Interdição Alimentar na Reconstrução Identitária Afro no Brasil (1840-1970)



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5. Antiguidade Afronegra.
Seguramente a Nigéria e o Níger são habitados há mais longo tempo que o Egito, pelo menos com maior densidade numérica. Já nos tempos históricos, aproximadamente de 5.000 a.C. a 1.000 a.C., a região Níger-Nigéria perdeu sua prevalência demográfica, com relação ao Egito e Núbia. Por isso, é possível estimar governos muito antigos no território Níger-Nigéria, com o avanço das revoluções neolítica, agrícola e, finalmente, a chamada revolução urbana. Alguma memória desses reinos antecedentes deve ter sido narrada aos memoriólogos dos reinos subseqüentes. Certamente estes primeiros Estados do Níger-Nigéria tiveram contato – sobretudo religioso – com a Núbia, a Abissínia e o Egito antigos. Deve haver ocorrido aí algum substrato de narração mítica comum. Segundo comprovaram historiadores italianos do misticismo afro-oriental, os templos do antigo Egito exerceram sobre a África e a península arábica uma atração similar a que Meca exerce hoje, através do Islamismo. Viajava-se de longe para consultar os deuses e as entidades egípcias. Parte, portanto, desse substrato comum é possível que viva na narração dos Orixás.

Assim, a história dos antepassados dos nigerianos pode ser contada ignorando-se as quebras étnicoculturais, sugeridas pelo movimento populacional conhecido. Isso cientificamente é um contrasenso, mas não o é, do ponto de vista do mito. A atual população da Nigéria não descende em sua grande massa sequer da civilização do Nok (950 a.C. - 250 d.C.). Na verdade, os acontecimentos narrados na tradição dos Orixás não se passaram no Níger-Nigéria, dos territórios atuais, pois estas populações só aí chegaram por volta do século VII d.C. Tais acontecimentos que propiciaram o fundo mítico se passaram mais a leste, possivelmente no Sudão oriental atual. As atuais referências a Meca, devem ser lidas como originalmente referidas às cidades sacerdotais egípcias e núbias. Ali, no Sudão, a maior proximidade com o Egito, a Núbia e a Etiópia (Abissínia) explicam a estrutura “mais oriental” das narrações míticas nigerianas.

O processo de decomposição da civilização Kanem-Bornu espelhou tanto a regressão do poder militar e político dos haussás, como o avanço de seus antigos aliados na islamização, os muçulmanos peúles. Os peule, fulani, ou fulbê são populações que pertencem ao grupo Atlântico ocidental que, mesclados aos malinkés no alto vale do Senegal, desceram para o sul, aliando-se aos bambara. No Futa-Djalon (Guiné), desencadearam uma guerra santa, gerando um Estado teocrático (séc. XVIII). Seguindo o modelo dos haussás, deram curso a enorme escravização, que, em parte, como resultado das guerras, chegou a atingir sua população.

O Estado Sokoto foi a versão do poder fulani na Nigéria. Este Estado, embora centralizado e teocrático, não conseguiu sequer anexar Bornu, o que em parte explica a insegurança, as razzias, as guerras intermitentes, aparentemente religiosas, mas na verdade para a caça ao homem. As trinta cidades-estado mais importantes do Níger-Nigéria e Guiné se digladiaram assim por todo o século. Ocorreu a debilitação de Sokoto, de Katsina, do Kano, de Maidugari, todas ao norte. Isso não implicou de fato o recuo, mas o avanço do Islamismo. Os poderes tradicionais locais faziam para sobreviver inúmeras concessões aos islâmicos. Também os Estados ao sul de Abuja, embora sobreviventes, sofreram perdas iguais ou maiores que as nações do norte.

Ibadan, Ilorín, mesmo Benín, se debilitaram o suficiente para permitir, em 1851, a ocupação de Lagos pelos ingleses. Essa ocupação cortaria o tráfico de escravos, pelo menos em seu maior volume, iniciando a ruína daqueles Estados. Com a fundação da United African Company (1879), terminaria a fase independente dos Estados da Nigéria, devorados que foram pela atividade mercantil da procura de escravos. Calcula-se que no período 1760-1850, as guerras da Guiné-Niger-Nigéria enviaram ao Brasil cerca de um milhão e duzentos mil escravos (aqui chegados), dos seguintes grupos, principalmente: estoque Benue-Congo: Kambari, Tiv (Bitare), Boki, Biron, Ekoi e Katab; do estoque Mande: Busa; do estoque Kwa: Ewé (Fon), Iorubá, Nupe (Igbirá), Bissi, Gbari; do estoque Gur: Gurma; do estoque Atlântico ocidental: Fulbê (peúle; fulani); do estoque Bantu: Duala.

