Código da Vida



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Resolvi chamar o Sr. Olavo Brás para passar a limpo a história dia sogro dele, que havia “invadido” meu escritório para forçar um acordo.

— Por que o senhor o recebeu sem hora marcada? — perguntou-me o Sr. Olavo Brás depois de me ouvir.

— Porque ele veio acompanhado de advogados meus amigos e eu não podia deixar de atendê-los.

— Que tipo de acordo propuseram?

— Não quero falar sobre isso. Esse assunto está descartado. Quero in­formações sobre a vida de seu sogro.

— Ex-sogro — corrigiu rapidamente.

— Está bem. Ex-sogro. Como o conheceu? O que ele fazia e o que faz. O senhor deve ter feito a ele o tradicional pedido para se casar com a filha. Conte-me tudo, senhor Olavo. Por favor, não esconda nada de seu advogado.

Olavo Brás ficou alguns instantes em silêncio, creio que perturbado pela advertência. Mas respondeu aos poucos:

— Praticamente, não conheci o pai de minha mulher.

— Ex-mulher — devolvi apenas para desanuviar.

— Quando a conheci e começamos a namorar, ela morava com uma amiga de muitos anos, se não me engano chamava-se Clarissa. Parece que foram colegas de escola e de ginásio. Falou-me ligeiramente do pai. Disse que trabalhava em hotelaria. Era dono de pequenos hotéis. Mas não manifestou vontade em me apresentá-lo.

— Estranho. Ficou sabendo a causa?

— Nunca — respondeu ele firme e de imediato. — Quando marcamos o casamento, ele compareceu à casa da amiga e falou comigo rapidamente. Depois se fez presente à cerimônia do nosso matrimônio. Ficou apartado das pessoas. A família da minha mulher, ex-mulher, na verdade era suprida pela família da amiga dela.

Notei que o Sr. Olavo Brás alterou a expressão do rosto como se fizesse uma pergunta a si mesmo. Creio que naquele momento passou-lhe pela mente a hipótese de ter falhado em sua vida por não haver investigado quem era o pai de sua então mulher. Passado aquele instante de um tipo de auto-censura, continuou:

— Meus filhos nasceram, ele mandou presentes. Não vinha para os ani­versários, Natal, fim de ano. Apenas telefonava e enviava presentes caros para a filha e para os netos.

— O senhor não achou isso muito estranho?

— Achei, mas minha ex-mulher cortava qualquer conversa que envol­vesse seu pai ou seu passado, sua infância. Contava apenas sua vida na escola e no ginásio com a amiga com quem foi morar, dando a entender que não su­portava viver com o pai em hotéis.

— Se ele se manteve tão distante da filha todo esse tempo por que teria interesse em acabar com o litígio que ela mesma propôs contra o senhor?

— Não sei, meu doutor. Não sei. Apenas suponho que, pelo temor que tem da filha, e isso é certo, poderia sobrar para ele a obrigação de cuidar dela se ela ficasse sozinha. Ele sabe que tem uma filha louca. Mas o problema seria insolúvel, porque ela não quer saber dele.

Verifiquei que o Sr. Olavo Brás praticamente desconhecia o seu ex-sogro. Casou-se sem conhecer uma parte importante da vida da mulher que se transformou em mãe de seus filhos. Não chega a ser uma roleta russa, mas é um jogo muito perigoso. Talvez tudo aquilo que ele estava sofrendo agora, com a loucura da mulher, tivesse origem naquela parte da vida dela que ficou sob uma penumbra impenetrável. Mas se a própria psiquiatra não conseguiu decifrar, não seria o advogado que se encarregaria disso ultrapassando sua obrigação de defender o cliente no problema para o qual foi chamado a trabalhar.

Parei de pensar nisso. A audiência seria marcada para depois das férias de julho. Ótimo. Fui para a Europa.



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Naquele mês de julho, logo no início da confusão no Governo Collor, quando começaram a pipocar os escândalos com Paulo César Farias, seu te­soureiro de campanha eleitoral e, durante o governo, corretor de negócios, aconteceu-me algo incrível. Mas realmente incrível. Fantasticamente incrível.

