Corpo e comunicaçÃO



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Quando exposto, esse lado da moda coloca em evidência o aspecto lúdico do pós-moderno. Não há nada mais propício a essa face irreverente da moda do que a vestimenta, na sua capacidade de evidenciar que, longe de serem individuais, os corpos são socializados pelas roupas que vestem. O trabalho com esse e outros aspectos também reveladores da vestimenta, como, por


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exemplo, a face experimental da moda que, quanto mais prescinde do corpo, mais vale por si mesma, foi o que a exposição sob curadoria de Solange Silva expôs com humor e lucidez.

Os experimentos seguiram quatro núcleos temáticos. O primeiro, “o tempo não linear da moda”, nas suas alusões ao passado, colocou à mostra que a geometria da moda não caminha em linhas retas, promovendo o eterno retorno da diferença do mesmo. No segundo, “as vestes rituais: o sagrado e o profano”, apareceram as figuras que se fazem reconhecer pelo legi-signo da veste repetida, ritualizada: a vestimenta religiosa, a vestimenta da enfermeira, do trabalhador braçal etc. Essas vestimentas fortemente codificadas são, antes de tudo, formas de negociação social, por trás das quais o corpo se apaga. No terceiro, “reciclagem: o contemporâneo na moda”, a moda lançou mão da auto- ironia, com vestimentas feitas de papel jornal, por exemplo, na sua celebração do precário. Por fim, no quarto núcleo, “acessórios”, a linguagem do vestuário, como um conjunto de signos e normas ou códigos coletivamente regulados para a sua utilização, foi largamente ilustrada através de uma amostra de acessórios de diferentes décadas, com a carga de significações que a eles se associam.

Enfim, a exposição primou pela demonstração de que a moda não é apenas a filha dileta do capitalismo, mas também ironia e riso com força suficiente para escancarar a miríade de paradoxos que pululam sob os corpos voláteis na moda.
PARTE 9: O CORPO NAS MÍDIAS
Conforme foi discutido no capítulo 1, filósofos, teóricos do social, do universo psíquico e do contemporâneo têm sido unânimes no diagnóstico de que a “idéia do eu” entrou em uma crise que não dá mostras de ser temporária. As noções de indivíduo, sujeito e subjetividade a que essa idéia sempre esteve ligada foram sendo varridas por mudanças culturais que já tiveram início na segunda metade do século XIX. Desde Nietzsche, Freud, Bakhtin, Foucault, Lacan e Derrida, vêm sendo colocadas ‘em relevo a instabilidade e a dinâmica complexa, bioideológica pela qual o sujeito é marcado: múltiplo, estigmatizado pela falta, descentrado, uma verdadeira estrutura dissipativa em que ordem e desperdício se conjugam” (Villaça 1999: 102).
*NOVAS IMAGENS DA SUBJETIVIDADE*
Nessa medida, no lugar do eu, proliferam agora novas imagens de subjetividade. Como complexa e incerta, por exemplo, surge a imagem delineada por Morin (1996), quando este enfatiza que a incerteza existencial é a marca do propriamente humano, do que decorre a necessidade de fundar o pensamento na ausência de fundamento e de reinventar o sujeito a partir da lógica do ser vivo: biológica (ver Villaça 1999: 104-105).
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Outra imagem da subjetividade é aquela que a revela como multiplamente construída. Buscando romper com o essencialismo naturalista ou o naturalismo social, ambos justificados na dicotomia natureza/sociedade, essa imagem encontra-se, segundo Domènech et al. (2001: 126), na teoria do Ator-Rede, nascida no interior dos estudos da ciência, a partir das formulações de Michel Serres. Para esses autores, apesar de constituir uma teorização extremamente complexa, esse caminho redefine o que significa reflexão social. Em lugar de continuar ampliando a fratura entre o humano e o não-humano, o social e o natural, a teoria do Ator-Rede recupera o papel do tecnológico, dos objetos, do natural, nas explicações sobre questões que se vêm formulando como alheias a essa classe de elementos: as relações de poder, as dinâmicas institucionais ou a constituição de subjetividades, que aparecem sob uma nova luz, quando deixamos de considerá-los como processos que têm a ver, única e exclusivamente com humanos.