Nesse caso, na crise social brasileira profunda do terceiro século (1750-1850), a chegada em grande número de novos contingentes nigerianos deve haver incluído corpos sacerdotais quase completos. E a reforma religiosa se fez uma vez mais, dando centralidade ao Sistema de Orixás e aos antepassados dos nigerianos, reservando-se é claro “lugares” em tal teolatria para os indígenas e os bantu. A influência maometana é visível em termos como Oxalá (se Deus quiser, ou se Alá quiser). De fato, a pressão islâmica constituiu-se importante fator de transformações dos Estados afronegros (800-1800) na costa do Índico, no Sudão e ao longo dos paralelos 4º e 14º.

A história dos reis africanos pontua-se com os antepassados ilustres dos nigerianos. Mas foi também a oportunidade de escrever no alfabeto árabe a história dos reinos da Nigéria que reforçou o papel social desses antepassados na mitêutica afro-brasileira. No quarto século (1850-1950) encontraram-se de quando em quando livros e anotações em língua árabe, inclusive deixados por membros de confrarias e irmandades católicas na Bahia e Rio de Janeiro. Segundo antropólogos, encontraram-se língua inglesa escrita com caracteres árabes e até língua etíope escrita com os mesmos caracteres. Grande parte dessas instruções ou comentários religiosos destinava-se a fazer sobreviver mistérios das religiões locais africanas, correntemente chamadas tradicionais.

Na verdade, “tribo” ou “nação” é uma plasmação que no plano objetivo constituiu-se uma especificidade étnicocultural, sobre a qual um encontro de mitos haverá de constituir uma integridade grupal, que tende a ser cada vez mais ampla. Isso dependerá de um número de fatores: (a) grau de desenvolvimento das diferenças sociais internas; (b) natureza do desenvolvimento do Estado local, etc. Quase sempre, uma especificidade étnicocultural é resultado de uma base de famílias com traços de comunidade isolada, à qual se agregam periodicamente elementos de fora, por circunstâncias diversas. Sobre esta base consolidam-se diversos mitos que reforçam a integridade do grupo. Construída esta diferença, ela é utilizada socialmente para reforçar um lugar geopolítico e perpetuar o grupo, que se supõe assim beneficiado.

A interdição alimentar é um dos mitos que favorece semelhante consolidação grupal. Ao mesmo tempo em que reforça os laços com os antepassados, ela contribui no longo prazo para a separação biotípica do grupo. Esta opção biotípica se dá com base nas atividades dominantes do grupo, que contribuem para estruturar seus valores éticos e estéticos. O sistema de interdições construído e adotado por um grupo, no caso das culturas afronegras, valoriza o entre-dois-mundos, que para os padrões ocidentais pode ser compreendido naquelas culturas como constituindo uma coisa única. Os atos sociais, os rituais, a modificação de todas as coisas, obedece às regras plasmadas de acordo também com semelhante sistema interno de interdições. Este sistema é peça indispensável da geopolítica do poder mágico local. Por exemplo, sem o sistema local de interdições, seria muito difícil constituir o sistema de sociedades secretas e semi-secretas que na verdade governam cada sociedade local afronegra. Somente na África ocidental, nos territórios que se estendem de Gana até a África do Sul, é possível identificar 40 sistemas distintos de interdição alimentar, que expressam evidentemente uma rede de experiência na arte local de sobrevivência, expansão e poder. De Gana ao Gabão, área de onde veio enorme parte dos imigrantes forçados para o Brasil, tem-se trinta sistemas de interdição alimentar, com etnoculturas tão importantes como: Kubango (com os subgrupos gur, com a família níger-kordofan, etc); Akan (que compreende as culturas ashanti, fanti, okwalim, akem, anyi, banle, etc). Há as etnoculturas Ewe (fon), Ioruba, bini, igbo, nupe, gbari, etc. Na verdade, centenas de pequenos países, com bases em etnoculturas locais, foram abalados ou destruídos pelo processo de imigração compulsória, que foi a escravização moderna e contemporânea no Atlântico.