Já havia despachado minha bagagem e estava no saguão do aeroporto conversando com as pessoas que foram ao bota-fora. Eunice, Márcia e eu íamos para Paris. Verão na Europa. Sempre acreditei na minha matemática: o ano tem dois verões, um no hemisfério norte, outro no sul. Se aproveitar am­bos, em dez anos terei vivido vinte verões, o que me dará a sensação de uma vida mais longa.

Súbito, o alto-falante do aeroporto irrompeu:

— Atenção! Atenção! Dr. Saulo Ramos, queira se apresentar à adminis­tração do aeroporto. Telefonema urgente para o senhor. Vamos repetir...

Susto. A gente sempre pensa no pior. Alguém doente, desastre, sei lá. Primeiro, demorei para achar o local. Encontrei. Atendi o telefone. Do outro lado da linha, estava um alto membro do Governo Fernando Collor, meu co­nhecido e com suficiente liberdade para falar o que quisesse.

— Desculpe, meu caro, interceptá-lo no aeroporto. Você vai para Paris?

— Vou. Todo mês de julho, quando posso, e quase sempre acho um jei­to de poder, vou aproveitar o verão europeu.

— Saulo, estou cumprindo missão delicada. O Presidente Collor man­dou consultá-lo sobre como você receberia um convite dele para ser Ministro da Justiça?

— Eu? Agradeça, mas de forma alguma!

— Por quê?

— Fui ministro do Governo Sarney. Collor elegeu-se acusando Sarney de corrupção. Seria uma complicação emocional para mim. Ademais, não sou político. Com Sarney, aceitei por insistência da Marly e porque o país ia ter uma Constituinte. Naquelas condições, entendi que podia colaborar. Ago­ra, não tenho qualquer motivo.

— O Presidente entende que o Ministério da Justiça não deve ser en­tregue a político algum. Ele precisa no posto de um advogado com sua experiência.

Comecei a entender. As coisas para Fernando Collor estavam ficando feias. Os negócios de Paulo César Farias já estavam sendo objeto de investiga­ção pela Câmara dos Deputados. Barulho na imprensa. Denúncia do próprio irmão. Tudo muito complicado.

— Estou entendendo — disse eu ao meu ilustre interlocutor. — O Presidente está precisando de um advogado, e não de um ministro.

— É isso mesmo. Mas no Ministério da Justiça, de onde um bom advo­gado poderá ajudá-lo com mais desenvoltura. E para isso temos que discutir honorários.

— O quê?

— É isso, meu caro. Honorários! Estou autorizado a lhe oferecer até cinco milhões de dólares, se você aceitar o convite.

Quase caí de costas. Cinco milhões de dólares? Como contrato de hono­rários, seria um recorde na minha carreira. Mas, para ser Ministro de Estado, creio, salvo grave engano, era algo inédito na história do Brasil. Segundo nossos costumes políticos, algumas vezes se soube que algumas figuras pa­garam para ser ministros. Em outras, há sempre o empurra-empurra nos partidos políticos, disputando pastas. O Presidente da República, quando constitui ou reforma o ministério, tem dificuldades para escolher, diante de tantos candidatos.

Agora Collor, por intermédio de um conhecido comum, estava me ofe­recendo “honorários” para assumir o Ministério da Justiça. Fato inédito no Brasil, desde o Império. Imediatamente cheguei à conclusão de que as coisas para ele deviam estar mais complicadas do que o retratado pela imprensa. E respondi:

— Nem pelo dobro!

— Você vai ficar onde em Paris?

— No hotel Prince de Galles. Mas não perca seu tempo! Não há a menor hipótese de você me convencer.

— Você falou em dobro. Para tanto, não tenho permissão. Preciso con­sultar o homem.

— Não faça isso! A expressão “nem pelo dobro” é forma de recusar a oferta.

— Você se dá com o nosso embaixador em Paris, Carlos Alberto Leite Barbosa?

— Muito. É meu amigo desde o tempo do Jânio. Pretendo visitá-lo.

— Por intermédio dele eu encontro você. Voltaremos a nos falar. Boa viagem!

