Português 9º ano


Página 311 ■ 1.2. Leitura literária



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1.2. Leitura literária



Os valores que a sociedade preconiza, ou os que considera prejudiciais, estão presentes nas diversas manifestações da ficção, da poesia e da ação dramática. A literatura confirma e nega, propõe e denuncia, apoia e combate, fornecendo a possibilidade de vivermos dialeticamente os problemas.

(Antonio Candido)

No contexto da redemocratização brasileira, o crítico Antonio Candido5 colocou em discussão a literatura como um direito fundamental, destacando sua força de humanização: pela leitura da forma literária, leitores podem construir experiências e conhecimentos, às vezes de forma difusa e até inconsciente, que lhes permitam (re)descobrir sentimentos, emoções e visões de mundo.

Comungando dessas concepções e da que defende o currículo de Língua Portuguesa contemporâneo como favorecedor de letramentos múltiplos (Rojo, 2009)6, o Caderno de Práticas de Literatura propõe atividades que objetivam:

• dar aos espaços escolares a dimensão de locais privilegiados para a formação de comunidades de leitores literários;

• favorecer processos colaborativos de construção de sentidos e significados que propiciem o aprimoramento de capacidades básicas de leitura e de outras necessárias à fruição de textos literários;

• incentivar práticas de leituras que concorram para a formação autônoma e crítica dos jovens leitores.

A tomada dos espaços escolares como privilegiados para as práticas de leituras literárias procura se beneficiar da crescente percepção de que a biblioteca escolar pode e deve7 ser um meio para aprendizagens complementares às promovidas em sala de aula.

Para isso, importa que, mais que um mero organizador e guardador do acervo, a biblioteca tenha enfoque no projeto pedagógico da escola como centro de promoção de pesquisa, leituras e trocas, em atividades sensíveis às necessidades de formação dos alunos e a oportunidades de socialização dos conhecimentos por eles produzidos.

No que tange especificamente às práticas de literatura, a biblioteca pode possibilitar a construção de conhecimentos relevantes para a significação e fruição de textos mais desafiadores, em pesquisas acerca de aspectos biográficos, temáticos e contextuais, referentes a autores e obras. Atividades assim são propostas no Caderno de Práticas de Literatura como Pesquisa e ação e devem ser bem ancoradas para que confluam para o essencial: tornar mais profícuos os contatos entre os leitores e a literatura.



5 CANDIDO, Antonio. O direito à literatura. In: Vários escritos. 3. ed. São Paulo: Duas Cidades, 1995. p. 244-245. Na seção Leituras complementares, você encontra a reprodução parcial desse texto que acabou se tornando um clássico nos estudos literários.

6 ROJO defende três vertentes de letramento na educação linguística que se quer comprometida com a formação cidadã: i. Os letramentos múltiplos, que reconhecem os letramentos locais e os colocam em contato com os valorizados, dentre os quais destacamos a tradição literária como patrimônio cultural a ser democraticamente usufruído. ii. Os multissemióticos, que respondem aos desafios de significar outras semioses, com ou sem articulação com os textos escritos. iii. Os protagonistas, que focam ações de posicionamento crítico e valorativo do sujeito diante dos discursos que o circundam. Ver ROJO, Roxane. Letramentos múltiplos, escola e inclusão social. São Paulo: Parábola, 2009.

7 Indicada nos Parâmetros Curriculares Nacionais como espaço essencial para situações de aprendizagens nucleares no currículo da educação básica, a biblioteca escolar passou a ser espaço obrigatório, com a promulgação da Lei no 12.244, de 24 de maio de 2010, que dispõe sobre a universalização das bibliotecas nas instituições de ensino do país. Para aprofundar a reflexão sobre a biblioteca escolar e as práticas pedagógicas, sugerimos a leitura de CAMPELLO, Bernadete et al. A biblioteca escolar: temas para uma prática pedagógica. Belo Horizonte: Autêntica, 2005. No anexo Leituras complementares, no volume 6, Caderno de Práticas de Literatura, Manual do Professor, você encontra um dos artigos que integra essa coletânea.
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Além dessas atividades de caráter mais acessório, que favorecem a construção de leituras significativas, importa, sobretudo, fazer do local um local de permanente convite para o contato direto com os textos literários, em leituras individuais ou coletivas, dirigidas ou autônomas, e para formas de socialização das experiências leitoras. Buscamos fazer isso principalmente em propostas para a seção Oficina literária e em Vale a pena ler!, um canal de chamamento para a leitura, em que sempre são apresentados, a partir dos “fios condutores” dos capítulos, títulos integrantes do Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE).

