Prefácio da segunda ediçÃO



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- Não há de quê... Manda a Rua da Misericórdia ao diabo!

João Eduardo interrompeu com calor:

- Isso é bom de dizer, senhor doutor, mas quando a paixão está a roer cá por dentro!...

- Ah! fez o doutor, é uma bela e grande coisa a paixão! O amor é uma das grandes forças da civilização. Bem dirigida levanta um mundo e bastava para nos fazer a revolução moral... - E mudando de tom: - Mas escuta. Olha que isso às vezes não é paixão, não está no coração... O coração é ordinariamente um termo de que nos servimos, por decência, para designar outro órgão. É precisamente esse órgão o único que está interessado, a maior parte das vezes, em questões de sentimento. E nesses casos o desgosto não dura. Adeus, estimo que seja isso!

Capítulo XIV

João Eduardo desceu a rua, embrulhando o cigarro. Sentia-se enervado, todo cansado da noite desesperada que passara, daquela manhã cheia de passos inúteis das conversas do doutor Godinho e do doutor Gouveia.

- Acabou-se, pensava, não posso fazer mais nada! É aguentar.

Tinha a alma extenuada de tantos esforços de paixão, de esperança e de cólera. Desejaria ir estirar-se ao comprido, num sítio isolado, longe de advogados, de mulheres e de padres, e dormir durante meses. Mas como já passava das três horas, apressava-se para o cartório do Nunes. Teria talvez ainda de ouvir um sermão por ter chegado tão tarde! Triste vida a sua!

Dobrava a esquina no Terreiro, quando ao pé da casa de pasto do Osório se encontrou com um moço de quinzena clara, debruada de uma fita negra muito larga, e com um bigodinho tão preto que parecia postiço sobre as suas feições extremamente pálidas.

- Olé! Que é feito, João Eduardo?

Era um Gustavo, tipógrafo da Voz do Distrito, que havia dois meses fora para Lisboa. Segundo dizia o Agostinho, era "rapaz de cabeça e instruidote, mas de idéias do diabo". Escrevia às vezes artigos de política estrangeira, onde introduzia frases poéticas e retumbantes, amaldiçoando Napoleão III, o czar e os opressores do povo, chorando a escravidão da Polônia e a miséria do proletário. A simpatia entre ele e João Eduardo proviera de conversas sobre religião, em que ambos exalavam o seu ódio ao clero e a sua admiração por Jesus Cristo. A revolução de Espanha entusiasmara-o tanto que aspirara a pertencer à Internacional; e o desejo de viver num centro operário, onde houvesse associações, discursos e fraternidade, levara-o a Lisboa. Encontrara lá bom trabalho e bons camaradas. Mas como sustentava a mãe, velha e doente, e como era mais econômico viverem juntos, voltara a Leiria. O Distrito, além disso, na perspectiva de eleições, prosperava a ponto de aumentar o salário aos três tipógrafos.

- De modo que lá estou outra vez com o raquítico... Vinha jantar, e convidou logo João Eduardo a que lhe fizesse companhia. Não havia de acabar o mundo, que diabo, por ele faltar um dia ao cartório!

João Eduardo então lembrou-se que desde a véspera não tinha comido. Era talvez a debilidade que o trouxera assim estonteado, tão pronto a desanimar... Decidiu-se logo - contente, depois das emoções e das fadigas da manhã, de se estirar no banco da taberna, diante dum prato cheio, na intimidade com um camarada de ódios iguais aos seus. Demais, os repelões que sofrera davam-lhe uma necessidade, uma avidez de simpatia; e foi com calor que disse:

- Homem, valeu! Cais-me do céu! Este mundo é uma choldra. Se não fosse por alguma hora que se passa em amizade, caramba, não valia a pena andar por cá! .

Este modo, tão novo no João Eduardo, no Pacatinho, espantou Gustavo.

- Por quê? As coisas não correm bem? Turras com a besta do Nunes, hem? perguntou-lhe.

- Não, um bocado de spleen.

- Isso de spleen é de inglês! Oh menino, havias de ver o Taborda no Amor londrino!... Deixa lá o spleen. É deitar lastro para dentro e carregar no líquido!

Travou-lhe do braço, meteu-o pela porta da taberna.

- Viva o tio Osório! Saúde e fraternidade!

