Introdução a Psicologia do Ser



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Parte IV
CRIATIVIDADE

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Criatividade nas Pessoas Individuacionantes
Tive primeiro de mudar as minhas idéias sobre cria­tividade logo que comecei a estudar pessoas que eram positivamente sadias, altamente evoluídas e amadureci­das, dotadas de grande capacidade de individuação. Tive primeiro de abandonar a minha noção estereotipada de que saúde, gênio, talento e produtividade eram sinônimos. Uma considerável proporção dos meus sujeitos, embora sadios e criativos, num sentido especial que vou descre­ver, vão eram produtivos no sentido habitual, nem tinham grande talento ou gênio, tampouco eram poetas, compo­sitores, inventores, artistas ou intelectuais criadores. Tam­bém era óbvio que alguns dos maiores talentos da huma­nidade não foram, certamente, pessoas psicologicamente sadias, Wagner, por exemplo, ou Van Gogh, ou Byron. Alguns eram, outros não, é claro. Depressa tive de chegar à conclusão de que o grande talento era não só mais ou menos independente da excelência ou saúde de caráter, mas também de que sabíamos muito pouco a esse respeito. Por exemplo, existem algumas provas de que o grande talento musical e o talento matemático são mais herdados do que adquiridos (150). Parece claro, portanto, que a saúde e o talento especial são variáveis distintas, talvez apenas ligeiramente correlacionadas, talvez não. Podemos igualmente admitir, no começo, que a Psicologia sabe muito pouco sobre o talento especial do tipo gênio. Nada mais direi a esse respeito, preferindo limitar-me àquela espécie mais generalizada de criatividade que é a herança [pág. 167] universal de todo o ser humano e que parece co-variar com a saúde psicológica.

Além disso, não tardei em descobrir que eu estivera pensando em criatividade, como a maioria das pessoas, em termos de produtos; e, em segundo lugar, que limitara a criatividade somente a certas áreas do esforço humano, pressupondo, inconscientemente, que qualquer pintor, qualquer poeta, qualquer compositor, estava levando uma vida criadora. Os teorizadores, artistas, cientistas, inven­tores, escritores, podiam ser criadores. Ninguém mais podia ser. Inconscientemente, eu partira do princípio de que a criatividade era uma prerrogativa exclusiva de certos pro­fissionais.

Mas essas expectativas foram desfeitas por vários dos meus sujeitos. Por exemplo, uma mulher, sem educação, pobre, exclusivamente dona-de-casa e mãe, não fazia qual­quer dessas coisas convencionalmente criadoras e, entre­tanto, era uma esposa, mãe, cozinheira e dona-de-casa maravilhosa. Com pouco dinheiro, o seu lar estava sempre uma beleza. Era uma perfeita anfitrioa. Suas refeições eram banquetes. O seu gosto em roupas de cama e mesa, pratas, cristais, louças e móveis era impecável. Em todas essas áreas, ela era original, engenhosa, inventiva, impre­vista. Eu tinha de considerá-la verdadeiramente criadora. Aprendi com ela e outras como ela que uma sopa de primeira categoria é algo mais criador do que uma pintura de segunda categoria e que, em geral, a culinária, a ma­ternidade ou a organização de um lar podem ser algo criador, enquanto que a poesia pode deixar de ser; pelo contrário, pode ser estéril, medíocre e sem inspiração.

Outra mulher, entre os meus sujeitos, dedicava-se ao que poderia ser melhor designado como assistência social, na mais ampla acepção do termo, cuidando de feridos, ajudando os desvalidos, não só de um modo pessoal, mas também numa organização que assiste a muito mais pessoas do que ela poderia fazer individualmente.