Nessas indicações, o professor encontra ricas oportunidades de planejar outras leituras literárias para a turma ou de investir na autonomia leitora, organizando momentos para que os alunos compartilhem suas impressões e apreciações sobre as leituras realizadas.8

Já a sala de aula se coloca como lugar bastante adequado para o também necessário movimento de “encenar” leituras, isto é, ajudar os alunos a perceber o que pode fazer um leitor diante do campo mais aberto de sentidos que é um texto literário. A própria natureza do objeto literário, em que há “singularidades e propriedades que matizam um tipo particular de uso da linguagem” (BRASIL/MEC/SEB, 1998: 27)9 gera inquietações pedagógicas: afinal, como ensinar a ler textos que, dada a elaboração da linguagem, resultam em formas mais abertas à atribuição de sentidos e significados?

Para além do espontaneísmo, que de modo geral tem marcado o trabalho com literatura no Ensino Fundamental, e do dirigismo classificatório de textos em estilos de época, que apaga possibilidades de leituras no Ensino Médio, uma alternativa para o ensino seria assumir “itinerários” possíveis de leituras, que garantissem aos alunos a participação nos processos de: percepção de aspectos formais dos textos; articulações desses aspectos com contextos de produção; e, sobretudo, com vinculações a seus próprios contextos de recepção.

Em outras palavras, é preciso que os alunos vivenciem como um leitor interage com a forma textual e nela projeta os conhecimentos sobre aspectos da realidade, autorizados pelo trabalho que o texto fez com a linguagem. É preciso que os alunos percebam como o leitor pode repensar, sentir, de modo diferenciado, sua própria realidade diante do texto.

Assim, se os itinerários ainda não são estabelecidos pelos próprios alunos, o que se almeja ser um movimento paralelo e crescentemente incentivado pelas práticas pedagógicas, são, certamente, ocasiões de didatizar ações leitoras diante do texto, de modo construtivo e colaborativo, em resposta ao desafio que a escola tem: inserir alunos nas práticas de leitura, ao passo mesmo que faz delas objetos de aprendizagens.

Esses itinerários estão organizados em atividades que ora se oferecem para a discussão oral e compartilhada, na seção Conversa afinada, ora pedem apontamentos escritos, a serem elaborados individualmente ou em grupos de trabalho, conforme o grau de complexidade, na seção Provocações.

Além de favorecer também as capacidades básicas de leitura, essas atividades destacam aspectos formais que, na singularidade de cada texto literário, podem ser relevantes para o leitor “participar” do texto e quiçá alcançar a experiência estética, tal como defendida por Jauss.10

8 Para refletir mais sobre alternativas de mediação e avaliação pedagógicas interessadas na autonomia leitora, consulte o texto “Acerca do controle: avaliar a leitura e ensinar a ler”, de Delia Lerner, reproduzido na seção Leituras complementares.

9 BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares

Nacionais — terceiro e quarto ciclos do Ensino Fundamental: Língua Portuguesa. Brasília, DF: MEC/SEF, 1998. p. 27.

10 Jauss formula a experiência estética como decorrente de três níveis de ações, interdependentes, do leitor sobre o texto: a Poiesis, a Aisthesis e a Katharisis. A Poiesis é a ação criadora de universos ficcionais, que o leitor também exerce como coautor do texto, perseguindo a construção de sentidos, por meio da “retórica do texto”, ou seja, do que está textualmente dado no trato diferenciado da linguagem; a Aisthesis funda-se na ruptura com a percepção cotidiana, em um processo de “estranhamento” que libera o universo do imaginário e da fantasia na projeção de outras realidades possíveis; a Katharisis, como na formulação aristotélica, é a identificação do leitor com o objeto literário, com decorrentes ações catárticas (liberação de emoções e sentimentos) e éticas (juízos de valores culturais). Para refletir mais sobre a leitura literária como ação do leitor sobre o texto, na dialética entre efeitos e recepção, ver JOUVE, Vincent. O impacto da leitura. In: A leitura. Trad.: Brigitte Hervot. São Paulo: Unesp, 2002.
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Se a intertextualidade é condição inerente a qualquer texto, na leitura literária a consciência dela é capacidade básica, na medida em que os textos não ficcionalizam apenas referências do real, mas também referências da própria tradição literária. Assim, os textos tornam-se labirintos possíveis de acessos a outros textos, convidando o leitor a (re)conhecer como cada realização literária pode explorar a memória da própria literatura. Em vários momentos do Caderno de Práticas os alunos poderão estabelecer relações de intertextualidade e refletir sobre isso.