O dono da casa de pasto, o tio Osório, personagem obeso e contente da vida, com as mangas da camisa arregaçadas até aos ombros, os braços nus muito brancos apoiados sobre o balcão, a face balofa e finória, felicitou logo Gustavo de o ver de novo em Leiria. Achava-o mais magrito... Havia de ser das más águas de Lisboa e do muito paucampeche nos vinhos... E que havia dele servir aos cavalheiros?

Gustavo, plantando-se diante do contador, de chapéu para nuca, apressou-se a soltar o gracejo, que tanto o entusiasmara em Lisboa:

- Tio Osório, sirva-nos fígado de rei, com rim grelhado de padre! O tio Osório, pronto à réplica, disse logo, dando um raspão de rodilha sobre o zinco do contador:

- Não temos cá disso, Sr. Gustavo. Isso é petisco da capital.

- Então estão vocês muito atrasados! Em Lisboa era todos os dias o meu almoço... Bem, acabou-se, dê-nos duas iscas com batatas... E bem saltadinho, isso!

- Hão-de ser servidos como amigos.

Acomodaram-se à "mesa dos envergonhados", entre dois tabiques de pinho fechados por uma cortina de chita. O tio Osório, que apreciava Gustavo, "moço instruído e de pouca troça", veio ele mesmo trazer a garrafa do tinto e as azeitonas; e limpando os copos ao avental enxovalhado:

- Então que há de novo pela capital, Sr. Gustavo? Como vai por lá aquilo?

O tipógrafo deu imediatamente seriedade ao rosto: passou a mão pelos cabelos, e deixou cair algumas frases enigmáticas:

Tremidito... Muito pouca-vergonha em política... A classe operária começa a mexer-se... Falta de união, por ora... Está-se à espera de ver como as coisas correm em Espanha... Há-de havê-las bonitas! Tudo depende de Espanha...

Mas o tio Osório, que juntara alguns vinténs e comprara uma fazenda, tinha horror a tumultos... O que se queria no país era paz... Sobretudo o que lhe desagradava era contar-se com espanhóis... De Espanha, deviam os cavalheiros sabê-lo, "nem bom vento nem bom casamento"!

- Os povos são todos irmãos! exclamou Gustavo. Quando se tratar de atirar abaixo Bourbons e imperadores, camarilhas e fidalguia, não há portugueses nem espanhóis, todos são irmãos! Tudo é fraternidade, tio Osório!

- Pois então é beber-lhe à saúde, e beber-lhe rijo, que isso é que faz andar o negócio, disse o tio Osório tranquilamente, rolando a sua obesidade para fora do cubículo.

- Elefante! rosnou o tipógrafo, chocado com aquela indiferença pela Fraternidade dos Povos. Que se podia esperar, de resto dum proprietário e dum agente de eleições?

Trauteou a Marselhesa, enchendo os copos do alto, e quis saber o que tinha feito o amigo João Eduardo... Já se não ia pelo Distrito? O raquítico dissera-lhe que não havia despegá-lo da Rua da Misericórdia.

- E quando é esse casamento, por fim? João Eduardo corou, disse vagamente:

- Nada decidido... Tem havido dificuldades. E acrescentou com um sorriso desconsolado: - Temos tidos arrufos.

- Pieguices! soltou o tipógrafo, com um movimento de ombros, que exprimia um desdém de revolucionário pelas frivolidades do sentimento.

- Pieguices... Não sei se são pieguices, disse João Eduardo. O que sei é que dão desgostos... Arrasam um homem, Gustavo...

Calou-se, mordendo o beiço, para recalcar a emoção que o revolvia.

Mas o tipógrafo achava todas essas histórias de mulheres ridículas. O tempo não estava para amores... O homem do povo, o operário que se agarrava a uma saia para não despegar era um inútil... era um vendido! Em que se devia pensar não era em namoros: era em dar a liberdade ao povo, livrar o trabalho das garras do capital, acabar com os monopólios, trabalhar para a república! Não se queria lamúria, queria-se ação, queria- se a força! - E carregava furiosamente no r da palavra - a forrrça! - agitando os seus pulsos magríssimos de tísico sobre o grande prato de iscas que o moço trouxera.

João Eduardo, escutando-o, lembrava-se do tempo em que o tipógrafo, doido pela Júlia padeira, aparecia sempre com os olhos vermelhos como carvões, e atroava a tipografia com suspiros medonhos. A cada ai os camaradas, troçando, davam uma tossezinha de garganta. Um dia mesmo, Gustavo e o Medeiros tinham-se esmurrado no pátio...

