Interdição Alimentar na Reconstrução Identitária Afro no Brasil (1840-1970)



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8. A Universalização Incluinte.

Dessa forma, a reestruturação das relações societárias entre os afro-brasileiros, de certo reconhecendo a hostilidade do poder étnicosocial dos escravistas, preferiu optar pela versão nagô da reforma religiosa, em virtude de seu êxito recente então no ambiente africano (as guerras do século XVIII) e logrou por isso instrumentar variantes suas no desenvolvimento de nova intermediação religiosa afro-brasileira.

Segundo indicação de Souza Carneiro e de Marina São Paulo, o processo de ecletização e universalização da descendência por via totêmica de adoção não se deu uma única vez, na formação da cultura afro-brasileira. Seguindo apenas as indicações obtidas para o caso da Bahia, Sergipe e Alagoas – melhor conhecido – aqueles estudiosos concluíram haver ocorrido diversas camadas de reformas afro-religiosas, para convergências totêmicas com fusão de interdições. As grandes mudanças que ora se conhece foram apenas a última etapa daquele processo, tal como se fez apresentar como reflexo das guerras na Nigéria no território brasileiro (1760-1800). De qualquer forma, o elemento-chave da universalização já se encontrava em marcha nos anos 1780-1840, o que é indicado pelo auge das festas de Ibeji (hoje Ibegê) na Bahia, Recife e Rio de Janeiro, auge mantido por um século (1840-1940).

As festas de Ibeji são festas de inclusão e a participação dos gêmeos é um movimento social de conversão das crianças de todas as tribos ou clãs, no território brasileiro. Nesse caso, os rituais correntes de cada expressão local étnicocultural, que na África seriam específicos, viram-se aqui substituídos por uma colossal festa de adoção, com rituais de inclusão, dentro da estrutura do Sistema Nagô. Os alimentos servidos expressam rituais renovados que eliminam a interdição alimentar entre os membros (conscientes disso ou não) das culturas presentes. Expressam, portanto, convergências adotadas nos planos da veneração, confraternização, apaziguamento e purificação. A busca do equilíbrio psicossomático futuro da nova comunidade, através das suas crianças, é evidente. Eleva a um novo patamar a expressão mítica familiar e nacional. O famoso caruru de Ibegê (Ibegi), ou caruru dos meninos, autoriza o ecletismo alimentar de novo tipo para a futura geração, sob a proteção de seus antepassados, adotados ou reais, nigerianos. A composição do caruru dos meninos compreendia então: caruru, feijão fradinho, abará, acarajé, galinha de xinxim; banana da terra em azeite-de-dendê; acacá, milho branco, inhame; farofa de azeite-de-dendê com camarão; roletes de cana; pipocas; pedaços de coco-da-Bahia (copra); aluás (diferentes garapas, cascas de abacaxi ou gengibre com rapadura) etc. A década de (19)40 é geralmente observada como a em que se deu a transição da festa de Ibeji para uma festa puramente (aparentemente) sincrética, com as “obrigações” das mães sendo agora pagas em doces, inclusive de produção industrial. Ou seja, tratava-se já agora de um povo único, sem as antigas interdições alimentares.

Para os adultos, o processo desinterditivo fazia-se pela panela comum e o hoje desaparecido afolô era o prato típico de movimento de adoção. Os vizinhos ou amigos marcavam um almoço (geralmente domingo), no Sistema Nagô dia de todos os santos, e elaborava-se o prato de convergência. A elaboração consistia em cada qual trazer, sem maiores combinações, “algo para o almoço”. O afolô (mistura), na África, significava o encontro de duas carnes diferentes com ervas e vegetais, e sem combinar-se antes a “mistura” se tornava desconhecida. Ao “misturado” se atribuíam na África a virtude da cura de uma possessão ou até uma purificação, papel esperado de uma interdição adequada. Como sobreviveu na culinária brasileira corrente, o afolô é uma iguaria feita com peixes diferentes ou caças (carnes vermelhas) diferentes. Geralmente, usa-se no receituário do século XX peixes e mariscos; ou carne de cabrito e carne de vaca; ou carne de vaca e carne de porco; etc. Acompanha e/ou feijão fradinho, taioba, quiabo, maxixe, cebolas, alhos, lingüiça, camarões frescos (com o peixe) etc. Esse autêntico “mata-fome” não é simples instrução da necessidade, como arguiram alguns, mas um prato de convergência, que confraterniza diferentes orixás e suspende interdições prévias.

