Antônio burokô

ANTÔNIO BUROKÔ

Domingos Ailton

“O candomblé é uma religião que não tem livro. Cada pessoa é um livro. Elas traziam em si a vivência”.
Omar Salomão


1
O mato
O cabelo e a barba de tão grandes cobriam boa parte do seu corpo nu. Antônio bebeu água apanhando com a mão direita de uma fonte que descia do alto de uma serra. Depois seguiu em frente na densa mata naquele fim de tarde.
No mato, durante seis meses, ouviu os ensinamentos dos orixás: de Exu, o orixá da comunicação, o guardião das aldeias, cidades, casas e do axé, das coisas que são feitas e do comportamento humano. Exu é também o orixá do movimento e foi com ele que Antônio aprendeu a agilidade no tempo e no espaço; de Ogum, o santo de frente de Antônio, o orixá ferreiro, senhor dos metais, que lhe ensinou a produzir objetos a partir do ferro. O próprio Ogum forjava suas ferramentas, tanto para a caça, como para a agricultura, e também para a guerra e através dele Antônio se tornaria um exímio ferreiro; Oxóssi, o orixá da caça e da fartura. Seu habitat é a floresta e nela faz descobertas e transmiste conhecimento. Foi na imensa floresta atlântica que Antônio por meio de Oxóssi aprender caçar o necessário para sobreviver e descobriu os segredos da diversidade da vida na mata; Logunedé ou Logun Ede, o orixá que vive seis meses nas matas caçando com Oxóssi e seis meses nos rios pescando com Oxum. Simultaneamente caçador e pescador, Logunedé é o herdeiro dos axés de Oxum e Oxóssi, que se fundem e se mesclam como mistério da criação. Ele tem a graça, a meiguice e a faceirice de Oxum e de Oxóssi herdou a alegria e a expansão. Oxum confere a Logunedé axés sobre a sexualidade, a maternidade, a pesca e a prosperidade, Oxóssi lhe passa os axés da fartura, da caça, da habilidade, do conhecimento. Durante os seis que Logunedé passou caçando nas matas com Oxóssi, Antônio aprendeu com ele a ser habidoso na terra e na água; de Xangô do raio e do trovão e da justiça. Ele castiga os mentirosos, os ladrões e os malfeitores. Com Xangô Antônio aprendeu a praticar a justiça e a combater a opressão e a lançar raios contra os que exploram as pessoas e cometem injustiças; de Airá cujo nome pode ser traduzido como redemoinho. Redemoinho é o fenômeno que mais se assemelha a um furacão em território africano. Airá zela pela paz e pela justiça de forma incondicional. Com ele Antônio aprendeu a ser justo e pacífico ao mesmo tempo; de Obaluayé, orixá da varíola, das doenças contagiosas e da cura. Por meio de Obaluayé Antônio aprendeu os rituais para livrar o povo das pestes e das doenças; de Oxumaré das sete cores do arco-íris, símbolo da continuidade e da permanência. De múltiplas funções. Dizem que ele é um servidor de Xangô, que seria encarregado de levar as águas da chuva de volta para as nuvens através do arco-íris. É o orixá que se divide em duas qualidades: Oxumarê macho, representado pelo arco-íris e Oxumarê fêmea, chamado de Frekuem, representado pela Serpente. Ele é o senhor de tudo que é alongado. O cordão umbilical está sob o seu controle. Com seus ensinamentos, Antônio se tornou um habilidoso parteiro; de Ossain, que comanda as folhas medicinais e litúrgicas, chamadas de folhas sagradas. Cada orixá tem a sua folha, mas só Ossaim detém seus segredos. E sem as folhas e seus segredos não há axé e nenhuma cerimônia do Candomblé é possível de ser realizada. Ossaim ensinou Antônio os segredos das folhas e ele passou a saber os efeitos de muitas plantas da Mata Atlântica e da Mata de Cipó, da Caatinga e do Cerrado; de Oyá ou Iansã, deusa dos ventos, relâmpagos e tempestades. A partir daquele momento Antônio passou a saudá-la antes das tempestades pedindo a ela que apazigue o tempo e onde ele estava, quando vinha uma forte ventania, sua saudação fazia com que passasse o temporal; de Oxum, orixá das águas doces dos rios e cachoeiras, da riqueza, do amor, da prosperidade e da beleza. Com Oxum Antonio passseiou e se banhou nos riachos, córregos, rios e cachoeiras existentes na imensa mata. Através dela aprendeu ajudar aos que buscavam auxílio para a solução de problemas no amor e nas finanças; de Yemanjá, dona de todos os oceanos, que levou Antônio para o fundo do mar e lá lhe ensinou a levar os problemas dos que o procuravam para as profundezas das águas salgadas e a trazer de volta sobre as ondas do verde azul do mar a esperança; de Nanã Burokô, a Orixá mais antiga do mundo, aquela que se encontra no centro da terra. Nanã tornou-se uma das Iyabás mais temidas, tanto que em algumas tribos da extensa África quando seu nome era pronunciado todos se jogavam ao chão. Protetora dos idosos, desabrigados, doentes e deficientes visuais. Por recebê-la em transe, o nome de Antônio passou definitivamente a ser associado ao dela: Antônio Burokô; de Obá, que representa as águas revoltas dos rios, as pororocas, as águas fortes; as quedas d´água são considerados domínios de Obá, por isso ela levou Antônio a muitas delas e como é uma deusa guerreira e justiceira, que pune os homens que maltratam as mulheres, ensinou ao iniciado combater aqueles que desrespeitam e violentam suas protegidas; dos Ìbejìs, que são orixás gêmeos. Por serem crianças, são ligados a tudo que se inicia e brota: a nascente de um rio, o nascimento dos seres humanos, o germinar das plantas. Por conta de serem babaços, são associados ao princípio da dualidade e mostraram para a Antônio que todas as coisas, em todas as circunstâncias, têm dois lados e ensinaram que a justiça só pode ser feita se as duas medidas forem pesadas, se os dois lados forem ouvidos; de Iroko que no Brasil habita a gameleira branca e foi nesta árvore que Antonio dormiu muitas noites durante os seis meses que permaceu no mato. Iroko lhe ensinou que as árvores têm alma e que devem ser defendidas dos devastadores; de Omolu com suas mãos de bexiga, responsável pela passagem dos espíritos do plano material para o espiritual e também por muitos problemas de saúde. Mas assim como Omolu pode trazer a doença, ele também a leva e ensinou a Antônio desterrar muitas enfermidades; de Onilé, a Terra-Mãe, Orixá que representa a base de toda a vida. Onilé ensinou a Antônio que tudo vem da terra a ela retorna; de Oxalá com seus cajados de prata, o maior e mais respeitado de todos os orixás, que está associado à criação do mundo e da espécie humana. A Oxalá pertencem os olhos que vêem tudo e ele permitiu que Antônio passasse a enxergar coisas do passado, do presente e do futuro.

