa que eram historiadores desonestos. Eles nem sequer eram historiadores, a não ser acidentalmente (apesar de Lucas ter algumas características de um historiador helenista). Nem eram desonestos. Acreditavam que Jesus cumpriu, realmente, as promessas da Escritura Hebraica. Se o fez num caso, então, provavelmente, também o fez em outros casos. Existiam algumas correspondências autênticas e isto facilitou aos primeiros cristãos acrescentarem novos factos derivados da Escritura Hebraica. Este processo ainda estava a decorrer na fase do pseudo-Mateus, que lê em Isaías que o boi e o burro conhecem o seu senhor e que, por esta razão, acrescentou estes animais à cena do nascimento (acima, p. 75).
Uma forma de interpretação e de utilização da Bíblia é designada na linguagem técnica como «tipológica». Uma pessoa ou um acontecimento na Escritura hebraica constitui um «tipo» no sentido de um arquétipo ou de um protótipo. Mais tarde, algo ou alguém constitui o cumprimento do tipo e o acontecimento original fornece informações sobre o seguinte. Paulo utiliza este termo: o povo que saiu do Egipto conduzido por Moisés, mas que, depois, pecou e foi castigado com a morte, é «um tipo para nós», um «tipo» para nos servir de aviso, para que não pequemos da mesma forma (1 Cor 10, 1-12).
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«Estas coisas aconteceram-lhes como um tipo e foram escritas para nosso ensinamento» (1 Cor 10, 11). A perspetiva evangélica da promessa e do seu cumprimento funciona de uma maneira bastante semelhante.
Esta visão da História constituiu uma grande ajuda para os autores dos Evangelhos. Ela permitiu-lhes preencher algumas lacunas na história de Jesus. Foi a existência de paralelos autênticos entre João Baptista e Jesus, por um lado, e figuras e profecias bíblicas, por outro lado, que os colocou, provavelmente, neste caminho. Quero dizer com isto que, por vezes, os judeus do século I decalcavam propositadamente os seus atos dos atos das figuras bíblicas. É bem possível que João Baptista se vestisse, de facto, como Elias e que Jesus tivesse entrado em Jerusalém montado num burro, evocando conscientemente uma profecia de Zacarias (ver Mt 21, 4 e segs. onde Zacarias é citado). Existem provas de que, na década posterior a Jesus, houve outros profetas que agiram intencionalmente de formas evocativas de histórias bíblicas, ocorridas séculos antes deles (atrás, p. 49 e segs.). Não foram só Mateus, Marcos e Lucas que consideraram a história da salvação de Israel como o verdadeiro contexto de Jesus e Paulo não foi o único judeu do século I que pensou em termos de «tipos» e de cumprimento; outros, incluindo, muito possivelmente, Jesus, pensavam da mesma forma.
Quanto mais paralelos havia entre Jesus e as personagens ou profecias da Escritura Hebraica, maior era a prontidão de Mateus, Marcos e Lucas para inventar ainda mais. Eles podem ter pensado que, se havia seis semelhanças, provavelmente, havia uma sétima. Penso que não há dúvida de que eles inventaram alguns paralelos, apesar de, em certos casos, a possibilidade de correspondências ou de Jesus ter imitado conscientemente tipos escriturísticos significar que, muitas vezes, não podemos ter a certeza. Os exemplos mais evidentes destas invenções encontram-se nas narrativas do nascimento. Mateus e Lucas escrevem que Jesus nasceu em Belém, mas cresceu em Nazaré. Isto reflete, provavelmente, dois tipos de «factos»: na história vulgar, Jesus era de Nazaré; na perspetiva da história da salvação, o redentor de Israel tinha de ter nascido em Belém, a cidade de David. Os Evangelhos têm formas completamente diferentes e irreconciliáveis de deslocar Jesus e a sua família de um local para o outro. Apresento em colunas os resumos das passagens em causa:
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Mateus 1,18-2,23
Quando Jesus nasceu, um anjo disse-lhes para fugirem, porque Herodes, que tinha ouvido que havia de nascer um novo rei, planeava matar todos os recém-nascidos do sexo masculino.
Eles refugiaram-se no Egipto e, depois da morte de Herodes, voltaram ao seu lar em Belém. Mas encontraram ali outro Herodes
(Arquelau), por isso, mudaram-se para Nazaré na Galileia (onde havia um terceiro Herodes, Antipas).