Desliguei o telefone e fiquei longos segundos pensando no que acabara de ouvir. Era simplesmente incrível. Voltei ao saguão, expliquei aos meus amigos que não se tratava de nada grave e embarquei.

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Em Paris, hospedado na Embaixada do Brasil, estava José Sarney, amigo de muitos anos do Embaixador Carlos Alberto Leite Barbosa, que ele no­meara para a chefia de nossa representação diplomática na França. Antes, convocara-o para servir no IBC — Instituto Brasileiro do Café —, com a mis­são especial de extinguir a autarquia. Sarney teve que baixar uns três ou qua­tro atos para acabar com o IBC, que teimava em ser uma fênix enlouquecida.

As visitas eram diárias à residência do embaixador. Obrigatórias. Numa delas, hora do jantar, telefonou o meu amigo do Brasil, “representante” do Presidente Collor, para prosseguir nas “negociações”.

Quando o mordomo da embaixada anunciou que aquele senhor queria falar comigo, Sarney e Carlos Alberto se entreolharam com imensa curiosi­dade. Sabiam da intimidade dele com o Presidente da República.

— Fui autorizado a oferecer o dobro que você pediu — disse ele, como se eu houvesse fixado a quantia.

Aproveitei, porém, para fazer uma gozação com os meus dois amigos, que disfarçavam, mas estavam de ouvidos longos na minha conversa telefônica.

— Dez milhões de dólares?! — disse eu em voz alta, acentuando cada uma das sílabas.

Naquela época, não se temiam os hoje famosos “grampos” nas comuni­cações telefônicas. Falava-se livremente. Mesmo no processo contra Collor, em todas as fases, não houve qualquer gravação de conversas pelo telefone.

Para completar o plano que me surgiu em mente, pedi ao meu interlo­cutor o prazo de uma semana. Concordou. Ele deve ter pensado que todo mundo tem seu preço. Podia pensar o que quisesse. Eu queria me divertir. Com Sarney e Carlos Alberto, o assunto era um prato cheio.

Voltei ao uísque com os meus amigos. Sarney e Carlos Alberto eram in­terrogação em todas as expressões, olhares, gestos, desajeitamento nas pol­tronas. Retomei a conversa interrompida, pedindo a Sarney que continuasse contando os casos do avô dele no Maranhão.

— Você estava falando do seu avô, quando ele escondeu, na casa dele, um amigo que havia matado um político em São Luís, e você era governador. E daí, o que aconteceu?

— Aconteceu que a polícia veio pedir para eu obrigar o vovô a entregar o homem. O delegado tinha certeza de que ele estava escondido lá.

— Você não quer contar, não conte. Pode desprezar a confiança de seus amigos! — disse o Carlos Alberto, dirigindo-se a mim, bem no seu modo de ironizar.

— Deixa o Sarney concluir a história do avô dele! — respondi. — Não seja mal-educado! Não pega bem para um embaixador.

Sarney continuou:

— Fui lá, e ele me prometeu que entregaria o amigo na manhã seguinte, logo cedo. Mas que a polícia ficasse longe de sua casa. Aquele cerco era uma humilhação. No dia seguinte, a polícia voltou, e o velho, com cara de maroto, mas com voz firme, dirigiu-se ao delegado:

— Você não pensou na minha honra, seu doutor? Um homem honrado jamais entrega um amigo que lhe pede proteção. Uma hora dessas, ele já se alongou no sertão do Ceará, pois o deixei partir no átimo em que vocês saí­ram ontem.

Carlos Alberto voltou-se para mim mais uma vez:

— Acabou a história. E o telefonema do Brasil? Vai ou não vai contar?

Sarney havia resumido a história do avô propositalmente. Queria saber do telefonema e tinha certeza de que Carlos Alberto voltaria com a cobrança.

