. Acesso em: 3 jun. 2015.
■ Unidade 2
Texto
Da leitura para a escrita
1. O trabalho com a memória
Precisamos usar muitas informações contidas em textos que já lemos. Mas nem sempre isso é possível. Nossa memória é muito seletiva. Ela não guarda tudo o que gostaríamos a partir de uma primeira leitura.
Algum esclarecimento acerca da memória, essa faculdade de reter as ideias, impressões e conhecimentos adquiridos anteriormente, pode ajudar a compreender e controlar seu funcionamento. Temos dois tipos de memória: a de longo prazo e a de curto prazo.
Na memória de longo prazo guardamos nossos conhecimentos consolidados, pois é duradoura. Na de curto prazo, que é seletiva e rotativa, guardamos informações novas, por um período breve, enquanto elas nos são úteis e estão sendo realmente utilizadas. Como exemplo, podemos pensar na seguinte situação: se estamos tentando comunicação por vezes repetidas com um número de telefone, chegamos a memorizá-lo. Mas, se nos dias subsequentes não precisarmos mais desse número, a memória vai descartá-lo por falta de uso. Já um número usado todos os dias, importante na nossa vida diária, permanece na nossa memória de longo prazo. Não o esquecemos tão facilmente.
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As informações novas ficam algum tempo na memória de curto prazo, como se estivessem temporariamente à disposição, em um período de teste. Se, nesse período, forem muito usadas, estabelecem laços com outras informações preexistentes, encontram pontos de apoio que as sustentam por mais tempo e se tornam mais duradouras. Se não forem úteis por longo período, serão descartadas. Isso acontece com nomes de lugares, de pessoas, de livros, de filmes. E acontece também com conceitos e definições. Se não são utilizados, caem no esquecimento. Um professor, por exemplo, que dá aulas sobre uma mesma matéria para várias turmas, durante muito tempo, acaba por dominar naturalmente o assunto. Um outro, que apenas fala esporadicamente sobre um tema, tem que estudá-lo para reavivar a memória quando precisa expor novamente o assunto.
Quando decoramos mecanicamente regras e conceitos, como se faz frequentemente nos cursos preparatórios para concursos, tudo aquilo que nos deu tanto trabalho para memorizar à força é imediatamente esquecido após a prova. O mesmo acontece quando estudamos a gramática pela gramática, sem aplicação direta na produção de textos. Se memorizamos alguns itens sem transferi-los gradualmente para a prática, esquecemos tudo com facilidade.
Então, para que uma informação fique consolidada na memória de longo prazo é preciso que seja:
• útil na vida prática ou para nossas reflexões abstratas;
• utilizada com certa frequência;
• reelaborada em nossa mente por meio de novas associações e novas divisões;
• associada e relacionada a outros conhecimentos prévios existentes em nossa memória.
Memorizamos aquilo que é significativo para nossos interesses intelectuais ou para nossa vida pessoal.
É importante considerar também outros aspectos da aprendizagem. Já sabemos que as informações que vêm apenas por via auditiva são menos duradouras, apreendemos uma pequena parcela do que ouvimos. Quando podemos ler uma vez a informação, apreendemos um pouco mais. Quando vemos, temos um pouco mais ainda de possibilidade de gravar na memória. Mas se podemos ouvir, ler, ver e experimentar, utilizar, atuar, ou seja, desenvolver uma ação (concreta ou mental) sobre certa informação de forma pessoal, conseguimos maior índice de memorização e de aprendizagem.
Assim, aprender exige trabalho sobre o conhecimento. Não se trata de uma simples transferência, em que o professor ou o texto doam ao aluno a informação nova. É preciso que a pessoa trabalhe bastante para que o conhecimento passe realmente a ser propriedade sua.
Hoje em dia, a ciência já constatou que o cérebro e a memória precisam de exercícios, e que a inteligência precisa ser constantemente estimulada para não se atrofiar. Quanto mais aprendemos, mais temos possibilidade de aprender, pois os conhecimentos que adquirimos formam uma base em que novos conhecimentos vêm se instalar de forma mais duradoura.
Como a primeira leitura é sempre muito breve e superficial, precisamos utilizar estratégias de desaceleração para apreendermos melhor um texto [...].
A leitura pode levar à produção de textos de natureza diferente do texto original e com finalidades também diferentes. Muitas vezes, lemos e tentamos memorizar o que lemos, ou então sintetizar as informações para revê-las ou repassá-las a outros. Assim, podemos produzir esquemas, quadros, resumos e paráfrases.
2. Resumos, esquemas e paráfrases
[...]
Organizar um esquema é uma maneira preparatória para o resumo e a paráfrase. A leitura com esse fim é muito detalhada. O leitor deve criar o seu próprio método, mas podemos estabelecer um roteiro básico como sugestão:
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1º – Empreender uma primeira leitura descendente, rápida, do geral para o particular, prestando atenção nos títulos e subtítulos, na organização geral do texto. É uma leitura de reconhecimento prévio do material a ser estudado.
2º - Fazer uma segunda leitura, identificando palavras-chave e anotando ideia por ideia, parágrafo por parágrafo.
3º – Reagrupar as informações de acordo com unidades menores, mantendo as relações entre essas unidades.
4º – Organizar um esquema das ideias, subdividindo-o de acordo com as relações sintáticas.
5º – Voltar ao texto e conferir a correspondência com as ideias principais.
6º – Redigir o resumo seguindo o roteiro estabelecido pelo esquema.
Normalmente, embora existam variações infinitas, os parágrafos dissertativos/argumentativos têm uma estrutura organizada logicamente:
• Primeiros períodos = ideia principal
• Períodos seguintes = desenvolvimento
• Último período = conclusão
Quando a ideia principal surge no início do parágrafo, ela pode ser uma afirmação, uma negação, um conceito, uma pergunta [...]. Muitas vezes, o autor prefere colocar a ideia principal no fim do parágrafo, como conclusão. Pode até mesmo não explicitá-la claramente, mas deixá-la implícita, para que o leitor chegue mentalmente à conclusão a partir das evidências colocadas no texto.
Em um resumo recorre-se a poucos efeitos retóricos, pois a linguagem deve ser objetiva e clara. O desenvolvimento, no resumo, visa fundamentar a ideia inicial, dispensando exemplos e ilustrações, e pode trazer explicações, oposições, comparações, divisão de ideias.
O leitor que tenta reconstruir o percurso do autor não pode acrescentar ideias novas ao resumo do que lê, pois trata-se de uma síntese, uma compactação, e não uma crítica, uma resenha ou um comentário que permitem ampliação e discussão.