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Lucas 2,1-39
César Augusto exigiu que todos os homens («todo o mundo») se recenseassem para fins fiscais e que se registassem na terra natal dos
seus antepassados.
José era descendente de David e, portanto, foi a Belém, levando Maria consigo. Durante a sua estadia naquela cidade, Maria deu à luz
Jesus.
Quando ela estava em condições de viajar, a família regressou ao seu lar, em Nazaré.
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É impossível que ambas as histórias sejam corretas. É improvável que alguma delas o seja. Concordam apenas em dois «factos»: na História real, Jesus era de Nazaré; na história da salvação, ele tinha de ter nascido em Belém. Não existe concordância na questão do domicílio original da família, assim como na mudança desta de um local para outro. O esquema de Lucas é fantástico. Segundo a genealogia do próprio Lucas (3, 23-38), David tinha vivido quarenta e duas gerações antes de José. Que razão teria José para se registar na cidade natal de um dos seus antepassados quarenta e duas gerações antes dele? O que pretendia Augusto, o mais inteligente de todos os imperadores? Com um decreto deste tipo, o Império Romano teria ficado completamente às avessas. Além disso, como saberia um homem para onde deveria ir? Ninguém podia recuar na sua genealogia até à quadragésima segunda geração e, mesmo que pudesse fazê-lo, descobriria que tinha miríades de antepassados (o número ascende já a um milhão depois da vigésima geração). E, naquela altura, David tinha, certamente, dezenas de milhares de descendentes. Era possível identificá-los a todos? Se fosse, como poderiam eles registar-se todos numa pequena aldeia? É óbvio que é possível rever o que Lucas escreveu, de modo a ser um pouco menos fantástico: César decretou, de facto, que determinados varões que acreditavam ser
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descendentes de família real de cada um dos reinos do império se registassem desta forma. No entanto, esta revisão não resolveria o problema, As pessoas refugiam-se neste tipo de revisões para salvarem o texto: o texto tem de ser verdade e, se o revirmos, podemos continuar a afirmar que ele é verídico. Mas a revisão mina o princípio. É que a proposta segundo a qual só os membros das famílias reais tiveram de se registar nas suas terras natais ignora o facto de, na Palestina, haver uma família real no poder: a de Herodes. Augusto apoiava Herodes. Ele não teria pedido a membros de uma família real que não estava no poder havia mais de 500 anos e à qual se tinham seguido duas outras dinastias (os Asmoneus e os Herodinianos) para se recensearem de acordo com um processo especial. Ele não teria querido a tensão social que a revivescência das esperanças de um reino de David teria gerado.
Não é razoável pensar que houve, sequer, um decreto que exigisse às pessoas que viajassem a fim de se registarem para fins fiscais. O recenseamento de Lucas levanta muitas dificuldades. Uma das dificuldades consiste no facto de Lucas datar o recenseamento no tempo próximo da morte de Herodes (4 a.e.c.), bem como dez anos mais tarde, quando Quirino era legado da Síria (6 e.c.). Sabemos através de Josefo, sendo a informação confirmada por uma inscrição antiga, que, no ano 6 e.c., quando Quirino era legado, Roma realizou de facto um recenseamento das pessoas que viviam na Judeia, em Samaria e na Idumeia - mas não na Galileia e não pedindo-lhes que viajassem. Maria e José, que, de acordo com Lucas, viviam na Galileia, não teriam sido
afetados pelo recenseamento de Quirino, que só abrangeu a população que vivia em ambas as províncias romanas da Judeia e da Síria. Galileia (como foi descrito no terceiro capítulo) era independente e não uma província romana. Além disso, o objetivo dos recenseadores da Antiguidade era verificar quem possuía bens imobiliários sujeitos a impostos. Isto significava que não eram os contribuintes que tinham de viajar, mas sim os recenseadores. É possível que Lucas tenha misturado as duas datas porque houve motins tanto depois da morte de Herodes, no ano 4 a.e.c., como durante o censo no ano de 6 e.c. Isto é um erro histórico relativamente insignificante para um autor antigo
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que trabalhava sem arquivos ou sem um calendário oficial sequer e que viveu oitenta anos depois do período sobre o qual escreveu. A explicação mais provável para o relato de Lucas é a seguinte: Lucas ou a sua fonte combinaram por engano o ano 4 a.e.c. (a morte de Herodes) com
o ano 6 e.c. (o censo de Quirino); quando «descobriram» um censo na época da morte de Herodes, decidiram criar o acontecimento, justificando, assim, a viagem de José da sua cidade natal, Nazaré, para Belém." De qualquer modo, a verdadeira fonte para a opinião de Lucas de que Jesus tinha nascido em Belém era, quase com certeza, a convicção de que Jesus cumpriu a esperança de que, um dia, haveria de aparecer um descendente de David para salvar Israel. Zacarias tinha profetizado que Deus «levantaria um chifre de salvação para nós, na casa do seu servo David» (citado em Lc 1, 69); Jesus era esse «chifre de salvação»; portanto, Jesus nasceu na cidade de David.
