Interdição Alimentar na Reconstrução Identitária Afro no Brasil (1840-1970)
Wilson do Nascimento Barbosa
(D.H.) FFLCH – USP
Palestra
1o. SENUN
Seminário Nacional do Negro Universitário
Salvador – Bahia
Agosto/1996
1. Introdução
A centralidade do corpo nas culturas contemporâneas não-capitalistas levou a interessantes reflexões, nos últimos cem ou mais anos, quanto aos aspectos degradativos da crescente divisão social do trabalho, chegando mesmo a produzir movimentos de opinião que tem tentado recolocar o ser humano no miolo da vida social.
Como parte desta centralidade do corpo, as culturas locais contemporâneas, aparentemente com um tempo histórico diferente do tempo do Capital, têm se reinventado constantemente, buscando manter para cada qual um lugar próprio. Isso nem sempre é bem sucedido, porque a sociedade capitalista as reduz através de processos de violência a que chama “progresso”. Mesmo assim, é interessante observar os esforços e os mecanismos desencadeados por tais sociedades para manterem-se vivas no mundo hobbesiano do capital. Foi Nina Rodrigues que primeiro observou, com base em seus estudos na Bahia, a convergência das religiões africanas segundo o modelo nagô da estruturação dos ritos e crenças. Quarenta anos mais tarde, a chamada “unidade dos cultos de origem africana” começou a ser questionada, particularmente a partir da obra hoje pouco conhecida de Souza Carneiro, “O Candomblé da Bahia”. A diferença é que os partidários de Nina viam apenas resistência cultural na convergência (unidade) afrobrasileira, enquanto Souza Carneiro admitia uma dinâmica própria afro, que reformava seus credos, construindo uma religião afro-brasileira. Edison Carneiro publicaria em 1948 (RJ) o seu “Candomblés da Bahia”, onde se afasta sem citar da posição de seu pai, alinhando-se com a “Escola Bahiana de Antropologia”, e apoiando Nina Rodrigues, como Costa Pinto, Arthur Ramos e tantos outros.
No entanto, examinando-se a fundo, Edison Carneiro não difere tanto dos adversários de Nina, quanto à autonomia dinâmica da afroreligião, ao escrever, na página 19.
“Como reflexo do estado social que haviam atingido na África e do conceito que deles se fazia no Brasil, os nagôs da Bahia logo se constituíram numa espécie de elite e não tiveram dificuldade em impor à massa escrava, já preparada para recebê-la, a sua religião, com que esta podia manter fidelidade à terra de origem, reinterpretando à sua maneira a religião católica oficial”.
São notáveis no parágrafo:
-
a separação, pelo autor, dos “nagôs” e a “massa escrava”;
-
a “preparação anterior” para recepção pela “massa escrava”;
-
o caráter de “religião” do Sistema Nagô, diferente dos supostos “cultos africanos” anteriormente citados;
-
a administração, inferida independente, do grau de sincretismo a ser introduzido na religião afro, pelos gestores do Sistema Nagô.
Aliás, a riqueza do texto de todos estes primeiros observadores do Negro está na quantidade de contradições que tais autores expressam sem condições de explicá-las, revelando-se neste aspecto meros “bonecos” na mão de Exu, que através deles preserva para o futuro aquilo que queriam desmerecer.
Marina São Paulo de Vasconcelos insistiria na independência da afrodinâmica, que em seu movimento próprio, expressava a transformação da massa escrava em proletariado do mundo industrial. Para Marina, constituía-se fato muito importante o fato do Sistema Nagô já expressar na África uma reforma religiosa profunda, para resistir ao Islamismo. Edison Carneiro toca nessa questão à página 18:
“Deu o retoque final a concentração de negros nagôs na Bahia, em fins do Século XVIII, quando os mineradores, desinteressados das minas, já não precisavam dos negros procedentes da Costa da Mina, nem se dispunham a pagar os altos preços que os traficantes por eles pediam. A religião dos nagôs, com as suas divindades “já quase internacionais”, como diria Nina Rodrigues, havia dado o padrão para todas as religiões dos povos vizinhos, com a ajuda das divindades “apenas nacionais” dos jejês – isto é, todos os negros procedentes do litoral do Golfo da Guiné professavam religiões semelhantes à dos nagôs”.