- Olha quem fala! disse por fim. És como os outros... Estás aí a palrar, e quando te chega és como os outros.

O tipógrafo então - que, desde que em Lisboa frequentara um clube democrático de Alcântara e ajudara a redigir um manifesto aos irmãos cigarreiros em greve, se considerava exclusivamente votado ao serviço do Proletariado e da República - escandalizou-se. Ele? Ele como os outros? Perder o seu tempo com saias?...

- Está vossa senhoria muito enganado! - e recolheu-se a um silêncio chocado, partindo com furor a sua isca.

João Eduardo receou tê-lo ofendido.

- Ó Gustavo, sejamos razoáveis! um homem pode ter os seus princípios, trabalhar pela sua causa, mas casar, arranjar o seu conchego, ter uma família.

- Nunca! exclamou o tipógrafo exaltado. O homem que casa está perdido! Daí por diante é ganhar a papa, não se mexer do buraco, não ter um momento para os amigos, passear de noite os marmanjos quando eles berram com os dentes. É um inútil! É um vendido! As mulheres não entendem nada de política. Têm medo que o homem se meta em barulhos, tenha turras com a polícia. Está um patriota atado de pés e mãos! E quando há um segredo a guardar? O homem casado não pode guardar um segredo?... E ai está às vezes uma revolução comprometida... Sebo para a família! Outra de azeitonas, tio Osório!

A pança do tio Osório apareceu entre os tabiques.

- Então que estão os senhores aqui a questionar, que parece que entraram os da Maia no concelho de distrito?

Gustavo atirou-se para o fundo do banco, de pema estirada, e interpelando-o de alto:

- O tio Osório é que vai dizer. Diga lá o amigo. Vossemecê era homem de mudar as suas opiniões políticas para fazer a vontade à sua patroa?

O tio Osório acariciou o cachaço e disse com um tom finório:

- Eu lhe respondo, Sr. Gustavo. Mulheres são mais espertas que nós... E em política, como em negócio, quem for com o que elas dizem vai pelo seguro... Eu sempre consulto a minha, e se quer que lhe diga, já vai em vinte anos e não me tenho achado mal.

Gustavo pulou no banco:

- Você é um vendido! gritou.

O tio Osório, acostumado àquela expressão querida do tipógrafo, não se escandalizou: gracejou até com o seu amor às boas réplicas:

- Vendido não direi, mas vendedor pro que quiser... Pois é o que lhe digo, Sr. Gustavo. O senhor casará, e depois mas contará.

- O que hei-de contar, é, quando houver uma revolução, entrar-lhe por aqui de espingarda ao ombro, e metê-lo em conselho de guerra, seu capitalista!

- Pois enquanto isso não chega, é beber-lhe e beber-lhe rijo, disse o tio Osório retirando-se com pachorra.

- Hipopótamo - resmungou o tipógrafo.

E, como adorava discussões, recomeçou logo - sustentando que o homem, embeiçado por uma saia, não tem firmeza nas suas convicções políticas...

João Eduardo sorria tristemente, numa negação muda, pensando consigo que, apesar da sua paixão por Amélia, não se tinha confessado nos dois últimos anos!

- Tem provas! berrava Gustavo.

Citou um livre-pensador das suas relações que, para manter a paz doméstica, se sujeitava a jejuar às sextas-feiras, e palmilhar aos domingos o caminho da capela de ripanço debaixo do braço...

- E é o que te há-de suceder!... Tu tens idéias menos más a respeito da religião, mas ainda te hei-de ver de opa vermelha e círio na procissão do Senhor dos Passos... Filosofia e ateísmo não custam nada quando se conversa no bilhar entre rapazes... Mas praticá-los em família, quando se tem uma mulher bonita e devota, é o diabo! É o que te há-de suceder, se é que te não vai sucedendo já hás-de atirar as tuas convicções liberais para o caixão do cisco, e fazer barretadas ao confessor da casa!

João Eduardo fazia-se escarlate de indignação. Mesmo nos tempos da sua felicidade, quando tinha Amélia certa, aquela acusação (que o tipógrafo fazia só para questionar, para palrar) tê-lo-ia escandalizado. Mas hoje! Justamente quando ele perdera Amélia por ter dito de alto, num jornal, o seu horror a beatos! Hoje que se achava ali, com o coração partido, roubado de toda a alegria, exatamente pelas suas opiniões liberais!...