A história de Mateus é mais verosímil. Herodes era impiedoso, matando as pessoas quando pareciam constituir uma ameaça para o seu reinado, incluindo (como vimos) a sua esposa preferida e os seus dois filhos, assim como um filho de uma outra sua esposa. Será que ele mandou realmente «matar todos os meninos de Belém e de toda a região que tinham de dois anos para baixo» (Mt 2, 16)? É improvável. Josefo narra uma série de histórias sobre a crueldade de Herodes, mas não esta. É provável que Mateus tenha ido buscar esta informação à história do Êxodo (1, 21 e segs.), segundo a qual Moisés, em criança, esteve ameaçado por uma ordem semelhante do faraó egípcio. Mateus viu em Jesus um segundo Moisés, superior ao primeiro (assim como o filho de David) e apresentou uma parte considerável dos seus capítulos iniciais nos termos das histórias sobre Moisés. O relato da fuga para o Egipto e do regresso lembra ao leitor a História de Israel e do êxodo do Egipto. Mateus cita uma afirmação de Oseias: «Do Egipto chamei o meu filho» (Mt 2, 15). Isto referia-se originalmente a Israel como filho (coletivo) de Deus que Moisés retirou do Egipto (note-se a forma passada).
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Mateus aplicou a citação a Jesus, que ele considerava o Filho de Deus e a afirmação em Oseias, que fazia alusão ao êxodo no tempo de Moisés, era, provavelmente, a única fonte que Mateus tinha para a sua história sobre Jesus e a sua família. Em Mateus 5, Jesus sobe a uma montanha (tal como Moisés, quando recebeu a Lei) e fala sobre alguns dos Dez Mandamentos e sobre outras passagens da Lei de Moisés (Mt 5, 21-48). Há uma secção do seu Evangelho em que Mateus coloca dez milagres (Mt, 8-9), talvez para lembrar os dez milagres de Moisés no Êxodo 7,8-11; 10. Os três sinópticos dizem que Jesus ficou quarenta dias no deserto, em parte, para recordar os quarenta anos de permanência no deserto, no tempo de Moisés. Estes paralelos com Moisés tornam ainda mais provável que Mateus tenha tirado elementos da narrativa do nascimento das histórias sobre Moisés. Podemos verificar que Lucas, ao contrário de Mateus, não atribuiu a Moisés a importância de um «tipo», de um percursor de Jesus. A sua narrativa do nascimento concentra-se exclusivamente em David e sublinha que as afirmações que Mateus coloca no sermão da montanha foram feitas numa planície (6, 17). Em Lucas, Jesus não é um segundo Moisés. Lucas e Mateus concordam que Jesus se enquadra na história da salvação judaica, mas discordam quanto aos pormenores. Lucas pensava que Jesus tinha cumprido as profecias judaicas e que era o filho de David prometido, mas não o via como um novo Moisés.
