Corpo e comunicaçÃO



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SANTAELLA, Lúcia. Corpo e comunicação: sintoma da cultura. São Paulo: Paulus, 2004. 161 p.
CORPO E COMUNICAÇÃO

Sintoma da cultura

COLEÇÃO COMUNICAÇÃO

• História do pensamento comunicacional: Cenários e Personagens, José Marques de Meio

• Corpo e comunicação: sintoma da cultura, Lucia Santaella

• O Habitus na comunicação, Clóvis de Barros Filho / Luis Mauro Sã Martino

• Mídia e poder simbólico: Um ensaio sobre comunicação e campo religioso, Luís Mauro Sá Martino A produção social da loucura, Ciro Marcondes Filho

• Culturas e artes do pós-humano, Lucia Santaella

• A esfinge midiática, José Marques de Meio

• Transformações da política na era da comunicação de massa, Wilson Gomes

• O escavador de silêncios: Formas de construir e de desconstruir sentidos na Comunicação II, Ciro Marcondes Filho

• Navegar no ciberespaço: O perfil cognitivo do leitor imersivo, Lúcia Santaella

• Mídia e terror: Comunicação e violência política, Jacques A. Wainberg

• Rede Globo: 40 anos de poder hegemonia, Valério Cruz Brittos / César Ricardo Siqueira Bolaño (orgs.)

• Mídia controlada: A história da censura no Brasil e no mundo, Sérgio Mattos

• Comunicação e Cultura das minorias, Raquel Paiva / Alexandre Barbalho (orgs.)

• A realidade dos meios de comunicação, Niklas Luhmann

• Jornalismo: comunicação, literatura e compromisso social, Carlos Alberto Vicchiatti


CORPO E COMUNICAÇÃO

Sintoma da cultura

Lucia Santaella

Copyright © Paulus 2004

Direção editorial

Paulo Bazaglia

Coordenação editorial

Valdir José de Castro Revisão

Maria Antonieta de Deus

Produção editorial

AGWM Artes Gráficas

Impressão e acabamento

PAULUS

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)



(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Santaella, Lucia

Corpo e comunicação : sintoma da cultura /

Lucia Santaella. — São Paulo : Paulus, 2004. — (Comunicação)

Bibliografia.

ISBN 85-349-2193-8

1. Biocibernética 2. Comunicação e cultura 3. Corpo humano — Aspectos simbólicos 4. Corpo humano na arte 1. Titulo, lI. Série.

04-1064 CDD-302.222

Índices para catálogo sistemático:

1. Corpo e comunicação : Sociologia

2 edição, 2006

© PAULUS — 2004

Rua Francisco Cruz, 229

04117-091 — São Paulo (Brasil)

Tel.: (11) 5084-3066 — Fax: (11) 5579-3627

www.paulus.com.br

editorial@paulus.com.br

ISBN 85-349-2193-8


Sumário
*INTRODUÇÃO* 9
Capítulo 1
*O CORPO SOB O FANTASMA DO SUJEITO* 13

A morte do sujeito 16

A coreografia conceitual de Deleuze 20

O retorno do recalcado 23


Capítulo 2

*O CORPO SOB INTERROGAÇÃO* 27

O corpo problematizado 28

A explosão da ontologia do vivo 31


Capítulo 3

*O QUE MATRIX NÃO MOSTRA:

O CORPO SENSÓRIO-PERCEPTIVO DO CIBERNAUTA* 35

Os sentidos como sistemas perceptivos complexos 37

Os sistemas exteroceptivos 41

O sistema háptico 43

A prontidão perceptiva e a polissensorialidade do navegador 47
Capítulo 4

*O CORPO BIOCIBERNÉTICO REVISITADO* 53

Por uma ética da terminologia 54

Os três movimentos do corpo biocibernético 57

De dentro para fora do corpo 58

A superfície entre fora e dentro do corpo 60

De fora para dentro do corpo 61
Capítulo 5

*O CORPO NA ARTE: DOS ANOS 70 À BIOCIBERNÉTICA ATUAL* 65

Anos 70 e o corpo como síntese de múltiplas tendências 68

Anos 80 e a irrupção da pós-modernidade 71

Anos 90 e o corpo tecnológico 73

As reverberações do corpo biocibernético na arte 75


Capítulo 6

*O CORPO TECNOLÓGICO NA ARTE* 79

Registros imaginativos dos sinais do corpo 81

Os abismos do corpo 83

O corpo interfaceado com tecnologias interativas 86

A vida artificial jogando as cartas 90

Viver dentro de um coração fugidio 92
Capítulo 7

*O CAMPO CONTROVERSO DA BIOARTE* 95

As artes do corpo biocibernético 97

O corpo remodelado 98

O corpo protético 98

O corpo esquadrinhado 98

O corpo plugado 98

O corpo simulado 98

O corpo digitalizado 100

O corpo molecular 1 00

As artes da vida artificial e da robótica 100

A vida artificial 100

A robótica 104

A arte macrobiológica 107

A microbiologia da arte genética 108

A vida como uma questão candente 110

O artista e a militância do admirável 112
Capítulo 8

*O CORPO VOLÁTIL NA MODA* 115

O polimorfismo da moda 115

O sensacional da moda 119

O lúdico da moda 121
Capítulo 9

*O CORPO NAS MÍDIAS* 123

Novas imagens da subjetividade 123

O corpo glorificado 126

O corpo exorbitante 128

A sedução narcísica dos corpos 130


Capítulo 10

*O CORPO COMO SINTOMA DA CULTURA* 133

O que é o sintoma 134

Sintomas da cultura 137

O corpo na psicanálise 141

O corpo imaginário 144

O corpo simbólico 145

O corpo real 146

O corpo como sintoma 148
*BIBLIOGRAFIA* 153
*DA MESMA AUTORA* 163

INTRODUÇÃO


De certo modo, o corpo nos parece real e bem fundado. Cada um de nós é um corpo e fenomenologicamente experimentamos seus estados todos os dias, por exemplo, na dor, no prazer, na fome, na excitação sexual, na fadiga e na doença. Olhamos para nós mesmos no espelho e para os outros e vemos entidades com fronteiras definidas a que chamamos de corpos. Em oposição a todas essas certezas, todavia, os teóricos da cultura sugerem que esses “dados” que, pelo menos conscientemente, não costumamos questionar, são, de certo modo, ilusórios. Muito do que percebemos e experienciamos é construído socialmente: nossa identidade psíquica e sexual, o que constitui o prazer e a dor, onde estão as fronteiras do eu.

Em desacordo com essas teorias, entretanto, o senso comum teima em nos assegurar que pretender que o psicológico não é uma questão individual, mas, ao invés disso, um evento social, atenta diretamente contra evidências inquestionáveis. Pensar é algo que diz respeito a nossas cabeças, é algo que produzimos, manipulamos à vontade e interrompemos quando nos apetece. O que persiste em nós, portanto, é a imagem de uma experiência privada, intransferível, inquestionável e irrenunciável; trata-se de um dado que define nossa própria condição humana. Assim, cremos que aquilo que nos diferencia dos animais não é mais do que nossa capacidade reflexiva, a possibilidade de representarmos a


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nós mesmos como entidades próprias, a habilidade de sermos conscientes de nós mesmos. Não obstante a força dessas convicções, as teorias voltam a denunciar que a segurança dessas imagens sobre o nosso eu e o nosso mundo próprio têm origem em uma longa tradição cultural, hoje em crise profunda (Domènech et al. 2001: 114). Uma crise do sujeito, do eu, da subjetividade que coloca em causa até mesmo ou, antes de tudo, nossa corporalidade e corporeidade. O corpo tornou-se, assim, um nó de múltiplos investimentos e inquietações.

Para Ihde (2002: xi), há três sentidos do corpo. Nós somos nosso corpo pelo modo como a fenomenologia compreende nosso ser no mundo emotivo, perceptivo e móvel. Esse é o primeiro sentido. No segundo, somos corpos no sentido social e cultural, algo que experienciamos a partir de situações e valores relativos ao corpo que são culturalmente construídos. Atravessando tanto o primeiro quanto o segundo sentido, há uma terceira dimensão: a das relações tecnológicas, das simbioses entre o corpo e as tecnologias. Todas as certezas precedentes sobre esses e outros sentidos do corpo estão hoje sendo intensamente problematizadas, o que coloca em questão as convicções sobre nossa auto-identidade e tudo o que dela advém. É essa problematização, sob uma multiplicidade de ângulos, que este livro pretende enfrentar.