Além dessa vinculação com outros textos literários, uma manifestação literária traz em si uma relação diferenciada com saberes de várias esferas e com outras artes. Assim, em criativa perspectiva: “verdadeiramente enciclopédica, a literatura faz girar os saberes, não fixa, não fetichiza nenhum deles; ela lhes dá um lugar indireto, e esse indireto é precioso” (Barthes, 1988: 18)11. Daí a relevância de, na formação do leitor literário na escola, trabalhar a capacidade de perceber nos textos as sugestões de relações com outros conhecimentos e artes. No Caderno de Práticas de Literatura, isso ocorre sistematicamente nas aberturas das unidades, que sempre trazem texto das artes visuais, e em Literatela, que promove relações com as artes audiovisuais. Com essa mesma preocupação, ao longo do Caderno de Leitura e Produção, na seção Roda de leitura, podem surgir os boxes Vale a pena ouvir e Vale a pena ver. Vale observar que essas indicações também buscam incentivar a autonomia dos alunos na condução de sua formação.

O investimento nas práticas de leitura acontece em consonância com a experimentação da linguagem e dos procedimentos literários em produções que, fundamentalmente em caráter lúdico, são propostas na seção Oficina literária. Não há nessas produções o mesmo grau de orientação e sistematização que ancora a produção dos gêneros de outras esferas, no

Caderno de Leitura e Produção. O mais importante nela é que os alunos possam vivenciar a criação literária de forma mais consciente, com experiência de processos de criação e autoria.

Assim, com esse conjunto de pressupostos, o Caderno de Práticas de Literatura procura ser um apoio para a necessária presença da leitura de literatura na escola, sem a redução dos textos a pretextos que esvaziem as possibilidades de que aconteça o mais relevante: o encontro entre leitores e leituras.



1.2.1. Como a coleção organiza o trabalho com as práticas de literatura

A escolha das experiências leitoras a serem oferecidas para os alunos precisa prever um movimento de progressão, por meio de um projeto educativo comprometido com a intermediação da passagem do leitor de textos facilitados (infantis ou infantojuvenis) para o leitor de textos de complexidade real, tal como circulam socialmente na literatura e nos jornais; do leitor de adaptações ou de fragmentos para o leitor de textos originais e integrais. (BRASIL/MEC/SEB, 1998: p. 70)12

Sem, evidentemente, esgotar indicações para o professor, cujas experiências de leitura têm papel fundamental na definição do projeto educativo, o Caderno de Práticas de Literatura busca organizar um conjunto de leituras que permitirão aos alunos lidar com textos de diferentes graus de complexidade e conhecer os gêneros literários.13

Muito mais do que estudar “características” dos gêneros literários, o que se pretende é ajudar os alunos a perceberem os modos como eles fundam realidades ficcionais, para melhor usufruírem delas, na esteira do que defende Rangel:

11 Ver BARTHES, Roland. Aula. Trad.: Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Cultrix, 1988.

12 Op. cit.

13 Diferentemente da maior parte dos gêneros de outras esferas, os literários não são passíveis de sistematização muito estreita. Tampouco é consensual, na teoria literária, o debate acerca dos gêneros. Optamos por seguir a classificação proposta por Anatol Rosenfeld, dada sua flexibilidade e responsável diálogo com posições importantes na teoria dos gêneros literários. Ver: ROSENFELD, Anatol. A teoria dos gêneros. In: O teatro épico. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 2004.
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Os escritores pressupõem que seus leitores conhecem os gêneros e jogam com esse conhecimento. Os mundos de ficção que nos propõem são moldados em formas que (re)conhecemos facilmente: personagens, situações, cenários, intrigas, modos de dizer, recursos, truques. Todo esse arsenal proporcionado pelos gêneros é utilizado para criar ou frustrar expectativas, para satisfazer e pacificar o leitor ou para surpreendê-lo e despertá-lo de velhos encantamentos, propondo-lhe outros. Por isso mesmo, a familiaridade com os gêneros permite ao leitor apreciar a habilidade de um escritor, seu gênio composicional, as características e o rendimento particular de seu estilo. Sem isso, dificilmente se produz um verdadeiro encontro entre autor e leitor; dificilmente se estabelece um convívio amoroso.14

Uma primeira aproximação da lírica, da épica e do drama acontece em um capítulo do volume 6, em que, lendo textos de temática comum, os alunos poderão diferenciar basicamente como esses gêneros conformam pactos de leitura. Além dessa iniciação nos gêneros literários, integra a unidade um capítulo voltado para o conhecimento e uso da biblioteca.