Ainda outra imagem da subjetividade aparece sob as lentes semióticas de Bakhtin e Peirce, ambos acentuando o caráter dia- lógico e inalienavelmente social da linguagem, fora da qual não há sujeito. Este é signo entre signos, tradutor incessante de signos e quase-signos que dão corpo ao pensamento e que fazem a mediação para os objetos que apresentam, referenciam, aos quais se aplicam e simbolizam. Assim, o sujeito, mesmo na sua forma mais íntima, é um processo de semiose, isto é, de ação de signos (ver Colapietro 1989).

Imagem fascinante é a da subjetividade polifônica de Guattari (1992: 162), para o qual a subjetividade coletiva é engendrada “por componentes semióticos irredutíveis a uma tradução em termos de significantes estruturais e sistêmicos”. Dessa perspectiva, não se pode mais “falar do sujeito em geral e de uma enunciação perfeitamente individuada, mas de componentes parciais e heterogêneos de subjetividade e de agenciamentos coletivos de enunciação que implicam multiplicidades humanas, mas também devires animais, vegetais, maquínicos, incorporais, infrapessoais”.
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Bastante difundida é a imagem de subjetividade deleuziana, que, como já discutimos no capítulo 1, apóia-se na complexa topologia da dobra que nos permite seguir labirintos, percorrer diversas camadas, entretecendo junto coisas diferentes, estabelecendo o continuum através de transições insensíveis, numa transversalidade entre planos (Viliaça 1999: 109).

Enfim, as imagens da subjetividade são hoje multiformes, heteróclitas, descentradas, instáveis, subversivas. Paradoxalmente, entretanto, no momento mesmo em que essas imagens levam à derrocada a idéia unificada do eu, as práticas regulatórias das instituições sociais continuam a governar os indivíduos de uma maneira que está, mais do que nunca, ligada às antigas características que o definem como um “eu”. Enquanto, de um lado, os discursos filosóficos e sociais expõem, com todos os tipos de argumentos, as contradições e inadequações das definições estáveis e acabadas do eu, de outro lado, as mídias em geral trabalham freneticamente pela preservação da “idéia do eu” que dá fundamento às práticas regulatórias institucionais. À dispersão conceitual do “eu”, nas ciências do homem, contrapõe-se hoje uma ferrenha intensificação de sua identidade inquestionável nas mídias.

Enquanto os estudos sobre a subjetividade esforçam-se por denunciar os vultos fantasmagóricos que se escondem por trás dos axiomas das crenças, as mídias fazem pesar a balança para o lado das ilusões. Quem ganha a batalha no coração dos incautos? Certamente, as mídias, pois as imagens, que elas incessantemente passam, dão robustez ao imaginário que alimenta as miragens do ego. Para se dar conta disso, basta atentar para a popularidade das problemáticas psi nas mídias, para as demandas por toda espécie de terapia e pela enorme quantidade de todo tipo de conselheiros. Não parece haver outro caminho para a grande maioria dos seres humanos senão se reconhecer, se relacionar consigo mesmos e com suas vidas de acordo com os discursos, as imagens das mídias e os pressupostos em que se sustentam. Ora, nas mídias, aquilo que dá suporte às ilusões do eu são, sobretudo, as imagens do corpo, o corpo reificado, fetichizado, modelizado como ideal a
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ser atingido em consonância com o cumprimento da promessa de uma felicidade sem máculas.
*O CORPO GLORIFICADO*
Ao longo do século XX, por meio das tecnologias da propaganda e do marketing, têm sido desenvolvidos aparatos psi para compreender e agir sobre as relações entre pessoas e produtos em termos de imagens do eu, de seu mundo interior, de seu estilo de vida e, sobretudo, do seu invólucro corporal.

