A bem da verdade, no texto filosófico com o qual trabalhamos, o termo "indiferenga"
nao aparece com a mesma carga semántica com a qual encontramos nos demais textos.
Nos dois momentos em que aparece o termo, seu sentido é mais o vulgar do que aquele
que será descrito a seguir. No entanto, outro termo bastante importante aparece no
Comentario á Ética a Nicómaco: "meio-termo", que será analisado mais á frente.
A "indiferenga", no nivel da vontade, é o correspondente do "desengaño", no nivel
da razáo.
(3)No presente artigo, indicamos as referencias extraídas do texto dos Exercícios
Espirituais ¡nacíanos, seja pelo número da página do texto, seja pelo número do
parágrafo. Para o presente artigo, comparamos a edigao brasileira com a tradugao
publicada na coletánea francesa (Cf. Loyola, 1991).
O EE. 98 diz o seguinte, a respeito da imitagao de Cristo: "Senhor Eterno de todas as
coisas, fago minha oferta, com vosso favor e vossa ajuda, em presenga de vossa infinita
bondade e em presenga de vossa mae gloriosa e de todos os santos e santas da corte
celeste: quero e desejo, e é minha decisao determinada, desde que seja vosso maior
servigo e vosso maior louvor, vos imitar suportando todos os ultrajes, todas as repreensoes
e toda a pobreza, efetiva ou espiritual, se vossa santíssima Majestade quiser me escolher e
me receber nesta vida e neste estado" (Loyola, 1544-1548/2002, p. 51).
Optamos, no presente artigo, por indicar as referencias extraídas do texto das
Constituigoes da Companhia de Jesús, apontando além do número da página do texto,
também o parágrafo de que foi extraído. Para o presente artigo, comparamos a edigao
brasileira com a tradugao publicada na coletánea francesa (Cf. Loyola, 1991).
A hipótese da relagao entre "indiferenga" e "coragem" é desenvolvida por Barros, M.
L. (2004). Releituras da indiferenga: Um estudo baseado em cartas de jesuítas dos
séculos XVI e XVII. Monografía de final de curso nao-publicada, Faculdade de Filosofía,
Ciencias e Letras, Universidade de Sao Paulo, Ribeirao Preto, SP.
"Alumbrados" era o nome assumido por alguns falsos místicos espanhóis do sáculo
XVI, que diziam ter contato direto com Deus. Para eles, a alma humana poderia
alcangar um tal grau de perfeigao que chegaria a contemplar ainda nesta vida a
esséncia de Deus e compreender o misterio da Trindade. Declaravam supérfluo todo rito
de adoragao, bem como a recepgao dos sacramentos, afirmando a uniao completa com
Deus como solugao. Afirmavam também que o desejo carnal e outras más agoes nao
manchavam a alma. A perfeigao mais elevada a que deve se exercitar o cristao é,
segundo esses místicos, a eliminagao completa de toda a atividade, a perda da
individualidade e a completa absorgao em Deus. Tidos como hereges, os "alumbrados"
foram perseguidos pela Inquisigao. Santo Inácio também foi perseguido pela Inquisigao
como "alumbrado", mas conseguiu provar sua inocencia.
Esta observagao é bastante significativa, dado que, naquele período, sob o risco de
serem considerados seguidores dos "alumbrados", importava sobremaneira a
confirmagao do respeito á tradigao católica e a perfeita justificativa das opgoes feitas.
Optamos, no presente artigo, por manter os trechos extraídos das cartas Indipetae
no idioma e na forma como foram escritas.
O que chama a atengao, no caso da última carta, é que dada a liberdade de Juan
Bravo no uso da estrutura retórica, esta Indipeta é marcada por urna forma de
argumentagao onde é bastante valorizado o sentimento de "filiagao". No entanto, este é
um topos que aparece em todas as suas cartas. Entendemos que o indipetente nao seja
um inepto, dado a demonstragao do contrario ñas duas primeiras cartas - muito bem
estruturadas -, mesmo que a segunda seja marcada por urna certa sobrevalorizagao da
captatio benevolentiae.
Cf. ARSI, Indipetae Hispanae, FG 758, carta n. 329. Nela, Juan Bravo afirma:
"assegura/o est una hambre grande que siento de convertir peccadora cosa a Dios
Nuestro Señor. De todo esto claramente colijo que Dios me llama para servirle ene/ Japón. Y mas que todo me gertifica que esto llamamiento es divino la indifferengia que en my siento, porque junto con llamarme Nuestro Señor para servile en aquellas partes tan remotas, siento indifferengia grande para lo que es yr, o quedar sin perder por esto un punto el fervor y desseo de servile acá en Europa, antes cregiendo mas".