Contei tudo e disse que estava sofrendo uma angústia insuportável. Aquela quantia de dinheiro asseguraria minha independência pelo resto da vida. E não estava condicionada ao êxito. Seria paga agora, no ato da aceita­ção do convite para ser ministro. Dirigi-me a Sarney e disse:

— Reluto em aceitar por sua causa. Collor se elegeu atacando sua hon­ra. Embora, no fundo, minha consciência de advogado me permita aceitar a oferta como qualquer causa de advocacia, tenho um pouco dos sentimentos do seu avô: seria trair um amigo.

— Espera aí! — exclamou Carlos Alberto. — Qualquer causa de advo­cacia?! Não senhor! Na sua vida toda de advogado, você não vai ganhar dez milhões de dólares assim limpinhos, de uma vez só. Pode trabalhar mais trin­ta anos, e nunca vai ter uma oferta dessas!

Sarney quieto.

Carlos Alberto insistia. Mandou os garçons se afastarem. Um deles veio com uns biscoitinhos de queijo. Sugeriu que deixasse o prato na mesa e pediu que todos se retirassem, depois de uma nova dose de uísque. Sarney, naquele tempo, ainda bebia uísque. Depois, em razão de uma promessa, parou. So­mente vinho, o que combinava bem com Paris.

— Que dúvida, que angústia, que nada! — martelava Carlos Alberto. — Sarney, libere o Saulo! Estou sentindo que ele precisa de seu consentimento de amigo para aceitar a causa da vida dele. Importa pouco se será como Ministro da Justiça ou como advogado. O que importa é o tamanho dos honorários.

Sarney tomou um gole, comeu um biscoitinho de queijo e entrou no debate:

— O Saulo não precisa disso. Embora com menores rendimentos, sua advocacia é respeitável. Vai bem. Tem autoridade moral e profissional. Se acei­tar a oferta de Collor, estará degradando sua carreira. Vai vender sua alma.

— Que vender a alma coisa alguma! — interrompeu o embaixador. — Vai prestar serviço profissional como a qualquer cliente! E, no caso, a um cliente que paga muito mais do que os outros!

— Não é bem assim, Carlos Alberto — ponderou Sarney. — O advo­gado pode aceitar qualquer causa que, segundo sua consciência, seja compa­tível com o exercício profissional no seu ministério privado. Na proposta de Collor, porém, ele será nomeado Ministro da Justiça e exercerá cargo público em benefício da Nação. Esse múnus público não se presta para a defesa de um réu ameaçado por um processo de impeachment.

— Espera aí! — contestou Carlos Alberto. — Ministro de Estado é auxiliar do Presidente da República. Não está assim na Constituição? — per­guntou para mim.

— Está. Art. 76.97

— Ora, no caso, o Presidente da República está ameaçado por um pro­cesso de impeachment. Nada mais justo que os ministros o defendam!

— Mediante paga? — perguntou Sarney.

Carlos Alberto hesitou. Ele, em sua vida inteira, foi exigente com os va­lores morais, que cultiva com grande convicção. Naquele momento, Sarney conseguiu balançá-lo. O pagamento de honorários, ainda que ninguém ficas­se sabendo, ao menos até a próxima declaração do imposto de renda, poderia configurar algo contra a ética profissional. Envolveria a função pública, cir­cunstância previamente contratada. Mas ele não se conformava:

— A interpretação é por demais rigorosa. Vamos separar uma coisa da outra. O Saulo recebe os honorários agora, como advogado. Uma espécie de indenização pelo que vai deixar de ganhar, enquanto estiver no Governo. Aliás, no seu Governo — disse ele, voltando-se para Sarney —, na Consultoria Geral da República, ele distribuía seus vencimentos entre os funcionários mais pobres, contínuos, porteiros, motoristas. Não ganhou um tostão da República. Agora é diferente. Quem vai lhe pagar é o Collor. Não são os cofres públicos.

Sarney levantou uma questão curiosa para o Direito Penal. Seria cor­rupção o pagamento pelo próprio Presidente da República a um advogado que viesse a ser seu Ministro da Justiça? O artigo 317 do Código Penal consi­dera crime receber vantagem indevida antes mesmo que o funcionário assu­ma a função pública, mas a receba em razão dela.98

Configuraria, porém, vantagem indevida, em razão da função, se o ad­vogado aceitasse ser Ministro de Estado para exercer sua experiência profis­sional na defesa do Presidente da República, não praticando, portanto, ato de ofício próprio dessa função?



