ISA SEVERINO, ESTH, IPG, UDI, UNIDADE DE INVESTIGAÇÃO E DESENVOLVIMENTO DO INTERIOR - isaseverino@ipg.pt
TEMA 1.3 FLORBELA – DA CONFISSÃO DO DIÁRIO À REINVENÇÃO DE SI, ISA SEVERINO, ESTH, IP GUARDA
Resumo
A escrita diarística assume um papel primordial e inclusive incontornável para o entendimento de Florbela. Apesar da sua curta dimensão, constituído apenas por trinta e dois fragmentos, é possível analisar um eu poliédrico, em busca de si e concomitantemente em constante efabulação.
Neste sentido, no âmbito da presente comunicação, pretendemos analisar o discurso deste eu, que oscila entre polos extremos, de modo a captarmos as diversas imagens que faculta.
1.
Os diferentes registos de Florbela Espanca quer em verso quer em prosa revelam, de modo mais ou menos explícito, o retrato de um eu que se espraia no corpo textual. Com efeito, é difícil ficar imune aos retratos que os textos nos facultam deste eu. Retratos, por vezes, contraditórios, multifacetados, que se desdobram em novas máscaras, ocultando o rosto que lhes subjaz.
Neste sentido, e fazendo jus ao título da comunicação, propomos uma (re)leitura do Diário de Florbela Espanca, de modo a perscrutarmos o retrato que este eu esculpe nos seus registos diarísticos.
Apesar da sua curta dimensão, o Diário da poeta portuguesa não deixa de ter expressividade, permitindo-nos perceber a interligação que se estabelece entre o seu diário e os seus versos, já que nos dois registos é percetível a imagem de um eu que deambula entre a procura de si, o narcisismo que o domina e, não raras vezes, entre uma nostalgia que o assola.
2.
No âmbito desta reflexão, evocamos o primeiro fragmento do seu curto diário, datado de onze de janeiro de 1930, o qual inicia com uma sequência de perguntas retóricas, revelando um eu que procura através do outro − um passível leitor − descortinar os traços do eu que escreve e viabilize um maior autoconhecimento:
Para mim? Para ti? Para ninguém? Quero atirar para aqui, negligentemente, sem pretensões de estilo, sem análises filosóficas, o que os ouvidos dos outros não recolhem: reflexões impressões ideias, maneiras de ver, de sentir − todo o meu espírito paradoxal, talvez frívolo, talvez profundo.
Foram-se, há muito, os vinte anos, a época das análises, das complicadas dissecações interiores. Compreendi por fim que nada compreendi, que mesmo nada poderia ter compreendido de mim. Restam-me os outros... talvez por possa chegar às infinitas possibilidades do meu ser misterioso, intangível, secreto (Espanca, 2002: 256).
Como explica Paula Morão, Florbela dirige-se “para esse vago, talvez ansiado interlocutor que logo parece ser negado por ninguém”, (...) “respeitando o protocolo geral da diarística” (Morão, 1997:110). O pronome indefinido “ninguém” parece justificar a aparente despreocupação e inclusive um descomprometimento face ao registo escrito, visto que se trata de uma escrita íntima do foro pessoal, não almejando a priori qualquer destinatário a não ser o próprio autor, sujeito e simultaneamente objeto do texto. Tal facto é reiterado pela repetição da preposição sem − “sem pretensões de estilo, sem análises filosóficas”.
O eu diarístico obedece, por um lado, ao impulso de registar, de modo espontâneo e inclusive negligente, as impressões diárias assinaladas sem quaisquer preocupações de estilo e sem análises filosóficas. Por outro lado, evidencia o raciocínio que subjaz à vivências dos dias e lhe permite recolher a panóplia “de reflexões impressões ideias, maneiras de ver, de sentir”, através dos quais se distingue dos demais.
Não obstante da curta extensão, este fragmento, aliás como todo o diário, merece uma particular atenção, pois estabelece uma linha condutora com a obra poética de Florbela, evidenciando os mesmos temas e a mesma indefinibilidade inerente à representação do eu. Nele é possível perceber a presença de um eu em confronto consigo mesmo, procurando redefinir fronteiras e limites que se afiguram impossíveis, como expressa o oximoro a que recorre para se descrever − “todo o meu espírito paradoxal, talvez frívolo, talvez profundo”. Bela utiliza termos cujas cargas semânticas são antagónicas: “frívolo” remete para leviandade, futilidade, volubilidade e inconstância; enquanto “profundo” está associado a complexidade, perspicácia e abrangência. A dupla utilização do advérbio “talvez” introduz a dúvida de um sujeito que define o seu espírito, utilizando definições que não podem coexistir.