Outro dos meus sujeitos era um psiquiatra, um “clí­nico” puro que nunca escrevera coisa alguma nem criara qualquer teoria ou realizara qualquer pesquisa, mas que se comprazia em seu trabalho cotidiano de ajudar as pessoas a criarem-se a si mesmas. Esse homem abordava cada paciente como se este fosse o único no mundo, sem recorrer a jargão, sem expectativas ou pressupostos, com [pág. 168] inocência e ingenuidade, mas, no entanto, com grande sabedoria, à maneira tauísta. Cada paciente era um ser humano único e, portanto, um problema completamente novo a ser compreendido e resolvido de uma forma intei­ramente nova. O seu grande êxito, até em casos muito difíceis, validava o seu modo “criador” (não estereotipado ou ortodoxo) de fazer as coisas. De outro homem aprendi que a construção de uma organização comercial, de uma grande empresa, podia ser uma atividade criadora. De um jovem atleta aprendi que um perfeito movimento pode ser um produto tão estético quanto um soneto e podia ser abordado no mesmo espírito criativo.

Acudiu-me ao espírito, certa vez, que uma competente violoncelista que, reflexamente, eu tinha considerado “criadora” (porque a associei com música criadora? com compositores criadores?), estava realmente tocando bem o que outrem escrevera. Ela era apenas um porta-voz, como o ator ou “comediante” normal é um porta-voz. Um bom marceneiro, ou jardineiro, ou alfaiate, podia ser, verdadeiramente, mais criador. Eu tinha de formular um juízo individual em cada caso, visto que quase todo o papel ou função pode ser criador ou estéril.

Por outras palavras, aprendi a aplicar a palavra “cria­dor” (e também a palavra “estético”) não só a produtos, mas também a pessoas, de uma forma caracterológica, e a atividades, processos e atitudes. E, além disso, tinha pas­sado a aplicar a palavra “criativo” a muitos outros pro­dutos além dos típicos e convencionalmente aceitos — poemas, teorias, romances, experimentos e pinturas.

A conseqüência foi que achei necessário distinguir a “criatividade de talento especial” da “criatividade individuacionante”, que promana muito mais diretamente da personalidade e se manifesta amplamente nos assuntos correntes da vida, por exemplo, numa certa espécie de humor. Parecia ser algo como uma tendência para fazer qualquer coisa criativamente; por exemplo, cuidar da casa, ensinar etc. Com freqüência, pareceu-me que um aspecto essencial da criatividade individuacionante era um tipo especial de percepção exemplificado pela criança da fábula que viu que o rei estava nu (isso também contradiz a noção de criatividade como produtos). Tais pessoas podem ver tanto o que é original, básico, concreto, idiográfico, como o que é genérico, abstrato, rubricado, categorizado [pág. 169] e classificado. Portanto, vivem muito mais no mundo real da natureza do que no mundo verbalizado de conceitos, abstrações, expectativas, crenças e estereótipos, que a maioria das pessoas confunde com o mundo real (97, capítulo 14). Isso está bem expresso na frase de Rogers, “abertura para a experiência” (145).

Todos os meus sujeitos eram relativamente mais es­pontâneos e expressivos do que as pessoas comuns. Eram mais “naturais” e menos controlados e inibidos em seu comportamento, o qual parecia fluir mais fácil e livre­mente, com menos bloqueios e autocríticas. Essa capaci­dade para expressar idéias e impulsos sem estrangulamen­to e sem temor de ridículo resultou ser um aspecto es­sencial da criatividade individuacionante. Rogers tem usado a excelente frase “pessoa em pleno funcionamento” para descrever esse aspecto da saúde (145).

Outra observação foi que a criatividade individuacio­nante era, em muitos aspectos, como a criatividade de todas as crianças felizes e seguras. Era espontânea, desenvolta, inocente, fácil, uma espécie de liberdade isenta de estereótipos e clichês. E, uma vez mais, parecia-me ser formada, em grande parte, de liberdade “inocente” de percepção, de espontaneidade e expressividade “inocentes” e desinibidas. Quase todas as crianças podem perceber mais livremente, sem expectativas apriorísticas sobre o que ti­nha de estar ali, o que deve estar ali ou o que sempre ali esteve. E quase todas as crianças são capazes de compor uma canção ou um poema ou uma dança ou uma pintura ou uma peça de teatro ou um jogo de improviso, sem premeditação alguma, sem planejamento ou intenções pré­vias, instigadas apenas pela inspiração do momento.