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Embora ambos não soubessem, tudo não passava de uma brincadeira minha, que acabou suscitando uma questão jurídica no mínimo digna de re­flexão. Provoquei a discussão para divertir-me com a passionalidade deles. Estava eu determinado: não aceitaria o convite. Mas eles continuaram no quebra-pau.

Curiosamente, o debate acabou suscitando essa questão de Direito. Se­ria ou não crime contra a Administração Pública aceitar pagamento, pelo Presidente da República, de honorários para exercer o cargo de Ministro da Justiça?

Creio que o ato não estaria tipificado naquele artigo do Código Penal. Impeachment começa na Câmara dos Deputados, que permite ou não a li­cença para o Presidente da República ser processado. Se a Câmara conceder a licença, o processo é instaurado no Senado Federal. Em nenhuma dessas fases, o Ministro da Justiça pode interferir para, com ato de função própria do car­go, beneficiar o acusado. O advogado, sim, pode redigir documentos de defe­sa, examinar a acusação, contestá-la. Nenhuma dessas tarefas seria ato do Mi­nistro da Justiça.

Mas, no meu caso, particularíssimo, por haver sido ministro de Sarney, seria uma grande falta de ética aceitar a proposta e trabalhar na defesa de Collor. Além do mais, receber honorários para ser Ministro da Justiça era uma situação incômoda perante a própria consciência. Situação inédita e única na história do Brasil.

Mas fingi continuar na dúvida.

A discussão entre os dois prosseguiu por uns três dias. Até mesmo na rua. Uma tarde, fomos passear nas vielas do antigo Quartier Latin, e os dois, em altas vozes, discutiam para quem quisesse ouvir. Rezei para que brasileiro algum passasse por ali naquele momento. Carlos Alberto teimava:

— Não é crime! O que o Ministro da Justiça vai fazer no Congresso, caso haja um processo de impeachment? Somente injunções políticas. Se isso fosse crime, o Brasil inteiro estaria preso. Todo o mundo vai ao Congresso Nacional para fazer política, sobretudo os próprios políticos.

— Você não me convence — insistia, do outro lado, Sarney. — O Saulo fará o que bem entender. Mas eu não vou nem pedir para ele aceitar, nem liberar sua dor de consciência, se receber dinheiro do Collor. Dinheiro mal­dito! Qual é a origem desses recursos? Um jornalzinho de Maceió?

— Como você sabe disso? Há um diz-que-diz, um zunzum, mas ne­nhuma prova de desonestidade do Presidente. E exijo mais respeito por ele. Vocês sabem que, como embaixador, eu sou o representante pessoal do Presi­dente da República no exterior. Tenho obrigação de defendê-lo.

— Então vá você ser Ministro da Justiça dele — assacou Sarney dando risada.

Era fácil entender que a discussão não teria fim. Carlos Alberto me que­ria rico. Sarney me queria limpo.

À noite, na residência do embaixador, na hora do jantar com arroz e fei­jão, da cozinha do Antônio, novo telefonema de Brasília. Desta vez, era o meu sócio Luiz Carlos Bettiol:

— O homem esteve aqui no escritório. Disse que você pediu uma se­mana para pensar. Está seguro de que você aceitará.

— Não, meu caro. É verdade que pedi uma semana, porque estou me divertindo com o Sarney e com o nosso embaixador, ambos empenhadíssimos em resolver o problema, um de um jeito e o outro do jeito contrário. Aproveite e diga você mesmo ao “homem” que decidi não aceitar. É defini­tivo. Não adianta ligar para mim.

— Assim, a seco?

— Diga mais uma coisinha. Você verá que isto encerrará o assunto. Fale que se, por um absurdo, eu aceitasse a nomeação, a primeira medida que to­maria seria mandar prender o Paulo César Farias. Você vai ver que isso assus­tará o candidato a “cliente”.

