Baianidade nas letras de Caetano Veloso e Gilberto Gil



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7.3. Religiosidade


A religiosidade continua sendo um tema pautado na música baiana da segunda metade do século XX. Mas, ao contrário da situação no período anterior, já não nos encontramos com tanta importância dos santos cristãos. Nasce um novo panteão com vigor nas letras dos dois poetas. São os orixás da tradição afro-baiana. Como já mencionamos, na primeira metade do século o candomblé ainda era mal visto, mas, mais tarde, a familiaridade com os rituais e com os fundamentos da religião torna-se um signo de bom gosto e erudição. A significativa substituição da referência aos deuses católicos pelas divindades nagô-iorubás retrata a lenta e progressiva conquista de espaço e respeito pelas expressões culturais negras na Bahia, que até as primeiras décadas do século a elite local tentava insistentemente banir. Agora, os orixás transformam-se em uma presença constante, com a qual os baianos parecem manter um intercâmbio permanente. Um exemplo do grau de atenção que os intelectuais e os artistas passam a dedicar à religião afro-baiana é dado pela expressiva remissão nas canções aos nomes de casas religiosas, terreiros, seus sacerdotes, palavras litúrgicas, etnias africanas e arrisca-se até definições de princípios básicos da religião. A língua iorubá vai ganhando o espaço além dos muros dos terreiros em palavras como axé, orixá, Afonjá, Olorum.

Especialmente na obra de Gilberto Gil, a religiosidade é muito ligada com a etnicidade.60 Gil, consciente de sua origem da vertente nagô, aborda os diferentes aspectos da cultura afro-brasileira. Ora retrata as citações vividas pelo homem negro na grande cidade, ora busca inspiração nos ancestrais africanos, nos deuses mitológicos. Portanto nas canções com a temática religiosa, que são no caso de Gil muitíssimas61, encontramo-nos nomeadamente no mundo do candomblé cheio de expressões iorubanas. São as músicas com os nomes estranhos como “Axé, Babá”, “Sarará Miolo”, “Emoriô”, “Iansã”, “Iemanjá”, “Logunedé”, “Opachorô” etc.. Conforme o autor, algumas destas músicas surgiam numa espécie de transe: “...como se a santo fosse rodopiar. E quando ela vem assim “ô, ô, ô, Axé, Babá”, é como se já estivéssemos num terreiro e estivéssemos todos incorporados...”62 Na música “Babá Alapá”, que é o pai de santo ancestral africano, ele trata da perda de suas referências ancestrais, chamando Egum, o espírito dos ancestrais mortos: “O filho perguntou pro pai / Onde é que tá o meu avô? / O meu avô / Onde é que tá?...Pai Xangô, Aganju / Viva Egum / Babá Alapá”. Vamos ainda esclarecer o sentido das outras palavras da canção: Xangô é um grande e poderoso orixá, deus do trovão, retratado sempre com o machado alado, e Aganju é outro nome para Xangô. Gilberto Gil admite diretamente a sua inspiração no léxico da origem nagô quando canta: “Emoriô deve ser uma palavra nagô / uma palavra de amor, um paladar / Emoriô deve ser alguma coisa de lá / o Sol, a Lua, o céu pra Oxalá”. “Emoriô” é uma palavra que funciona como um mantra, uma espécie de evocação sonora, de inspiração nagô, para saudar a natureza através de Oxalá, o deus que governa a Terra.63

Entre as sacerdotisas e as casas religiosas da Bahia o destaque especial mereciam Mãe Senhora do Ilê Axé Opô Afonjá, no São Gonçalo do Retiro, e Mãe Menininha do Gantois, do terreiro na Federação. A primeira, considerada por muitos a mãe-de-santo mais influente que a Bahia já teve, era procurada por chefes do estado, brasileiros e africanos, artistas e intelectuais os quais ela sabiamente buscou aproximar de sua casa religiosa, conferindo-lhes cargos e títulos religiosos. Se muito foi escrito sobre o Opô Afonjá, é provável que ainda mais se tenha cantado o Gantois e sua Mãe Menininha, retratada sempre como uma mulher muito doce e possivelmente a mãe-de-santo mais querida pelo povo. As duas são cantadas por Caetano em “Bahia, minha preta” e aparecem como elementos de exaltação da Bahia: “Ê ô Bahia, fonte mítica encantada / Ê ô expande teu axé, não esconde nada...Te chamo de Senhora Opô Afonjá / Eros, Dona Lina, Agostinho e Edgar / Te chamo Menininha do Gantois”. Sob o comando da Mãe Menininha, o Gantois foi o terreiro especialmente próximo dos artistas. A prova disso pode ser a canção-oração feita exclusivamente para ela por Dorival Caymmi e, o que nos interessa ainda mais, a canção “Réquiem pra Mãe Menininha do Gantois” composta por Gilberto Gil após a morte da mãe-de-santo onde o autor revela a sua relação íntima à finada: “Minha mãe se foi / Sem deixar de ser - ora, iêiê, ô / Dói / Minha alma ainda dói.... Minha mãe se foi / Sem deixar de ser a Rainha do Trono Dourado de Oxum / Sem deixar de ser / Mãe de cada um / Dos filhos pra quem eternamente sempre haverá / Mãe Menininha”.