Ao longo de muitos anos, a questão do corpo escapou dos meus interesses de pesquisadora e teórica da cultura e da comunicação. Tendo formação em psicanálise, a idéia de corpo só entrava em meu foco de atenção na medida em que tentava compreender o conceito de corpo pulsional. Embora conhecesse de perto, desde os anos 70, a teoria de McLuhan sobre os meios de comunicação como extensões do homem, nunca pensei em ligar essas extensões sensoriais ao corpo como um todo. Foi em 1988, quando acompanhei um complexo trabalho de arte de Wagner Garcia (Sky and Lifr, Sky and Body, Sky and Mind, ver Santaella 1989), que comecei a me dar conta de que, sob efeito de uma crescente complexidade tecnológica, o corpo humano estava passando, tanto quanto as sociedades humanas, por indisfarçáveis transformações que, no tocante ao corpo,
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estavam fadadas a afetar todas as suas dimensões, do físico-fisiológico ao sensório, afetivo e mental.

Em 1994, mais uma vez atraída pela sensibilidade ousada e inquieta de uma artista, fui convidada a fazer a apresentação da obra TRANS-E: o corpo e as tecnologias, de Diana Domingues. Fazendo uso de tecnologias de diagnóstico médico, transfiguradas pela imaginação criadora da artista, essa obra fisgou definitivamente minha atenção para as questões do corpo na arte, campo em que sua presença, desde as primeiras décadas do século XX, foi crescendo de modo exponencial. Em 1997, já estava trabalhando sobre a idéia do corpo biocibernético, como atesta o artigo “Cultura tecnológica e corpo biocibernético”, publicado original- mente em 1998. De lá para cá, fui me aprofundando cada vez mais nos estudos sobre o corpo na arte e sua crescente hibridização tecnológica, no contexto mais amplo das intersecções da cultura com as tecnologias, tema que tem ocupado um lugar bastante privilegiado no meu campo de interesses há um bom tempo.

Enquanto isso, a problematização do corpo, nos seus aspectos psíquicos, comunicacionais, culturais, sociais, antropológicos e filosóficos, foi entrando cada vez mais no campo de preocupações de intelectuais nacionais e internacionais até se tornar, atualmente, um dos grandes temas da cultura. Nessa conjuntura, este livro nasceu do desejo de participar e tomar partido frente à questão do corpo que, por nos inquietar, exige a entrada em cena do nosso pensamento na esperança de que ele possa, de alguma maneira, contribuir na construção dialógica da discussão.
PARTE 1: O CORPO SOB O FANTASMA DO SUJEITO
Em inúmeras disciplinas, de múltiplas perspectivas, existe hoje um sentimento crescente de desconforto e pressentimento a respeito da sorte do sujeito (Doel 2001: 80). Mas antes de nos determos nesse desconforto, é preciso perguntar do que estamos falando, quando nos referimos ao sujeito. De que sujeito se trata?

A noção de sujeito e a de subjetividade dela derivada foram forjadas no cartesianismo. “Penso, logo existo”. A imagem da subjetividade humana legada pelo cogito cartesiano dominou o pensamento ocidental por alguns séculos. De acordo com essa imagem, a existência do sujeito é idêntica ao seu pensamento. A relação entre um ser interior que pensa e um exterior do qual o ser pensante está asceticamente separado é uma relação de identidade. De um lado, o sujeito, do outro lado, os objetos. Sujeitos e objetos aparecem assim enquadrados em gêneros e espécies, “o exterior sólido e extenso distingue-se de um interior inexpugnável e isolado, mas em todos os casos, em todas as versões, independentemente de quem ou o quê esteja em um ou outro lado, essa separação remete- nos sempre ao já existente, ao já conhecido, reconduzindo-nos à forma do mesmo (Domènech et al. 2001: 131).