Era nesse sentido “infantil” que os meus sujeitos eram criadores. Ou, para evitar equívocos, dado que os meus sujeitos não eram, no fim de contas, crianças (eram todos pessoas na casa dos 50 e 60 anos), digamos que tinham conservado ou recuperado, pelo menos, esses dois aspectos principais do caráter infantil, notadamente, não rubricavam ou estavam “abertos à experiência” e eram facilmente espontâneos e expressivos. Se as crianças são ingênuas, então os meus sujeitos tinham atingido uma “segunda ingenuidade”, como Santayana a denominou. A. sua inocência de percepção e expressividade estava com­binada com espíritos sofisticados. [pág. 170]

Em qualquer dos casos, tudo isso soa como se estivés­semos lidando com uma característica fundamental, ine­rente à natureza humana, uma potencialidade dada a todos ou à maioria dos seres humanos no nascimento, a qual, com freqüência, se perde, ou é enterrada, ou inibida, quando a pessoa é enculturada.

Os meus sujeitos eram diferentes da pessoa média noutra característica que torna mais provável a criativi­dade. As pessoas individuacionantes não se mostram as­sustadas pelo desconhecido, o misterioso, o intrigante e, com freqüência, são positivamente atraídas para isso, isto é, escolhem-no seletivamente para procurar a solução, medi­tar e ser absorvida pelo problema. Cito a minha descri­ção em (97, pág. 206): “Eles não negligenciam o desco­nhecido, nem o negam ou fogem dele, ou tentam fazer acreditar que é realmente conhecido; tampouco o organi­zam, dicotomizam ou rubricam prematuramente. Não se apegam ao familiar nem a sua busca de verdade é uma necessidade catastrófica de certeza, segurança, definição e ordem, tal como vemos, numa forma exagerada, nos indi­víduos com lesão cerebral, de Goldstein, ou no neurótico obsessivo-compulsivo. Podem ser, quando a situação obje­tiva total o exige, confortavelmente desordenados, anár­quicos, desleixados, caóticos, vagos, duvidosos, incertos, in­definidos, aproximados, inexatos ou inacurados (tudo muito desejável, em certos momentos, na ciência, na arte ou na vida, em geral).

“Assim, resulta que a dúvida, a tentativa, a incerteza, a vacilação, com a necessidade conseqüente de protelar a decisão, o que para a maioria é uma tortura, pode ser para alguns um desafio agradavelmente estimulante, um alto momento na vida e não um baixo.”

Uma observação que eu fiz deixou-me intrigado du­rante muitos anos, mas começa agora a ficar clara. Foi o que descrevi como a resolução de dicotomias nas pessoas com capacidade de individuação. Em poucas palavras, concluí que tinha de ver de forma diferente muitas oposições e polaridades que todos os psicólogos haviam consi­derado numa seqüência contínua e retilínea. Por exemplo, para citar a primeira dicotomia com que tive problemas, não fui capaz de decidir se os meus sujeitos eram egoístas ou desinteressados. (Observe-se como caímos esponta­neamente, aqui, num “ou isto ou aquilo”. Mais de um, [pág. 171] menos de outro, é a implicação do estilo em que formulei a questão.) Mas fui forçado, pela pura pressão dos fatos, a abandonar esse estilo aristotélico de lógica. Os meus sujeitos eram muito altruístas num sentido e muito egoís­tas noutro sentido. E essas duas características conjuga­vam-se, não como incompatíveis, mas, antes, numa uni­dade ou síntese dinâmica, sensível, muito semelhante ao que Fromm descreveu em seu trabalho clássico sobre egoís­mo saudável (50). Os meus sujeitos tinham reunido os opostos de tal modo que me fizeram compreender que con­siderar o egoísmo e o altruísmo como contraditórios e mutuamente exclusivos é, em si mesmo, característico de um nível inferior do desenvolvimento da personalidade. Assim, nos meus sujeitos, também muitas outras dicotomias foram resolvidas em unidades: a cognição versus volição (coração versus cabeça, desejo versus fato) con­verteu-se em “cognição estruturada com volição”, na me­dida em que o instinto e a razão chegaram às mesmas conclusões. O dever tornou-se prazer e o prazer fundiu-se com o dever. A distinção entre trabalho e jogo tornou-se imprecisa. Como podia o hedonismo egoísta opor-se ao altruísmo, quando o altruísmo se tornou egoisticamente agradável? Essas pessoas sumamente maduras eram tam­bém fortemente infantis. Essas mesmas pessoas, os mais fortes egos até agora descritos e as mais definitivamente individuais, também eram, precisamente, as que podiam mais facilmente abdicar do ego, transcender o próprio eu e centrar-se no problema (97, págs. 232-34).