Assim, a autora parece denunciar resignação e inclusive um certo cansaço/esgotamento inerente a quem passou muito tempo com análises minuciosas, “dissecações interiores”, numa tentativa de se compreender. Tal entendimento, porém, afigura-se-lhe impossível – “Compreendi por fim que nada compreendi, que mesmo nada poderia ter compreendido de mim.” Deste modo, confessa – “Restam-me os outros”. E se dúvidas houvesse sobre a verdadeira intenção da autora ao escrever o diário, se este se dirigia ao eu que escreve a um tu, ou até mesmo a “ninguém”, agora parece tornar-se mais claro que a autora escreve este texto para se dirigir a um leitor, expressando o desejo que este o leia, como explica Paula Morão:
(...) o fragmento fecha-se sobre uma espécie de remissão para um leitor futuro, afinal dando corpo e sentido ao genérico e aparentemente negativo “ninguém” da abertura: não se fala mais de “ninguém” mas do seu par positivo, um “alguém” que “leia” e “realize” o que “eu não pude”. (Morão, 1997:110)
Na verdade, o outro assume um papel incontornável quer no diário quer na poesia de Florbela Espanca. O outro parece assumir o papel primordial no conhecimento deste eu que irrompe derrotado por anos de cansaço, minado por “dissecadas” e infecundas autoanálises. É através do outro que Florbela procura alcançar um conhecimento de si. É no outro que a autora deposita a difícil tarefa de interpretação para o seu ser – “misterioso, intangível, secreto”.
No entender de Paula Morão esta passagem é reveladora de:
uma falência do próprio eu, das suas capacidades analíticas e autorregeneradoras, que são uma razão mais a remeter a solução desta derrota reconhecida para os “outros”, intermediários e espelhos possíveis para um eu em dificuldades para se bastar e se suportar a si mesmo (Morão, 1997:111).
Efetivamente, o eu diarístico revela uma (aparente) incapacidade para se analisar e inclusive para se revivificar, numa tentativa de procurar soluções eficazes para esta procura. Desta forma, os outros funcionam como mediadores, a escapatória possível para a busca ontológica deste eu. Florbela situa-se, assim, entre os antípodas. O recurso ao paradoxo bem como a construções antitéticas acentua o dilema deste eu em busca de si; um dilema sentido, é certo, mas também encenado, como assinala Natália Correia:
Esse pechisbeque fulgente do cognato frívolo da sua personalidade sequiosa de infinito – requisito bicéfalo da vigência mítica de que Florbela é sujeito dramático – chispa nas fulgurantes banalidades dos seus versos. Uma poesia maquilhada com langores de estrela de cinema mudo. Carregada de pó de arroz. Mas quem espalha essa poalha perfumada é a mão da virgem que nela se envolve para velar a sua intangibilidade. (Espanca, 1982: 10)
Numa linguagem metaforizada, Natália Correia, no seu prefácio ao Diário de Florbela Espanca, procura desmistificar os artifícios utilizados pela autora, estabelecendo algumas relações com a obra poética. Neste sentido, refere-se a Florbela, dizendo que “A frívola dissipa-se na inconstância da sua insaciabilidade...” (Espanca, 1982:10) Desta forma, parece evidenciar o caráter aparentemente supérfluo do eu diarístico, reforçando traços que lhe são indissociáveis − a volubilidade e a avidez.
Com efeito, este prólogo veio dar um importante contributo à desmistificação da imagem projetada por Espanca no seu Diário. Como sugere Natália Correia, Florbela era uma personagem sedenta de infinito, pois para ela não havia limites. Limites para amar, numa ânsia de desenfreada, de se entender e ser entendida pelos outros, de ser amada e idolatrada. Aliás, existe em Florbela o desejo de projeção através do outro, o desejo de fusão no outro, desde que este reflita uma imagem especular do eu, como é visível nos seus sonetos. Este aspeto teve concretização na própria vida de Florbela, tendo desembocado em três casamentos. Experiências que iniciaram com fulgor, mas cujo desenlace coincide com o desencanto deste eu.
Assim, e retomado as palavras de Natália Correia, a autora detém um “requisito bicéfalo da vigência mítica de que Florbela é sujeito dramático”, no sentido em que a poeta assume uma feição intermitente, oscilando entre polos extremos e inclusive paradoxais, revelando, não raras vezes, um ser em drama.
3.
