Corpo e comunicaçÃO



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Um dos expoentes atuais nesse campo é Eduardo Kac. Em Genesis, codificou frases da história bíblica do Gênesis no DNA de bactérias. O artista propõe dois termos para designar a especificidade do grande número de trabalhos que vem realizando: biotelemática e arte transgênica. Segundo Machado (2001: 86), a primeira é uma “forma de arte em que processos biológicos estão intrinsecamente associados a sistemas de telecomunicações baseados em computadores”. A segunda tem sua base “na utilização de técnicas de engenharia genética ligadas à transferência de genes (naturais e sintéticos) para um organismo vivo, de modo a criar novas formas de vida”.


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Projetos pioneiros no Brasil foram os de José Wagner Garcia, Light Automata, de 1989 e Distúrbio, de 1990. Embora mais ligados à computação evolutiva e vida artificial, já se apresentavam nesses trabalhos os gérmens da microbiologia e arte genética.

Em Light Automata, o artista trabalhou com o fenômeno da bioluminescência (um fenômeno natural observado em certos protozoários e bactérias) a partir de dois domínios: um natural “in vitro” e um artificial “in silico”. O domínio in vitro era formado por bactérias bioluminescentes que, sob determinadas condições, emitiam luz. O domínio artificial era constituído por um conjunto de organismos que emulavam o sistema evolutivo dos organismo in vitro a partir de um software de computação evolutiva (que reconhecia os padrões da bioluminescência e os convertiam na morfogênese dos organismos in silico). Os dois ambientes estavam conectados e estabeleciam entre si um fluxo bidirecional de informações: os parâmetros físico-químicos das culturas bacterianas eram medidos por sensores e transmitidos, em tempo real, para o computador. Estas informações provocavam reações no ecossistema artificial in silico.

A idéia básica de Distúrbio consistia em inserir dentro de um plasmídio uma proteína gerada artificialmente — através de algoritmos genéticos — provocando um reordenamento artificial da composição estrutural da substância natural, criando uma espécie de estranhamento transgênico (ver Arantes 2003). Mais recentemente, Garcia vem desenvolvendo um projeto complexo de arte genética sob o título de Clothing Earth with Mind.

Em um artigo sob o título de “The gene as a cultural icon”, Nelkin (1996) discute as três maneiras que, segundo a autora, caracterizam as respostas artísticas à biologia molecular. Alguns artistas são simplesmente atraídos pelas formas estéticas das estruturas moleculares. Outros insistem naquilo que Nelkin chama de “essencialismo genético”, uma visão dos genes como entidades poderosas e determinantes, centrais à compreensão da condição humana. Outros ainda fazem uso da arte para expressar seus temores diante de uma tecnologia que, para eles, está fora de controle. Nelkin continua:


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(Início da citação)

Para os artistas do DNA, o gene biológico — uma estrutura nuclear — surge como um ícone cultural, e a ciência genética fornece um conjunto de metáforas visuais através das quais eles podem expressar a essência da pessoalidade, a natureza do destino humano, especialmente suas preocupações com as implicações sociais de um campo científico expansivo, importante, mas historicamente perigoso.

(Fim da citação)
A classificação de Nelkin, entretanto, limita-se aos artistas que se colocam em uma posição de testemunhas inspiradas pelos resultados da ciência ou críticas diante dos seus avanços. Falta aí considerar os artistas que buscam ir mais fundo no diálogo com os cientistas. Quando interagem com o lado “hard” da ciência, suas obras, se é que podem continuar a ser chamadas de “obras”, resultam do trabalho colaborativo com os cientistas. Nem poderia ser diferente, pois, nesse caso, a arte não lida meramente com metáforas poéticas, culturais ou críticas, mas busca penetrar no próprio campo experimental da manipulação genética, no cerne molecular da vida. Esse é o caso de Clothing Earth with Mind, de Garcia.
*A VIDA COMO UMA QUESTÃO CANDENTE*
Por se tratar de uma forma de arte emergente e por estar localizada na ponta de lança das mais acaloradas questões bioéticas da atualidade, a arte genética é uma arte que vem provocando muitas controvérsias. Dado o seu frescor, a maior parte dos debates está se realizando em grupos de discussão ou em sites do ciberespaço. A maioria dos debatedores tem assumido um discurso crítico contra a arte genética, calcado na crítica corrosiva contra a biotecnologia. Partem do princípio de que, se a biotecnologia, pautada pela lógica perversa da bioindústria, é má, conseqüentemente, a bioarte também o é.