A identidade desse sujeito racional, reflexivo, senhor no comando do pensamento e da ação, que fundou a modernidade filosófica, foi, de fato, tão fortemente marcada que seus pressupostos
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atravessaram as filosofias kantiana, hegeliana, fenomenológica e até existencialista. É essa imagem de sujeito que esteve subjacente, até recentemente, às principais teorias sociais e políticas ocidentais. Para Tadeu da Silva (2000: 15), “esse sujeito é, na verdade, o fundamento da idéia moderna e liberal de democracia. É ele, ainda, que está no centro da própria idéia moderna de educação”. É lapidar o retrato que nos é fornecido por Doel (2001: 86):
(Início da citação)

Convencionalmente, supõe-se que o sujeito é idêntico a si mesmo; ele é o ponto — o lugar no mapa — que perdura. Ele é o centro da identidade estável e inabalável. Embora seja a condição de possibilidade da identidade, da presença e da diferença, o sujeito precede toda identificação, toda apresentação, toda diferenciação. Eu sou, antes que eu seja alguma coisa. O sujeito é Um: universal, indivisível e eterno, O sujeito é o sujeito e, portanto, cumpre duas funções distintas na topografia da teoria social: universalização e individuação. Por um lado, o sujeito é uma figura de universalização na medida em que é o grau-zero da humanidade, o lugar ao qual, de forma indicial, todas as características humanas se referem e “deferem” (eu sou — sujeito). Em suma, o re-conhecimento se transfere — por meio dos corpos e faces individuais — para o lugar do sujeito universal. Além disso, esse movimento do individual ao universal não depende da variação real entre corpos e faces individuais: há universalização antes que existam individuações. De fato, o universal é indiferente a toda quantificação. Ë por isso que a proliferação, a des-diferenciação ou a fragmentação dos rostos e dos corpos nunca servirão para problematizar o sujeito universal: sujeito há. O sujeito é o sujeito. Sozinho e/e está.

(Fim da citação)
Neste ponto, chegamos a um problema fundamental: o corpo. Descartes definiu o humano como a mistura de duas substâncias distintas: de um lado, o corpo, um objeto da natureza como outro qualquer (res extensa), de outro lado, a substância imaterial da mente pensante, cujas origens, misteriosas, só poderiam ser divinas. Descartes não encontrou explicações para as ligações entre
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esses dois lados. Para ele, apenas a mente, sinônimo de consciência, de alma e definidora do eu, dá expressão à essência humana, da qual o corpo está excluído. Vinha daí sua consideração acerca da alma como um “fantasma” da máquina-corpo (Descartes 1999). Portanto, na noção de sujeito universal, herdada do cartesianismo, não havia lugar para o corpo. Doel (2001: 87) é enfático em suas afirmações sobre isso: esse sujeito não tem necessidade “de pele, carne, face ou fluido. O corpo nunca é. Os corpos são os inimigos do sujeito. O sujeito é o que resta quando o corpo é retirado”. Entretanto, se não há corpo, onde estaria o suporte de sustentação do sujeito? Doel explicita o paradoxo da seguinte maneira:
(Início da citação)

O sujeito é também uma figura de individuação na medida em que só pode se expressar por meio de corpos e rostos, O sujeito só existe em seus efeitos, na subtração de seus efeitos; sem um corpo ou um rosto através dos quais passar, o sujeito não pode cumprir sua função universalizante. Daí a complementaridade e o paradoxo: o sujeito exige a individuação a fim de expressar a universalização; mas existe sempre o risco de que o olhar e o re-conhecimento se apeguem ao corpo, se alijem na carne, se fixem no rosto e submerjam no fluido. Em suma, o tecido material do corpo pode frustrar a passagem em direção ao lugar do sujeito universal e abstrato.

(Fim da citação)
Vem justamente desse paradoxo o título escolhido para este capítulo: “o corpo sob o fantasma do sujeito”. De fato, trata-se de um fantasma assoberbante para o qual a carne e os corpos só servem como meios de individuação, envelopados pela pele e carimbados pelos rostos. Em suma, um fantasma cuja força advém do recalque do corpo. Entretanto, desde o final do século passado, esse fantasma começou a perder seu poder de influência para ser sumariamente questionado há duas ou três décadas, quando, nas mais diversas áreas da humanidade e das ciências, alardeia-se que estamos assistindo à morte do sujeito. Sob as rubricas “crise do eu” ou “crise da subjetividade”, critica-se e rejeita-se a definição de um sujeito universal, estável, unificado, totalizado e totalizante,
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interiorizado e individualizado. “Há já mais de vinte anos que o sub-jectum não é o sol em torno do qual gira nosso pensamento social” (Kvale 1992 apud Domènech et al. 2001: 1 13).