O que está Edison a reconhecer aqui?
(1) a concentração de nagôs, comercialmente desvalorizados, na Bahia, favoreceu à reforma religiosa afro;
(2) a religião dos nagôs já era uma religião reformada e internacional na própria África;
(3) todos os negros do Golfo da Guiné estavam em processo de convergência religiosa, isto é, entendiam-se no nível da religião.
Falta em Edison Carneiro apenas a razão dessa afrodinâmica independente trazida ao Brasil: no Golfo da Guiné, as prolongadas guerras de escravização e destruição dos Estados originais havia conduzido à formação de companhias militares interétnicas e independentes, cujo sistema político-social se chama “a democracia militar”. Semelhante sistema é criado pela adesão voluntária a um chefe eleito, sendo reguladas a partir desse ato as instituições e, portanto, as regras vigentes no grupo. A democracia militar é que explica a reforma religiosa e não o Catolicismo. Este sistema foi adotado em Palmares e constitui a essência do dinamismo afro também no Brasil. Ele não pode ser separado da reforma religiosa.
Um certo resultado das decomposições socioétnicas produzidas pela Grande Diáspora dos africanos no Atlântico (1415-1890) gerou no Brasil as chamadas “comidas-para-santos”. Ou seja, uma série de disposições alimentares que compreendem adoções e interdições; e que chegaram, no quarto século da colonização do país (1850-1950), a montar um calendário de uso de costumes com base no calendário cristão, ocupando assim um lugar alternativo junto à cultura da dominação européia.
A força dessa questão – como tantas outras – foi sabotada no nível da cultura oficial, onde o papel da influência da alimentação afro-brasileira e de seus elementos místicos foi reduzida a “contribuições do elemento africano” e consideradas sem maior importância, particularmente sob a influência de estudiosos como Gilberto Freire e Câmara Cascudo. O ridículo dessas argumentações chega ao ponto não raro de negar que os afronegros possuíssem enxadas ou panelas, apresentando-os quase como uma variante do gorila ou do chipanzé.
No entanto, a simples observação indica que o europeu não poderia haver colonizado, fosse a África fosse a América, sem simplesmente haver-se instalado sobre comunidades que funcionavam e que eram não só eficientes para manter os seus membros como para fornecer camadas crescentes de riqueza e força-de-trabalho para a exploração sistemática européia.
A partir do momento em que uma dada sociedade se torna capaz de produzir mais alimentos e/ou outros bens do que os consome, ela se torna apta a passar de um nível de trocas para um nível mercantil. Nesse tipo de sociedade, a população se especializa na produção ou obtenção de determinados tipos de bens, os quais serão objeto de trocas ou comércio em escala crescente com outras sociedades. Nesse caso, a sociedade local haverá de inserir-se pouco a pouco em uma divisão regional ou internacional de trabalho, com um complexo mecanismo de trocas e forte dependência de seu “comércio exterior local”.
Como parte deste momento em que a formação social local se transforma em uma formação social mercantil, as estruturas de produção e repartição locais já estabeleceram-se segundo uma especialização interna de custos sociais decrescentes, para poder cumprir da melhor maneira a função societária mercantil externa. Dessa forma, avançam as preferências alimentares, que antes expressavam as relações míticas das famílias locais dentro do universo maior da sociedade local, para caracterizar agora – neste novo nível – a sabedoria de tal coletivo na redução dos seus custos econômicos.
A compreensão desta trivialidade é apenas proclamada, pela literatura especializada corrente, como própria das sociedades que alcançaram projeção política externa na Antigüidade e na Idade Média na orla do Mediterrâneo, do Mar Vermelho, no Índico oriental, etc. Salta à vista a exclusão preconceituosa do mundo negro-africano. A importância da revolução urbana no Oceano Índico jamais pode excluir sua costa ocidental. Num período de 3.500 anos (2.000 a.C. – 1.500 d.C.) a África negra desempenhou papel central nas relações mercantis do Mediterrâneo, do Mar Vermelho e do Oceano Índico. De um número de uma centena de cidades neste oceano, que já existiam e comerciavam há três milênios atrás, pode-se chegar a 1.500 d.C com um colar de trezentos cidades mercadoras, a metade delas na costa oriental da África. Não se pode negar o caráter mercantil de todas estas estruturas sociais e como elas vinham combinando havia milênios (a) as atividades de sobrevivência local, com (b) as atividades de um comércio exterior ativo e indispensável.