São, de fato, as representações nas mídias e publicidade que têm o mais profundo efeito sobre as experiências do corpo. São elas que nos levam a imaginar, a diagramar, a fantasiar determinadas existências corporais, nas formas de sonhar e de desejar que propõem. “Técnicas de composição e adorno da carne (estilos de andar, vestir, gesticulação, expressão, a face e o olhar, os pêlos corporais e os adornos)” perfazem toda uma maquinação do ser. As imagens do corpo, sua boa forma surgem assim como uma espécie de economia psíquica da auto-estima e de reforço do poder pessoal. Aí não há separação, portanto, entre a configuração externa do corpo e a imagem interna do eu. “A inculcação, a emulação, a mimese, a performance, a habituação e outros rituais de autoformação escavam e moldam” o espaço interno da forma psi (Rose 2001: 185, 194).

É essa dominância do exterior sobre o interior que nos leva a compreender o poder que a glorificação e exibição do corpo humano passaram a assumir no mundo contemporâneo, poder que é efetivado por meio das mais diversas formas de estimulação e exaltação do corpo, como se essa exaltação pudesse trazer como recompensa um renascimento identitário ou a restauração de eus danificados e identidades deterioradas (Crillanovick 2003: 331). A preocupação com a beleza foi ganhando força no decorrer do século XX. Na contemporaneidade, presenciamos a tendência à supervalorização da aparência o que leva os indivíduos a uma busca frenética pela forma e volume corporais ideais (Castro 2003: 66).
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A palavra de ordem está no corpo forte, belo, jovem, veloz, preciso, perfeito, inacreditavelmente perfeito. Sob a regência dessa ordem, desenvolve-se a cultura do narcisismo que encontra no culto ao corpo sua mais bem acabada forma de expressão. O culto ao corpo é, segundo Castro (2003: 15), um “tipo de relação dos indivíduos com seus corpos que tem como preocupação básica seu modelamento a fim de aproximá-lo o mais possível do padrão de beleza estabelecido”. Essa hipervalorização da construção corporal envolve não só a prática da atividade física, jogging, aeróbicas, mas também as dietas, as cirurgias plásticas, o uso de produtos cosméticos, enfim, tudo o que responda à avidez de se aproximar do corpo ideal.

A mídia constitui-se num dos principais meios de difusão e capitalização do culto ao corpo como tendência de comportamento (Castro 2003: 31). De um lado, a mídia, de outro lado, a indústria da beleza são aspectos estruturantes da prática do culto ao corpo. A primeira, por mediar a temática, mantendo-a sempre presente na vida cotidiana, levando ao leitor as últimas novidades e descobertas tecnológicas e científicas, ditando e incorporando tendências. A imprensa escrita vem se consolidando como espaço privilegiado não só para a divulgação de informações relativas ao corpo, mas também para a inculcação de padrões de beleza e de comportamento. Para isso, a imprensa recorre ao especialista — profissional que tem espaço e sucesso garantidos em revistas femininas — para dar dicas acerca dos cuidados com o corpo no campo da sexualidade, moda, dieta, beleza e exercícios físicos (Castro 2003: 45).

O que se encontra, nas mídias, em suas colunas de aconselhamento, de editoriais, é a proposta de um ideário religioso/esportivo de mandamentos e de maratonas a serem seguidos e vencidos. As rugas, a flacidez muscular e a queda de cabelo que irremediavelmente acompanham e indiciam o envelhecimento devem ser combatidas com uma manutenção corporal enérgica, a ajuda de cosméticos e de todos os recursos da indústria de embelezamento (Villaça e Góes 1998: 13-14). No cenário público, os corpos devem
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alcançar o ideal almejado, vencendo todos os obstáculos, todas as formas de imperfeição, sobretudo, as marcas da velhice.

Em um tal cenário, o papel reservado às indústrias da beleza é o de garantir a materialidade da tendência de comportamento que — como todo traço comportamental e/ou simbólico no mundo contemporâneo — só poderá existir, se contar com um universo de objetos e produtos consumíveis (Castro 2003: 109). Em função disso, multiplicam-se as academias, os spas, os centros estéticos, as clínicas de embelezamento, os tratamentos fisioterápicos, técnicas de ginástica, no alongamento, relaxamento e outras tantas novidades que não cessam de surgir. A par disso, Vaz (1999: 163) nos informa que a indústria que mais cresceu nos últimos 30 anos foi a farmacêutica, vendendo juventude, bem-estar e beleza. Com isso, o corpo consome principalmente a si mesmo.