*A MORTE DO SUJEITO*


Enfim, a subjetividade humana tornou-se uma construção em ruínas, é o que afirma Tadeu da Silva (2000: 11). Para esse autor, as devastadoras demolições já haviam tido início com os “mestres da suspeita”: Marx, Freud, Nietzsche e Heidegger, para prosseguir, incansável, a partir de meados do século XX:
(Início da citação)

com as operações de desalojamento do cogito cartesiano efetuadas pela revisão arthusseriana de Marx e pela revisão lacaniana de Freud. Depois, com os pós-estruturalistas, Foucault, Deleuze, Derrida, Lyotard, o estrago se tornaria irremediável e irreversível. Sem volta. A point of no return. A questão não é mais, agora, “quem é o sujeito?”, mas “queremos ainda ser sujeitos”, “quem precisa de sujeito?” (Guzzoni 1996), “quem tem nostalgia do sujeito?” e, mais radicalmente, talvez, “quem vem depois do sujeito?” (Cadava, Connor e Nancy 1991). Ou ainda, como Maurice Blanchot (1991), a essa última pergunta podemos, talvez cinicamente, nos limitar a retrucar: “quem mesmo?”.

(Fim da citação)
São muitas as vozes a afirmar que “a idéia do eu” entrou em uma crise que se pode crer irreversível. Têm sido escritos inúmeros obituários da imagem de ser humano que animou nossas filosofias e nossas éticas por tanto tempo. Rose (2001: 139) nos lembra muito apropriadamente que, sob o ponto de vista da psicanálise, a imagem do eu sempre foi o produto de uma construção imaginária. É essa construção que nos ilude quanto à existência de uma forma coerente e unificada do humano, quando, na verdade, a ontologia humana é necessariamente a ontologia de uma criatura despedaçada no seu próprio núcleo.
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Há aqueles que vêem essa “morte do sujeito” como, ela própria, um evento histórico real: o indivíduo ao qual essa imagem do sujeito correspondia surgiu apenas recentemente, em uma zona limitada de tempo-espaço, tendo sido, agora, varrido pela mudança cultural. O mais fascinante nisso tudo, entretanto, é que, sob o álibi de sua morte, na realidade, nunca antes se havia falado tanto do sujeito, o que só vem comprovar a idéia de que, quando se fala muito sobre algo, esse algo encontra-se sob suspeita. É por isso que, como bem lembra Tadeu da Silva (2000: 11), o sujeito, ou melhor, sua desconstrução, além da filosofia, vaza por todos os lados: nos discursos das feministas, nos estudos culturais sobre raça e etnia, nas análises pós-colonialistas, todos eles evidenciando que não existe sujeito ou subjetividade fora da história e da linguagem, fora da cultura e das relações de poder. Para o autor, é na teoria cultural, que analisa as radicais transformações culturais pelas quais passamos, que podemos observar o desenvolvimento de um pensamento que nos faz questionar radical- mente as concepções dominantes sobre a subjetividade humana.

Não é apenas o pressuposto de que existe um sujeito universal, unitário e centrado que está em questão, mas, sobretudo, como porventura o sujeito poderia ser situado, corporificado, fragmentado, descentrado, des-construído ou destruído. Por isso, no lugar dos antigos “sujeito” e “eu”, proliferam novas imagens de subjetividade. Fala-se de subjetividade distribuída, socialmente construída, dialógica, descentrada, múltipla, nômade, situada, fala-se de subjetividade inscrita na superfície do corpo, produzida pela linguagem etc. Nessa mudança, o psicológico abandona o espaço privado e intransferível das psiques individuais para alojar-se nas encruzilhadas e nas ruelas que marcam o estar-no-mundo com outros seres humanos (Kvale 1992 apud Domènech et al. 2001: 113).