Cf. ARSI, Indipetae Hispanae, FG 758, carta n. 404. O termo "indiferenga" aparece,
nesta carta, no seguinte contexto: ""Ni por esto me despido de hazerla en Europa pues
con sufficiente indiferengia me hallo para lo que Vuestra Paternidad escogiere, que allí
con el favor divino espero o, en Japan, o en Europa procurar ser hijo de Nuestra Santa
Compañía y para que yo desde agora lo agierte a ser supplico a Vuestra Paternidad
como al Padre de ella y myo me lo alcange del Señor".
A mercé a que se refere Bravo é de ter recebido tantos beneficios a partir dos
desejos, ele que ""tenia meregidos muchos agotes y castigos". Cf. ARSI, Indipetae
Hispanae, FG 758, carta n. 404.
Esta nota é interessante: entre a carta de 20 de Janeiro de 1603 - que é a
primeira, como já vimos - e esta de 29 de julho de 1604, Juan Bravo afirma ter escrito
outras.
Este artigo é fruto das pesquisas desenvolvidas na tese de doutoramento financiada
pela CAPES, na FFCLRP/USP. É o segundo de um "tríptico" do qual já foram publicados
dois: "O 'conhecimento de si' ñas Indipetae' e "A 'consolagao' ñas Indipetae".
Nota sobre os autores
Paulo Roberto de Andrada Pacheco é Psicólogo formado pela Universidade Federal de Minas Gerais, Doutor em Psicología, pela Faculdade de Filosofía, Ciencias e Letras da USP de Ribeirao Preto. Atualmente, é professor do Centro Universitario Sant'Anna. Contato: paulopac@yahoo.com.br.
Marina Massimi é Doutora em Psicología Experimental pela Universidade de Sao Paulo, professora titular junto ao Departamento de Psicología e Educagao da Faculdade de Filosofía Ciencias e Letras da Universidade de Sao Paulo, Campus de Ribeirao Preto; especialista em historia da psicología e dos saberes psicológicos. Contato: mmassimi3@yahoo.com.
Data de recebimento: 25/01/2009Data de aceite: 30/07/2009
Entre a dor e a esperanga: educagao para o diálogo em Martin Buber
Between the pain and the hope: education for the dialogue in
Martin Buber
Kátia Marly Leite Mendonga
Universidade Federal do Para Brasil
Resumo
Este artigo tem por objetivo discutir as idéias de Martin Buber acerca da educagao e do papel do educador em sua correlagao com tempos de crise. O diálogo, a partir de urna interface entre a sociología, a teología e a filosofía, ocorre estimulado por dois temas fundamentáis: a dor da barbarie e a esperanga. Trabalhar com urna educagao voltada para o diálogo e para a construgao de urna cultura de paz e solidariedade em tempos sombríos e vazios de sentido como os nossos significa, antes de tudo, perceber a tensao entre esses dois eixos que envolvem a vida dos homens na sociedade atual. A perspectiva buberiana acerca da tarefa de educar vem, sem dúvida, levantar algumas questoes fundamentáis que remetem nao só as exigencias da condigao de educador, mas as possibilidades de educar em meio ao caos e á violencia deste sáculo.
This article has for goal to discuss Martin Buber's ideas concerning education and the educator's role in times of crisis. The dialogue, from an interface among sociology, theology and philosophy, happens stimulated by two fundamental themes: the pain of the barbarism and the hope. To work with an education for the dialogue and for the construction of a peace culture and solidarity in shady times empty of sense as ours, it means, before everything, to notice the tensión among those two axes that involves men's life in the current society. The buberian perspective concerning the task of education comes, without a doubt, to lift some fundamental subjects that refer not only to the demands of educator's condition, but to the possibilities to edúcate amid the chaos and the violence of this century.
Keywords: Martin Buber; education; dialogue; hope; barbarism.
Sinto que a profissao de educador é
a mais difícil e a mais elevada de todas.
E, no entanto, nossa sociedade
(melhor dizendo, o mundo inteiro)
nao tem consciéncia deste fato.