Durante todo o quarto século (1850-1950), seguindo o movimento social Ibeji, as mães e os pais-de-santo elaboraram pratos desinterditivos, promovendo encontros sociais e “festas”, onde os tratamentos por feitiçaria de doenças físicas e psicossomáticas eram efetuados. Suas invenções e desinterdições não se limitaram ao caruru (kalalu = quiabo), cujo poder impregnativo é clássico na cultura negra. O caruru compreende várias plantas verdes da família das amarantáceas: caruru-amargo, azedinha, caruru-azedo, quiabo-azedo, caruru branco, caruru-de-cosme-e-damião, caruru de espinho, etc. Além do prato clássico caruru (Kalalu), com o quiabo e a folha, tem-se o tradicional abalá (iorubá), ou seja, o caruru-de-baba. Na África, o caráter fechado do caruru exigia ritos especiais para o seu plantio.

Recorde-se que “feitiçaria” não deve ser entendida aqui negativamente. Na maioria das culturas afronegras, “feitiços” é o termo bantu adotado pelos portugueses para descrever fenômeno de impregnação magnética, por semelhança, dessemelhança, etc, tal como é praticado pelos sacerdotes africanos. O temor ocidental é pelo “homem forte” (feiticeiro) que pode matar à distância, utilizando apenas o acesso a um objeto quotidiano de sua vítima. Para as religiões africanas e indígenas, ditas tradicionais, a impregnação, como o sonho, é um fato do mundo real.

Como resultado de mais de cem anos para convergência rumo ao Sistema Nagô, tinha-se a seguinte situação (1950-60):


QUADRO 1

ORIXÁ

SINCRETISMO

COR

Forma na Umbanda

Alimento protetor

Oxalá

Jesus

Branca

Santos

Acaçá de arroz; mel; ebó de milho branco

Yemanjá

Nossa Senhora

Branca, azul e rosa

Sereias

Arroz branco, angu, mel

Ogum

S. Jorge, S. Sebastião (BA)

Vermelho, azul-marinho

Guerreiros

Inhame assado, feijão preto

Oxóssi

S. Sebastião (RJ) S. Jorge (BA)

Verde, azul-claro

Índios

Arroz; inhame, axoxô (milho amarelo)

Xangô

S. Jerônimo

Marrom, vermelho e branco roxo

Índios; europeus

Amalá, farofa, acajaré

Ibeji, Ibêjê (gêmeos)