O processo de debate pressupõe a intelecção, a compreensão das ideias expostas pelo outro. Por isso é bom, quando ainda na fase do esquema, prender-se às expressões utilizadas pelo próprio autor do texto.
O resumo é um trabalho sobre a linguagem muito complexo, pois é necessário trabalhar com precisão sobre: significados, estruturas sintáticas, vocabulário, gênero e tipo de texto.
Outro aspecto que deve ser levado em consideração é o uso das frases de transição. Elas conduzem o raciocínio do leitor de acordo com o planejamento do autor e podem exercer várias funções. Colocaremos aqui alguns exemplos, mas você pode encontrar infinitas variações nos textos que lê.
Indicam objetivo:
• O que desejamos neste trabalho
• O objetivo desta investigação
• Pretendemos demonstrar
• Procuramos comprovar
• Estamos tentando provar
Indicam inserção de exemplo:
• Para exemplificar, podemos observar
• Para comprovar o que foi dito
• Exemplo disso é
• Como exemplo, pode-se observar
• Assim, é o que ocorre no caso em que
Indicam inserção de citações:
• Segundo o especialista X
• De acordo com o que afirma X
• X já afirmou que
• Conforme X, em sua obra Y
Indicam divisão de ideias:
• Em primeiro lugar...; em segundo...; por último...
• Primeiramente...; depois...; em seguida...; finalmente...
• O primeiro aspecto é...; um outro aspecto é...
• Por um lado...; por outro lado...
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Indicam conclusão parcial ou final:
• Em vista disso podemos concluir
• Diante do que foi dito
• Em suma
• Em resumo
• Concluindo
• Portanto
• Assim
Essas frases exigem muita atenção do leitor. São elas que o levam a decidir quais são as informações essenciais e as que podem ser dispensadas no resumo.
Vamos analisar um texto e compreender o processo de resumo.
Indústria cultural e cultura de massa
A partir da segunda revolução industrial no século XIX e prosseguindo no que se denomina agora sociedade pós-industrial ou pós-moderna (iniciada nos anos 70 do século XX), as artes foram submetidas a uma nova servidão: as regras do mercado capitalista e a ideologia da indústria cultural, baseada na ideia e na prática do consumo de “produtos culturais” fabricados em série. As obras de arte são mercadorias, como tudo que existe no capitalismo. Perdida a aura, a arte não se democratizou, massificou-se para consumo rápido no mercado da moda e nos meios de comunicação de massa, transformando-se em propaganda e publicidade, sinal de status social, prestígio político e controle cultural.
Sob os efeitos da massificação da indústria e consumo culturais, as artes correm o risco de perder três de suas principais características: 1. de expressivas, tornarem-se reprodutivas e repetitivas; 2. de trabalho da criação, tornarem-se eventos para consumo; 3. de experimentação do novo, tornarem-se consagração do consagrado pela moda e pelo consumo.
A arte possui intrinsecamente valor de exposição ou exponibilidade, isto é, existe para ser contemplada e fruída. É essencialmente espetáculo, palavra que vem do latim e significa: dado à visibilidade. No entanto, sob controle econômico e ideológico das empresas de comunicação artística, a arte se transforma em seu oposto: é um evento para tornar invisível a realidade e o próprio trabalho criador das obras. É algo para ser consumido e não para ser conhecido, fruído e superado por novas obras.
As obras de arte e de pensamento poderiam democratizar-se com os novos meios de comunicação, pois todos poderiam, em princípio, ter acesso a elas, conhecê-las, incorporá-las em suas vidas, criticá-las, e os artistas e pensadores poderiam superá-las em outras, novas. A democratização da cultura tem como precondição a ideia de que os bens culturais (no sentido restrito de obras de arte e de pensamento e não no sentido antropológico amplo) são direito de todos e não privilégio de alguns. Democracia cultural significa direito de acesso e de fruição das obras culturais, direito à informação e à formação culturais, direito à produção cultural.
A indústria cultural acarreta resultado oposto, ao massificar a Cultura. Por quê?
Em primeiro lugar, porque separa os bens culturais pelo seu suposto valor de mercado: há obras “caras” e “raras”, destinadas aos privilegiados que podem pagar por elas, formando uma elite cultural; e há obras “baratas” e “comuns”, destinadas à massa. Assim, em vez de garantir o mesmo direito de todos à totalidade da produção cultural, a indústria cultural introduz a divisão social entre elite “cultural” e massa “inculta”. O que é a massa? É um agregado sem forma e sem rosto, sem identidade e sem pleno direito à Cultura.
Em segundo lugar, porque cria a ilusão de que todos têm acesso aos mesmos bens culturais, cada um escolhendo livremente o que deseja, como o consumidor num supermercado.
No entanto, basta darmos atenção aos horários dos programas de rádio e de televisão ou ao que é vendido nas bancas de jornais e revistas para vermos que, através dos preços, as empresas de divulgação cultural já selecionaram de antemão o que cada grupo social pede e deve ouvir, ver ou ler.
Em terceiro lugar, porque inventa uma figura chamada “espectador médio”, “ouvinte médio” e “leitor médio”, aos quais são atribuídas certas capacidades mentais “médias”, certos conhecimentos “médios” e certos gostos “médios”, oferecendo-lhes produtos culturais “médios”. O que significa isso?
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A indústria cultural vende Cultura. Para vendê-la, deve seduzir e agradar o consumidor. Para seduzi-lo e agradá-lo, não pode chocá-lo, provocá-lo, fazê-lo pensar, fazê-lo ter informações novas que o perturbem, mas deve devolver-lhe com nova aparência o que ele já sabe, já viu, já fez. A “média” é o senso comum cristalizado que a indústria cultural devolve com cara de coisa nova.
Em quarto lugar, porque define a Cultura como lazer e entretenimento, diversão e distração, de modo que tudo o que nas obras de arte e de pensamento significa trabalho da sensibilidade, da imaginação, da inteligência, da reflexão e da crítica não tem interesse, não “vende”. Massificar é, assim, banalizar a expressão artística e intelectual. Em lugar de difundir e divulgar a Cultura, despertando interesse por ela, a indústria cultural realiza a vulgarização das artes e dos conhecimentos.
Marilena Chaui. Convite à Filosofia. 8. ed. São Paulo: Ática, 1997. p. 329-330. (Fragmento).
Uma primeira leitura, superficial e rápida, do texto já nos diz que a ideia principal é a distinção entre o que é realmente arte e o que a indústria cultural produz para a massa no capitalismo. Sabemos que Marilena Chaui é uma filósofa e que se trata de um texto dissertativo, teórico, sobre conceitos bastante abstratos.