No Diário, Florbela desdobra-se na segunda pessoa, isto é num tu que se invetiva de “Bela” e esgrime as suas virtualidades, intitulando-se “corajosa, sincera” (Espanca, 2002: 256), “honesta sem preconceitos, amorosa sem luxúria (…) “viva exaltamente viva” (Espanca, 2002: 257); “ Endiabrada Bela! Estranha abelha dos mais doces cálices” (Espanca, 2002: 259); “Princesinha exilada” (Espanca, 2002: 260), entre outros exemplos. É de salientar o tom exaltatório com que se autodenomina, o qual é reforçado pela repetição da preposição “sem”, que salienta pureza e nobreza de caráter, isentando-a de atributos pejorativos – “sem preconceitos, amorosa, sem luxúria”. Também a analogia que estabelece com a abelha vem reforçar os seus dotes, já que a simbologia deste inseto surge associada ao labor, à organização, disciplina e infatigabilidade. Dado o entorno em que se move, o meio campestre, e a sua aproximação às flores, a abelha é conotada com a feminilidade. Estes atributos vêm reforçar as particularidades de Florbela, pois também ela é enigmática e singular e, talvez por isso, “estranha”.
O eu diarístico parece enfatizar, deste modo, a sua excecionalidade, pois tal como a abelha, que é uma laboriosa produtora de mel, também Flor labora os seus versos. Parece-nos, contudo, que esta analogia vem reforçar o dramatismo deste eu, uma vez que a abelha, com o seu ferrão, pode assumir uma feição demolidora, dado que utiliza o seu ferrão como arma de arremesso em prol da sua autodefesa, levando-a a comprometer a sua vida; Florbela também é detentora de alguns recursos (ferrões) através dos quais se escuda. Contudo, estes ferrões constituem símbolos de defesa, mas também de morte.
A construção metafórica é ainda intensificada pelo emprego do adjetivo no grau superlativo relativo de superioridade, uma vez que se trata de uma abelha “dos mais doces cálices”. Assiste-se aqui a uma seleção criteriosa dos lexemas. Repare-se que o termo doce é bastante polissémico, remetendo para uma diversidade de sentidos que confluem para reiterar a ternura e afetuosidade inerente a este eu.
No decorrer das escassas páginas que enformam o Diário, a autora revela um agudizado sentimento narcísico, reiterado pelo seu desmedido orgulho: “tenho orgulho, um incomensurável orgulho em mim” (Espanca, 2002: 286). Florbela faculta um retrato megalómano onde este eu heroicizado, se exulta, como se pode observar pelo deítico “eu” grafado em carateres maiúsculos, demarcando na escrita e na linguagem a sua individualidade – “Eu sou Eu” (Espanca, 2002: 261) – e o estatuto de “eterna isolada” (Espanca, 2002: 274):
Florbela é um caso muito próprio de solidão «carceral». Em várias notas do diário ela fala de si mesma como duma princesa encantada à espera do «Príncipe Charmant». É prisioneira, porque está presa num encanto, à espera que alguém ou algo a desperte ou liberte (Rocha, 1992:79).
4.
O eu diarístico faculta-nos um retrato poliédrico. Revela-se, por um lado, poderoso, magnânimo, ciente das suas potencialidades, um eu herói, uma vez que, tal como o protagonista de uma narrativa ou drama, também Florbela surge envolta em ambiguidade, dado que possui caraterísticas humanas – densidade psicológica, social e importantes valores. Por outro lado, situa-se, como pudemos verificar, em polos opostos entre o “frívolo” e o “profundo”, deixando uma imagem fragmentada impossível de apreender, mas passível de ir sendo apreendida.
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Bibliografia
Espanca, Florbela (2002). Afinado desconcerto, contos, cartas, diário, estudo introdutório, Maria Dal Farra (org.), São Paulo: Iluminuras.
Espanca, Florbela (1982) Diário do último ano (prefácio de Natália Correia), Lisboa: Bertrand.
Espanca, Florbela (2009) Poesia Completa, Lisboa: Bertrand.
G. Gusdorf, (1975) “De l’autobiographie initiatique au genre litéraire” in Revue d’Historire Littéraire de la France, nº 6, nov-dez, pp. 957-994.
Morão, Paula (1997) “Florbela: o diário de 1930”. In A Planície e o abismo, Universidade de Évora: Vega, pp. 109-115.
Pereira, José Carlos Seabra (1985-86) “A águia e o milhafre”. In Florbela Espanca, Obras completas ed. Por Rui Guedes, Lisboa: Dom Quixote, vol 3, pp. 3-35.
Rocha, Clara (1992) Máscaras de narciso, estudos sobre a literatura autobiográfica em Portugal, Coimbra: Almedina.
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