Bateu, valeu. Ninguém mais telefonou. Carlos Alberto, diante de minha resolução final e do ar de felicidade de Sarney, disse-me, repetindo uma frase que eu costumava ouvir de minha mãe:

— Pobre não tem vez. Quem nasceu para lagartixa nunca chega a jacaré.

Na verdade, Carlos Alberto queria infernizar o Sarney. Era um emérito gozador. No final, aplaudiu minha recusa.

Nem ele nem eu poderíamos prever que, tempos depois, eu estaria advogando para o Congresso Nacional contra Fernando Collor, perante o Supremo Tribunal Federal. Sem nada cobrar do nosso Parlamento.

Se o Senado da República confiou em mim para defender sua decisão de inabilitar o ex-presidente para o exercício de função pública durante oito anos (caso que narrei antes neste livro), concluo que, pelo menos na advoca­cia, eu não era lagartixa. Devia ser um jacaré, mesmo porque ganhei a causa.

A grande ironia disso tudo é que advoguei em favor do Senado, de sua decisão em afastar das funções públicas um político comprovadamente sem qualidades. Passado o tempo, Fernando Collor foi eleito senador por Alagoas. É um novo membro do Senado. Na vaga de Heloísa Helena. Que falta de gosto do destino! Carlos Alberto Leite Barbosa aposentou-se e escreveu um livro bom sobre a política externa de Jânio Quadros, Desafio inacabado.99

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Jamais eu seria policial. Posso analisar, nos mínimos detalhes, a prova dos processos, os laudos dos peritos, as contradições de testemunhas. Sou ca­paz de realizar a valoração jurídica de cada evidência material recolhida. Se entrasse, porém, numa sala, ou em um quarto, ou em outro lugar qualquer, onde tivesse sido cometido um assassinato, enxergaria apenas o cadáver. Não me lembraria de olhar o cinzeiro, o sabonete na banheira, algum alfinete no chão, um fio de cabelo na poltrona, a mancha no tapete. Não me lembraria de abrir gavetas, de verificar em qual página estaria aberto o jornal do dia. Se­ria um fracasso como investigador.

Advogados fazem isso somente em filmes. Os que são capazes de exer­cer com perfeição e entusiasmo esse lado minudente de detetive prestam concurso para delegado de Polícia. Nerval era craque nessas coisas.

— Chefe, avise em casa. Hoje à noite, vamos sair, e você vai participar da campana que estamos fazendo em torno de um trampo que a ex-mulher do Sr. Olavo Brás está armando contra ele.

— Trampo? Que trampo?

— Você vai ver com os próprios olhos. Saímos em torno das oito horas. Vai haver tempo para a gente tomar um aperitivo e comer qualquer coisa no Paddock.

Saiu da sala e me deixou no ar. Participar de campana era a última coisa que eu ambicionava na vida. Mas Nerval gostava de me enrolar nesse tipo de surpresa.

Uma vez, ele recebeu do Professor Vicente Ráo a incumbência de defen­der um rapaz, que era filho de um amigo de um amigo não sei de quem. Ha­via assassinado uma pessoa.

Nerval contou.

Em sua sala, entrou um casal mais ou menos idoso, acompanhado de um filho de cerca de trinta anos, miudinho, de óculos com lentes grossas, en­colhido, tímido. O velho estendeu um jornal, e Nerval leu:

“Assassinado com um tiro nas costas. Polícia procura suspeito.”

A notícia informava que o corpo de um cidadão fora encontrado morto em um terreno baldio, com um tiro nas costas e com o pênis para fora da calça. A foto mostrava o cadáver de bruços, ou em “decúbito ventral”.

— O que os senhores têm a ver com isso? — perguntou Nerval aos visitantes.

— Fui eu! — disse o jovem. — Fui eu que matei.

— A polícia já sabe que foi o senhor?

— Ainda não. Mas vão ficar sabendo logo, porque eu estava com ele num bar, e saímos juntos de lá.

O homem contou a história. Costumava freqüentar um bar na Penha, e, um dia, aquele senhor, a vítima, apareceu por lá, bebeu muito e meteu-se numa briga com alguns fregueses. O rapaz franzino tentou apartar e levou uma senhora surra do camarada. Chegou a polícia. Todos foram autuados, mas processado foi apenas o valentão por tumulto em lugar público, por agressão e lesões corporais graves, além dos danos materiais causados ao bar.