Na segunda leitura, já com essas ideias, ao ativar nossos conhecimentos anteriores sobre o assunto, podemos aprofundar mais a compreensão das causas e consequências dessa distinção, identificando as palavras-chave e as ideias secundárias distribuídas pelos parágrafos.
Já é possível retirar do texto a sua estrutura básica e reorganizá-la em blocos. O texto começa com uma informação que será explicitada nos parágrafos seguintes, ou seja, no primeiro parágrafo já se anuncia a ideia principal: de que a arte foi transformada numa mercadoria e que por isso foi desvirtuada pela indústria cultural. Os parágrafos seguintes desenvolvem e aprofundam essa ideia.
Indústria cultural e cultura de massa
Artes submetidas
(2ª revolução industrial séc. XIX)
• mercado capitalista
• ideologia da indústria cultural
Obra de arte tem valor de exposição / deve ser contemplada e fruída.
se transforma em seu oposto = mercadoria quando
• Fabricação em série
• Propaganda e publicidade
• Sinal de status
• Prestígio político
• Controle cultural não se democratizou, massificou-se
Arte corre risco
Valor de:
pode se transformar em:
1. expressividade
• repetição;
2. criação
• consumo;
3. experimentação
• consagração do consagrado pelo consumo.
torna invisível a realidade e o próprio trabalho criador
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Democracia cultural (poderia acontecer pelos meios de comunicação)
Todos têm direito
• ao acesso e à fruição;
• à informação e à formação;
• à produção cultural.
Indústria cultural resultado oposto = introduz a divisão social ao massificar a Cultura.
porque
1. separa
• “caras” e “raras”, os privilegiados, elite culta;
• “baratas” e “comuns”, massa inculta.
2. cria a ilusão de acesso – através dos preços seleciona grupo social.
3. inventa uma média “espectador, ouvinte, ou leitor médio”, capacidades mentais, conhecimentos e gostos “médios” = produtos culturais “médios” = o que o consumidor já sabe = senso comum, sem provocações.
4. define a Cultura como lazer e entretenimento, diversão e distração; sensibilidade, imaginação, inteligência, reflexão e crítica não têm interesse, não vendem.
Massifica = banaliza/vulgariza a expressão artística e intelectual.
Nesse esquema, as 700 palavras do texto original foram reduzidas a apenas 198. Ao analisar as escolhas feitas, voltando ao texto, podemos observar que algumas informações foram eliminadas e outras podem ser reagrupadas. Os efeitos de repetição, redundância e as perguntas retóricas, que têm a função de prender a atenção do leitor, são dispensados e o resumo vai reconstruir diretamente as afirmações, conclusões e respostas.
O resumo, a partir do esquema, reagrupa as ideias, rearticulando-as em novas orações e períodos, independentes do texto original, numa redação própria da pessoa que resume.
Deve funcionar como um texto autônomo, não pode mais depender do original, como o esquema que serve apenas para retomar as ideias principais. Assim, no resumo que apresentamos a seguir, a quantidade de palavras em relação ao esquema é maior: 267.
Desde a segunda revolução industrial, no século XIX, as artes foram submetidas às regras do mercado capitalista e à ideologia da indústria cultural. A obra de arte tem um valor de exposição, é feita para ser contemplada, fruída e revelar a realidade. Entretanto, não foi democratizada, massificou-se e transformou-se em seu oposto: mercadoria; produtos culturais fabricados em série; sinal de status; prestígio político e controle cultural; além de tornar a realidade e o trabalho criador invisíveis. Sob controle econômico, a arte corre o risco de perder suas características, deixar a expressividade pela repetição, a criação pelo consumo e a experimentação pelo consagrado.
A democratização da cultura, entendida como o direito de acesso e fruição, informação e formação, e ainda produção cultural, foi substituída pela massificação. A indústria cultural não democratiza, porque ao massificar reintroduz a divisão social e: 1. separa os bens culturais pagos e raros para uma elite culta e os bens baratos e comuns para a massa inculta; 2. cria a ilusão do acesso igual para todos, mas pelo preço define os grupos que podem usufruir de cada bem; 3. inventa um consumidor médio, com capacidades, conhecimentos e gostos médios, para o qual produz bens médios, vendáveis, fundados no senso comum, sem novidades; 4. vê a cultura como lazer, entretenimento, diversão e distração de forma que não tem interesse, porque não vende o trabalho da sensibilidade, da imaginação, da inteligência, da reflexão e da crítica.
Assim, em lugar de democratizar a Cultura, a indústria cultural produz uma massificação, que é banalização e vulgarização da arte e do conhecimento.
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Observe que a terceira pessoa, que garante a impessoalidade própria da estrutura dissertativa, foi mantida.
Além dos usos pessoais do resumo, ele é considerado, por técnicos em editoração e por cientistas, a representação condensada do conteúdo de um documento (é obrigatório, antecedendo trabalho científico, artigo, dissertação e tese), isto é, deve conter dados essenciais que ajudem o leitor a decidir sobre a necessidade de ler ou não um texto todo.
Pode ser:
• Indicativo (de 10 a 50 palavras) – geral e sintético.
• Informativo (até 350 palavras) – representa o conteúdo, o assunto, os pontos de vista, e, em caso de trabalhos científicos, os métodos e conclusões.
• Crítico (também chamado de resenha) – apresenta a posição do leitor, comparações com outros trabalhos e pode trazer uma avaliação geral. É utilizado em revistas científicas.
Há diferenças entre o resumo e a paráfrase que é necessário esclarecer. Um texto é paráfrase do outro quando traz as mesmas informações por meio de outras palavras; tem a mesma função, mas apresenta uma forma de organização diferente. Quando a organização é semelhante, mas as informações são diferentes, dizemos que é uma paródia. Assim, quando sobre uma mesma melodia criamos letra diferente, às vezes cômica ou irônica, estamos parodiando. Mas esse efeito é artístico e criativo.
[...] Utilizamos a paráfrase mentalmente, como uma estratégia para ler e estudar. Ocorre, no processo de estudo e de aprendizagem, uma internalização ou assimilação. O aprendiz incorpora o conhecimento novo, apropria-se dele. Essa assimilação requer uma elaboração interna, pois não se trata apenas de transposição ou transferência. A elaboração interior é feita por meio de paráfrase: para saber se estou compreendendo bem uma ideia é preciso que eu saiba pensá-la, reproduzi-la ou dizê-la com minhas próprias palavras. Pela paráfrase mental, pela reprodução das ideias com minhas próprias palavras, tenho consciência de que domino a nova informação.