2. A Formação Social Mercantil.
Ora, este caráter mercantil das sociedades afronegras desqualifica por completo o caráter racista da piada do “tribalismo”, sendo dito tribalismo nada mais que a expressão de nacionalidades locais do mesmo tipo daquelas existentes na Europa antiga e medieval: o “pays”, o “paese”, o “locus”, o “feudo”, etc, foram igualmente montadas – como suas antecessoras africanas – sobre uma base étnicocultural. Obviamente, o “catalão”, o “piemontês”, o “napolitano”, o “bávaro” e o “galego” são tão tribais como os “ibo”, os “macua”, os “fulani”, os “mandinga”, etc. Todos representam o controle histórico de um dado território, o privilegiamento de um certo modo de falar – que pode se alçar ou não à especificidade de um idioma - . Todos representam instituições localmente plasmadas, preferências estéticas e alimentares que se suportam mutuamente, etc. No entanto, a “ciência” social européia buscou sempre descrever os africanos pelas suas diferenças, enquanto que descreve os europeus pelas suas semelhanças, só podendo por isso obter em ambos os casos os resultados que já desejava obter. Na verdade, ao desqualificar a vida social afronegra, buscava convencer seus leitores europeus do acerto de seu próprio modo de vida, que era bastante recente e, portanto, ainda questionado.
Sendo a democracia militar por natureza o regime sócio-político em que se congregam elementos de nações diferentes, esta experiência africana havia de ser retomada no Brasil, desde os primeiros passos das massas de imigrantes forçados. O auge deste regime no Brasil foi o chamado Quilombo dos Palmares, formação nacional que se engendrou por sete décadas no território da Alagoas atual e que corresponde por completo à criação de uma nova nação não existente na África. Esta nação Palmarina desempenhou papel tão importante para a população escravizada no açúcar, que teóricos e dirigentes do Movimento Negro, como Luís Gama e Abdias do Nascimento, chegaram a usar sua expressão, quilombismo, como símbolo positivo da ideologia negra irredentista, em seus mais de 400 anos de existência. A democracia militar oferece a solução de criar um grupo estável, com um programa e uma ação própria, a partir de seus elementos componentes. Para tanto, devem-se fundir, criar ou recriar instituições, dando origem a um novo grupamento sócio-cultural, o qual poderá num futuro vir a se constituir uma etnia comum.
É verificável na formação do povo afro-brasileiro o papel da democracia militar como forma de poder político-social, através da formação de centenas de quilombos, no período 1550-1888. Esses quilombos, como está descrito na literatura da dominação, compreenderam desde agrupações de 3 a 4 choças com 9 ou 10 pessoas, até a vilas, como os Palmares, com oito aldeias e 22.000 habitantes. A experiência dos quilombos implicou um horizonte mítico de liberdade, de recriação de uma África no Novo Mundo. Esta visão política embrionária se fundiu não raro com tópicos de ideologia liberal, como ocorreu no Caribe, no México, na Colômbia, nas Guianas ou no Brasil. Neste caso brasileiro, é evidente haver-se transformado o quilombismo na ideologia social das massas negras, manifestando-se em todos os aspectos de sua reconstrução identitária.
Conseqüentemente, sendo a democracia militar um regime onde se reinventa a vida social, a partir de homens livres tornados guerreiros uma vez mais, os sistemas de interdição deviam ser reinventados no marco principal de sua experiência, tendo por agentes da reinvenção os mesmos atores que comandavam a vida social e política do novo grupo, em formação. Foram assim os homens e as mulheres que podiam representar a tradição e os graus mais complexos de conhecimento africano e indígena que se viram a cargo com esta tarefa de (re)criar as novas instituições, sendo, como antes delas, a parte central, o aparato religioso. Através do aparato religioso é que se definia tanto a ancestralidade quanto a descendência, fixando-se portanto os lugares das pessoas na hierarquia social e política, criando-se uma nova sociedade. Esta nova sociedade não é uma resistência simplesmente ao dominador, um lugar social – e às vezes até geográfico – à revelia do dominador e do qual tal elemento externo não faz parte. Daí haver-se (re)tomado africanamente o papel das sociedades secretas e semi-secretas que caracterizam o sistema de culto afro-americano (e, portanto, afro-brasileiro) e de suas práticas em geral.