- Isso dito a mim tem graça! disse com uma amargura sombria.

O tipógrafo galhofou:

- Homem, não me constou ainda que fosses um mártir da liberdade!

- Por quem és não apoquentes, Gustavo, disse o escrevente muito chocado. Tu não sabes o que se tem passado. Se soubesses não me dizias isso!

Contou-lhe então a história do Comunicado - calando todavia que o escrevera num fogo de ciúmes, e apresentando-o como uma pura afirmação de princípios... E que notasse esta circunstância, ia então casar com uma rapariga devota, numa casa que era mais frequentada por padres que a sacristia da Sé...

- E assinaste? perguntou Gustavo, espantado da revelação.

- O doutor Godinho não quis, disse o escrevente corando um pouco.

- E deste-lhes uma desanda, hem?

- A todos, de rachar!

O tipógrafo, entusiasmado, berrou por "outra de tinto"!

Encheu os copos com transporte, bebeu uma grande saúde a João Eduardo.

- Caramba, quero ver isso! Quero mandá-lo à rapaziada em Lisboa!... E que efeito fez?

- Um escândalo, mestre.

- E os padrecas?

- Em brasa!

- Mas como souberam que eras tu?

João Eduardo encolheu os ombros. O Agostinho não o dissera. Desconfiava da mulher do Godinho, que o sabia pelo marido, e que o fora meter no bico do padre Silvério, seu confessor, o padre Silvério da Rua das Teresas...

- Um gordo, que parece hidrópico?

- Sim.


- Que besta! rugiu o tipógrafo com rancor.

Olhava agora João Eduardo com respeito, aquele João Eduardo que se lhe revelara inesperadamente um paladino do livre pensamento.

- Bebe, amigo, bebe! dizia-lhe, enchendo-lhe o copo com afeto, como se aquele esforço heróico de liberalismo necessitasse ainda, depois de tantos dias, reconfortos excepcionais.

E que se tinha passado? Que tinha dito a gente da Rua da Misericórdia?

Tanto interesse comoveu João Eduardo: e dum fôlego fez a sua confidência. Mostrou-lhe mesmo a carta de Amélia que ela decerto, coitada, fora levada a escrever num terror do Inferno, sob a pressão dos padres furiosos...

- E aqui tens a vítima que eu sou, Gustavo!

Era-o com efeito; e o tipógrafo considerava-o com uma admiração crescente. Já não era o Pacatinho, o escrevente do Nunes, o chichisbéu da Rua da Misericórdia - era uma vítima das perseguições religiosas. Era a primeira que o tipógrafo via; e, apesar de não lhe aparecer na atitude tradicional das estampas de propaganda, amarrado a um poste de fogueira ou fugindo com a família espavorida a soldados que galopam da sombra do último plano, achava-o interessante. Invejava-lhe secretamente aquela honra social. Que chique que lhe daria a ele entre a rapaziada de Alcântara! Famosa pechincha, ser uma vítima da reação, sem perder o conforto das iscas do tio Osório e os salários inteiros ao sábado! - Mas sobretudo o procedimento dos padres enfurecia-o! Para se vingarem dum liberal, intrigarem-no, tirarem-lhe a noiva! - Oh, que canalha!... E esquecendo os seus sarcasmos ao Casamento e à Família, trovejou de alto contra o clero, que é quem sempre destrói essa instituição social, perfeita, de origem divina!

- Isso precisa uma vingança medonha, menino! É necessário arrasá-los! Uma vingança? João Eduardo desejava-a, vorazmente! Mas qual?

- Qual? Contar tudo no Distrito, num artigo tremendo!

João Eduardo citou-lhe as palavras do doutor Godinho: dali por diante o Distrito estava fechado aos senhores livres-pensadores!

- Cavalgadura! rugiu o tipógrafo.

Mas tinha uma idéia, caramba! Publicar um folheto! Um folheto de vinte páginas, o que se chama no Brasil uma mofina, mas num estilo floreado (ele se encarregava disso), caindo sobre o clero com um desabamento de verdades mortais!