S. Cosme, S. Damião, Doum

Rosa, azul, amarelo, vermelho e branco

Crianças

Caruru, doces, guaranás, xinxim, vatapá

Pretos Velhos

S. Cipriano, S. Benedito, S. Lázaro

Preto e branco

Antepassados, ex-escravos

Afolô, bolo de milho, café amargo, frutas, fumo de rolo

Exú

S. Cipriano

Vermelho e preto, preto e branco, vermelho e verde

Trabalhadores braçais

Cachaça, pimenta, carne de cabrito e frangos, charutos, fumo de rolo

Nanã

S. Ana

Roxo, azul e branco

Caboclos de água doce

Milho branco, inhame, arroz

Oxum

N.S. Das Candeias, N.S. Aparecida

Amarelo, amarelo-ouro

Sereias, caboclas

d’água


Adum, ibetê, xinxim

Iansã

Oyá


Santa Bárbara

Amarelo, vermelho e branco

Caboclos, guerreiros

Acarajé, amolá, feijão fradinho

Obaluayê

S. Lázaro, S. Roque, S. Sebastião (Recife)

Vermelho e preto, branco e preto

Antepassados, ex-escravos

Pipocas, duburu, feijão preto, mel, cachaçá, tabaco

Uma vez que a vida de alguém devesse ser reta, sem quaisquer desvios ou problemas graves, a paz do mundo – verdadeiro relógio – não seria jamais perturbada. Todo desvio dessa rota de normalidade absoluta deve ser referida um erro do vivente, ou de outro, que com ele se embaraça. Meus atos podem ofender entidades de todo tipo e grandeza e a ofensa será maior, caso não pertençam elas ao círculo dos meus antepassados. Daí a importância de conselheiros ou curandeiros, de qualquer forma do mágico-médico-feiticeiro, para indicar a natureza dos erros cometidos e os procedimentos ou caminhos para corrigí-los. O controle social coloca-se assim no primeiro plano, sempre contrastando as práticas morais com uma ética do grupo e fazendo eventuais faltosos retornar à norma.

Por exemplo, a interferência da miscigenação, requer um aconselhamento para definir a verdadeira condição do descendente, ou seja, quais dos antepassados que efetivamente são os seus. Assim, os fenômenos novos devem ser incorporados e explicados. A reconstrução de uma sociedade afro, no contexto da escravidão brasileira foi tarefa de grande monta, agravada pelo distanciamento entre antepassados e viventes, e entre os patamares das entidades dos antepassados. A universalização da linhagem de descendência permitiria o agravamento de certas dificuldades, como: (a) espíritos falsearem (em “proveito próprio”) sua identidade; (b) dividir-se, caso da não percepção de (a), a prática religiosa em “competente” (“boa”) ou “incompetente” (“má”); (c) em caso de (b), tornar-se o saber esotérico um objeto de privatização. Nesse caso, a privatização levaria à comercialização das relações religiosas e meio de ascensão individual ou familiar no contexto do grupo social. Portanto, o enfraquecimento da força adequada da religião afro. Os sacerdotes do século 3º e 4º sempre apontaram para esta possibilidade devido à retirada dos antepassados para fora do mundo dos vivos, causada pela Diáspora escravista. O resultado seria uma quebra do tempo societário, com (1) quebra da circularidade das reentradas dos espíritos (reencarnação); (2) mudanças ideológicas, com a perda dos valores afro; e (3) resultante mudança cosmovisiva. Para tais sacerdotes, os impactos sociais destes fatos religiosos potenciais seria devastador.
9. Efeito da Universalização.

Entre os indivíduos (brasileiros, em geral) por outro lado, a relação com as entidades difere. Apenas o indivíduo (e não o grupo) é responsável por eventuais erros cometidos enquanto vivente entre viventes. Ele pode recorrer aos poderes de seu curandeiro, sem por isso existir um tipo de falha tão grande que viesse a afetar todo o grupo. Esta solução mais individualista dos indígenas locais ficou caracterizada na reforma religiosa afro, por uma concessão maior ao arbítrio individual do que havia na África. Alguém traça o “seu próprio destino” e a comunidade pode encarar isso com uma indiferença digna da sociedade do capital. Esta postura por certo também facilitou os esforços kardecistas, na tentativa de emprestar uma roupagem iluminista à experiência religiosa bantu, com o modelo da sessão branca de mesa (1815-1950). A multidão afro – na verdade, um povo em constituição – preferiu seguir o caminho dos sistemas nigerianos, como se vê pela prevalência do calendário reformado do Sistema Nagô, no Recife, Recôncavo baiano e Rio de Janeiro. Os banquetes anuais afro, com o Pilão de Oxalá (ebó do milho branco), as pipocas de Obaluayê, a feijoada de Ogum, o caruru do Ibeji (Ibejê) demonstraram sua força popular no chamado “século da festa”, que coincide com o quarto século do país (1850-1950). Pela reforma, foram assim distribuídos os dias da semana:


QUADRO 2

Dia

Orixá

Impacto ritual

2a.