Desta forma, o coletivo afronegro, colocado em diversas situações de repressão e estranhamento, pôde desenvolver processos de associação (aproximação, acomodação, assimilação, fusão, etc) para constituir uma nova sociedade, desta feita afro-brasileira. O processo de assimilação entre as afroculturas no contexto colonial luso-brasileiro fazia-se externamente (a) pelo estranhamento, e (b) como assimilação efetiva, internamente.
Ou seja, as formas de acomodação eram praticadas entre membros de diferentes culturas, nas condições da senzala, do eito ou da casa-grande (ou do sobrado...). Esta convivência induzida – mera aproximação imposta – evoluía assim para a aceitação de um conjunto de regras novas ou renovadas, adaptadas de diferentes culturas, mas que basicamente correspondiam a soluções na condição carcerária do escravismo. A tendência à agregação leva naturalmente a estabelecer regras de proteção influenciadas pela divisão natural do trabalho. A presença de sacerdotes ou hieródulos avançados africanos e indígenas em semelhantes contextos, levava a uma reflexão sobre o fato da condição escrava, e à percepção do outro como uma dominação. Esse desenvolvimento de consciência enquanto espécie na condição de diferente é um poderoso fator de agregação, que se punha portanto como fundamento das associações rumo a uma sociedade por negação.
3. A Reforma Religiosa.
Assim, a liderança religiosa na formação do grupo, primeiro individualizada e, logo, institucionalizada pelos oprimidos, tratou de organizar os desejos sociais. Estes desejos se manifestaram, portanto, desde muito cedo, como atividades sociais definidas, tanto associativas como dissociativas. Enquanto que as atividades ditas conjuntivas (formas de ligação) não necessitavam de apoio de uma estrutura religiosa, aquelas atividades competidoras ou nocivas, e/ou protetoras, claramente não podiam dispensar regras de assimilação religiosa interna. Isto não é negar a assimilação externa, desde a dominação. É reconhecer que as regras de assimilação desde a dominação não poderia ir diretamente administrar relações de rituais perdidos, que a religião dos dominadores já havia também abandonado desde muito. O exame das confrarias e entidades beneficientes negras comprova que nesses lugares predominavam sacerdotes de cultos e religiões afro, não sendo aqueles praticantes, agentes do cristianismo na massa negra, mas instrumentadores de religiões diferentes mantidas estanques e em paralelo. Todo sacerdote gosta de penetrar – e até manipular – o mistério de outra religião; e no caso do sacerdócio afronegro isso era motivo para sobrevivência física. A proximidade com o sacerdote católico servia de proteção, muitas vezes. Outras, poderia ocorrer cumplicidade, com a troca de segredos. Desde que o mundo dos espíritos é uma continuação do mundo dos vivos – e vice versa – , o transe presumido dos sacerdotes afronegros lhes facultava (e faculta) certezas e verdades, através do aguçamento da intuição, dos sonhos, das visões e das falas (frases perdidas, aparentemente ditas por outros ou simplesmente ouvidas pelo iniciado, e mais ninguém no ambiente).
Na era do hospício, no Brasil (1890-1970), é incontável o número dos negros que para ali foram conduzidos, sob a alegação de (a) ouvirem vozes, ou (b) falarem sozinhos. Isso jamais ocorreria numa aldeia africana, governada pela sua própria cultura. Conheci na minha infância inúmeros negros que discutiam acaloradamente sozinhos. Eram ou seriam taxados de dementes por brancos. No entanto, entre negros, era comum ouvir comentários do tipo: “Fulano é muito poderoso”. Ou: “esta entidade Xis, que está com Fulano, é muito poderosa”. Quer dizer, Fulano estava em transe, ou era possuído pela entidade Xis. Isso era um mérito, mostrava seu potencial “no outro mundo”.