(Martin Buber)
1. O mundo moderno: dor e barbarie
Os caminhos da razao instrumental no Ocidente conduziram a urna visao compartimentada do homem e do mundo, da natureza, do cosmo, naquela separagao das esferas da vida e desencantamento do mundo típicos da modernidade, diagnosticados por Max Weber (1). Tal percepgao do mundo se inscreve e ao mesmo tempo reforga urna cultura que atinge tanto as relagoes no ámbito da política - como esfera da mentira, da corrupgao e da violencia - quanto as relagoes intersubjetivas, o que conduziu a práticas perversas as quais tém sua conclusao lógica em urna sociedade que se imagina e que se constituí como competitiva, desigual, violenta, insolidária e anómica. Enfim, ao longo desses sáculos, se construiu urna cultura da violencia e da barbarie.
A miseria de nosso tempo é, desde já, pobreza, desemprego, ignorancia, fome, barbarie devastadora. Mas é também, sobretudo, como se vé tao claramente naquelas partes da humanidade que estao relativamente á margem da miseria material, crise de sentido, engendrada por um infinito cansago, como se tudo já tivesse sido vivido, ainda que se esteja comegando, de fato a viver. Como se nao houvesse nada que fazer para mudar e melhorar o mundo e a vida. (Garcia-Baró, 2006, p.12).
A perda de sentido da sociedade moderna acarretou urna ruptura nos valores de difícil recuperagao. Temos entao urna sociedade totalmente voltada para a tecnología e para o mercado e que se olvida dos mais elementares lagos do inter-humano. Estamos diante de um mundo que oscila entre, de um lado o cepticismo indiferente e, de outro lado, fundamentalismos religiosos promotores da uniao de grupos em torno dos sentimentos de odio e de rejeigao por um inimigo comum.
Perdidos os lagos de solidariedade que garantem a vida, a modernidade enquanto processo conferiu supremacía ao que se pode designar por ética da sobrevivencia: Quantos de nos podemos, todavía, negarmo-nos a compartilhar a idéia de que a vida, irremediavelmente, é depender dos outros, adular, servir, integrar-se em um grupo que pressione contra outros e que nos proteja? Desde já o que se diz, se ensina e se pratica em todas as horas da vida (...) é esta tristíssima empresa de, para seguir vivendo, perder as causas que fazem a vida digna de ser vivida. (Garcia-Baró, 2006, p.36).
Este empobrecimento da vida moderna captado por Garcia-Baró, foi tomado antes pela sociología no sentido de "vazio ético" (Jonas,1990) "prisao de ferro" por Max Weber (1987) ou de"anomia" por Durkheim (Durkheim,1996; Miller, 1996) . Um mundo caracterizado pela dor, nao apenas das guerras que se sucederam e que se sucedem, mas pela dor do vazio e da conseqüente ausencia de esperanga, marcas características de um processo de expansao da modernidade que se fez de forma desigual em igualmente perversa em diferentes partes do mundo: um mundo caracterizado pela inconsciencia da própria dore pelo abandono desembocando em um estilo global de descrenga, pós-modernidade, neo-epicurismo, acomodagao absoluta as circunstancias dadas, características da cultura européia atual; nao só se alimentando de urna debilidade moral, mas também de um ceticismo e de um pragmatismo que se podem localizar em níveis filosóficos. (Garcia-Baró, 2006, p.195).
Na raiz de tudo o vazio de urna humanidade que nao consegue mais se conectar com "a condigao interpessoal ou dialógica de nossa existencia e a sua condigao transcendente" (Garcia-Baró, 2006, p. 38) e, por isso mesmo, sem reflexao e submissa a coletivos esmagadores do sujeito.
O desaparecimento da pessoa diagnosticado pelo existencialismo teísta pode ser designado, certamente, como o caminho da frieza e da indiferenga. Nele a ciencia se erigiu em deusa. Última expressao do carisma na modernidade, segundo a intuigao de Max Weber, deificada foi ela como portadora do Progresso. Mas que tipo de Progresso? Adorno e Horkheimer criticariam esse progresso vinculando-o á barbarie ñas relagoes sociais modernas. Isso foi abordado a partir da nogao de "ofuscamente" caracterizado pelo olhar que extingue o sujeito, que nao o vé como dotado de humanidade. Irreflexao, ofuscamento sao a oposigao á reflexao e ao esclarecimento cuja crítica Adorno e Horkheimer empreendem em urna especie de fenomenología dos sentidos do homem moderno com sua vida danificada pela razao instrumental.