As narrativas do nascimento constituem um caso extremo. Mateus e Lucas utilizam-nas para situar Jesus na história da salvação. Parece que eles tinham pouquíssimas informações históricas (no nosso sentido do termo) sobre o nascimento de Jesus e, por isso, seguiram uma das outras suas fontes, isto é, a Escritura judaica. Não existe mais nenhuma parte significativa dos Evangelhos que dependa tanto da teoria de que a informação sobre David e Moisés pode ter sido, pura e simplesmente, transferida para a história de Jesus. Mas temos de constatar que os primeiros cristãos consideravam que isto era algo perfeitamente legítimo. Do seu ponto de vista, era legítimo. Na perspetiva deles, Deus tinha planeado tudo: o chamamento de Abraão, a vida de Moisés, o êxodo do Egipto, o reino de David, a vida de Jesus. Eles também pensavam que Deus dava indicações antecipadas - sinais, presságios, profecias - daquilo que iria fazer. Estavam convencidos de que Deus tinha enviado Jesus para salvar o mundo e, portanto, pensavam que Ele tinha dado indicações prévias
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sobre aquilo que pretendia fazer e que os seus profetas o tinham profetizado. Muitos outros escritores judeus do século I pensavam da mesma forma.
Mas havia limites, tanto na redação dos Evangelhos, como na restante literatura judaica. Os Evangelhos estão cheios de ecos da Escritura judaica, mas, apesar disso, ninguém confundiria o Jesus dos Evangelhos, nem com Moisés, nem com David. Apesar de a história de Jesus, tal como Mateus a conta, apresentar uma série de paralelos com as histórias sobre Moisés, também existem diferenças evidentes. Jesus não trouxe tábuas de pedra da montanha; não casou, como Moisés, não contou com o apoio do seu irmão, como Moisés com o de Aarão, não viveu 120 anos; não morreu sozinho. Os Evangelhos também afirmam a existência de uma ligação entre Jesus e David, mas não apresentam Jesus, de maneira nenhuma, como David. Não existem paralelos reais: não existem equivalentes para Saul, Jonatan, Betsabé ou Absalão, e Jesus também não é um grande guerreiro.
Os Evangelhos não representam, de maneira alguma, um caso único de adaptação das esperanças tipológicas judaicas a circunstâncias diferentes. Pelo contrário, houve outros escritores do tempo que invocaram a história da salvação utilizando nomes e títulos do passado,
mas fazendo, simultaneamente, alterações substanciais. Apresentarei aqui dois exemplos aos quais voltaremos mais tarde, uma vez que envolvem os títulos de «Messias» e de «Filho de David». Um hino escrito por volta de 63 a.e.c., no tempo da conquista de Jerusalém por Pompeu, anseia pelo momento em que um filho de David purificará Jerusalém dos ímpios. No entanto, este futuro Filho de David «não confiará em cavalo, cavaleiro e arco, nem juntará ouro e prata para a guerra. Tão-pouco fomentará numa multidão a esperança de um dia de guerra». (Salmos de Salomão, 17, 33.) Isto significa que ele será completamente diferente do próprio David. A seita conhecida através dos Rolos do Mar Morto também esperava duas figuras messiânicas, das quais um seria um descendente do sacerdote Aarão e o outro descendente de David. O filho de David parece não ter qualquer função, enquanto a autoridade estará nas mãos do Messias sacerdotal. Segundo um dos rolos (A Guerra entre os Filhos da Luz e os Filhos das Trevas), haverá uma grande batalha e os Filhos da Luz combaterão os Filhos
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das Trevas. O Messias davídico não desempenha qualquer papel na guerra. Os sacerdotes, sim; tocam trombetas e dão ordens. Um exército recrutado das doze tribos de Israel traz estandartes e marcha de um lado para o outro. Mas a batalha real é travada por anjos e o golpe final é dado pelo próprio Deus. Portanto, havia outros judeus que esperavam um Messias da casa de David que não levavam esta expectativa ao ponto de descreverem a figura futura em termos derivados das histórias bíblicas sobre David. O título - «Messias» ou «Filho de David» - era a única ligação existente entre ambos.
Os judeus que esperavam um futuro melhor queriam relacioná-lo com o seu passado, com a história da relação de Deus com Israel, por isso, utilizavam nomes e títulos que eram importantes na Bíblia. Mas os tempos tinham mudado. Os romanos seriam muito mais duros do que os cananeus e os filisteus e os judeus sabiam que precisavam da ajuda de um exército celeste. Um David não era suficiente. Mais: havia muitos judeus no tempo de Jesus que não queriam uma monarquia. Embora alguns de entre eles, como, por exemplo, os membros da seita
do Mar Morto, ainda falassem de «David», nem mesmo eles pareciam já interessados neste tipo de monarquia. Os reis tinham tendência para ser ditadores e a seita do Mar Morto preferia uma forma de governo mais democrática ou teocrática.