O Critical Art Ensembie, um grupo de artistas e teóricos, tem dirigido fortes críticas ao desenvolvimento das tecnologias biológicas


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e médicas e, conseqüentemente, às diferentes formas da bioarte. Para eles, as novas tecnologias são partes de um padrão de controle cada vez mais abrangente da expansão capitalista, cuja última fronteira encontra-se no corpo e no cérebro. Tanto isso é verdade que a racionalização dos processos reprodutivos já produziu um mercado massivo de produtos do corpo humano (esperma, ovos, células, embriões, substitutos uterinos etc.).

Segundo Morin (2002: 196), a despeito das antinomias que as biociências comportam, nelas continua a reinar o programatismo genético-molecular, com suas explicações tiradas do funcionamento de máquinas informáticas artificiais, em detrimento de uma visão holística do conjunto das propriedades e qualidades próprias às auto-organizações vivas.

Entre os teóricos eminentes que se assustam e se indignam perante esse problema destaca-se Paul Vinho (2001: 68-83). Para ele, graças à bomba genética, a ciência biológica está se convertendo em uma arte maior, mas uma arte extrema que desemboca agora na criação geneticamente programada do duplo, assumindo o risco de desnaturalizar o vivo. Essa arte da reprogramação biológica é uma arte sem piedade, a arte extrema das práticas transgênicas.

Para outros críticos, localizada entre a arte e a mera propaganda, a bioarte oblitera a ética e a política da biotecnologia e, ao apresentar visuahizações dos processos invisíveis da genética, transforma as tecnologias em fetiches. Outros ainda se perguntam por que algumas obras são apresentadas no contexto da arte, quando se assemelham muito mais a textos informativos do que a “obras”. Mesmo quando se colocam na tradição da arte conceitual, é preciso lembrar que esta tradição era bem minimalista no uso de textos e humilde no emprego dos materiais. O conceituahismo da biotecnoarte, ao contrário, é sobrecarregado e sobrecodificado, resultando em uma apresentação de difícil apreensão. Last but not least, quando os artistas trabalham diretamente com os cientistas, eles acabam por desempenhar o papel de orientadores para a popularização da ciência, o que os coloca longe da necessária intervenção crítica das instituições científicas.


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Com tudo isso, não é difícil concluir que a questão do vivo é hoje um problema candente. Sem minimizar o assombro e a prontidão crítica que é necessária neste momento evolutivo da espécie humana, quando o cerne da vida pode ser manipulado, há quase um ano, para a apresentação das obras de Wagner Garcia, Amazing Amazon e Clothing Earth with Mind (Santaella 2002c, 2003a: 315- 333), lancei mão de uma rota de pensamento que, a meu ver, é capaz de nos trazer munições adequadas para enfrentar os complexos desafios que a biociência e a bioarte vêm apresentando. Trata-se da estética filosófica de Peirce, uma estética radicalmente original que incorpora a ética tal como as questões candentes da atualidade estão exigindo. À luz dessa estética podemos nos livrar das expectativas tradicionais quanto ao modo de ser de uma “obra de arte”, passando a compreeider o papel do artista sob um prisma renovado à altura das complexidades das tecnociências e artes atuais. Isso pelo menos nos livra das posições céticas que pretendem colocar o artista fora da arena da vida. Quando o próprio design da vida está em jogo e posto nas mãos dos humanos, a sensibilidade à flor da pele do artista não pode deixar de interferir nesse design. Por isso mesmo, com o faro sensível de que dispõe, o artista tem hoje um papel vital a desempenhar na questão da vida. A estética peirceana nos ajuda a pensar sobre esse papel.
*O ARTISTA E A MILITÂNCIA DO ADMIRÁVEL*
Peirce desenvolveu uma teoria estética radicalmente original (ver Santaella 2000). Por estética, ele não entendia meramente uma ciência do belo, mas uma ciência que tem por tarefa indagar sobre estados de coisas que são admiráveis por si, sem qualquer razão ulterior. Estados de coisas que, mais cedo ou mais tarde, todos tenderão a concordar que são dignos de admiração. O que é admirável não pode ser determinado de antemão. São metas ou ideais que descobrimos porque nos sentimos atraídos por eles, empenhando-nos na sua realização concreta.
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Também para a ética Peirce deu uma interpretação tão original quanto para a estética. Costuma-se definir a ética como a doutrina do bem e do mal. Peirce discordou. O que constitui a tarefa da ética é justamente justificar as razões pelas quais certo e errado são concepções éticas. Para ele, o problema fundamental da ética está voltado para aquilo que estamos deliberadamente preparados para aceitar como afirmação do que queremos fazer, do que temos em mira, do que buscamos. Para onde a força da nossa vontade deve ser dirigida?