João Eduardo entusiasmou-se. E diante daquela simpatia ativa de Gustavo, vendo nele um irmão, soltou as últimas confidências, as mais dolorosas. O que havia no fundo da intriga era a paixão do padre Amaro pela pequena, e era para se apoderar dela que o escorraçava a ele... O inimigo, o malvado, o carrasco - era o pároco!

O tipógrafo apertou as mãos na cabeça: semelhante caso (que todavia era para ele trivial, nas locais que compunha) sucedido a um amigo seu que estava ali bebendo com ele, a um democrata, parecia-lhe monstruoso, alguma coisa semelhante aos furores de Tibério na velhice, violando, em banhos perfumados, as carnes delicadas de mancebos patrícios.

Não queria acreditar. João Eduardo acumulou as provas. E então Gustavo, que tinha molhado vastamente de tinto as iscas de fígado, ergueu os punhos fechados, e com a face intumescida, dente rilhado, berrou em rouco:

- Abaixo a religião!

Do outro lado do tabique uma voz trocista grasnou em réplica:

- Viva Pio Nono!

Gustavo ergueu-se para ir esbofetear o entremetido. Mas João Eduardo sossegou-o. E o tipógrafo, sentando-se tranquilamente, rechupou o fundo do copo.

Então, com os cotovelos sobre a mesa, a garrafa entre eles, conversaram baixo, de rosto a rosto, sobre o plano do folheto. A coisa era fácil: escrevê-lo-iam ambos. João Eduardo queria-o em forma de romance, de enredo negro, dando ao personagem do pároco os vícios e as perversidades de Calígula e de Heliogábalo. O tipógrafo porém queria um livro filosófico, de estilo e de princípios, que demolisse de uma vez para sempre o Ultramontanismo! Ele mesmo se encarregava de imprimir a obra aos serões, grátis, já se sabe. - Mas apareceu-lhes então, bruscamente, uma dificuldade.

- O papel? Como se há-de arranjar o papel?

Era uma despesa de nove ou dez mil-réis; nenhum os tinha - nem um amigo que, por dedicação aos princípios, lhos adiantasse.

- Pede-os ao Nunes por conta do teu ordenado! lembrou vivamente o tipógrafo.

João Eduardo coçou desconsoladamente a cabeça. Estava justamente pensando no Nunes e na sua indignação de devoto, de membro da junta de paróquia, amigo do chantre, apenas lesse o panfleto! E se soubesse que era o seu escrevente que o compusera, com as penas do cartório, no papel almaço do cartório... Via-o já roxo de cólera, alçando sobre o bico dos sapatos brancos a sua pessoa gordalhufa, e gritando na voz de grilo - "Fora daqui, pedreiro-livre, fora daqui!"

- Ficava eu bem arranjado, disse João Eduardo muito sério, nem mulher, nem pão!

Isto fez lembrar também a Gustavo a cólera provável do doutor Godinho, dono da tipografia. O doutor Godinho, que depois da reconciliação com a gente da Rua da Misericórdia, retomara publicamente a sua considerável posição de pilar da Igreja e esteio da Fé...

- É o diabo, pode-nos sair caro, disse ele.

- É impossível! disse o escrevente.

Então praguejaram de raiva. Perder uma ocasião daquelas para pôr a calva à mostra ao clero!

O plano do folheto, como uma coluna tombada que parece maior, afigurava-se-lhes, agora que estava derrubado, duma altura, duma importância colossal. Não era jà a demolição local dum pároco celerado, era a ruína, ao longe e ao largo, de todo o clero, dos jesuítas, do poder temporal, de outras coisas funestas... - Maldição! se não fosse o Nunes, se não fosse o Godinho, se não fossem os nove mil-réis do papel!

Aquele perpétuo obstáculo do pobre, falta de dinheiro e dependência do patrão, que até para um folheto era estorvo, revoltou-os contra a sociedade.

- Positivamente é necessário uma revolução, afirmou o tipógrafo. É necessário arrasar tudo, tudo! - E o seu largo gesto sobre a mesa indicava, num formidável nivelamento social, uma demolição de igrejas, palácios, bancos, quartéis, e prédios de Godinhos ! - Outra do tinto, tio Osório!...

Mas o tio Osório não aparecia. Gustavo martelou a mesa a toda a força com o cabo da faca. E enfim, furioso, saiu fora ao contador "para arrebentar a pança àquele vendido que fazia assim esperar um cidadão".