É essencial compreender que também na produção de textos usamos frequentemente a paráfrase, já que um texto é feito de outros textos. Ou seja, utilizamos informações lidas, além de nossa experiência de vida, para escrever um trabalho ou um artigo. Essas informações lidas passam a fazer parte de nosso acervo pessoal de conhecimentos pela internalização, mas guardam um vínculo com o texto original do qual provêm. Às vezes é preciso citar explicitamente sua origem (nome, obra, data), outras basta fazer uma alusão ao dono das ideias e, muitas vezes, podemos incorporá-las ao nosso texto de maneira parafraseada. Por isso a paráfrase é tão útil.
Na paráfrase, frases e períodos podem ser simplificados, agregados ou transformados estilisticamente. Palavras complexas podem ser substituídas por expressões mais simples e familiares ou pode ocorrer o contrário, dependendo do objetivo da paráfrase. As informações têm de ser fiéis às ideias do texto original, sem acréscimos, transformações conceituais ou reduções. A paráfrase, vale repetir, não é um resumo. Paráfrases malfeitas podem constituir mal-entendidos prejudiciais à comunicação e, se não houver uma citação clara do autor das ideias, podem ser consideradas plágio.
Assim, podemos sempre utilizar ideias de outros autores fazendo:
citação literal:
Marilena Chaui afirma em seu texto que, “em lugar de difundir e divulgar a Cultura, despertando interesse por ela, a indústria cultural realiza a vulgarização das artes e dos conhecimentos”.
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ou paráfrase:
Marilena Chaui afirma em seu texto que a indústria cultural vulgariza as artes e os conhecimentos em vez de difundir, divulgar e despertar interesse pela Cultura.
[...]
GARCEZ, Lucília H. do Carmo. Técnica de redação: o que é preciso saber para bem escrever. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 47-59. (Coleção Ferramentas). (Fragmento).
■ Unidade 3
Texto
Televisão e educação: aproximações
Há uma cultura audiovisual eletrônica proporcionando aos jovens informações, valores, saberes, outros modos de ler e perceber. Para Martín-Barbero (1999), os complexos processos de comunicação da sociedade difundem linguagens e conhecimentos que descentram a relação escola–livro, âmago do sistema escolar vigente.
Contemporaneamente, a TV é o meio de comunicação predominante, instrumental de socialização, entretenimento, informação, publicidade, composto em função dos interesses de mercado. Por ela, gerações aprendem a consumir e a conhecer a si e ao mundo. Reuniões públicas, antes nas ruas, têm como cenário e como mediadora a TV: campanhas políticas e pronunciamentos oficiais substituem interações coletivas. O diálogo ficção–realidade perpassa fronteiras e mostra a telenovela — o programa mais visto por crianças e adultos — superar o entretenimento meramente alienatório e discutir temas sérios, oportunos, que antes eram ignorados ou não admitidos por causa dos preconceitos.
Como preparar o jovem para analisar a televisão, ler um mundo recortado por ela, compreender-lhe os recortes (essa edição da realidade)? Como analisar sua presença cotidiana em nossa cultura? Como usá-la criticamente a serviço da educação? Como integrar TV/vídeo à escola? Educa-se pela televisão? Que postura têm os consumidores? Quais os papéis de produtores e proprietários de TV na educação? É viável produzir programas interessantes com a intenção de educar?
Espera-se que a escola (en)foque o mundo audiovisual, faça da TV objeto de estudo, conheça-lhe linguagem, programação, condições de produção e de recepção e a incorpore pedagogicamente. Estudos garantem que se deve abordar a relação educação–televisão a partir de três perspectivas complementares: educação para uso seletivo da TV; educação com a TV; educação pela TV. O consumo seletivo e crítico da TV objetiva desenvolve a competência dos alunos para analisar, ler com criticidade e criativamente os programas. Na educação com a televisão, utilizam-se programas como estratégia pedagógica para motivar aprendizados, despertar interesses, problematizar conteúdos. E educar pela televisão significa comprometer emissoras a ofertar mais e melhores programas ao público infantojuvenil.
• O papel educativo na recepção
Nos estudos sobre televisão, durante anos sobressaiu o modelo mecânico, que considerava a iniciativa da comunicação toda do emissor, ficando o receptor restrito a reagir aos estímulos enviados. Martín-Barbero (1995) afirma que a concepção condutista fundia-se à iluminista: “O processo de educação, desde o século XIX, era concebido como um processo de transmissão do conhecimento para quem não conhece. O receptor era ‘tábula rasa’, recipiente vazio para se depositar conhecimentos originados ou produzidos em outro lugar”.
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Não mais se negam os efeitos da TV, e já se sabe que pais, professores e colegas influem na recepção de mensagens. Nesse processo ocorrem mediações cognitivas, culturais, situacionais, estruturais e as ligadas ao meio televisivo, à intencionalidade do emissor. O receptor é sujeito ativo e pertence a contexto sociocultural específico. Interpreta mensagens seguindo sua visão de mundo, experiências, valores, a cultura de seu grupo. Recepção não é só o momento do assistir ao programa; prolonga-se nos cotidianos e em comunicações habituais, constitui-se espaço de produção de sentidos, conhecimentos.
A relação juvenil com a TV e as outras mídias tornou mais complexa a socialização. As crianças acessam ilimitadamente informações adultas, mães e pais trabalham fora e está decretada a realidade do difícil controle sobre o saber do filho. Adultos não mais detêm singularmente a informação — propiciadora de status — sobre as crianças, que desafiam a autoridade adulta.
Currículos escolares tentam ignorar que fora da sala de aula as crianças muito aprendem sobre o mundo, que a informação que a mídia lhes lega é acessível. A escola é solicitada a estimular competências não para simplesmente ler, interpretar, mas para compreender meios e mensagens audiovisuais que os jovens consomem e com os quais se envolvem afetivamente. Deve encorajar pais a conhecerem a mídia, ativar-lhes o pensamento crítico, analisar o que a TV veicula. Num telejornal, por exemplo, separar do fato as representações, as impressões do jornalista.
Dessa perspectiva, a escola prescinde de ser instituição de repasse de informação para tornar-se lugar formador de pensamento, compreensão, interpretação. Preparar jovens para consumir com seletividade e criatividade a TV é com eles desenvolver competências para a análise e a crítica a partir de linguagens, produção e recepção.
CARNEIRO, Vânia Lúcia Quintão. “Televisão e educação: aproximações”. In: Integração das Tecnologias na Educação. Brasília: MEC/SED/TVE ESCOLA, 2005. p. 102-103. (Fragmento).