Um sacerdote negro, disfarçado, que se industriasse como crente católico, não poderia abandonar os rituais necessários de sua própria crença, que eram então praticados secretamente. Também, ao contrabandear-se para o campo católico (ou qualquer outro), devia ele “pedir licença” aos seus deuses ou entidades sendo sua atividade na outra religião autorizada. Daí não se deve ver a sua presença como ato de falsidade, porque sua participação era sincera. Ele buscava um caminho para servir às suas entidades originais (que talvez fossem ou sejam as mesmas da outra religião, quem sabe?!). Por isso no sincretismo – como na assimilação – há um sincretismo positivo, quando ele não é imposto por uma dominação qualquer. Os processos das relações das religiões afronegras entre si e com a religião Católica não diferiam senão no arco de seus valores intrínsecos e sua forma de leitura; e no fato muito importante do Catolicismo expressar uma dominação.
A escolha do caminho indicado pelo regime de democracia militar é de todo evidente no caso brasileiro. A observação das formas de interdição vigentes na cultura afro-brasileira indica, particularmente para a interdição alimentar, a reconstrução do Oculto africano pelo recurso à consulta dos antepassados. Nesse caso, os homens e mulheres expressam tanto a experiência do xamanismo (bantu e indígena), em que o espírito sai, viaja e informa (como no hinduísmo, nas culturas uralo-altaicas, etc) como também expressa a possessão (bantu, kubango, ioruba, benue-congo, etc). A forma específica da duplicidade afro-brasileira, ao obter a Revelação desde o Oculto implica a convergência de diferentes fontes para a reconstrução dos Arcanos, que não pode se explicar como recursos a outrem ou mera resistência ao Catolicismo.
Os processos de aculturação religiosa na origem africana se deram na América portuguesa nas dificuldades próprias dos negros e dos indígenas; e ignoraram lições externas da dominação, havendo-se constituído de forma independente. Nesse caso, os praticantes expressavam dois movimentos de aculturação: (1) um propriamente africano e (2) outro tendo curso no Brasil. E a aculturação africana na África é uma invenção africana para fazer face lá às chamadas “religiões universais”, mas não para abandonar o dentro da cultura religiosa africana local.
Para as religiões afronegras, o mundo dos espíritos é uma continuação do mundo dos vivos e os antepassados só podem dali partir após um prolongado desgaste energético de seus campos mantenedores. Daí que as relações étnicossociais tenham por fim honrar os supostos mortos – na verdade, tão semivivos como os que aqui se encontram – para impedir que desapareçam. Caso nossos antepassados desapareçam, estaremos mortos em vida porque não teremos mais acesso à leitura daquilo que na cultura ocidental se chama futuro. Sem ler o futuro (que para os africanos é presente) não podemos garantir nossa sobrevivência.
Portanto, a experiência, a habilidade e a memória dos antepassados aparentemente mortos é que viabilizam a vida nesta esfera em que nos encontramos. Quando, pelo ato de escravização, um afronegro viu-se apartado de seus antepassados, só a democracia militar e a sua insurreição poderiam facultar – através dos sacerdotes – a reconstrução dessa perda, a qual se constituía evidentemente um crime da parte do escravizado e não apenas do escravizador.
4. A Interdição Alimentar.
Daí pode-se imaginar a importância do (re)estabelecimento da independência cultural e a busca de uma nova identidade étnica, cuja base estava no problema comum de todos os escravizados, qual fosse, haverem eles abandonado o cuidado de seus antepassados, dos bens por eles facultados, entre os quais se encontrava a natureza local do ambiente da etnocultura de origem.
Por quê razão a alimentação pode ser tornada sagrada, pela interdição de outros alimentos? Alguns argumentos analíticos da literatura especializada devam ser retomados, para que se chegue a compreender esta questão. A escolha de alimentos explica o advento de um momento societário em que a sobrevivência está garantida e esta garantia resulta da direção habilidosa que os antepassados fizeram de nossas vidas. Então, é necessário agradecer a tais antepassados, tornando sagradas suas alimentações favoritas e afastando outras como impuras. Não poder-se-ia excluir dada alimentação, se, nas condições do paladar vigente, a comida não fosse bastante, ou melhor, abundante.
A garantia da sobrevivência é dada por (1) um controle de certo território ou espaço que faculta ao grupo suprir sua base alimentar; e (2) o controle de uma técnica ou proceder que garante a perpetuidade, ao menos suposta, de tal abastecimento. Isso tudo – é evidente – decorre da habilidade de nosso antepassado, que para ali nos conduziu, produziu aquele procedimento, etc.