Como responder a essa pergunta? Segundo Peirce, a resposta não pode vir da própria ética, pois esta não é auto-suficiente. É da estética, na sua determinação daquilo que é admirável, que vem a indicação da direção para onde o empenho ético se deve dirigir, daquilo que deve ser buscado como ideal. O fim último da ética reside, portanto, na estética. O ideal é estético, a adoção deliberada do ideal e o empenho para atingi-lo são éticos. A adoção do ideal e o empenho para realizá-lo sendo deliberados, dão expressão à nossa liberdade no seu mais alto grau. Depois de enfrentar muitos dilemas, Peirce concluiu que o ideal do admirável está no crescimento da razão criativa, O mais alto grau de liberdade do humano está, assim, no empenho ético para a corporificação crescente da razão criativa no mundo.

Ora, mesmo antes do surgimento do conceito de arte, que se deu por volta de 1400, a arte sempre foi e continua sendo a maneira mais efetiva de produzir crescimento da razoabilidade concreta. No momento crucial que estamos atravessando, em que o design íntimo da vida não é apenas uma questão da ciência e da engenharia, mas também e, sobretudo, uma questão ética, a estética peirceana, na sua original incorporação da ética, pode nos levar a compreender por que, mais uma vez, a arte é chamada a atender ao chamamento do admirável, é chamada a fazer crescer a razão criativa no seio da vida.

Quando o artista intervém na arena da biociência, não são obras de arte para serem expostas ao olhar contemplativo que devemos esperar dele, mas a inoculação do admirável e da razão criativa no espírito da ciência, pois é na militância do admirável que o trabalho do artista se engaja.


PARTE 8: O CORPO VOLÁTIL NA MODA
Poucos fenômenos exibem, tanto quanto a moda, o entrelaçamento indissolúvel das esferas do econômico, social, cultural, organizacional, técnico e estético. Materialmente, como existente no espaço e no tempo, a moda é resultado explícito do capitalismo, do qual ela extrai sua condição de possibilidade. Não há moda em um mundo em que as coisas duram, permanecem estáveis, envoltas na aura sagrada de um tempo que parece não passar. O capitalismo só pode se preservar na mesma medida da aceleração e volubilidade de sua produção.

Contemporânea da economia política, nos diz Baudrillard (1996:119), a moda é, tal como o mercado, uma forma universal. “Todos os signos vêm trocar-se nela, assim como todos os produtos vêm interagir em termos de equivalência no mercado. Trata-se do único sistema de signos universalizável, e que reapreende por conseguinte todos os outros, da mesma maneira como o mercado elimina todos os outros meios de troca.” Entretanto, ao mesmo tempo em que é produto do capitalismo, a moda também funciona como índice, e até mesmo como sintoma, de suas diferentes faces históricas.


*O POLIMORFISMO DA MODA*
A moda foi nascendo sub-repticiamente quando a Idade Média tardia cedeu espaço para a entrada do Ocidente na era
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moderna que trouxe consigo a ciência e filosofia modernas e a codificação das artes em sistemas autônomos.