Exu e Omolu

Purificação da semana

3a.

Nanã e Oxummarê

Chuva com arco-íris

4a.

Xangô e Yansã

Raios e ventos; proteção na tempestade

5a.

Oxóssi e Ogun

Caça e artesanato

6a.

Oxalá (Senhor do Bomfim)

Geral

Sábado

Yemanjá e Oxum

águas (do mar e rio) proteção à pesca

Domingo

Todos os orixás

Geral

Esta leitura foi adotada e generalizada pelos terreiros de todo o norte e leste brasileiros, no quarto século. Desse modo, a tentativa de reforma iluminista, tanto pré quanto kardecista, teve um impacto que não levou – como era desejado – ao desaparecimento das religiões afro-brasileiras. A “civilização” havia fracassado mais uma vez. O desgosto por este fato fica demonstrado nos escritos de Sylvio Romero, Nina Rodrigues, Manoel Bonfim, Souza Carneiro, Arthur Ramos e tantos outros.

Na versão evolutiva do “terreiro” ou da “tenda” (bantu), sob a influência kardecista (1850-1950), o médium e o consulente ocupam papéis distintos, em que o primeiro constitui a parte ativa. O grau de iniciação e doutrinação do medium expressam sua superioridade. Daí que a relação implique também uma ministração de ensinamento, tanto ao elemento espiritual apanhado e doutrinado, quanto ao consulente. Nesse caso, o kardecismo se aproxima da visão bantu dos espíritos-que-vagam, apanháveis, perturbadores e passíveis de negociações. Certamente por esta proximidade, no quarto século foi enorme a influência do Kardecismo sobre as massas negras ou afro-brasileiras, contribuindo em grande parte para as políticas assimilatórias praticas pelo Governo e pelas classes dominantes.

Sob a pressão kardecista, ocorre então o desaparecimento do nível social diferenciado do sacerdote afronegro. Isso em certa medida também corresponde ao avanço do Sistema Nagô e seu impacto social. Após a primeira Guerra Mundial, os “terreiros-de-santo” começam a minguar em seu espaço geopolítico nas cidades, na riqueza de seus paramentos e na relevância material e política de seus chefes. Ocorreu – é certo – como diferença social entre os negros. Há uma luta pelo poder, de que não deixam de participar as autoridades municipais e até mesmo federais (Rio de Janeiro). No entanto, com o avanço das instituições republicanas, a tendência foi o ocaso do controle social do povo afro-brasileiro por seus pais e mães-de-santo.

Desempenhou para este efeito importante papel na divisão social do trabalho, na sociedade dominadora, das instituições que o pai-de-santo representava sobre a massa: o sacerdote, o médico, e o educador/publicista. Com o recuo do Padroado e o avanço da reforma ultramontana, a Igreja Católica voltaria a disputar – quase como um partido político de tipo fascista – o controle das multidões. Isso eliminou a indiferença do Catolicismo e de certas instâncias oficiais quanto às religiões afro-brasileiras, voltando a período de intensa repressão (1890-1950). O médico, com o avanço da industrialização, deixou de ser um serviço exclusivo das elites, para ser estendido como um serviço precário às multidões (1930-1970). Surgiram as policlínicas, os hospitais públicos e os tratamentos com sulfa e penicilina. Dessa forma, as práticas médicas foram proibidas para o sacerdote afro-brasileiro e tornadas parte do sagrado profissional do homem branco.