A questão da escravização no Atlântico pode, portanto, ser abordada desde duas vertentes: (1) o impacto da escravização nas sociedades locais africanas; e (2) o impacto da escravização nas sociedades para onde os escravos foram levados. O interesse aqui situa-se no caso (2). Busca-se limitar a discussão ao aspecto da interdição alimentar que, sendo antes instrumento das sociedades africanas locais, deveu ser reformulada nas condições da América portuguesa, para servir de meio de (re)organização e sobrevivência das culturas afronegras neste novo cenário. Em que pese as centenas de etnoculturas que forneceram mão-de-obra compulsória para o escravismo brasileiro, o caráter de cárcere dos campos-de-trabalho aqui instalados nos primeiros séculos praticamente impediu que o lado específico de tais culturas ficasse registrado nas fontes oficiais.

Por outro lado, os eventuais organizadores saídos da massa escrava que se dedicaram a reconstruir sua africanidade desejavam tudo, menos evidência oficial. Semelhante evidência os levaria prontamente à destruição. Dessa forma o (re)estabelecimento da afrodinâmica societária nas condições carcerárias do Novo Mundo constitui-se um enigma, que pode ser lido tanto como (1) as falácias literárias dos escrevinhadores escravistas, quanto como (2) uma tentativa de reconstituir o roteiro do comportamento do afronegro no Brasil, a partir dos desempenhos das sociedades afronegras e indígenas, envolvidas para a criação da sociedade brasileira. Uma vez que a dinâmica das sociedades indígenas e das sociedades afronegras é em grande parte conhecida, é a partir delas que deve ser feita a leitura do comportamento afrobrasileiro. E não desde teorias pré-fabricadas sobre a “singularidade do escravismo brasileiro”, a “religião afro-brasileira como forma de resistência cultural” e outras piadas tão a gosto do racismo elevado à teoria.
6. Interdição e Democratismo.

Enquanto instrumento de sua própria sobrevivência, a interdição alimentar seguiu o roteiro que já vinha construindo na própria África, ante o problema do encolhimento físico e numérico das sociedades locais afronegras. Ela seguiu o caminho da democracia militar africana, (re)inventada nas condições do colonialismo brasileiro. De um lado, (a) apresentou-se como um fato novo; (b) afirmou-se na liminalidade das aproximações mais óbvias; (c) tomou a vertente do totemismo por adoção, que já vinha se impondo na África ao menos ocidental. Graças a tais recursos, criou ou contribuiu para criar uma nova possibilidade integrativa enquanto mito. Ao contribuir para formar uma comunidade afro-brasileira, pela universalização dos motivos locais africanos, a cultura da interdição alimentar deixou de afirmar e separar um eu já existente, mas precipitou num novo eu ainda não existente diversos fragmentos de “nós”, por oposição a um Outro dominador e totalmente destrutivo.

Esse novo “Eu” ainda não por completo existente trata-se é óbvio da sociedade afro-brasileira, uma sociedade constituída por negação, ou seja, por proibição de todos os costumes, regras e leis que eram vigentes entre os africanos, antes da deportação para aqui; e pelos indígenas daqui, antes de sua escravização.

A (re)construção da África no Brasil tem sido uma tarefa de convergência transcultural por parte da inteligência social africana, num primeiro momento, e no quarto século, afro-brasileira. A afromiragem como ideologia abarcava o espaço mitêutico das lucubrações dos deportados. Essa afromiragem gerou o quilombismo, como uma esfera de práticas suas, transformando-se esse quilombismo, ao longo dos séculos, na ideologia social dos negros brasileiros. A tarefa central com que se viram associados os magos-médicos-feiticeiros trazidos – por equívoco – da mãe-África foi restaurar e unificar o espaço religioso nas culturas esfaceladas. Felizmente para eles, colocava-se o problema religioso em dois níveis: (a) um patamar abstrato, dos conceitos e das relações imaginárias; e (b) um patamar de práticas, para obter o equilíbrio psicossomático e administrar as doenças físicas dos membros do grupo.

A possibilidade dos médicos-magos-feiticeiros de atuar amplamente no plano (b) foi obtida com sua associação à pajelança e ao saber indígena correspondente. As dificuldades inerentes à perda do ambiente africano foram assim superadas. A existência de soluções no patamar (b) permitiu a intelectualidade social afro-brasileira debruçar-se sobre os temas do patamar (a) e buscar as soluções que lhe seriam adequadas.