A moda foi se tornando explícita quando a revolução industrial possibilitou a reprodutibilidade técnica de seus produtos, a reprodução em série do mesmo produto. De fato, a moda é filha dileta da aceleração do capitalismo industrial. Ela nasceu no ápice da modernidade novecentista como “sacerdotisa da mercadoria, prescrevendo o ritual segundo o qual a mercadoria-fetiche quer ser adorada” (Benjamin apud Rouanet 1993a: 25-26). Por isso mesmo, era na moda que a veemência da imaginação moderna encontrava seu refúgio.

Com o crescimento demográfico de que se originaram os aglomerados humanos, nos primeiros grandes centros urbanos, notadamente Paris e Londres, a moda foi se convertendo em fascínio, nas galerias em que produtos, ofertados por trás dos vidros, interrompiam, com piscadelas sedutoras, o passo dos transeuntes.

Fascinado diante da miríade de estímulos, diante do espetáculo volátil das luzes das imagens, dos cenários e das coisas, nas grandes cidades, o olhar moderno aprendeu a desejar, o corpo enfeitiçado das mercadorias que, sacralizadas pela publicidade, ficam expostas à cobiça por trás dos vidros reluzentes das vitrines. Ainda que “seja feérica, a moda continua sendo o feérico da mercadoria” (Baudrillard 1996: 112). Por isso, a lógica da transitoriedade, que empresta sua alma ao capitalismo, busca na moda o alimento vital para sua voracidade pelo mutável.

A moda explodiu, em meados do século XX, junto com a explosão consumista da cultura de massas, tão transitória quanto são passageiras as imagens nos jornais, nas capas de revistas, nas telas do cinema, na publicidade televisiva.

A moda proliferou com exuberância febril e desmedida, quando o crepúsculo da modernidade cedeu seu horizonte para a emergência da pós-modernidade globalizada que encontrou na moda a matriz efêmera de sua identidade mutante. Nada poderia ser mais eficaz do que a moda para dar expressão teatral à experiência alucinatória do mundo contemporâneo. De fato, nos


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dizem Villaça e Góes (1998: 126), “a moda é a maneira perfeita de expressar um mundo de identidades incomensuráveis e fragmentadas, oferecendo uma procissão dinâmica de signos flutuantes e trocas simbólicas”. Vem daí que a moda tenha passado “a funcionar como um fórum de debates em torno das questões do belo, do verdadeiro e do bem, expressando as ambigüidades e a desestabilização desses lugares no contemporâneo”.

Embora do século XIX para cá, o capitalismo tenha passado por todas essas transformações de que a moda foi dando seu testemunho, até atingir o seu estágio atual globalizado, a lógica do capital essencialmente não mudou, assim como não mudou o papel fundamental que a moda desempenha em prol da superestimulação do consumo, papel este que ela executa graças à sua face volátil, capaz de fisgar o apetite dos sentidos. Em função dessa sensorialidade proeminente, a moda foi se tornando cada vez mais onipresente até o ponto de podermos afirmar que há moda onde quer que a imaginação estética estiver vestindo a fantasia da frivolidade sedutora, fantasia que paradoxalmente se encarna e se exibe na evanescência daquilo que só pode existir para ceder passagem ao que virá a existir.

É justamente essa ambigüidade qualitativa e estética da moda que a salva tanto das estigmatizações atormentadas e moralizantes contra os gozos mundanos do consumo, de um lado, quanto da leviandade festiva e aderente ao conformismo alienado, de outro lado. O retrato da moda é infixável, sua definição é incapturável, sua natureza, pluriforme, multifacetada. Essa mesma ambigüidade radical da moda é também acentuada por Baudrillard, (1996: 122), quando diz que:
(Início da citação)

Para além do racional e do irracional, para além do bonito e do feio, do útil e do inútil, é essa imoralidade no tocante a todos os critérios, essa frivolidade que dá à moda por vezes a sua força subversiva. (...) Ao contrário da linguagem, que visa à comunicação, ela joga com a significação, faz dela o contexto sem fim de uma significação sem mensagem. Donde seu prazer estético, que não tem nenhuma relação com a beleza nem com a feiúra.