Caderno de Práticas de literatura
Texto
Algumas palavras sobre a prática de ensino do teatro
O educador que pretende explorar a linguagem teatral na escola pode recorrer a alguns dos elementos dessa gramática da linguagem cênica. As relações com o corpo, com o espaço, com a sonoridade, com a plasticidade e com o público podem ser eixos norteadores de estudos práticos e teóricos em sala de aula.
A prática teatral na escola pode ser um dos caminhos para a investigação sobre a linguagem e, nesse sentido, interessa menos a instrução técnica dos educandos do que o investimento em sua capacidade de jogo e de elaboração de metáforas por meio dos elementos da linguagem teatral. Dessa maneira, o processo pode tornar-se lúdico e exploratório sem recair em experiências teatrais estereotipadas como a escolha arbitrária de um texto e a divisão também arbitrária de personagens entre os estudantes.
Cada um dos eixos (corpo, espaço, sonoridade, plasticidade, relação com o público) ainda pode se relacionar com temas geradores, aspectos de interesse do grupo real com o qual o educador irá trabalhar. Um grupo de educandos muito habilidoso na linguagem plástica pode iniciar seu mergulho na linguagem teatral estudando diferentes cenários de espetáculos já realizados em sua cidade ou país, produzindo maquetes, propostas de cenários e figurinos para um texto teatral ou para uma encenação que será realizada na escola. Estudantes originários de diversas regiões do país podem coletar histórias e tradições corporais das localidades de sua origem e produzir seu próprio texto e sequências de ações para uma pequena cena.
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Os desencadeadores de um percurso de investigação em teatro, portanto, são os mais diversos e dependerão da presença no presente do educador para escolhê-los junto de seus estudantes. Como em qualquer processo de aprendizagem, a capacidade do grupo de estudantes e do educador de se apropriar de seu percurso é um dos definidores da qualidade da experiência a ser vivida, assim como dos resultados de trabalho que poderão ser apresentados à comunidade escolar, por exemplo. Por isso, criar mecanismos de revelação e reflexão sobre o processo de trabalho ao longo de sua realização é mais do que desejável. Murais com a memória do grupo, fotografias, diários pessoais e/ou de grupo, protocolos, relatórios, coleções de imagens e rodas de conversa são alguns dos procedimentos possíveis de serem utilizados para a apropriação do grupo de seu processo.
CAON, Paulina Maria. “A linguagem cênica. Percorrendo o fazer teatral: um caminho para a compreensão da linguagem cênica e sua prática pedagógica”. In: Linguagem teatral e práticas pedagógicas. Brasília: MEC/SED/TVE ESCOLA, 2010.
Caderno de Estudos de língua e linguagem
■ Unidade 1
Texto
O léxico português
• Fundamentos históricos
A língua que falamos é mais que um meio de comunicação com nossos semelhantes. Não conhecemos conteúdos que eventualmente optamos por traduzir em palavras e enunciados de uma língua; tais conteúdos só passam a existir objetivamente na sociedade como conhecimento circulante ao serem postos em palavras. Não é por acaso que a língua é o único meio universalmente empregado pelos homens para fazer da cultura o assunto de suas interações, seja na conversa face a face, seja nos muitos registros — fitas, discos, livros, jornais, revistas, impressos, cartazes — que a tornam propagável no espaço e transmissível através das gerações. O que um indivíduo vê, pressente, imagina, descobre ou inventa pode ser nomeado pela palavra. Uma vez nomeado, o conhecimento pode ser socializado e integrar-se à cultura coletiva. A língua cumpre essa tarefa graças, especialmente, ao seu léxico, que, no dizer de Edward Sapir, reflete com maior nitidez o ambiente físico e social dos falantes.9
A constituição geral do léxico de uma língua reflete, por meio de seus subconjuntos, as circunstâncias históricas vividas pela comunidade às quais ela serviu e às quais serve como meio cotidiano de expressão. No caso da língua portuguesa, este léxico é fundamentalmente de origem latina, já que o latim é a língua que, modificada pelo uso ao longo de vários séculos na Península Ibérica, deu origem ao português. Esta base latina foi ampliada por palavras pertencentes às línguas de povos que, como os celtas, habitavam a Península antes das invasões romanas, ocorridas no século II a.C. Posteriormente, contatos diversos dessa população falante de latim, primeiro com povos de origem germânica, depois com povos de origem árabe, serviram para expandir e diversificar aquela base lexical.
Quando a língua portuguesa começou a ser escrita — nos fins do século XII ou início do século XIII — seu léxico reunia cerca de 80% de palavras de origem latina e outros cerca de 20% de palavras pré-romanas, germânicas e árabes. Pertencem às línguas faladas na Península antes da chegada dos romanos: barranco, bezerro, bruxa, cama, carrasco, mato, morro, várzea. São de origem germânica: bando, espora, luva, guerra, guardar, jardim, rico,
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sala, trégua. As palavras recebidas do árabe formam um acervo muito amplo. Designam principalmente (a) cargos/ocupações: alferes, almoxarife; (b) plantas/alimentos: açúcar, alecrim, algodão, arroz, laranja; (c) profissões: alfaiate, almocreve; (d) unidades de medida: alqueire, arroba; (e) animais: atum, javali; (f) artigos de luxo, instrumentos musicais: almofada, marfim, alfinete, rabeca, alaúde; (g) produtos do campo e da indústria: azeite, alcatrão, álcool; (h) conceitos matemáticos: algarismo, cifra.
No decorrer dos séculos XIII, XIV e XV o português se tornou o meio de expressão de um vasto conjunto de obras escritas. Mas foi no curso dos séculos XV, XVI e XVII, como sintoma da revolução cultural do Renascimento, que poetas, cronistas, historiadores e naturalistas, entre outros, enriqueceram o português escrito com as formas chamadas eruditas, fundamentalmente latinas e gregas, tomadas aos textos clássicos. São dessa época o influxo dos superlativos nigérrimo, acérrimo, paupérrimo, nobilíssimo, bem como os nomes flama, plaga e procela, presentes n’Os Lusíadas.
Ainda no século XVI, por influência do Renascimento, o português recebeu um grande número de palavras de origem italiana, particularmente relativas às artes (vide tenor, violoncelo, harpejo, arlequim); nos séculos XVII e XVIII coube à língua francesa emprestar ao português um razoável contingente de verbos, substantivos e adjetivos (vide abandonar, blusa, envelope, coqueluche, champanha). O contato do colonizador europeu com as populações naturais do Brasil e com os negros trazidos da África foi decisivo para a renovação do léxico do português do Brasil com palavras como arapuca, jabuti e moqueca, de origem tupi, e molambo, quitute e cochilar, de origem africana. Desde o século XIX, e sobretudo ao longo do século atual, a língua que mais empréstimos vem legando ao português é o inglês, devido à internacionalização dos produtos da tecnologia americana, (vide franquia, tradução de franchising; deletar, de delete (apagar); laser (sigla de light amplification of stimulated emission of radiation), stress, feed-back, know-how, etc.).