Mas isso é, precisamente, o que faz o grande artista. Está apto a reunir cores que se entrechocam, formas que se combatem entre si, dissonâncias de toda a espécie, numa unidade. E é também isso o que faz o grande teórico, quando reúne fatos intrigantes e incompatíveis, para que vejamos que, na realidade, eles se harmonizam. E o mes­mo ocorre com o grande estadista, o grande terapeuta, o grande filósofo, o grande pai, a grande mãe, o grande inventor. Todos são integradores, capazes de congregar termos distintos e até opostos numa unidade.

Falamos aqui da capacidade de integrar e do jogo de vaivém entre a integração, dentro da pessoa, e a sua ca­pacidade de integrar seja o que for que ela está fazendo no mundo. Na medida em que a criatividade é construtiva, sintetizadora, unificadora e integradora, é nessa mesma [pág. 172] medida que ela depende, pelo menos em parte, da inte­gração interior da pessoa.

Ao tentar averiguar por que tudo isso assim era, pa­receu-me que a causa poderia ser atribuída à relativa ausência de medo nos meus sujeitos. Eles eram, certa­mente, menos enculturados; quer dizer, pareciam menos temerosos do que as outras pessoas diriam, ou exigiriam, ou do que se ririam. Tinham menos necessidade das outras pessoas e, portanto, dependiam menos delas, podiam te­mê-las menos e ser menos hostis contra elas. Contudo, talvez fosse mais importante ainda a ausência de medo dos seus próprios íntimos, dos seus próprios impulsos, emo­ções e pensamentos. Eram mais propensos do que a média à aceitação de seus próprios eus. Essa aprovação e acei­tação dos seus eus mais profundos possibilitava-lhes muito mais perceberem corajosamente a natureza real do mundo e tornava também mais espontâneo o seu comportamento (menos controlado, menos inibido, menos planejado, menos deliberado e “intencional”). Temiam menos os seus pró­prios pensamentos, mesmo quando estes eram extrava­gantes ou “amalucados”. Tinham menos receio de que rissem deles ou de serem alvo de desaprovação. Não lhes importava serem inundados de emoção. Em contraste, as pessoas médias e neuróticas erguem uma muralha para rechaçar o medo, grande parte do qual reside no próprio íntimo delas. Elas controlam, inibem, reprimem e supri­mem. Desaprovam os seus eus mais profundos e esperam que os outros façam o mesmo.

O que estou dizendo, de fato, é que a criatividade dos meus sujeitos parecia ser um epifenômeno da sua maior totalidade e integração, que é o que está subentendido na aceitação do próprio eu. A guerra civil, dentro da pes­soa média, entre as forças das profundidades íntimas e as forças de defesa e controle, parece ter sido resolvida nos meus sujeitos, que se mostram menos divididos. Por con­seqüência, mais deles próprios está disponível para uso, para fruição e para fins criativos. Perdem menos de seu tempo e energia protegendo-se contra si próprios.

Como vimos em capítulos anteriores, o que conhece­mos sobre experiências culminantes corrobora e enriquece estas conclusões. Também essas experiências são integra­das e integradoras, as quais, em certa medida, são isomórficas com a integração no mundo percebido. Também [pág. 173] nessas experiências encontramos maior abertura à expe­riência, maior espontaneidade e expressividade. Como um aspecto dessa integração, dentro da pessoa, é a aceitação e maior disponibilidade dos seus eus mais profundos, essas fundas raízes da criatividade (84) também se tornam mais acessíveis ao uso.




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