(Fim da citação)
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Dos decretos volúveis que a moda promulga, sem nenhuma outra justificativa além de si mesma, advém seu charme e fascínio. “Diante da finalidade impiedosa da produção e do mercado, de que, no entanto, ela é, então, a encenação, a moda é uma festa.” Ela é “espontaneamente contagiosa, enquanto o cálculo econômico isola as pessoas umas das outras. Ela, que desinveste os signos de todo valor e de todo afeto, torna-se uma paixão — a paixão do artificial” (Baudrillard 1996: 122).

Por tudo isso, como lembram Villaça e Góes (1998: 126), a moda não se restringe a um mero reflexo do sistema capitalista de distribuição e consumo, o capitalismo é apenas um de seus componentes como prática social. A moda ultrapassa até mesmo os limites do mundo fashion, constituindo-se em tecnologia específica de construção, sempre instável e fugaz, de eus ansiosos por meio da transfiguração das aparências do corpo, um corpo volátil que se transmuta à velocidade de um raio.

Não obstante tome conta de tudo, da economia à arte e aos afetos, é com os signos do corpo que a moda joga com mais destreza. A moda se aprofunda quando se torna encenação do próprio corpo, quando este se transforma em meio da moda. Vem daí a estreita afinidade entre a roupa e a moda, pois o jogo da roupa se desfaz diante do jogo do corpo, permitindo o desfrute da finalidade sem fim da moda. Tanto é assim que, como diz Baudrillard (1996: 112), “a moda só secreta a nudez como supersigno da roupa”. Nessa medida, a moda adquire hoje “o sentido de uma estratégia corporal na busca de mais expressão, propiciando movimentos de simulação e dissimulação, aumentando o poder do corpo de afetar e ser afetado” (idem).

Para colocar ênfase em facetas da moda que evidenciam sua capacidade de se desprender da simples submissão cega à lógica do consumo, passarei a discutir dois trabalhos, um livro e uma exposição que, a meu ver, souberam explorar, cada um à sua maneira, as faces estéticas, qualitativas e ambíguas da moda, faces essas que livram a moda de ser simplesmente subsidiária do capital, ou mesmo um mero índice dele, ao apontar, de um lado, para


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o sensacional naquilo que este tem de incapturável, pura sensação reduzida a si mesma, de outro lado, para o lúdico, naquilo que este tem de irreverente e, conseqüentemente, crítico e cortante.
*O SENSACIONAL DA MODA*
Frente à complexidade proteiforme da moda no seu momento atual, em seu livro O sensacional da moda, Ana Mery S. De Carli (2002) decidiu explorar um dos aspectos mais ambíguos e qualitativos da moda: o sensacional. Não se trata do sensacional na moda, mas do sensacional da moda. Não apenas o que quer que apareça de sensacional na moda, mas o sensacional como aquilo que hoje se instala na essência sensível e sensória da moda.

Sensação é um processo nervoso, físico e mental, que se desencadeia em um órgão dos sentidos quando este reage a um estímulo externo. Costumamos chamar de sensacional o estímulo que, ultrapassando o limiar do previsível, produz uma sensação que vai além do horizonte de expectativas dos sentidos. Quando algo suspende os sentidos no efeito ofuscante e hipnótico de uma exclamação mental, quando algo tira “o ar” dos nossos sentidos, esse algo é sensacional.

Como espetáculo, sociabilidade duplicada que se enleva esteticamente consigo própria, jogo de mudança pela mudança, a moda, submetida, por sua própria natureza, à lei da novidade, como fênix do novo, atinge um ponto em que a novidade perde seu poder informativo, o novo se torna redundante e cansativo. Quando isso acontece, é preciso lançar mão de estratégias incisivas. Entre elas, o sensacional: sensacional do vestuário, sensacional das imagens da moda, sensacional dos espetáculos da moda, sensacional dos conceitos de moda, sensacional nas vivências da moda. Ao colocar o sensacional da moda, na mira do seu estudo, De Carli colocou o dedo no âmago incandescente da moda na atualidade.