Em suma, “hoje a cirurgia plástica, amanhã a genética tornam ou tornarão reais todos os sonhos. E quem sonha esses sonhos? A cultura sonha, somos sonhados por ícones da cultura. Somos livremente sonhados pelas capas de revista, os cartazes, a publicidade, a moda” (Sarlo apud Villaça e Góes 1998: 131).
*O CORPO EXORBITANTE*
O corpo que exorbita é o corpo especular das imagens das mídias; o corpo que prolifera na multiplicação desmesurada de imagens fotográficas e nos desdobramentos virtuais favorecidos pelas novas tecnologias. Antes da fotografia não havia outra possibilidade de registro, documentação e representação do corpo senão por meio da pintura e da escultura. Como objetos únicos, esses meios não favoreciam a reprodução e a cópia. Foi a fotografia que trouxe consigo não apenas a possibilidade de contemplação estética do corpo em todos os seus ângulos, mas também, e sobretudo, a reprodutibilidade das imagens do corpo. É a multiplicidade de superfícies, aparências e faces do corpo que o fotográfico propicia.
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O crescente aprimoramento técnico da fotografia, desde o início do século XIX até os nossos dias, correspondeu ao aumento de sofisticação das formas de registro do corpo. Com a manipulação da imagem fotográfica hoje permitida pela computação gráfica, corpos podem ser transformados a bel prazer, defeitos apagados, corrigidos, a anos luz de distância dos tradicionais valores da fidelidade fotográfica.

Em função disso, nas imagens — em sua enorme maioria, imagens de mulheres, devido certamente ao maior rendimento erótico que delas se espera no mercado dos fetiches — os rostos e os corpos das atrizes e das modelos atingem o paroxismo da perfeição. Pares complementares dos corpos de aparência plastificada dos self-built-men, seus corpos são tão perfeitos que parecem cobertos de verniz, de uma película transparente que vitrifica o corpo, um corpo sem poros, sem exsudação, nem excreção, funcionalizado como um revestimento de celofane, exibindo a imortal juventude da simulação.

Os padrões de beleza são tão imperiosamente obedecidos que, por mais que variem as mulheres fotografadas, nas imagens, todos os corpos se parecem. O que se apresenta aí é o corpo homogeneizado como lugar de produção de signos: o mesmo olhar sob o mesmo tipo de maquiagem, os mesmos lábios enxertados como manda o ideal de sensualidade do momento, o mesmo tamanho de sorriso, as mesmas poses, a onipresença da quase nudez, a nudez sem estar nua, como se estivesse. Em lugar do corpo pulsional, assombrado pelo desejo, pululam, por todos os lados, esses corpos semi-urgidos, estruturalizados, teatralizados na falsa nudez, funcionalizados pela sedução programática e pela sexualidade operacional (Baudrillard 1996: 162).

Embora esse mercado de produção de corpos, de acordo com os preceitos imperantes da moda e do sexo, aparentemente muito se assemelhe à produção de mercadorias de luxo, há aí outras sutilezas que precisam ser evidenciadas. O que essas imagens configuram é aquilo que Baudrillard (1996: 145) chama de “fascínio auto-erótico, o da mulher-objeto que se olha e, com os


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grandes olhos abertos, volta a fechá-los sobre si mesma”. Trata-se do auge da perfeição e da perversão. É o ponto culminante de todo o sistema sexual “que deseja que a mulher nunca seja tão plenamente ela mesma, e, portanto, tão sedutora, quanto a partir do momento em que aceita primeiro agradar-se, deliciar-se, de não ter nenhum desejo nem de transcendência além dos de sua própria imagem”. A mulher é, assim, separada viva de si mesma e do seu corpo, convertido em material comutável de exposição e exibição sob o signo da beleza, da sedução e do princípio paradisíaco do prazer.
*A SEDUÇÃO NARCÍSICA DOS CORPOS*
As imagens dos corpos imaculadamente lisos e sem defeitos interpela-nos pelos quatro cantos: nas capas de revistas e seus interiores, nos outdoors, nos programas televisivos e nas publicidades que os acompanham, nas telas do cinema, enfim, são corpos que nos espreitam para saltar diante do nosso olhar em todos os lugares. É tal a força subliminar dessas imagens que, mesmo quando se tem consciência do poder que elas exercem sobre o desejo, não se está livre de sua influência inconsciente. Vem daí a busca de satisfação de seu próprio corpo que as pessoas buscam dar a si mesmas.