Não obstante a pluralidade de caminhos, a constante deles está na busca por escapar do velho e familiar eu, aquele reconfortante “eu” da filosofia humanista, da hermenêutica e da fenomenologia, que, segundo Rose (2001: 157), refere-se ao ator que
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interage com outros em um contexto cultural e lingüístico, à pessoa em quem os efeitos de sentido, comunicação, assumem sua forma, com todos os pressupostos que a acompanham, pressupostos que afirmam a singularidade e o caráter cumulativo do tempo vivido da consciência.

Um dos caminhos, tido por muitos como insuficiente na radicalidade que se deve conferir à morte do sujeito, encontra-se na teoria sobre as propriedades subjetivantes da linguagem, de Emile Benveniste (1971). Para ele, os pronomes pessoais são responsáveis pela criação do sujeito. O eu como sujeito da enunciação forma um locus de subjetivação, criando uma “posição de sujeito”, um lugar no interior do qual um sujeito deve surgir. É através da linguagem que os humanos se constituem a si próprios como sujeitos, porque é apenas a linguagem que pode estabelecer a capacidade de a pessoa se colocar como sujeito, como a unidade psíquica que transcende a totalidade das experiências reais que ela reúne, produzindo a permanência da consciência.

Nesse contexto, segundo Rose (2001: 149), a subjetividade é apenas a emergência, no ser, de uma propriedade fundamental da linguagem. “A linguagem tanto torna possível que cada falante se estabeleça a si mesmo como um sujeito, ao se referir a si próprio como ‘eu’ em seu discurso, quanto é tornada possível por esse mesmo fato. As formas pronominais”, continua Rose, “são um conjunto de signos ‘vazios’, sem referência a qualquer realidade, que se torna ‘plena’ quando o falante introduz a si próprio em uma instância do discurso”. Entretanto, a lógica aí presente é muito mais complexa. Precisamente por causa disso, “o lugar do sujeito é um lugar que tem que ser constantemente reaberto, pois não existe qualquer sujeito por detrás do ‘eu’ que é posicionado e capacitado para se identificar a si mesmo naquele espaço discursivo: o sujeito tem que ser reconstituído em cada momento discursivo de enunciação”.

Para Rose, essa ênfase nas propriedades subjetivantes da linguagem concebida como um sistema gramatical, como uma relação entre pronomes colocada em jogo em instâncias de discurso,


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é insuficiente. O autor é levado a concordar com Deleuze e Guattari que a subjetivação nunca é um processo puramente gramatical; ela surge de um “regime de signos e não de uma condição interna à linguagem” e esse regime de signos está preso a um agenciamento ou a uma organização de poder. Dessa perspectiva, a subjetivação deve referir-se, antes de tudo, não à linguagem e às suas propriedades internas, mas àquilo que Deleuze e Guattari chamam, seguindo Foucault, de um “agenciamento de enunciação”.

Foi na sua Arqueologia do saber (1986) que Foucault propôs o termo “modalidades discursivas” para conceptualizar as formas sob as quais a linguagem aparece em espaços e épocas particulares, formas que são irredutíveis às categorias lingüísticas. Quem pode falar? De que lugar fala? Que relações estão em jogo entre, de um lado, a pessoa que está falando e o objeto do qual ela fala, e, de outro, aqueles que estão sujeitos à sua fala? Pode-se pensar aqui, por exemplo, no regime que, em qualquer espaço ou época particular, governa a enunciação de um enunciado diagnóstico na medicina, uma explicação científica em biologia, um enunciado interpretativo em psicanálise ou uma expressão de paixão em relações eróticas. Essas enunciações não são colocadas em discurso por meio de “uma função unificante de um sujeito”, nem tampouco produzem esse sujeito como uma conseqüência de seus efeitos: trata-se aqui de uma questão dos “diversos status, dos diversos lugares, das diversas posições” que devem ser ocupadas em regimes particulares para que algo se torne dizível, audível, operável: o médico, o cientista, o terapeuta, o amante (Foucault 1986: 61). Assim, as relações entre os signos são sempre reunidas no interior de outras relações.


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