No volume 7, o contato com a lírica é aprofundado, em atividades com canções, poemas e haicais, organizadas em dois capítulos.

No volume 8, os alunos reencontram formas da épica por meio do trabalho com contos de enigma, no capítulo 1, e com contos fantásticos, no capítulo 2.

Por fim, no volume 9, eles estabelecem trânsitos entre a literatura e o teatro, explorando peças trágicas, no capítulo 1, e cômicas, no capítulo 2.

Os textos que ancoram esses percursos são, em sua maioria, canônicos, pelas razões que já expusemos de compromisso com a democratização desses bens culturais. Isso não significa, porém, exclusão de gêneros e textos às margens do cânone. Pelo contrário, quando possibilitam experiências estéticas significativas, também essas produções comparecem no Caderno de Práticas de Literatura. Além disso, no Caderno de Leitura e Produção, a seção Roda de leitura procura garantir tanto o contato com essas formas mais simples de elaboração literária, mas igualmente relevantes para a formação do leitor, como com textos mais densos e consagrados pela crítica.

1.3. Conhecimentos linguísticos

Tomando-se a linguagem como atividade discursiva, o texto como unidade de ensino e a noção de gramática como relativa ao conhecimento que o falante tem de sua linguagem, as atividades curriculares em Língua Portuguesa correspondem, principalmente, a atividades discursivas: uma prática constante de escuta de textos orais e leitura de textos escritos e de produção de textos orais e escritos, que devem permitir, por meio da análise e reflexão sobre os múltiplos aspectos envolvidos, a expansão e construção de instrumentos que permitam ao aluno, progressivamente, ampliar sua competência discursiva. (BRASIL/MEC/SEB, 1998: 27)

Especialmente nos últimos vinte anos, o ensino de gramática na escola tem sido motivo de muitas discussões que ultrapassaram, inclusive, os muros da escola. Tais discussões chegaram a gerar uma falsa questão sobre a relevância ou não de se ensinar gramática. Como bem coloca Antunes (2003: 88), a questão é falsa porque não se pode falar nem escrever sem gramática. O que deve mover as discussões é, na verdade, qual gramática ensinar, o que implica, também, refletir sobre como ensinar. Em outras palavras, não se trata de discutir se devemos ou não ensinar gramática na escola, mas de pensar na seleção de conteúdos que sejam relevantes para o desenvolvimento da competência comunicativa dos alunos, uma vez que entendemos a linguagem como forma de interação.

Assim, o que se critica no ensino de gramática é a seleção de um conteúdo pautado na concepção de língua como um sistema inflexível, imutável, que resulta em uma gramática

14 Apud BRASIL MEC. Orientações Curriculares para o Ensino Médio (Ocem). Volume 1: Linguagens, Códigos e suas Tecnologias. Brasília: MEC/SEB, 2006, p. 71.
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descontextualizada, baseada em compêndios gramaticais ligados a uma tradição normativa muito distante dos usos reais da língua escrita ou falada — até mesmo pela atual parcela da sociedade que se autodefine como bons falantes da língua portuguesa; uma gramática das palavras ou frases fragmentadas, isoladas dos interlocutores; uma gramática das classificações e nomenclaturas, do certo e do errado, distante da vivência da língua que se vê nos textos orais e escritos, formais e informais que circulam nas diferentes esferas sociais e de atividade humana.

Assim como os PCNs, entendemos que para os alunos ampliarem a sua competência discursiva não se pode mais restringir os estudos da língua a essa matéria gramatical. É preciso ir além e descobrir o que está abaixo dessa "ponta do iceberg" (Bagno, 1999: 9) a que chamamos de gramática normativa:

A língua é um enorme iceberg flutuando no mar do tempo, e a gramática normativa é a tentativa de descrever apenas uma parcela mais visível dele, a chamada norma culta. Essa descrição, é claro, tem seu valor e seus méritos, mas é parcial (no sentido literal e figurado do termo) e não pode ser autoritariamente aplicada a todo o resto da língua — afinal, a ponta do iceberg que emerge representa apenas um quinto do seu volume total. Mas é essa aplicação autoritária, intolerante e repressiva que impera na ideologia geradora do preconceito linguístico.