Importa percebermos que o conceito de ofuscamento em Adorno e Horkheimer é antes de tudo de caráter ético. A regressao dos sentidos do homem - seja no seu olhar (como apontado por Walter Benjamín), seja na sua audigao (como indicado por Theodor Adorno) - irá corresponder a uma regressao em sua eticidade (Mendonga, 2003): o homem se torna individualista, anti-solidário e anti-comunitário. Ou seja, a regressao física dos sentidos se faz acompanhar de uma regressao ética em uma sociedade marcada pela razao instrumental. Ai se encontra a base da violencia. Ou, como diz Adorno: "a cegueira alcanga tudo, porque nada compreende." (Adorno & Horkheimer, 1991, p. 160). Ainda aqui é o olhar que expressa o caráter da ausencia de eticidade entre os homens. É sob esse prisma que a leitura adorniana da dualidade progresso-barbárie indica uma subversao do conceito de que étnico passa a ser ético:
Entendo por barbarie algo muito simples, ou seja, que, estando na civilizagao do mais alto desenvolvimento tecnológico, as pessoas se encontrem atrasadas de um modo peculiarmente disforme em relagao á própria civilizagao - e nao apenas por nao terem em sua arrasadora maioria experimentado a formagao nos termos correspondentes ao conceito de civilizagao, mas também por se encontrarem tomadas por uma agressividade primitiva, um odio primitivo ou, na terminología culta, um impulso de destruigao, que contribuí para aumentar ainda mais o perigo de que toda esta civilizagao venha a explodir, alias, uma tendencia imánente que a caracteriza. (Adorno, 1995, p.155).
Mais recentemente o tema da barbarie é retomado por George Steiner que dirá; Por que, efetivamente, como vocé acaba de dizer, é possível tocar Schubert pela noite e marchar de manha para cumprir com suas obrigagoes no campo de concentragao? Nem a grande literatura, nem a música, nem a arte, puderam impedir a barbarie total. Chegaram mesmo a ser ornamento dessa barbarie, para dizer tudo. Com freqüéncia proporcionaram uma decoragao, uma fioritura, uma formosa moldura para o horror. O senhor Gieseking tocou Debussy - de maneira incomparável, parece - enquanto se ouviam os gritos dos que passavam pelas estagoes de Munique rumo a Dachau. (Steiner, 1999, p.58).
Como diante do mais alto nivel de avango tecnológico jamáis alcangado pela humanidade podemos explicar a banalidade do mal de que fala Hannah Arendt e da qual Eichmann foi um exemplo entre tantos? Steiner aponta que
o problema sao as aliangas inquietantes entre a mais alta filosofía e o despotismo (...). É a fascinagao que a tiranía e o inumano exercem sobre a alta abstragao (...). Nao tenho explicagao para o problema desta afetividade. As afinidades eletivas, titulo de Goethe: entre o mais alto pensamento e a abjegao (...). Eu o sinto, nao tenho explicagoes. (ídem, p.85-87).
O mesmo tema, a ruptura da relagao entre ética e conhecimento, ou melhor, a conexao entre barbarie e conhecimento, seria também um dos temas fundamentáis em Gabriel Marcel a partir de uma perspectiva crista:
Nao existe uma razao válida para que um dentista, nao importa de que especialidade, nao seja, no que essencialmente se refere, um ser, diria, eu, de uma indignidade quase absoluta, talvez entregue á ambigao e á cobiga, ou o que é, todavía, mais grave, desprovido
Os diagnósticos acerca da barbarie no mundo moderno ao final ¡rao oscilar entre dois eixos: por um lado os que de certo modo nao conseguem superar as aporias da razao e, deste modo, nao véem saída, pois buscam dentro da mesma razao, cujo desvario criticam, a explicagao para os males déla decorrentes. Por outro lado, pensadores ancorados em urna percepgao teísta como o foram Martim Buber e Gabriel Marcel, entre outros, ¡rao buscar a superagao desse dilema em algo que ao final, mesmo sem seguranga alguma, como dizia Buber, remete á esperanga e á possibilidade de encontrar urna luz ao final do túnel. Em razao disso Buber e Marcel sao autores importantes para se pensar a educagao enquanto possível saída, mesmo sem garantías, porque nao há garantías aqui, a nao ser urna "estreita aresta", para usar a expressao cara a Buber (1980), para o drama da crise de valores enfrentados por este sáculo e porque, paradoxalmente, a educagao digna desse nome, para usar urna outra expressao de Buber, exige esperanga em meio a dor.