Fica difícil abdicar da retórica da beleza e da estética funcional que se refletem na disciplina feroz a que o corpo é submetido. Por trás dessa disciplina, entretanto, oculta-se aquilo que lhe dá a força de sua persistência: o processo mediante o qual as pessoas se submetem ao ideal narcísico e o processo por meio do qual a sociedade prescreve que se conforme com isso, não lhes deixando alternativa a não ser amar a si mesmas, investir em si mesmas de acordo com as regras que lhes são impostas pela sociedade. “Trata-se de um narcisismo dirigido, uma exaltação funcional da beleza a título de avaliação e troca de signos. Essa auto-sedução só tem de gratuita a aparência; na verdade, todos os detalhes dela recebem a forma final de uma norma de gestão ótima do corpo no mercado dos signos” (Baudrillard 1996: 150).


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Ainda segundo Baudrillard, o mapa desse carinho auto-erótico e sua exploração dirigida é desenhado pela publicidade e pela moda que imperiosamente ditam: você é responsável pelo seu próprio corpo e deve valorizá-lo, investir nele, o que, paradoxal- mente, desvia e transfere o investimento do corpo em si e das suas zonas erógenas para a encenação do corpo e da erogeneidade. “A sedução narcísica vincula-se, a partir de então, ao corpo ou a partes do corpo objetivados por uma técnica, por objetos, por gestos, por um jogo de marcas e de signos. Esse neo-narcisismo está ligado à manipulação do corpo como valor”.

A percepção do corpo em geral e do próprio corpo em particular fica assim dominada pelas telas das imagens encenadas. Os videoclipes, as publicidades, as bancas de revistas destituem de sentido não apenas todas as aparências que não se enquadram nos seus moldes, mas, mais do que isso, todos aqueles que ficam na sombra, à margem das luzes gloriosas do exibicionismo. Na luta por alcançar pelo menos uma réstea de luz, a corrida rumo à juventude e à perfeição teleguiadas “é hoje uma maratona que alcança jovens e idosos de diversas classes sociais, mas estes não conseguem ver o pódio, porque se trata de uma corrida infinita” (Sant’Anna 2001: 66, 70). Entre os cobiçados modelos exibidos e o corpo vivo — corpo sujeito à fadiga, ao suor, ao cheiro, aos entreveros do cotidiano, à dor, aos circuitos incompreensíveis das pulsões, aos solavancos das paixões e à opacidade do desejo — abre-se um fosso do qual emerge o corpo como sintoma da cultura.


PARTE 10: O CORPO COMO SINTOMA DA CULTURA
O corpo está em todos os lugares. Comentado, transfigurado, pesquisado, dissecado na filosofia, no pensamento feminista, nos estudos culturais, nas ciências naturais e sociais, nas artes e literatura. Nas mídias, suas aparições são levadas ao paroxismo. Como explicar essa onipresença? Para aqueles que estão refletindo sobre as novas formações culturais na era digital da comunicação em escala planetária, esse fenômeno pode ser em parte explicado pelas inquietações provocadas pelos processos de corporificação, descorporificação e recorporificação propiciados pelas tecnologias do virtual e pelas emergentes simbioses entre o corpo e as máquinas. Ao criarem a ilusão de que é possível transcender o corpo carnal através das descorporificações da simulação, tais processos e simbioses colocam em crise as crenças em uma relativa estabilidade dos limites corporais, pondo em questão as tradicionais estratégias identificatórias constitutivas da subjetividade.

Em um outro trabalho (Santaella 2003a: 27 1-302), cheguei a postular que a centralidade do corpo, especialmente nas artes, deve-se, entre outros fatores, ao fato de que, sob efeito de suas extensões científico-tecnológicas, o corpo humano deve muito provavelmente estar passando por uma mutação, cujos efeitos ainda não estamos em condições de discernir. Daí os artistas estarem acolhendo a tarefa de anunciar essa nova antropomorfia que se delineia no horizonte humano.