Por outro lado, a escolha de um grupo de alimentos favoritos tornados sagrados significa a duplicação do processo de ingestão do alimento, com dois patamares de sagrado: (a) um patamar do vulgar quotidiano – em que obviamente todo alimento digerido é sagrado por transferir a vida de um para outrem; e (b) um patamar excepcional de ritos – um que os antepassados ou as deidades são convidados a ingerir conosco certos alimentos numa festa, que é um ritual de celebração.
A constituição de um patamar excepcional de ritos da alimentação expressa a crescente complexificação social, ao menos o embrião de um processo de formação de classes sociais, com crescente divisão social do trabalho. Esta aqui se manifesta na autonomia e/ou burocratização da função religiosa, na pessoa do mágico – médico – feiticeiro. O reconhecimento do acerto da escolha do alimento sagrado é dado pelo grupo, sob a forma de um consenso. Sua manipulação se torna instrumento de poder para aquele que pode exercer o ritual, muitas vezes levado a cabo na esfera mesma da pequena família, uma das muitas células que constitui o grupo social em questão. Assim, durante o período do ritual de celebração, prioriza-se ou se exclusiviza o uso alimentar da comida sagrada, deixando de lado outros procederes correntes de ingestão. Todavia, em função dos rituais eventuais de progressão no contato religioso com os antepassados ou divindades, certos iniciantes, iniciados ou hieródulos podem ter a interdição quanto a certos alimentos tornada permanente.
Assim, a interdição alimentar situa-se historicamente, primeiro, sobre um plano de interdição objetiva para todo um coletivo e, daí, como interdição para práticas rituais de uma dada evolução espiritual individual. Nesse caso, os elementos para a interdição não são requisitáveis ou desejáveis para todo o grupo. Assim, a exclusão de certa outra alimentação reforça o caráter sagrado daquela que não é excluída e o alimento passa a ter, além da função de mantenedor da vida, a função purificadora de elevação espiritual.
O reforço, portanto, de um laço reconhecido leva à preferência por um alimento ou sistema de alimentação e à recusa de outro ou outros, isso dando-se apenas em condições de relativa abundância. Há, assim, uma estrutura específica de interdições em cada cultura. Dessa forma, o vínculo da escolha é étnico, mas em condições de rápida transformação de sociedade, como foi o caso imposto pelo escravismo no Atlântico, a escolha pode contrariar tanto o caráter étnico antecedente, quanto propor uma nova síntese ou modificação.
É evidente ser todo o processo da interdição alimentar a criação de um espaço sóciocultural próprio, isto é, como sempre trata-se de afirmar o Eu de uma coletividade contra o Outro, fenômeno que só se dá quando se percebe a existência do Outro. Muitos derivariam este outro da própria comunidade que se afirma, pelo estabelecimento de diferenças que decorrem seja de (1) sua historidade, seja (2) da reprodução demográfica necessária a um dado modo de produção. Esta afirmação se caracteriza como uma crise identitária e tal crise é necessidade de uma crise mais ampla, esta societária. Coloca-se pois o problema da construção ou da reconstrução de uma (ou outra) identidade, imposições no caso africano dos fenômenos das revoluções neolítica, agrícola e urbana e o desenvolvimento de suas formações sociais mercantis. E, finalmente, as desagregações societárias impostas pela escravização moderna e sua Grande Diáspora.
É nesse contexto que se coloca a (re)construção identitária no caso afro-brasileiro. O afastamento forçado de junto de seus antepassados leva cada pequeno grupo isolado de imigrantes forçados a comportar-se (1) no contexto de sua própria aldeia ancestral, reforçando a idéia de um regresso (mutemba). A impossibilidade ou a raridade de tal regresso leva cada grupo de imigrantes forçados, aqui tornados escravos, a buscar a solução da democracia militar, escolhendo novas estruturas hierarquizantes, novas lideranças, etc. Finalmente, impõem-se a reconstrução de uma loja religiosa comum, de porte eclético, que expresse no Novo Mundo a antiga cabana ou tenda das metamorfoses religiosas. Diante da imposição de tais necessidades de sobrevivência, ganha dimensão a (re)construção da identidade. A fase de transição deve caminhar no limite entre-aceitável das diferenças culturais grupais. Tal processo de liminalidade funda novos ritos de passagem, novos rituais de veneração, confraternização, apaziguamento e purificação.