O conjunto das palavras do português — isto é, seu léxico — consiste, portanto, na união de três grandes grupos de formas: (a) as palavras herdadas do latim, (b) as palavras provenientes de outras línguas antigas e modernas — os empréstimos, entre os quais se incluem os xenismos [ver neologia] —, e (c) as palavras formadas com recursos morfológicos produtivos da língua em cada fase de sua existência.
As palavras estão organizadas em subconjuntos conhecidos como classes de palavras [...], tradicionalmente identificadas segundo o modo como significam os dados de nossa experiência do mundo, as variações formais que podem assumir e as posições estruturais que ocupam na frase. Nas seções seguintes trataremos dos recursos a que se refere o item c do parágrafo precedente: as palavras formadas com os recursos morfológicos produtivos da língua.
• Composição e derivação
Em geral conhecemos o significado das palavras como se cada uma fosse independente da outra. Nossa primeira impressão é que as palavras pertencem a um estoque guardado na memória. De fato, isso acontece com boa parte delas, mas não com todas. O lexema cabide, por exemplo, é do tipo que precisa ser memorizado como uma associação exclusiva e cem por cento arbitrária entre forma e significado. O caso de guarda-roupa é diferente: mesmo uma pessoa que jamais tenha ouvido esta palavra, encontrará em sua forma aparente — que combina o verbo guardar e o substantivo roupa — uma pista para a significação.
Como fatos independentes aprendemos, também, o significado de frio e de quente, de raso e de fundo, de abrir e de fechar, formas que significam opostos, isto é, que são antônimas. Quando se trata porém de capaz/incapaz, útil/inútil, leal/desleal, tampar/destampar, a relação entre os antônimos não se dá apenas no sentido, mas também na forma: uma regra morfológica nos diz que o acréscimo de in- ou des- a um lexema dá origem a um segundo lexema que serve de antônimo ao primeiro.
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Analogamente, podemos formar substantivos a partir de adjetivos pelo acréscimo de sufixos: de macio, maciez; de branco, brancura; de suave, suavidade; de esperto, esperteza; de manso, mansidão. -ez, -ura, -idade, -eza, -idão ocorrem em muitos outros substantivos formados pelo mesmo processo.
A possibilidade de combinar morfemas para criar novos lexemas torna bem menos penosa nossa necessidade de memorizá-los. De fato, a memória armazena apenas uma parte do estoque de lexemas — que inclui capaz, tampar, esperto, macio, roupa, guardar —, pois a outra parte — que inclui incapaz, destampar, esperteza, maciez, guarda-roupa — pertence a um conjunto de unidades criadas por meio de regras de formação de palavras.
A união de morfemas para a construção das palavras está, portanto, sujeita a regras.
O CONJUNTO DOS MORFEMAS, AS REGRAS QUE OS COMBINAM E AS PRÓPRIAS PALAVRAS DAÍ RESULTANTES FAZEM PARTE DO QUE SE CHAMA NA “COMPETÊNCIA LEXICAL” DE UMA PESSOA EM UMA DETERMINADA LÍNGUA.
É preciso, contudo, ter clareza sobre a diferença entre a natureza das regras do léxico e a natureza das regras da sintaxe. As primeiras produzem palavras que se associam na perspectiva paradigmática (branco, branca, brancura, branquear, esbranquiçar, branco-gelo), as últimas produzem frases em cujo interior as palavras se associam na perspectiva sintagmática [...]. Por mais que seja analisável em partes significativas menores — os morfemas —, uma palavra tende a ser sentida como uma unidade pronta, “armazenada” na memória dos falantes, razão pela qual reagimos frequentemente às criações novas com julgamentos do tipo “essa palavra não existe, você a inventou”. Jamais dizemos isso a respeito de frases. A maior evidência desse sentimento é a existência mesma dos dicionários. Dicionários de frases só têm sentido como compilação de “frases feitas” (ex.: Água mole em pedra dura tanto bate até que fura, Casa de ferreiro, espeto de pau).
Existem fundamentalmente dois processos de formação de palavras: derivação e composição. Por definição, uma palavra é formada por derivação quando provém de outra, dita primitiva (ex.: jardineiro deriva de jardim, incapaz deriva de capaz, desfile deriva de desfilar). Também por definição, uma palavra é formada por composição quando resulta da união de outras duas ou mais palavras, ditas simples (ex.: guarda-roupa, porco-espinho, azul-marinho, fotomontagem, (formado de foto(grafia) + montagem), motosserra (formado de moto(r) + serra), eletrodoméstico (formado de elétr(ico) + doméstico).
• Mecanismo de produção e de compreensão de palavras
Nem todas as palavras que podemos considerar formadas pela união de dois morfemas lexicais ou de um morfema lexical e um morfema derivacional apresentam essa simplicidade em sua estrutura formal e semântica. O que dizer, por exemplo, de palavras como inteligente e inteligência, reduzir e produzir? Há entre elas diferenças que encontramos em outros pares de palavras: gerente/gerência, urgente/urgência, resistente/resistência, reclamar/proclamar, remeter/prometer, referir/proferir. Este fato pode ser suficiente para nos convencer de que a diferença de significados entre inteligente e inteligência, reduzir e produzir se explica, por um lado, pela oposição entre os sufixos -(de)nte e -(ê)ncia, e, por outro, entre os prefixos re- (movimento para trás) e pro- (movimento para frente). Entretanto, nem produzir nem inteligente são formados sobre outras palavras, como acontece com maciez, com incapaz, com resistente (formado sobre resistir). Mas isto não nos impede de reconhecer que inteligente e produzir são analisáveis em intelig- + -ente e pro- + -duzir.
Temos, portanto, de reconhecer que nem todas as palavras que contêm um morfema lexical e um morfema derivacional provêm obrigatoriamente de unidades autônomas menores. É comum que a relação se dê não entre uma palavra derivada e uma forma bá-
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sica (isto é, primitiva), mas entre duas palavras portadoras de prefixo ou sufixo, como os exemplos de produzir/reduzir, inteligente/inteligência.