Finalmente, a condição de mágico e educador foi retirada do sacerdote afro-brasileiro pelo desenvolvimento das redes da escola pública (1930-1970), dos jornais e das comunicações (rádio, tv, etc). Na escola pública, Vargas eliminaria a proibição para que os negros a freqüentassem. Através dos jornais, do rádio e da TV, o discurso do sacerdote afro foi ridicularizado e desmentido, até ser transformado pela rede Record na impostura da “mãe-de-encosto”. O poder mágico do pai-de-santo foi desmoralizado pelos truques eletrônicos, os filmes e as novelas intermináveis na TV. Assim, nos últimos setenta anos, a dominação branca logrou assumir o controle sobre as ideologias política e social do negro, apossando-se também de seu controle social. A doença, a criação da ordem e do lugar, e as aspirações individuais são agora construídas fora do afro-brasileiro, e impostas a ele por meios aparentemente pacíficos. O negro foi finalmente convertido em “brasileiro”, não por decreto, mas por ser o único brasileiro que etnicamente existe.

Sabe-se que a medicina dita tradicional é a fonte de todos os remédios que se vendem na farmácia. Segundo pesquisadores médicos, 96% de todos os remédios conhecidos vêm diretamente da medicina de aldeia ao redor do mundo. A fitoterapia afro-brasileira proclamava possuir 576 soluções pretendidas originais para tratamento de todas as doenças. Disse-me certa vez uma mãe-de-santo que o remédio utilizado para o tratamento é apenas um biombo, um disfarce utilizado pela modéstia da entidade ou espírito que vai praticar a cura. O remédio seria para o consulente demonstrar o desejo de ser curado e habilitar energicamente a força curativa. Nesse sentido, poder-se-ia considerar o ato mercantil de engarrafamento do remédio pela indústria farmacêutica uma redução do seu potencial efetivo, porque (1) dispensaria o espírito que cura; e (2) dispensaria a sinergia médico-paciente. Já a medicina classifica de “placebo” tanto a fitoterapia afro-brasileira quanto os procedimentos dos seus respectivos sacerdotes. Ela dispensa a chamada pontencialização.

No entanto, os sacerdotes populares continuam sonhando com o paciente que lhe vai chegar amanhã; durante o sonho, vê-se a caminhar para o bosque e a colher as ervas que utilizará na cura. Uma professora do Rio de Janeiro, que contou-me haver-se tratado com uma senhora que faz “garrafadas” (de medicamento) expressou: “quando cheguei na porta da casa (rancho) em que ela morava, e perguntei por ela, respondeu-me: vou buscar sua garrafada. Acabei de prepará-la ontem”.

A necessidade da interdição alimentar parece à pessoa comum elemento de irracionalidade própria de “sociedades primitivas” ou “pré-lógicas”. É bem verdade que cada tipo de modo-de-produção gera uma logicidade que lhe é específica, mas isso não impede de se entender logicamente a lógica dos outros. Assim, a interdição, além de construir um povo específico e diferente, tem por finalidade permitir um processo ali suposto de ascensão espiritual, que reforça seus laços com as divindades que lhes são específicas.

O processo de ascensão espiritual é também indispensável aos sacerdotes do grupo cultural para alcançar seu deus, ou sua forma de Deus. O controle da alimentação enquanto instrumento de ascensão espiritual baseia-se na prática interditiva. Na prática afronegra, o sacerdote se “envenena” ou se “purifica”, de acordo com o objetivo a que vai em seguida servir. É comum ver-se, no “terreiro”, o hieródulo a beber cachaça, antes e durante a presença de “Homem” (Exu ou algum Bonbon). O controle máximo do corpo pela mente é obtido através da alimentação (ou da ausência dela), como indicou Santo Inácio de Loyola ou qualquer Yoguin. Assim, também entre os negros, o controle do processo alimentar é o ponto mais baixo de seus “exercícios espirituais”.


10. O Pai-de-Santo (ou a Mãe-de-Santo).
O mago-médico-feiticeiro afronegro, seja ele um Ínquice, Ganga, Vut, Sangoma, Pai-de-Santo, etc, não importa a denominação que lhe dê a cultura local, tem rigoroso sistema de desenvolvimento de suas habilidades. Tal sistema nada fica a dever – no plano empírico – àquele(s) da mais complexa das religiões ditas “universais”. (São universais pelo uso do canhão).