Já na África, o saber oculto se expressava em importantes relações transculturais, como formas de dominação que implicava interpenetração ou até choques nos espaços religiosos de etnoculturas vizinhas. Essas relações muitas vezes eram positivas, como em casos conhecidos de interação sacerdotal através de um grande número de etnoculturas diversas. Na hoje África do Sul, na Tanzânia e Kenya atuais, etc, era comum a troca de experiência dos corpos sacerdotais e, mesmo, a formação em comum de grandes sacerdotes (médicos-magos-feiticeiros). No Brasil é bastante conhecido o caso da nação Mandinga, que tinha entre suas tarefas a de abrigar uma “escola” de saber oculto e promover periodicamente “congressos” de grandes sacerdotes dos territórios hoje Congo e Angola. Portanto, no próprio entender das etnoculturas africanas, o Oculto não era revelado por igual a todas as culturas e a todos os sacerdotes, sendo os mais poderosos aqueles que já nasciam – por decisão dos deuses – com o poder eletromagnético e empírico necessário. A outros cabia aprender, sendo o aprendizado religioso importante móvil da comunicação entre culturas.

É evidente que um desastre como a escravização massiva, praticada pelas potências ocidentais na África, colocou na ordem-do-dia, tanto no mundo africano, como entre os deportados, a necessidade de desencadear mecanismos reparatórios das derrotas de suas divindades e enfrentar o exílio na escravatura com (1) a reconstrução da escolha mítica dos antepassados e a (re)instalação das entidades tutelares.

Dessa forma, é razoável que o espanto entre os médicos-magos-feiticeiros, passado o primeiro impacto da deportação sobre o Atlântico, se voltasse para a retomada de seus valores e a busca no novo meio ambiente das fontes de poder que o Oculto lhe devia facultar, num segundo momento. Tratou-se logo de restaurar a afromiragem. A partir daí, desencadeou-se o vetor fusionista cultural, que já existia em África, mas que aqui teve que ser tomado como o ponto central das práticas de convergência. Esses sacerdotes sobreviventes, em suas conspirações dentro da mata e dentro da noite, trocaram segredos que suas sociedades secretas prévias proibiam compartir. Puderam assim reinventar e fazer convergir a parentalidade mítica; os mitos de uma parentalidade; a solução do distanciamento da entidade tutelar; o lugar novo do antepassado consangüíneo; a opção pelo totemismo por adoção, etc. Ao mesmo tempo, a opção pelas novas soluções, capazes de engendrar uma nova nação negra nas condições do Brasil, não podia ser acompanhada pelo rebaixamento do poder prático quanto ao menos as Nove Artes Ocultas, que permitem ao médico-mago-feiticeiro ser quem é.

A aceitação social grupal pelos diferentes subconjuntos de negros espalhados pelo território brasileiro até o quarto século (1850-1950) demonstra o sucesso das políticas étnicoculturais implementadas e a sabedoria nada desprezível com que a intelectualidade social africana enfrentou a dominação européia no Brasil. Até 1850, antes da abolição formal do tráfico negreiro, chegavam dezenas de milhares de africanos todos os anos no Brasil. No meio, certamente centenas de sacerdotes. Era evidente a africanização do Brasil. Dessa forma, a sabedoria antecedente podia colaborar na reelaboração local dos códigos africanos, correspondendo assim ao principal traço da africanidade enquanto saber: ser local e ser empírico.

Diz a letra da capoeira dura, jogada (até os anos (19)60) no Rio de Janeiro: (correção minha do idioma):

“Pra amestrar a Natureza

Pra amestrar a Natureza

Na volta do mundo andei

Na volta do mundo andei, eh, eh

Pra amestrar a Natureza”.
E noutra interessante passagem:
“Não ensine a quem já sabe

Não ensine a quem já sabe

O pouco que aprendeu

O pouco que aprendeu, eh, eh,

Não ensine a quem já sabe”.
Sendo a capoeira do quarto século um círculo semi-secreto que ocultava outros círculos mais importantes e mais secretos, seu discurso pode ser visto como uma fonte reveladora.
7. O Sistema Nagô.