Por conseguinte, quando os autores dos Evangelhos situam a história de Jesus no contexto da história da salvação judaica, utilizam motivos da Escritura, sobretudo motivos relacionados com Abraão, Moisés e David, mas não modelam o seu próprio Messias à luz destas personagens bíblicas. É óbvio que se conservou algo do Jesus verdadeiro e os autores introduziram também os seus próprios ideais, que parecem ser bastante diferentes dos ideais do Génesis, do Deuteronómio, do 2 Samuel ou do 1 Reis. Eles pensavam que Jesus tinha ultrapassado Moisés e que era um tipo de rei completamente diferente de David. Por isso, Jesus não representa nenhuma reprodução «em papelão» de Moisés ou de David.
Também não existem quaisquer indícios seguros que nos digam quando uma passagem nos Evangelhos foi inventada como um para lelo com uma fase anterior da história da salvação, quando uma passagem
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foi trabalhada para poder servir realmente como um paralelo e quando o próprio Jesus (ou João Baptista) criaram intencionalmente uma reminiscência. Temos de estudar o material, de examinar até que ponto o paralelo é estreito e de utilizar o senso comum. No entanto, nunca devemos esquecer que o objetivo dos autores não era escrever história académica. É perfeitamente razoável que tentemos obtê-las deles, mas não podemos esperar que eles colaborem connosco. Eles queriam convencer os leitores de que Jesus cumpriu as promessas que Deus tinha feito a Israel. Estas promessas incluíam não só a redenção do povo de Israel, mas também a salvação dos gentios. Os Evangelhos descrevem Jesus como o salvador do mundo inteiro, mas ele é um salvador universal que pertence à história da salvação judaica.
Os autores queriam convencer os seus leitores de que Jesus era o redentor judaico universal porque acreditavam que isto era absolutamente verdade. Isto não impede que, tal como vimos, eles discordem em pontos importantes (como, por exemplo, na questão de saber se Jesudevia ou não ser compreendido como o cumprimento do «tipo» mosaico). Esta divergência de opiniões é esclarecedora para o historiador. Seria insensato da parte de um historiador discutir se o Jesus histórico era ou não uma reminiscência de Moisés, assim como ter esperança de poder resolver este problema através de uma comparação entre Mateus e Lucas. Mateus atribuiu à Lei um papel mais importante na religião do que Lucas, pelo que o Jesus de Mateus é mais doutor da Lei do que o Jesus de Lucas. Isto é uma divergência teológica no quadro de um acordo teológico mais amplo: Jesus cumpriu «tipos» escriturísticos. Pelo contrário, não seria insensato da parte de um historiador procurar saber se as passagens isoladas, nas quais Mateus transmite palavras e atos de Jesus, dão a ideia de que Jesus era um legislador. Será que os pormenores de Mateus subvertem a sua visão teológica?
Neste caso específico, a resposta será «em parte, sim; em parte, não». Mateus e Lucas tinham perspectivas teológicas que, no essencial, estão fora do alcance da nossa investigação histórica: podemos constatar que as tinham e podemos investigar como as obtiveram, mas não podemos ocupar-nos da questão da sua «veracidade» ou falsidade. Este facto não impede que os Evangelhos contenham material que não resulta das perspectivas teológicas dos mesmos. Além disso, existem três Evangelhos sinópticos, com perspectivas teológicas um tanto diferentes e estas divergências, por vezes, permitem-nos descobrir quais são as partes do material que não são explicáveis como componentes integrantes de uma
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construção teológica. Gostaria de voltar a dizer que este tipo de análise não agradaria nada aos autores dos Evangelhos - e, provavelmente, a maior parte dos primeiros cristãos. Os autores estavam convencidos de terem escrito a verdade e apelavam ao leitor para que este acreditasse nela. O historiador responde que deseja distinguir um tipo de verdade da outra e estudar apenas o segundo tipo, isto é, a verdade profana. Suspeito que os autores dos Evangelhos estavam menos interessados neste segundo tipo de verdade. Se isto for assim, então a tarefa de descobrir
alguns elementos da história comum no grande contexto da história da salvação estará facilitada. Se os autores dos Evangelhos não estivessem interessadíssimos em adaptar todos os pormenores à sua teologia, não teriam feito grandes alterações de pormenor.
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