O centro da formação espiritual afronegra é a maximização das habilidades autodesenvolvidas para projetar energias e comunicar-se com entidades por outros desconhecidas. Para tanto, se utiliza de procedimentos técnicos complexos de isolamento físico e espiritual, capazes de requerer décadas de prática. A formação de um sacerdote afro é independente do caso dos sacerdotes que “nascem feitos”. Para as religiões afro, os sacerdotes mais poderosos já nascem com todo o seu poder. Isso não impede a possibilidade de formar-se um sacerdote, a partir das instruções daqueles natos e pelo processo de aprendizado. Mesmo no caso do sacerdote formado, o processo compreende dois caminhos: (a) a instrução oral e de práticas do mestre formador; e (b) o autodesenvolvimento gradual de habilidades próprias. O aspecto (b) é obtido pelo aprendiz através da Revelação, que compreende, por sua vez, dois momentos: (1) a autoanálise, e (2) a autorevelação.

A autoanálise inicia-se por um processo de isolamento físico e espiritual, em que o aprendiz prática técnicas de: (a) autosugestão; (b) autismo autoinduzido; (c) autohipnose; (d) projeção de vontade; (e) projeção imagética (levar outros a “ver” o que ele deseja). O auge do processo de autoanálise é em geral obtido quando o aprendiz logra identificar alguém “no outro mundo”, estabelecer com ele contatos benéficos a si, e “conversar” com ele.

Neste ponto, o aprendiz está a avançar nas técnicas secretas de controle da mente e do desenvolvimento da personalidade. Ele deve forjar sua força espiritual até eliminar por completo o medo e a inveja. Diz a tradição afro que é muito difícil vencer um sacerdote que não tem medo nem inveja. Ultrapassada a barreira dos desejos negativos terrenos, o aprendiz avança na autorevelação, sendo a autodidaxia a única porta capaz de levar ao conhecimento autógeno, ponto de chegada da formação.

Em geral essa chegada é percebida pela assunção de poderes energéticos extraordinários, como daqueles atribuídos aos Orixás. Esse estágio gera uma autolatria, com a ausência para o sacerdote de quaisquer limites morais, no plano individual.

Muitos pais e mães-de-santo simulam um estado de autolatria, que segundo especialistas na religião afro não é uma assunção autêntica de um estado, onde há indiferença pela condição humana individual. O portador dessa condição é quase um Orixá, e sua energia logo deixará “este mundo”. Assim é interpretado no meio.

Desta forma, quando alguém utiliza pratos da chamada “culinária baiana” (seria mais correto dizer nordestina) está de fato consumindo variações de pratos alimentares formadores de etnoculturas na África e que foram tornados liberados, ou universalizados, pela grande reforma religiosa ocorrida na cultura negra no Brasil. Esses atos contém “heresias”, como, por exemplo, no vatapá, o uso de pãezinhos franceses dormidos no lugar da pasta de feijão mulatinho. Isso certamente hoje não mais importa. Vale, contudo, compreender que, diferentemente do que dizem os clássicos da literatura acadêmica, não se trata de mera “contribuição ao receituário”. Trata-se de ato cultural mais profundo, que criou de fato a alma brasileira. Veja-se a seguir as receitas mais difundidas pela reforma.
Vatapá (para 6 pessoas)


  1. Ingredientes

3 pãezinhos franceses (dormidos, amanhecidos ou de véspera)

80g de camarão seco dessalgado

3 dentes de alhos

100g de amendoim torrado sem casca

1 tira de gengibre fresco

1 xícara de chá de azeite-de-dendê

1 ou 2 cebolas

600 ml de leite de coco

2 pimentas malaguetas

100g de castanha de caju

sal a gosto

se necessário: um pouco de farinha de trigo para engrossar

Obs: a massa pode ser feijão mulatinho, milho, pão francês
(2) Preparação:


  • pôr o pão de molho em 300ml de leite de coco

  • moer o liquidificador:

amendoim

castanha de caju

gengibre

cebolas


alho

camarão seco dessalgado

sal a gosto

sopa de pão (molho)



  • levar a massa resultante ao fogo:

adicionar o resto do leite de coco e o azeite de dendê

corrigir o sal e os temperos

mexer sempre

cozinhar por meia hora para obter a pasta



Peixe de dendê (para 6 pessoas)


  1. Ingredientes

2 cavalas (ou outro) de 1,5kg cada

2 limões


60g de coentro picado (2 colheres de sopa)

30g de cebolinha picada

sal a gosto


  1. Ingredientes para o molho picante de camarão:

300g de camarão seco (deixar de molho para tirar o sal)

400g de camarão fresco (ou descongelado)

4 tomates picados (sem pele e sem sementes)

2 cebolas picadas

3 colheres de sopa (± 100g) de coentro picado

4 malaguetas

1/2 a 1 xícara de azeite-de-dendê

sal a gosto



  1. Preparação:

  • temperar o peixe com sumo de limão, sal e coentro; descansar (15 ou + minutos)

  • escorrer, untar cada peixe no dendê e pôr para descansar

  • assar 20 minutos no forno a 180º; virar o lado do peixe e deixar assar mais quinze minutos

  • aqueça o azeite de dendê numa frigideira; toste a fogo baixo a cebola e o coentro, cerca de cinco minutos

  • juntar o tomate e refogar mais cinco minutos

  • triturar os camarões secos (sem cabeça) no liquidificador com as malaguetas;

  • misture isso no molho de frigideira e ferva por dois minutos (se secar, pôr um pouco de água)

  • acrescentar o camarão fresco e ferver por + minutos

  • retirar o peixe do forno; retirar a cabeça e a espinha; sirva na travessa com o molho picante de camarão


Caruru (para 6 pessoas)

  1. Ingredientes

1/2 kg de camarão seco

1/2 kg de quiabo

2 colheres (sopa) de suco de limão

1 cebola média picada

2 tomates picados (sem sementes)

1 malagueta picada

200ml de leite de coco

2 colheres de sopa (60g) de farinha de mandioca

sal a gosto

100ml de azeite de dendê

1 pimentão vermelho picado

(100g) salsa e coentro picados

(2) Preparação:


  • cortar o quiabo ao comprido e depois picá-lo miudinho

  • deixar o quiabo picado de molho no suco de limão; reservar

  • aquecer o azeite de dendê em fogo médio e refogar os camarões já limpos; reservar

  • bater 100g de camarões secos no liquidificador, juntando tomates, cebola, pimentão, malagueta, salsa, coentro, parte do leite de coco e sal

  • juntar essa mistura ao refogado de camarões; juntar os quiabos; pôr um litro de água e levar tudo ao fogo alto, mexendo

  • juntar a farinha já diluída em pouco de água fria; quando a mistura ferver, continuar mexendo até obter uma pasta cremosa

  • regar a pasta obtida com o restante do azeite de dendê em fogo muito baixo; tampar e deixar cozinha por meia hora

  • servir na própria panela


Acarajé (para 6 pessoas)

(1) Ingredientes

300g de feijão fradinho

2 cebolas

100ml de azeite de dendê

pimenta de reino

2 dentes de alho

1 copo de água

óleo para fritar

sal a gosto

(2) Preparação:


  • ponha o feijão de molho por umas horas; escorra e bata no liquidificador com uma cebola, alho, sal e 1/2 copo de água; torna-se uma pasta

  • coloque a pasta numa vasilha e bata manualmente até ficar leve e abrir bolhas; tempere com a pimenta do reino

  • use uma frigideira grande e funda; ponha o óleo misturado com o azeite de dendê , a cebola restante e deixe aquecer

  • faça os bolinhos de acarajé, juntando a massa da pasta com duas colheres grandes com as faces côncavas para fora