Assim, considerando o processo de universalização do ensino que possibilitou o acesso à escolarização das diferentes classes sociais, pensar o ensino de Língua Portuguesa passa, obrigatoriamente, pela aceitação, por parte da escola, da diversidade linguística, ou seja, pelo reconhecimento de que, no interior de uma mesma língua, há uma grande variedade de outras línguas e linguagens convivendo ao mesmo tempo (línguas estrangeiras, jargões, regionalismos, dialetos sociais, etc.) — todas elas reflexo das particularidades da esfera e, consequentemente, do gênero em que se inserem —, fenômeno a que Bakhtin chamou de plurilinguismo.

O reconhecimento de que tal diversidade é constitutiva de qualquer língua pode (e deve) resultar no fim da crença de que existe uma linguagem melhor ou mais correta do que outra e, consequentemente, deve resultar no fim do preconceito linguístico, o que implica que a escola, nas aulas de Língua Portuguesa, assuma uma postura menos “normativa”, aceitando as diferentes formas de expressão oriundas de diferentes contextos sociais.

As teorias linguístico-enunciativas do início do século XX, como as de Bakhtin, já argumentam em favor da desmitificação da ideia de uma única forma, melhor, mais correta e, portanto, modelar de utilização da língua. Ao criticar aqueles que consideram a língua como um sistema de formas normativas, o autor russo afirma que só se pode falar em correção se a língua em questão for uma língua morta, estática. Caso contrário, se estamos falando de uma língua viva, situada e em constante evolução, esse critério não se aplica (Bakhtin/Volochinov, 1929: 127).

Ao mesmo tempo, se o papel da escola é, mais do que reforçar habilidades e comportamentos já existentes, contribuir para que os alunos desenvolvam novas capacidades que lhe possibilitem aprimorar sua competência linguística, interagindo de forma adequada diante de textos de diferentes esferas sociais e, principalmente, em situações nas quais as normas mais prestigiadas são solicitadas, a escola não pode se furtar a ensiná-las, pois são elas que estão presentes nas situações formais públicas, nas entrevistas de emprego, nos meios de comunicação, nas esferas políticas, etc.

Acreditamos, como Soares (1997), que é possível pensarmos em uma proposta na qual o ensino do dialeto de prestígio15 (comumente conhecido como língua padrão) deve servir



15 Atualmente tem-se optado pelo uso da expressão normas urbanas de prestígio, por se entender que, dadas as diferenças regionais entre as grandes cidades, cada qual possui a sua norma de prestígio e, portanto, não seria o caso de se falar em apenas uma norma de prestígio da língua, mas em várias. Optamos por manter aqui a referência original usada por todos os autores citados que tratam desse tema. Por outro lado, em nosso discurso teórico e didático faremos referência a "variedades urbanas de prestígio" (como sinônimo de "normas urbanas de prestígio"), por concordarmos com Bagno (2012) ser esta uma referência mais apropriada.
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de instrumento para a luta contra as desigualdades econômicas e sociais, ou seja, luta para a ampliação da cidadania. Deve ficar claro que a autora propõe um bidialetismo — e por que não um pluridialetismo — na escola: não um bidialetismo funcional — em que apenas se aceita o dialeto de menos prestígio —, mas um bidialetismo para a transformação.

Em termos metodológicos, para escapar a esse aparente paradoxo — acolher as diferentes linguagens e priorizar o estudo das normas urbanas de prestígio —, a escola pode trabalhar o ensino da língua materna, levando em consideração o que Vygotsky (1933/1978: 94) defende quando afirma que, como o aprendizado possui um caráter social, ele se inicia muito antes de as crianças entrarem na escola. Dessa forma, todo conhecimento construído no âmbito escolar tem como base experiências prévias vividas no cotidiano dos alunos.

Aplicando tal ideia ao ensino de língua materna na escola, pode-se então dizer que o trabalho com as variedades urbanas de prestígio deve se dar a partir da própria linguagem e dos gêneros de que os alunos se utilizam em seu meio social cotidiano fora da escola. Como afirmam Rojo & Batista (2003: 21), citando Oswald de Andrade, há de "se chegar à química, pelo chá de erva-doce", ou seja, há de se ensinar a variedade padrão da língua a partir da linguagem cotidiana dos alunos.

Em síntese, nas aulas de Língua Portuguesa, o fortalecimento da cidadania pode ser alcançado de várias formas: uma delas é abordar, ao mesmo tempo, questões de variação linguística e trabalhar as variedades urbanas de prestígio como parte do conjunto das variedades da nossa língua portuguesa. Além disso — e principalmente —, o exercício da cidadania, como vimos, pode ainda ser garantido e ampliado com o desenvolvimento do senso crítico também proporcionado por um ensino com base numa noção sócio-histórica e discursiva da língua e dos gêneros.


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