Preuss atribui as proibições que evitam a força mágica negativa a um estado de amedrontamento, que resulta de experiências horrorosas para o grupo no passado. Daí que certos episódios que no passado antecederam certos outros são tomados como indicativo para o estabelecimento da abstenção, capaz de frustar o encadeamento das situações mágicas negativas. As proibições alimentares são as mais comuns em todas as culturas, por expressarem (1) transformações químicas não desejadas e (2) controle por forças exógenas indesejadas. Nesse caso, poderia dar-se a introdução de forças ou poderes por entidades hostis, que detém contato profundo com a coisa ou procedimento interditado. Caracteriza-se portanto a abstenção sobre um plano mágico e não anímico.
Desde a prática da abstenção, desenvolve-se portanto a interdição, ou seja, cria-se um consenso no grupo que aceita a institucionalização daquela abstenção, necessária para todos. A incorporação desta atitude interditiva é feita pelos sacerdotes, à prática grupal futura. Pode-se daí compreender que apenas um grupo de sacerdotes (médicos-magos-feiticeiros) que expressasse uma dada etnocultura podia introduzir, cancelar ou modificar em extensão importante práticas interditivas.
No entanto, foi outro o que se passou – e várias vezes – no caso brasileiro. A intensa descida de populações africanas, através do Atlântico, para o Brasil desempenhava para tais populações dois papéis vitais: (a) a degradação social e econômica; (b) a dissolução de suas culturas originais. O total de mão-de-obra que era introduzido a cada ano, quando computado, aproxima-se muito da taxa delta que resultaria – em uma população livre – no crescimento vegetativo anual do mercado de trabalho. Ou seja, o capital mercantil providenciava ano a ano um acréscimo de escravos proporcional às demandas de consumo de trabalho vivo por sua economia exportadora. Nesse caso, não era possível “escolher” a população que trazia. O escravismo contentava-se com diluí-la, como quem coloca sal numa polenta. Isso significa que os ciclos substitutivos de mão-de-obra, de sete e quatorze anos, poderiam mudar por completo o cenário etnográfico de uma dada fazenda ou de uma dada região. As soluções, adaptações e ajustes culturais procedidos por uma “geração” de mão-de-obra para (re)construir uma cultura africana era desarticulada por novas camadas despejadas por sobre, na geração seguinte. Era como se um pintor – a cada manhã – repintasse o quadro que fez na véspera, utilizando tintas de cores diferentes.
O modelo afro-brasileiro que tem-se hoje do sistema de interdições e da estrutura religiosa foi forjado apenas no terceiro século da colonização (1750-1850) e consolidado no quarto século (1850-1950). Com o término das migrações africanas compulsórias, terminou também a oferta de oportunidades culturais que faziam da cultura afro-brasileira um modelo aberto.
Também não cabe discutir aqui detalhes do modelo dominante afro-religioso hoje e como se constitui sua axiologia e seu Olimpo de deidades. Cabe observar nele o que se procurava até ignorar: sua estrutura advém das reformas religiosas ligadas às guerras da Nigéria no século XVIII (1760-1840) e expressam as heterodoxias já elaboradas pelos deportados enquanto na própria África. Para uma informação detalhada do Sistema dos Orixás deve-se ler Pierre Verger, Juana Elbein dos Santos e outros especialistas. O que era sagrado, conhecimento fechado, em 1860 ou 1930, está hoje compendiado em livros. Apenas um punhado de segredos continua preservado. Mas de que se trata, quando se fala em Sistema Nagô ou Sistema Gege-Nagô? Apenas se reconhece a adoção desde a origem de uma heterodoxia, adotada em algum ponto no tempo como Regra Explicativa, ou seja, filtro ritual para as práticas. Uma tradução aproximada da palavra “Nagô” significa “infiel”. No entanto, não é “infiel” porque não é “maometano”, mas é “infiel” porque se afastou do sistema de interdições dos seus antepassados. Ou seja, “renegou a prática dos seus antepassados” (!). É evidente que o termo “Nagô” designa os membros de uma democracia militar que lutou por sua sobrevivência naquelas (e outras) guerras da Nigéria, criando o Sistema Nagô como um prêmio por sua existência.
Dostları ilə paylaş: |