O objetivo mais visível do Sistema Nagô é a construção de um lugar para os antepassados de nigerianos (comunidades locais) dentro do espaço hierárquico do Maometismo. Essa tentativa, cheia de sentido na África – onde os reinos islâmicos pressionavam – poderia torna-se sem sentido na internação escravista da América portuguesa. Aqui, poucos colonos se importavam se os negros tinham ou não alma. Conquanto que fossem batizados e aparentassem um respeito pelo Catolicismo, estava tudo bem. Trataram então os sacerdotes dos sistemas Gege, Iorubá, Nagô, etc, de preservar seu próprio espaço na massa negra, procedendo às reformas e codificações que para tanto julgavam necessárias. O resultado das reformas do quarto século foi assim gestado desde o terceiro (1750-1850): Candomblé, Samba de Caboclo, Xangô do Nordeste, Umbanda, Qui(m)banda, etc. Foi empurrado para uma margem deste sistema, o “ruído” que perturbava o mesmo: Macumba, ou seja o coletivo do “barulho” dançado (cumba). No quarto século (1850-1950), foi oferecida uma oportunidade ao kardecismo para reorganizar as práticas bantu (ditas Macumba), gerando-se as “tendas de mesa” e as “linhas brancas”.

As religiões afro-brasileiras ocuparam por completo no quarto século a cultura pública brasileira. Praças, praias e matas foram o cenário de seus atos criativos. As entidades nigerianas, os Orixás, difundiram-se em todas as religiões afro, segundo o clássico modelo cosmopolita e eclético do Catolicismo romano. Na verdade, a invenção desse modelo se deve à África, onde os romanos o aprenderam.

Somente como um exemplo, comenta-se o complexo lugar místico de um Orixá. Há duas maneiras de obter-se informação sobre os antepassados. O registro do mesmo pela tradição (memória, conversação, escrita), ou a Revelação (um deus, Deus, ou uma entidade o revela de alguma forma). Isso implica em discordâncias ou releituras dos sacerdotes. Uma mãe-de-santo explicou-me que cada orixá se apresenta sob sete diferentes formas, até sete vezes. Ou seja, um orixá são 49 orixás ou 343. Outra mãe-de-santo afirmou-me que de maneira alguma: sete formas é o limite de cada orixá (então, seriam eles, de fato, 49?). Numa leitura, os orixás chegam a 117.649 formas, na outra a 343. Como escolher? Na verdade, as religiões afro precisariam de concílios, para adotar um corpo relativamente unificado, como o fizeram em algum momento as religiões chamadas universais. A redução da pressão externa parece haver bloqueado o desenvolvimento das religiões afro-brasileiras. Elas tomaram um caminho individual do sacerdócio.

Veja-se, por exemplo, Obatalá. Ele é um dos “orixás brancos”, ou seja, Orixá Funfun. É Orixanlá, mas distingue-se de outros orixás brancos, como Oxalá, Oxalufan, Oxaguian e Oxa-Popô.

Obatalá, Orixanlá, ou Orixalá nasceu diretamente de Olorum (Deus, ou o movimento original). Seu nome em Iorubá quer dizer “rei do pano branco”, sendo o criador do nosso mundo (mas não do Universo), com homens, animais e plantas. Daí que sua palavra, seu discurso, cria realidade, ou seja, trata-se do Osíris dos egípcios antigos. Suas interdições requerem: não comer sal (o sal envenena os negros), silêncio nas festas, etc. É corcunda, porque foi agredido por Exu, etc. O que se vê na sua posição hierárquica?

Sendo tão antigo que criou nosso mundo, sua estirpe real se situa em passado remoto. “Nosso mundo” foi criado após o último glaciário, o que situa o governo de Obatalá entre 25.000 a.C. e 5.000 a.C. Isto quer dizer que a formação do Egito (formação do deserto de Saara) e a da Nigéria se deu no mesmo momento, formando realezas sagradas paralelas. No entanto, todos os seus nomes têm uma grafia recente, que expressa a influência da cultura árabe-berbere (800 d.C. – 1800). Ou seja, o próprio Obatalá por certo está fundido sincreticamente com Orixalá, não sendo à origem um só. Esta fusão de antepassados revela (1) uma perda de memória e (2) concessão à dominação de outro sistema.

No caso das afroculturas, em virtude da elevada condição social dos memoriólogos, cada qual encarregado de saber de cor uma parte do passado, com a pronúncia respectiva, somente a destruição de uma Corte ou de Estado explica a perda de memória. Por exemplo, o número de antepassados é “muitos” porque se perderam os funcionários encarregados de enumerá-los. A solução para a perda ou a dominação externa é a fusão sincrética dos personagens e das narrações. Reelabora-se a mítica, criando uma nova mítica.

Compreende-se que no Brasil, valendo-se da arte da consulta ao deus, os sacerdotes devolveram toda a população (e não apenas a população negra) à condição original de descendentes dos reis africanos mais antigos que podiam ser conhecidos. Mas esse não era um programa BANTU.