Roque, um caçador que estava no mato com sua espigarda e seu cachorro, viu aquele homem nu de barbas e cabelos longos. Mesmo com aparência diferenciada, o caçador reconheceu que aquele era Antônio, filho de Joaquina (conhecida popularmente com D. Jerô), que havia enloquecido e desaparecido na extensa mata de Cachoeira.

– Antônio. É você que está aí? Não vou lhe fazer nenhum mal.

– Sou eu mesmo, Roque.

– Que bom lhe encontrar. Você não sabe com D. Jerô está desassossegada com seu sumiço. E o que aconteceu com você? Já faz um tempão que você tá sumido.

– Não sei o que aconteceu. Só que cheguei aqui para ser preparado para uma missão na vida.

– Neste tempo como você viveu por aqui?

– Comeno fruta, caçano, pescano.

Como já havia completado o tempo de sua preparação, Antônio seguiu com Roque.

O caçador bateu na porta e gritou ao mesmo tempo na casa de D. Jerô:

– Oh de casa.

– Já vai – respondeu a moradora, que chegou na sala e reconhecendo Roque através da janela que estava aberta. Logo abriu a porta.

– Bom dia, D. Jerô.

– Bom dia, seu Roque. Chega à frente

– A demora é pouca. A senhora não sabe quem encontrei no mato hoje.

– Quem?, home de Deus. Fala logo.

– Seu filho, Antônio.

– Minha Nossa Senhora do Rosário! E como que ele tá?

– Ele tá bem. Só preciso que a senhora me dê uma roupa dele pra que eu leve ali no mato donde ele tá escondido, pra modi ele vestir.

– É agora mermo. Espere aí que eu vou pegar.

Quando Antônio chegou em casa, D. Jerô não sabia se ria de felicidade ou chorava de emoção ao abraçar o filho que havia sumido há seis meses.