Estava na véspera da audiência do processo penal. O homem voltou ao local do crime várias vezes, perguntando se sua vítima estava por ali. So­mente o encontrou naquele dia, mas ele já havia sido avisado pelo dono do bar que o valentão estava à sua procura. Comprou um revólver.

O valentão chegou à sua mesa e disse:

— Precisamos conversar. Não se assuste. A conversa é amigável. Vamos lá fora.

Saíram. E, andando pela calçada, o valentão avisou:

— Vai haver audiência daquele caso da briga. Você já foi intimado para depor?

— Já.

— É isto que quero prevenir. Você tem que depor a meu favor.



— Como?

— Dizendo que não fui eu que bati em você. Que houve muita confu­são e que você levou socos de todos os lados, sem saber quem foi que bateu. Meu advogado disse que, assim, ele pode configurar o caso como rixa, e eu posso me livrar da pena de lesão corporal grave.

A essa altura, estavam diante de um terreno baldio. O valentão avisou que ia urinar. Mas, antes, advertiu:

— Se você não depuser a meu favor, aí, sim, você vai ver o que é apanhar.

O terreno baldio tinha um muro no fundo. Não sei por que as pessoas têm mania de urinar no muro, quando todo o terreno serve para a solução. Quando o homem urinava, o franzino arrancou do revólver e desferiu-lhe um tiro nas costas. Sem mais, nem menos. O camarada caiu morto na hora. Não havia testemunha. Tudo ocorreu naquelas ruas da Penha, mal ilumina­das, sem ninguém por perto.

Nerval pensou. Caso difícil. Homicídio premeditado (havia comprado o revólver para isso), tiro pelas costas, à traição, sem chance para a vítima defender-se. Crime qualificado. Não tinha outro jeito. Anotou todos os da­dos possíveis e mandou o casal ir embora e aguardar seu chamado. Deu ins­truções para o rapaz esconder-se em algum lugar seguro, enquanto estudava o caso.

Levantou a vida pregressa da vítima. Havia contra ela um processo de estupro e aquele outro por agressão no bar da Penha. Freqüentava vários clubes de várzea, inclusive uma escola de capoeira.

Chamou o franzino. E deu as instruções.

— Sua história é a seguinte. O homem convidou você para ir ao terreno baldio e ali advertiu que você devia depor a favor dele na audiência do pro­cesso penal por agressão. Do contrário lhe daria outras surras. Você concor­dou. Depois o camarada, meio bêbedo, tirou o pênis para fora e mandou você chupar. Aí você se recusou. Então ele começou a agredi-lo, tentando passar-lhe rasteiras, o velho rabo-de-arraia. Você se apavorou, atirou e saiu correndo. Nem sequer viu onde o tiro pegou, ou se havia acertado. Saiu correndo.

Nerval montou a história que explicava o tiro pelas costas, pois, quando desfere o golpe com a perna, o capoeirista expõe o dorso na curva do corpo. Para o pênis de fora, usou os antecedentes criminais da tara sexual; e a amea­ça ao franzino, pois o depoimento na ação penal, de fato, ia ocorrer em dias próximos ao acontecimento.

E fez uma advertência final, séria e solene para o seu “cliente”:

— Você se apresente à polícia e conte exatamente essa história. O dele­gado vai perguntar se você tem advogado. Diga que não. O sucesso de sua versão depende exatamente deste detalhe: você não tem advogado!

A polícia, no inquérito, levantou a ficha da vítima, colocou tudo no re­latório, o comparecimento espontâneo do réu, sua versão, o caso de estupro, lutador de capoeira. Tudo. Réu sem defensor. O Ministério Público ofereceu denúncia, mas foi fiel à conclusão do inquérito, o réu teve um advogado dativo, e o juiz o absolveu com base no art. 411 do Código de Processo Penal, isto é, desde logo, porque convencido de circunstância que excluía o crime.


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