Informam os sacerdotes afro haverem entre 252 a 343 entidades “Orixá”. Alguns associam um orixá a cada povo da África, outros seguem os Sistemas Nagô, Keto, Gege-Nagô, Yorubá, etc. Desde 1950, os “pais” e as “mães”-de-santo tem-se dado maior liberdade na reorganização das relações hierárquicas dos antepassados. Entre 1760 e 1913, a ciganaria exerceu influência em muitas práticas afro, sendo comum nas grandes cidades os ciganos praticarem as religiões afro-brasileiras. Elas eram o que se encontrava mais próximo de sua religião, certas vezes descrita como uma variação do xamanismo e do hinduísmo. Este voltou durante a ditadura militar (1964-1985) a influenciar a Umbanda, criando inclusive uma Umbanda não-africana com muitos militares que a praticam. No entanto, o termo “MBANDLA” continua sendo Bantu. Ele quer dizer aproximadamente “congregação”. “Umbanda” é a “congregação mais antiga”. Esse nome foi adotado por volta de 1850 por sacerdotes que visavam expressar a prioridade BANTU do afro-religioso. O termo “Kibanda” quer dizer “a congregação (que vai) mais alto”, ou seja, a congregação mais poderosa. Toda religião Bantu valoriza uma “cabana” ou “tenda” onde se processam as transformações (dita na Suazilândia e na África do Sul “loja”). As práticas requerem um pai (baba) e filhos (vana). O centro da atividade é mover o sistema de crenças do iniciado ou cliente para restabelecer o equilíbrio psicossomático.

Nisso em nada difere do Candomblé. Aliás, em línguas diferentes, “Macumba” e “Candomblé” podem ser traduzidas como a mesma coisa: “dança barulhenta” (ao som de tambores). No entanto, a proteção Bantu não busca os mais remotos antepassados, como o Sistema Yorubá, em que a ancestralidade se houvesse tornado energia pura. Para os Bantu, o acesso à energia pura só pode se dar pelos antepassados que estão no nosso mundo que, aliás, é deles. É só a energia dos ciclos longos, que está nas plantas, nas árvores, nos cemitérios, que pode intervir negativamente de forma administrável na vida quotidiana. É essa energia que o feitiço pode mobilizar. E se acaso ele pudesse mobilizar outra, superior, não haveria o que fazer. Ou seja, na cultura Bantu, Olorum não iria atender a sua prece.

É por isso que os Sistemas Yorubá e Nagô classificam a Macumba de trabalhar com energias baixas, de ser “atrasada”, etc. Na verdade o Candomblé brasileiro, diferentemente até da Nigéria, se situou num plano de elevada abstração, que expressa o desenvolvimento do individualismo entre os negros no quarto século (1850-1950). No entanto, a busca dessa experiência profundamente individualizada não deve servir de motivo para considerar inferior o negro que se dissolve – enquanto indivíduo – na prática religiosa coletiva (o caso da Kibanda, da Macumba, da Umbanda afro, etc). Esta prática é mais antiga ou anterior à relação individual com as deidades, não havendo ainda sido influenciada pelo Islamismo.

Então, de certa forma, a aceitação da Ritualística Nagô ou influenciada pelos sistemas nigerianos, reflete a dissolução da aldeia ancestral Bantu, ou a aceitação da perda da mesma ou – a mesma coisa – o esquecimento da Muthemba (o retorno). Isso permite aos oriundos da liturgia nigeriana ascender rapidamente na hierarquia (artificial) dos cultos componentes da Religião Bantu justamente porque tal hierarquia não existia na África, sob a forma de um lugar burocrático ou permanente. Entre os Bantu reconhecia-se simplesmente a maior antigüidade diante de antepassados comuns, sendo o de memória mais extensa de antepassados o mais antigo, o preferido dos deuses e, daí, honrado e respeitado com precedências. Não existiram imperadores Bantu, mas apenas reis considerados por seus iguais a ele superiores por ascendência.

No entanto, na África nigeriana, no ambiente das guerras de religião, a hierarquização mais rígida era um valimento, uma forma sutil de aderência à nova ordem dominante, que tinha os islamizados em seu centro. Ali, a reconstrução das regras de reciprocidade (ajuda, familiarização, troca de favores e socorro mútuo) exigiam posições hierárquicas definidas num amplo território, para fazer recuar os eventuais opositores.


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