A canção “Logunedé”, que é também o nome de um dos orixás, é muito apreciada por Gilberto Gil. Como ele afirma: “Eu acho a canção mais especial daquele disco, o “Realce”. Por tudo, pela canção em si, pelo arranjo, pelo modo como ela foi tratada musicalmente”. Uma das razões desta importância da “Logunedé” para o próprio autor pode ser vista no seguinte depoimento, que ao mesmo tempo pode também substituir para nós a análise da letra e revelar o processo da criação artística de Gil. Tomamos a liberdade de fazer aqui uma citação longa, porque só esta pode nos mostrar o pensamento do autor e aproximar nos do mundo do candomblé dele:



Mãe Menininha do Gantois descobriu e identificou Logunedé na minha linhagem, entre meus santos, quando ela jogou os búzios. Porque chegei lá e disse: “Olha, Mãe, eu sei que sou de Xangô – contei para ela a história do terrreiro de Egum, que tinha ido lá – e ela disse: “Tá! Mas eu vou jogar pra você, pra ver...” Aí jogou.......e disse: ”Ah! Pois é, eu tô vendo aqui, tem uma Logunedé aí”. Me explicou quem era Logunedé. Depois, fiz uma música baseada exatamente na narrativa dela, com as qualidades de Logunedé. Ela dizia: “Logunedé é você! Logunedé é aquele menino esperto que gosta de estar sempre no colo da mãe Oxum. Oxum é louca por ele, faz tudo quanto é mimo, tudo quanto é dengo, tudo quanto é vontade. Ele é cheio de vontade. E ele é uma moça também, ele vira uma moça”. Aí contou vários mitos, as lendas sobre o orixá. E eu que me identificava com Xangô...Caetano, por exemplo, achava muitas características de Xangô em mim: nos modos da personalidade, nos vários casamentos, em tudo. Mas eu achava que tinha um lado assim muito doce, muito semelhante ao que ela dizia de Logunedé. Então, eu fiquei muito contente quando soube que era de Logunedé. Ficou como meu santo preferido durante muito tempo...Logunedé, um dos donos da minha cabeça. Queria tributar isso, fazer uma canção para Ele e pensava: “Tenho que dizer que é charmoso, que é jovem; ele é esperto e é um rapaz vivaz. Ao mesmo tempo ele é o filho de Oxum e Oxóssi”. Fui organizando essas idéias todas e imaginando por onde é que devia começar, escolhendo um jeito de falar tudo isso por um caminho qualquer. Fui juntando a beleza com a riqueza, imaginei que essas duas coisas rimam...Ele é bonito e, ao mesmo tempo, é rico, é todo ouro de Oxum. Ele gosta dessas coisas; então, já tem o mimo, porque isso era uma coisa em que Mãe Menininha insistia muito. Ela usava essa palavra o tempo todo: “Ele é o mimo d´Oxum! Ele é o mimo d´Oxum!” E eu perguntava: “Mas o que é mimo d´Oxum, Mãe? “ Ela dizia: “É o mimo , é mimado, é figura mimada, é o filho predileto dela”. Eu achava que tinha de ter essa frase, tinha que ter “mimo d´Oxum”. E aí me lembrava de Moreno64, pois estava passando uns dias na casa do Caetano, quando comecei a pensar na música. Sabia que Moreno era de Logunedé também e me lembrava muito dele. Ele era muito presente para mim como imagem, quase como se ele fosse o símbolo da entidade. Ele era ainda menino, travessozinho e, ao mesmo tempo, muito calmo e muito suave. Então, a música é feita para ele. E ele veio trazando as idéias, porque Moreno também é filho de Logunedé. Caetano é de Oxóssi. Tudo isso vinha na minha cabeça. E Caetano é muito meu irmão. A Dedé, que era mulher de Caetano e mãe de Moreno, também está presente na música. “....Logunedé é dé, é dé, é dé...” É um pouco Dedé também ali. Tinha várias coisas nessa música. As músicas nascem assim: com uma vontade de revelar, de vestir, encontrar uma indumentária correta, as vestes certas para aquela emanação do mistério. Seja em forma de uma emoção muito grande ou de uma comoção, um sentimento compassivo, de uma compaixão, um alumbramento, de um enlevo muito grande provocado por alguma coisa ou mesmo de uma tristeza, de um pesar...Sejam quais forem esses elementos que motivem a chegada da poesia, a gente fica dando voltas, cercando as palavras, as referências, pra poder achar um modo, uma fresta, uma brecha por onde se começar a dizer...As palavras começam a vir à luz. Para poder, então, as palavras começarem a caber na fôrma, terem formato. Porque aí tem a fôrma da música, a fôrma do ritmo. Tem essas coisas todas que vão comprometendo, que são como aquele buraco que você cava na areia da praia, para dali fazer um rego e construir a ponte. Aquelas artes que a gente faz na areia da praia. Fazer música é a mesma coisa. Você vai conformando, vai-se trazendo, vão aí aparecer surpresas...aquelas palavras surpeendentes que, de repente, já no meio do processo, batem e determinam tudo. Às vezes, reconduzem, refazem o caminho, fazem você voltar, dar uma volta completa e começat a trilhar a canção por um outro caminho. Enfim, é muito misterioso o processo de criação.”65
Gilberto Gil expressa de forma muito clara a relação que a religião afro-baiana estabelece entre seus deuses e os elementos naturais, de onde vem a sua alcunha de “religião da natureza”: “Pra cada canto uma conta / Pra cada Santo uma mata / Uma estrela, um rio, um mar” (“Bahia de todas as contas”). Em outro trecho da mesma canção, aparece a proximidade sincrética que foi estabelecida entre a religião dos orixás e o cristianismo: “É assim porque Deus quis / Olorum se mexeu / Rompeu-se a guia”, já que o Olorum dos africanos para muitos equivale ao Deus dos cristãos.