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Entretanto, uma tal tentativa de explicação recobre apenas o território da arte, não indicando razões para a onipresença do corpo em todas as demais esferas da cultura. Segundo Pommier (2002: 57), o corpo virou uma verdadeira obsessão. Está perturbadoramente em todas as partes. Indo além da mera constatação, o argumento que proponho apresentar neste capítulo é o de que o corpo está obsessivamente onipresente porque ele se tornou um dos sintomas da cultura do nosso tempo. Diferentemente dos sintomas do século XIX, que se davam no corpo, que marcavam o corpo, gradativamente esses sintomas foram crescendo até tomar o corpo ele mesmo como sintoma da cultura.

Falar em sintoma nos insere indisfarçavelmente no interior do discurso psicanalítico. De fato, é dentro do registro da psicanálise de Freud-Lacan que marco a posição de onde lanço mão das sugestões que se seguem.


*O QUE É O SINTOMA*
Em seu sentido comum, Nasio nos informa (1993: 13), “o sintoma é um distúrbio que causa sofrimento e remete a um estado doentio do qual constitui a expressão”. Na psicanálise, contudo, o sintoma é “um mal-estar que se impõe a nós, além de nós e nos interpela”. Antes de remeter a um estado doentio, ele é um sinal do inconsciente, ou melhor, trata-se de uma dentre as outras formações do inconsciente, a saber, os atos falhos, os sonhos, os chistes e as recordações encobridoras. São formações do inconsciente porque, através delas, o inconsciente irrompe, bate à porta, faz-se ouvir. Possivelmente, entre essas formações, o sintoma é o que mais causa sofrimento. E tanto mais mal-estar ele causa quanto menos se sabe porque ele se faz teimosamente presente. Sem deixar de ser um indício de algo que o mantém em ação, sem deixar, portanto, de ser uma revelação, paradoxalmente, o sintoma é, ao mesmo tempo, uma forma de ocultamento. Por isso mesmo, deve ser decifrado: “decifra-me ou te devoro”.
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Em Freud, o sintoma é o retorno do recalcado. É uma formação de compromisso, fruto de uma negociação quase impossível dos impasses entre as volúpias e as interdições que se impõem ao sujeito (Birman 2001: 256). Como formação de compromisso, no sintoma, o sujeito recupera, na forma de uma mensagem cifrada e não reconhecível, a verdade acerca de seu desejo. Para se evitar uma visão substancialista do inconsciente, como uma entidade positiva que precede ontologicamente a seus retornos, note-se, contudo, que não há repressão prévia ao retorno do recalcado. O conteúdo do reprimido não precede o seu retorno em sintomas, pois não há maneira de concebê-lo em sua pureza não distorcida pelos “compromissos” que caracterizam a formação dos sintomas (Zizek 1994: 29, 187).

A noção freudiana de sintoma tornou-se mais complexa, quando se deu, nos anos 20, aquilo que costuma ser chamado de “virada teórica” de Freud, manifesta a partir de Para além do princípio de prazer (1968a), com a introdução do masoquismo primário e a pulsão de morte no contexto da segunda tópica — Id, Eu e Supereu. Então, o sofrimento do sintoma passou a ser visto à luz do gozo, isto é, daquilo que está além da organização narcísica regulada pelo princípio de prazer. Trata-se da pulsão de morte que, alheia ao princípio de prazer e ao princípio de realidade, compele à repetição.

Também em Lacan, a concepção de sintoma foi passando por modificações, conforme sua clínica e ensino avançaram do registro do Imaginário, para o Simbólico e, por fim, para o Real. Até a década de 50, mais colado à primeira idéia freudiana, o sintoma era visto como uma mensagem cifrada, isto é, como um signo, no sentido que Lacan deu ao conceito de signo de C. S. Peirce: “aquilo que representa algo para alguém”. Assim, o sintoma representa algo, enigmático, para aquele que o sofre e, na análise, também para aquele que o escuta.


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