Os exemplos que acabamos de comentar mostram que às vezes é difícil decidir se uma palavra é ou não divisível em dois ou mais morfemas. Quando temos certeza dessa divisibilidade, dizemos que a palavra em questão apresenta um alto grau de transparência (ex.: infeliz, guarda-roupa); quando temos certeza que a palavra é indivisível, é porque a palavra é opaca (ex.: feliz, cabide); quando, entretanto, temos dúvida, é porque o grau de transparência é baixo (ex.: proferir).
• Análise estrutural e formação de palavras
Nosso conhecimento da estruturação formal do léxico comporta, portanto, vários níveis de complexidade, que detalharemos na seção seguinte. Provisoriamente, distinguiremos apenas dois mecanismos que fazem parte de nossa competência lexical: (a) Regras de análise estrutural – RAE (necessárias para reconhecer morfemas, especialmente nos casos de grau baixo de transparência, e interpretar a contribuição deles para o significado da palavra), e (b) Regras de formação de palavras – RFP (necessárias para explicar a produção e a compreensão de palavras novas).
Vimos que pares de palavras como penitente/penitência e construir/destruir são exemplos de formas que, embora sejam constituídas de elementos mórficos menores (penit + ência, penit + ente, con + struir, des + truir), não provêm de outras palavras. Isto é, podemos analisar essas formações segundo as regras de análise estrutural (RAE), mas não podemos explicá-las como formas criadas a partir de outras mediante regras de formação de palavras (RFP). Formas como estas, numerosas, foram produzidas em geral em época remota, quase sempre ainda no latim, tendo sobrevivido às formas primitivas das quais procediam. Com efeito, existiam em latim os verbos poenitere (= arrepender-se) e struere (= reunir, juntar), que não permaneceram no português. Apesar disso, a exemplo do que vimos no início deste parágrafo, não precisamos desses verbos para analisar aquelas palavras em unidades menores. Noutros casos, porém, a semelhança formal não vem acompanhada de afinidade semântica. Este é o caso de preferir, conferir, referir, deferir, que só com muita ginástica conseguiríamos reagrupar a partir de um denominador semântico comum.
Os fatos destacados acima nos mostram que a distinção entre sincronia e diacronia [...], tão pertinente e clara na abordagem do funcionamento dos sistemas fonológico, sintático e morfossintático do português, se revela menos óbvia e menos explicativa quando tratamos das estruturas do léxico. No domínio do léxico, deparamos com palavras herdadas do latim (ex.: transferir, permanecer) e palavras formadas na atual sincronia do português (transportar, perfazer). Considerar derivadas por prefixação somente as duas últimas formas é passar ao largo da complexidade do modo próprio de estruturação do léxico, deixando sem explicação o fato de muitos falantes intuírem, em face dessas quatro formas, por força dos segmentos trans- e per-, respectivamente, os significados “movimento para além” e “processo que se estende”.
• Produtividade e criatividade lexicais10
Vimos [anteriormente] que é variável o grau de correspondência entre a estrutura mórfica de uma palavra e seu significado. Vários fatores contribuem para que uma palavra se torne menos transparente. Um deles é a mudança que a língua sofre no seu uso e através do tempo: embarcar, por exemplo, embora derivado de barco, ampliou seu raio conceptual, passando a designar o ato de tomar qualquer condução – trem, ônibus, avião; ônibus, por sua vez, que originalmente significa “para todos” (do ablativo latino omnibus)
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modificando uma base substantiva (algo como “veículo”) assumiu com o tempo o lugar da construção inteira e o significado exclusivo de “veículo rodoviário para uso coletivo”. Estes dois exemplos ilustram dois movimentos contrários no léxico: a generalização (embarcar) e a restrição do significado (ônibus).
Esses mecanismos de ampliação e restrição semânticas são comuns na língua, mas é impossível prever qual palavra terá seu significado ampliado ou em que direção o significado de uma palavra será reorientado. O que levou a comunidade a consagrar embarcar e ônibus nos significados que conhecemos hoje foi o princípio da criatividade. Só em virtude da criatividade dos falantes, inflação não significa simplesmente “ação de inflar”, mas “média da elevação dos preços” (restrição de significado por metonímia); orelhão não é uma “orelha grande”, mas uma espécie de capacete que protege os telefones públicos (especialização do significado por metáfora); impagável passou do sentido “aquilo que não se pode pagar” para o de “engraçado ou excêntrico”, e Constituição não é o “ato de constituir”, mas o nome do conjunto das leis máximas da nação. A criatividade é o fundamento da contribuição circunstancial, ordinariamente particularizadora e frequentemente expressiva, que os falantes adicionam ao significado das formas criadas pelos mecanismos regulares que constituem a produtividade.
Ao institucionalizar-se o produto da criatividade lexical e cristalizar-se idiossincraticamente seu significado, como ocorreu com os quatro últimos exemplos, o elo entre esse produto e sua base tende a desaparecer da competência lexical dos falantes, e consequentemente do sistema da língua. Numa distinção radical entre esses conceitos, pode-se dizer que a produtividade é sistemática e coletiva, ao passo que a criatividade é idiossincrática e particular.
Um ato de criatividade pode, contudo, gerar um modelo produtivo. Foi o que ocorreu com a palavra sambódromo, criativamente formada com a terminação -(ó)dromo (= corrida), que figura em hipódromo, autódromo, cartódromo, formas que designam itens culturais da alta burguesia. Não demoraram a circular, a partir de então, formas populares como rangódromo, beijódromo, camelódromo, etc.
Os prefixos super- e hiper- têm sido abundantemente utilizados na formação de superlativos: superbacana, superimportante, hiperlegal, hipermoderno, superlegal, supercheio, supertransado. O sufixo -ês, tirado da designação das línguas, tornou-se altamente produtivo na formação de neologismos jocosos, como economês (a língua incompreensível dos economistas); na mesma linha, pedagogês, banquês e politiquês.