O sincretismo religioso é mesmo muito comum entre os baianos e, assim, não pôde ficar sem maior reflexão. A habilidade baiana para fundir, misturar, sincretizar não é um tema novo, já foi cantado na primeira metáde do século XX. O que ocorre, porém, nas canções Gilberto Gil e Caetano Veloso é, possivelmente, um enriquecimento na forma de retratá-la. Um exemplo pode ser a associação até com a religiosidade oriental, nunca arriscado na época enterior: “Buda sorrindo calado / Admirando o machado / Empunhado por Xangô (Gil – “Um carro de boi dourado“) ou, do mesmo autor: „Dorival é um Buda nagô / Filho da casa re-al da inspiração / Como príncipe, principiou / A nova idade de ouro da canção / Mas um dia Xan-gô / Deu-lhe a i-lumina-ção“ (“Buda nagô“). Apesar desses exemplos, na maioria das canções comenta-se o convívio entre santos e liturgias católicas e negras. Principalmente Gilberto Gil sente a necessidade de se exprimir a esse tema e defende o sincretismo baiano: „Quando os povos d'África chegaram aqui / Não tinham liberdade de religião / Adotaram Senhor do Bonfim: / Tanto resistência, quanto rendição / Quando, hoje, alguns preferem condenar / O sincretismo e a miscigenação” (“De Bob Dylan a Bob Marley - um samba-provocaçăo”). Ou, em outra canção com o nome “Extra”, sublinha a importância da fé para o baiano, não importando qual for: “Cristo ou Oxalá / Baixa / Santo ou orixá”.

Dos santos católicos o mais citado é, como já vimos, o Senhor do Bonfim. Ele é considerado o protetor dos pobres e fracos. Isso podemos ver nos versos seguintes: “Pobre não tem valor / Pobre é sofredor / E quem ajuda / É Senhor do Bonfim” (Gil). Senhor do Bonfim é convocado por Gilberto Gil na letra recente “Balé de Berlim”, surgida na ocasião da Copa mundial em futebol na Alemanha, em 2006: “Nossa seleção chega a Berlim / Traz um protetor / Senhor do Bonfim”. Afirma assim a importância dele não somente para os baianos, mas também para todos os brasileiros.