Encontrou-o desbarretado, radiante, conversando com o barão de Via-Clara, que, em vésperas de eleições, vinha pelas casas de pasto apertar a mão aos compadres. E ali na taberna, parecia magnífico o barão, com a sua luneta de ouro, os botins de verniz sobre o solo térreo, tossicando ao cheiro acre do azeite fervido e das emanações das borras de vinho.

Gustavo, avistando-o, recolheu discretamente ao cubículo.

- Está com o barão, disse numa surdina respeitosa.

Mas vendo João Eduardo aniquilado, com a cabeça entre os punhos, o tipógrafo exortou-o a não esmorecer. Que diabo! No fim, livrava-se de casar com uma beata...

- Não me pode vingar daquele maroto! interrompeu João Eduardo com um repelão ao prato.

- Não te aflijas, prometeu o tipógrafo com solenidade, que a vingança não vem longe!

Fez-lhe então, baixo, a confidência "das coisas que se preparavam em Lisboa". Tinham-lhe afiançado que havia um clube republicano a que até pertenciam figurões - e que era para ele uma garantia superior de triunfo. Além disso, a rapaziada do trabalho mexia-se... Ele mesmo - e murmurava quase contra a face de João Eduardo, estirado sobre a mesa - fora falado para pertencer a uma seção da Internacional, que devia organizar um espanhol de Madri; nunca vira o espanhol, que se disfarçava por causa da policia; e a coisa falhara porque o Comitê tinha falta de fundos... Mas era certo haver um homem, que possuía um talho, que prometera cem mil-réis... O exército, além disso, estava na coisa: tinha visto numa reunião um sujeito barrigudo que lhe tinham dito que era major, e que tinha cara de major... - De modo que, com todos estes elementos, a opinião dele Gustavo, era que dentro de meses, governo, rei, fidalgos, capitalistas, bispos, todos esses monstros iam pelos ares!

- E então somos nós os reizinhos, menino! Godinho, Nunes toda a cambada ferramo-la na enxovia de S. Francisco. Eu a quem me atiro é ao Godinho... Padres, derreamo-los à pancada! E o povo respira, enfim!

- Mas daqui até lá! suspirou João Eduardo, que pensava com amargura que, quando a revolução viesse já seria tarde para recuperar a Ameliazinha...

O tio Osório então apareceu com a garrafa.

- Ora até que enfim, seu fidalgo! disse o tipógrafo a trasbordar de sarcasmo.

- Não se pertence à classe, mas é-se tratado por ela com consideração, replicou logo o tio Osório, que a satisfação fazia parecer mais pançudo.

- Por causa de meia dúzia de votos!

- Dezoito na freguesia, e esperanças de dezenove. E que se há-de servir mais aos cavalheiros? Nada mais?... Pois é pena. Então é beber-lhe, é beber-lhe!

E correu a cortina, deixando os dois amigos em frente da garrafa cheia, aspirarem a uma Revolução que lhes permitisse - a um reaver a menina Amélia, a outro espancar o patrão Godinho.

Eram quase cinco horas quando saíram enfim do cubículo. O tio Osório, que se interessava por eles por serem rapazes de instrução, notou logo, examinando-os do canto do balcão onde saboreava o seu Popular, que vinham tocaditos. João Eduardo, sobretudo, de chapéu carregado e beiço trombudo: "pessoa de mau vinho", pensou o tio Osório, que o conhecia pouco. Mas o Sr. Gustavo, como sempre, depois dos três litros, resplandecia de júbilo. Grande rapaz! Era ele que pagava a conta; e gingando para o balcão, batendo de alto com as suas duas placas:

- Encafua mais essas na burra, Osório pipa!

- O que é pena é que sejam só duas, Sr. Gustavo.

- Ah bandido! imaginas que o suor do povo, o dinheiro do trabalho é para encher a pança dos Filistinos? Mas não as perdes! Que no dia do ajuste de contas quem há-de ter a honra de te furar esse bandulho há-de ser cá o Bibi... E o Bibi sou eu... Eu é que sou o Bibi! Não é verdade, João, quem é o Bibi?

João Eduardo não escutava; muito carrancudo, olhava com desconfiança um borracho, que na mesa do fundo, diante do seu litro vazio, com o queixo na palma da mão e o cachimbo nos dentes, embasbacara, maravilhado, para os dois amigos.


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