Ainda a título de exemplo de um mecanismo derivacional produtivo no português atual, lembre-se a construção dar + SN derivado de verbo por meio do sufixo -ada/-ida, usual sobretudo no registro informal da língua falada (ex.: dar uma mordida, dar uma fugida/fugidinha, dar uma olhada, uma procurada, uma cochilada, uma bicada, uma pensada, uma mexida, uma consultada, uma perguntada, etc.).11
• Neologia
É fato bem sabido que qualquer língua em uso se modifica constantemente. O item anterior reúne alguns exemplos ilustrativos dessa propriedade da linguagem humana: criação de novas formas lexicais ou acréscimo de novas acepções a formas lexicais já existentes. Ao conjunto dos processos de renovação lexical de uma língua se dá o nome de neologia, e às formas e acepções criadas ou absorvidas pelo seu léxico, neologismos. A introdução, assimilação e circulação dos neologismos estão sujeitas, principalmente, a fatores históricos e socioculturais, mencionados mais adiante. Do ponto de vista do
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sistema mesmo da língua, que norteia os procedimentos de derivação e de composição, cite-se um fator estrutural que contribui para regular a produção de neologismos: o bloqueio.4
Trata-se de uma condição geral do funcionamento das línguas que pode ser assim resumida: não se cria uma palavra com um dado radical e um dado significado se já existe na língua uma outra palavra com o mesmo radical e o mesmo significado. O bloqueio é um princípio auxiliar de outro princípio mais geral: a economia linguística. A possibilidade de coexistirem substantivos abstratos derivados do mesmo verbo — como coroação e coroamento, competição e competência — explica-se pela diferença de significados que denotam. Por sua vez, a coexistência de jantar e janta ou de motociclista e motoqueiro encontra apoio da diversidade sociolinguística expressa por essas formas. E a possibilidade de um brasileiro chamar de vizinhança ou de vizindário o mesmo grupo de vizinhos depende de ele ser um carioca ou um gaúcho, respectivamente.
A neologia compreende criações vernáculas e empréstimos a outras línguas, os estrangeirismos. São criações vernáculas os substantivos mensalão (suposta propina paga mensalmente a políticos) e bafômetro/etilômetro (aparelho que avalia, no ar expelido pela boca, a concentração de álcool no organismo), o verbo disponibilizar (tornar disponível); são empréstimos a outras línguas fast-food (inglês), aggiornamento (italiano), tsunami (japonês) e talibã (árabe). As criações vernáculas podem ser morfológicas ou semânticas. Os estrangeirismos são em sua esmagadora maioria unidades formais e estão sujeitos a variados processos de incorporação. O primeiro fator a considerar é o sistema gráfico empregado na língua de origem. Se o sistema gráfico da língua doadora é igual ao do português, é comum que a palavra ou expressão conserve a representação gráfica de origem: mouse, mise-en-scène, carpaccio. Às vezes consagra-se uma adaptação gráfica que reflete a absorção da palavra estrangeira pelo sistema fonológico do português: copirraite (ing. copyright), musse (fr. mousse), becape (ing. back-up).
Podem-se distinguir os seguintes processos fundamentais:
1) Criações vernáculas
a) criações vernáculas formais (ou neologismos morfológicos), em que se observam regras produtivas de formação de palavras: bafômetro, sem-terra, sem-teto, debiloide, antimofo, demonizar;
b) criações vernáculas semânticas (ou neologismos semânticos): laranja (pessoa cujo nome é usado em transações financeiras ilegais para ocultar a identidade do verdadeiro beneficiário), secar (causar má sorte, azarar), curtição (prazer, coisa que está na moda), torpedo (mensagem curta por meio de telefone celular).
2) Estrangeirismos
a) xenismos, em que o estrangeirismo conserva a forma gráfica de origem: mouse (acessório manual para guiar o cursor na tela do computador), carpaccio (carne bovina, peixe, berinjela servidos em fatias finíssimas temperadas com limão e azeite), rack (móvel para acomodar aparelhagem de som), paper (ensaio ou artigo da autoria de um especialista para apresentação/circulação e debate em fóruns científicos), drive-in (sistema de atendimento em estabelecimentos comerciais pelo qual o freguês/cliente é servido no próprio carro), coiffeur (cabeleireiro), personal trainer ou personal (profissional que programa e executa um treinamento físico personalizado);
b) adaptações, em que o estrangeirismo se submete à morfologia do português: checar (apurar a verdade, conferir, do ing. check), randômico (aleatório, fortuito,
4 Para detalhamento do conceito, ver NAPOLI, Donna Jô. Linguistics. Nova York: Oxford University Press, 1996; ROCHA, Luiz C. de Assis. Estruturas Morfológicas do Português. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1998.
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do ing. (at) random), inicializar (dar início a, por influência do ing. initialize), banda (do ing. band, no sentido de conjunto instrumental);
c) decalques, em que há uma tradução literal do estrangeirismo: alta costura (fr. haute couture), centroavante (termo do futebol, equivalente ao ing. center-forward);
d) siglas/acrônimos, em que se empregam as iniciais das palavras constitutivas da expressão estrangeira: PC (personal computer), CD (compact disk), RSVP (répondez s’il vous plaît, responda, por favor).
A vida dos neologismos é governada pelo mesmo princípio fundamental válido para o léxico como um todo: qualquer palavra só se mantém em uso se é necessária para designar uma ideia, um objeto, um conceito circulante na comunidade que a emprega. A debilitação ou esgotamento dessa serventia tem por consequência a raridade de uso ou mesmo a obsolescência da palavra. Os termos que designam itens da moda em todas as áreas do comportamento humano — vestuário, música, esporte — dão exemplos abundantes desse fato: o termo rock, por exemplo, abreviação de rock-and-roll, se difundiu a partir de 1954 e persiste dando nome a um conjunto de estilos musicais capazes de magnetizar o gosto da juventude em todos os continentes. Por suas vez, variações conhecidas como hully gully e twist não tiveram a mesma sorte. Natural, portanto, que muitos neologismos durem apenas uma temporada, enquanto outros se enraízam na língua.
Às vezes o estrangeirismo é substituído por uma formação vernácula ou adaptada. Foi uma adaptação que tirou crooner (cantor) de circulação, substituído por vocalista (também do ing. vocalist). Uma substituição como essa pode ocorrer por força da conotação: o crooner — um tanto secundário na formação de conjuntos instrumentais — geralmente não era conhecido por seu nome, diferentemente do vocalista, que passou a ser figura central no show. No futebol (do ing. foot-ball) muitos termos cederam espaço ou deram lugar a formações vernáculas, mesmo depois de um período em que circularam como formas adaptadas: beque (do ing. back) foi substituído por zagueiro, corner (do ing. corner)convive com escanteio, e centeralfe (do ing. center-half) deu lugar ao médio-volante. Ainda mantendo-nos na área semântica do futebol, é notável a criação de novos termos, às vezes por exigência de concepções modernas do posicionamento tático dos jogadores no campo. São criações recentes: apoiador, líbero (emprestado do italiano), lateral, volante e cabeça de área.
Identificar uma forma em uso na língua como neologismo nem sempre é tarefa simples, pois não há para isso instrumentos de medida e avaliação. As criações neológicas são mais comuns em certos domínios discursivos, como o que implica o uso artístico/expressivo da palavra (literatura, publicidade, humor) e o que envolve inovação conceitual ou técnica (ciência, religião, esportes, atividades especializadas diversas).
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