Consciente da forte influência da nação iorubana para criação da cultura baiana, seja na área do léxico (“fala tupí, fala iorubá”) ou na religiosidade, também Caetano Veloso afirma: “Mamãe eu quero amar / A ilha de Xangô e de Yemanjá / Yorubá igual a Bahia”. O sincretismo é presente em outros versos dele, quando convoca um orixá e menciona um dos santos mais respeitados dos católicos: “Quero ser sempre o menino, Xangô / Da foguiera de Saõ João”. Caetano Veloso, apesar de não ter descendentes africanos, canta em toda sua obra o mundo do candomblé porque esse oferece um amplo repertório dos símbolos, tão preciosos na poesia: “Com a espada de Ogum / E a benção de Olorum / Como um raio de Iansã / Rasgamos a manhã vermelha” (“Os mais doces bárbaros”). Ogum, que é o orixá do ferro e da guerra, é associado com a espada. Na música com o título “Iansã” descreve o orixá feminino, deusa dos ventos, raios, relâmpagos e tempestade e através ela mostra seu estado emocional interno: “Senhora das nuvens de chumbo / Senhora do mundo dentro de mim...Deusa pagã dos relâmpagos / Das chuvas de todo ano / Dentro de mim, dentro de mim”.

Um grande panteão dos orixás é apresentado por Caetano na canção “Milagres do povo”. Além de Xangô, Iansã e Iemanjá, ele fala de Oxum, deusa do amor e ouro, de Obatalá, que é outo nome para Oxalá e de Ojuobá. A cançaõ deve funcionar como a defesa da fé afro-brasileira e dos próprios negros no Brasil e, de forma um pouco escondida, insinua a importância da Bahia como o centro da religiosidade dos negros do Brasil: “Xangô manda chamar Obatalá guia / Mamãe Oxum chora lagrimalegria / Pétalas de Iemanjá Iansã-Oiá ia /.../ Quem descobriu o Brasil? / Foi o negro que viu a crueldade bem de frente / E ainda produziu milagres de fé no extremo ocidente / Ojuobá ia lá e via / Ojuobahia”.

Muito interessantes são as letras surgidas sob a influência da poesia concreta.66 A poesia concreta, representada no Brasil principalmente pelos irmãos Augusto e Haroldo de Campos, tem grande reflexo especialmente na obra de Caetano Veloso. Nela também podemos achar a expressão da baianidade. De parceria de Gil e Caetano surgiu uma canção não–usual que foi lançada no disco “Tropicália”. Representa uma fusão da poesia concreta e a deglutinação artística segundo Oswald de Andrade e chama-se “Batmacumba”. Com a sua temática inserimo-la neste capítulo dedicado à religiosidade, ao candomblé. Achamos necessário transcrever o poema inteiro:

batmacumbaiéié batmacumbaobá

batmacumbaiéié batmacumbao

batmacumbaiéié batmacumba

batmacumbaiéié batmacum

batmacumbaiéié batman

batmacumbaiéié bat

batmacumbaiéié ba

batmacumbaié

batmacumba

batmacum


batman

bat


bat


batman

batmacum


batmacumba

batmacumbaié

batmacumbaiéié

batmacumbaiéié ba

batmacumbaiéié bat

batmacumbaiéié batman

batmacumbaiéié batmacum

batmacumbaiéié batmacumbao

batmacumbaiéié batmacumbaobá

Já a primeira olhada consegue distinguir a base da letra que consiste em combinações estranhas dos fonemas. Referências aos valores da cultura de massa americana (“batman”) se misturam com o vocabulário das religiões afro-brasileiras, típicas da Bahia. A palavra “macumba” é bastante conhecida, mas o poema está cheio de outras alusões: bem no centro se encontra “bá” que significa “pai de santo”. No final da primeira e da última linha vemos ”obá” que é um dos ministros do orixá Xangô.67 Mais, o “baobá” é uma árvore sagrada para os candomblistas. A evocação dos rituais da macumba é aprofundada pela parte musical por que a palavra “bat” é acompanhada pela batida dos tambores. Além de “batman” – homem-morcego, a figura famosa dos desenhos americanos, temos ainda uma alusão aos elementos estrangeiros. É termo “ié-ié” que designa a música pop internacional dos anos 60.68 Interessante é também a utilização da linha melódica repetitiva que é diminuída ou aumentada de acordo com o formato visual do texto que pode ser concebido também como a capa do batman voante.

Acabamos de abordar o mundo do candomblé e o modo como este se refletiu na obra de Veloso e Gil. Mas os “velhos” deuses católicos não desaparecem e continuam a ser a referência frequente nas músicas dos dois autores, da mesma maneira como continuam sendo presentes na vida religiosa dos baianos.


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