De fato, conforme Villaça e Góes (1998: 113), “os discursos da moda se aceleram na cidade pós-moderna com seu ritmo frenético. A multiplicidade de cenários e modelos oferece sempre


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mais elementos para a construção/interpretação/imperfeição e a moda adquire contornos radicais” que ultrapassam questões de ordem econômica ou cultural. “A antimoda, o fora da moda, o tudo na moda, o nada na moda, com suas inspirações ecumênicas determinam o fim da ditadura da moda. A moda e suas estratégias cosmetológicas e vestimentárias estilizantes do corpo atingem limites extremos na intensificação das sensações.”

Para tocar nessas intensidades, De Carli desenvolveu um estudo contextual, conceitual, descritivo e poético, voltado sobretudo para aquilo que, na moda, fala à sensibilidade, exala imaginação criadora, aquilo que, na moda, tem preocupado os artistas, poetas, estetas e pensadores.

O livro desdobra-se em três partes que lançam, ao sensacional da moda, três olhares distintos. O primeiro ponto de vista é o do consumo no seu aspecto econômico de produção material, a moda como indústria e mercadoria, tanto material quanto simbólica. O consumo aí se expõe como centro potencializador e irradiador da produção, do marketing publicitário, da necessidade induzida, do supérfluo cobiçado.

Na segunda parte, a autora silencia, cedendo sua palavra à eloqüência das imagens e aos argumentos reverberantes dos artistas e poetas. Imagens são iluminadas ao mesmo tempo que iluminam as citações criteriosamente selecionadas de romances, artigos, poemas e livros de autores famosos. O sensacional da moda se mostra, despudoradamente fascinante. O que seria da moda sem as imagens, sem a pulsão escópica? Como poderia subsistir se não fosse através do olhar que é mirado pelo objeto do seu fascínio, olhar capturado na rede insidiosa de um desejo sem nome e sem lugar?

A terceira parte explora as diferenciadas facetas do sensacional penetrando interpretativamente nos meandros de seus artifícios e sortilégios. Nos encantos e sobressaltos da vida urbana, na socialidade, nas performances do corpo, nas intensidades do presente, na ascenção do feminino, nas forças da juventude e na multiplicidade do rosto volátil do diverso, o sensacional da moda faz suas aparições.
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*O LÚDICO DA MODA*
O segundo trabalho foi uma exposição no hall da biblioteca da Universidade Católica de São Paulo, promovida pelo Senai, sob curadoria de Solange Silva, em agosto de 2001. As obras de criação exibidas nessa exposição buscaram explorar o lado lúdico e experimental da moda.

Condenada não só a manter a superestimulação da novidade, mas também a acelerá-la, nas últimas décadas do século XX, a moda foi levando o ritmo oscilatório das tendências ao paroxismo. Não havendo mais determinação interna aos signos da moda, eles ficam livres para se comutar, permutar-se de maneira ilimitada (Baudrillard 1996: 111). Ora, nessa exigência febril das mudanças, onde buscar fontes de inspiração para a variação indefinidamente renovada dos corpos, dos detalhes, dos gostos e das idiossincrasias?

A solução que a moda encontrou para isso, muito similar ao que ocorreu no mundo da arte e das linguagens pós-modernas, foi a de buscar os estilos do passado remoto e recente para releituras cíclicas e contínuas. Alusões, citações, traduções, cópias e pastiches do passado tornaram-se recursos indispensáveis para a mutação acelerada da produção. Segundo Baudrillard (1996: 123), “sob o signo da mercadoria, o tempo se acumula como dinheiro — sob o signo da moda, ele é interrompido e descontinuado em ciclos emaranhados”. É isso, de fato, que a dinâmica recente da moda tem demonstrado. Entretanto, quando muito acelerada, a quantidade vira qualidade. Atraídos para o vórtice da moda, os estilos do passado revisitados também se transformaram em moda, tudo virou moda e a moda virou jogo, experimentação e criação auto-exploratória, auto-reflexiva.


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