  • jogue os bolinhos devagar no óleo quente; deixe separado um bolinho do outro

  • deixe fritar cada lado até que fique dourado; vire então para o outro lado

  • retire cada bolinho frito e deixe escorrer sobre papel absorvente

  • abra com corte cada bolinho e recheie

(3) Recheio:

  • é recheado com vatapá e camarão seco e regado com molho de pimenta malagueta

  • no Sul, usa-se junto um molho ao vinagrete, com camarões frescos cozidos, cebola, tomate e pimentão; os vegetais são picadinhos e crus (juntam-se ao vatapá e ao camarão seco)


Bobó de Camarão e Farofa Amarela (para 6 pessoas)

  1. Ingredientes

800g de mandioca cozida

2 cebolas médias picadas

1 colher (sopa) de cebolinha

3 dentes de alho picados

3 colheres (sopa) de azeite de oliva

600ml de leite de coco

1 colher (sopa) de coentro

3 colheres (sopa) de óleo de dendê (100ml)

1kg de camarões médios (limpos e sem casca)

sal a gosto

(2) Ingredientes para a Farofa:

1 xícara (chá) de óleo de dendê

1 xícara (chá) de camarões secos pequenos

2 xícaras (chá) de farinha de mandioca

(3) Preparação:


  • bata no liquidificador o coentro, a cebola e um pouco de leite de coco, para formar um creme verde

  • separado: bata a mandioca cozida com o resto do leite de coco; reserve

  • ponha o óleo de oliva numa panela; refogue nela o alho, um bocado de coentro os camarões frescos; ponha o creme verde; deixe ferver

  • junte agora a massa de mandioca, o óleo de dendê e o sal. Mexa até ferver.

  • Para fazer a farofa:

      • aquecer o óleo de dendê numa panela; refogue o camarão seco, ponha sal e apague o fogo

      • em seguida, junte a farinha de mandioca e misture bem


Xinxin de galinha (para 6 pessoas)

  1. Ingredientes

1 galinha ou frango grande

450g de camarões secos

200g de amendoins

150ml de leite de coco

4 tomates maduros (sem pele e sem sementes)

2 ou 3 dentes de alho

2 cebolas

4 colheres (sopa) de óleo de dendê

duas pimentas malaguetas secas

dois limões

1 colher de gengibre ralado

3 colheres (sopa) de salsa picada

sal a gosto

1 colher (sopa) de coentro picado

pimenta do reino

óleo de oliva (50 ml)



  1. Preparação:

  • misture o sumo de um limão, a pimenta do reino e o sal

  • corte a galinha em pedaços, lave e enxugue

  • banhe a galinha no sumo de limão e pimenta; deixe descansar por 30 minutos; decorridos vinte minutos

  • ponha de molho os camarões no suco de outro limão por dez minutos

  • quebre um pouco os amendoins num pilão (morteiro) com o gengibre, as malaguetas, sal e pimenta do reino; reserve

  • sapecar os camarões em duas colheres de óleo de dendê em uma panela rasa ou frigideira; quando mudarem de cor, retire e reserve

  • numa frigideira refogue as cebolas e os dente de alho picadinhos, juntando-os aos camarões no fogo durante 5 minutos; (fogo baixo); eles começam a ficar transparentes

  • juntar os tomates picados grandes, levar a ferver e deixar em fogo baixo

  • juntar a isso então os pedaços de galinha; por tampa e cozinhar por 35 minutos, mexendo de vez em quando para não pegar na panela

  • juntar agora o molho de amendoins; dar uma fervura e pôr a salsa e o coentro;

  • deixar cozinhar até a galinha ficar macia

  • por o leite de coco e mexer, para dar liga (ponto) no caldo; juntar os camarões com seu molho e cozinhar tudo junto por mais 3 minutos.


Bibliografia



  1. BASTOS, A – Os Cultos Mágico-Religiosos no Brasil. Hucitec, São Paulo, 1979.

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