Esses estranhos Homens deveriam ficar muito satisfeitos por serem julgados mais maldosos dó que realmente são



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“Você presumir que eu seja bem pensante é tocante”, disse o Mágico. “Pode deixar as coisas aí mesmo onde você está. A menos que prefira se aproximar?” O marionete reluzente arreganhou os dentes e abriu os braços. “Meu bichinho?”

Elphaba deixou cair os papéis. “Bom, meu Senhor”, ela disse numa voz ferina, pretensiosa: “Eu vou continuar considerando-o bem pensante, pois, se não o fizer, serei obrigada a me engajar em algum exército contra o senhor.”

“Oh, diabos, Elfinha”, disse Glinda, e falou mais alto, “ela não fala em nome de nós duas, Sua Alteza. Sou uma pessoa independente aqui.”

“Por favor”, disse Elphaba, a um só tempo suave e dura, orgulhosa e suplicante. Glinda se deu conta de que nunca havia visto Elphaba querendo alguma coisa. “Por favor, senhor. A opressão sobre os Animais vai além do suportável. Não é apenas o assassinato do Doutor Dillamond. É a repatriação forçada, essa ― essa escravização de Bestas livres. O senhor deve sair daí e ver o sofrimento que é. Há conversas por aí ― há a preocupação de que o próximo passo será a carnificina e o canibalismo. Isso não é mero ultraje adolescente. Por favor, senhor. Não é apenas emoção desatada. O que está acontecendo é imoral...”

“Eu não escuto quando alguém usa a palavra imoral”, disse o Mágico. “Nos jovens ela é ridícula, nos velhos ela é sentenciosa e reacionária e um sinal precoce de apoplexia. Na meia-idade, quem ama e teme a idéia de uma vida moral acima de tudo, é hipócrita.”

“Se não for imoral, que palavra posso usar que signifique errado?”, disse Elphaba.

“Tente misterioso e então relaxe um pouco. O caso, minha garotinha verde, é que não cabe a uma jovem, ou a um estudante, ou a um cidadão decre­tar o que é errado. Isso é atributo dos líderes, a razão de nossa existência.”

“Bem, então, nada me impede de assassinar o senhor, se eu não sei o que é errado.”

“Eu não acredito em assassinato, eu nem mesmo sei o que isso significa”, Glinda interrompeu. “Eu vou é dar o fora agora, enquanto ainda estou viva.”

“Esperem”, disse o Mágico. “Eu tenho uma coisa a lhes perguntar.”

Elas pararam. Ficaram assim por minutos. O esqueleto dedilhava suas costelas, tocando-as como se fossem as cordas frágeis de uma harpa. A música soou como pedras revirando num leito de rio. O esqueleto tirou os dentes ilu­minados de suas mandíbulas e fez malabarismo com eles. Depois, lançou-os sobre o assento do trono, onde eles explodiram em lampejos coloridos como confeitos. A chuva estava abrindo um escoadouro no chão, Glinda notou.

“Madame Morrible”, disse o Mágico. “Agente provocadora e tagarela, amiga íntima e companheira, professora e sacerdotisa. Diga-me por que ela as mandou para aqui.”

“Ela não nos mandou”, disse Elphaba.

“Você ao menos sabe o significado da palavra penhor?”, gritou o Mágico.

“Você sabe o que significa resistência?”, Elphaba retrucou.

Mas o Mágico apenas riu, em vez de eliminá-las ali mesmo. “O que ela quer de vocês?”

Glinda retomou a fala; não era sem tempo. “Uma educação decente. Apesar de seus modos bombásticos, ainda assim ela é boa administradora. Não deve ser fácil.” Elphaba estava olhando para ela de um modo estranho e oblíquo.

“Ela explicou a vocês...”

Glinda não entendeu por completo. “Nós somos apenas secundaris­tas. Nós apenas começamos a nos especializar. Eu em feitiçaria, Elphaba em ciências da vida.”

“Entendo.” O Mágico pareceu parar para refletir. “E depois que se for­marem no próximo ano?”

“Eu suponho que voltarei para Frottica e me casarei.”

“E você?”

Elphaba não respondeu.

O Mágico girou, estendeu seus fêmures e golpeou o assento do trono como se este fosse um tímpano. “Realmente, está ficando ridículo, é tudo espetáculo de fé no prazer”, disse Elphaba. Ela deu um passo ou dois para diante. “Dá licença, Sua Alteza? Antes que nosso tempo se encerre?”

O Mágico se virou. Seu crânio pegava fogo, um fogo não abrandado pela cortina de chuva que ia se adensando. “Direi uma última palavra”, o Mágico arriscou, numa voz que soava como um gemido, a voz de alguém que sentisse dor. “Eu citarei, do Ozíada, o relato heróico da antiga Oz.”

As garotas esperaram.

O Mágico de Oz recitou:
“Então, geleira trôpega, a velha Kumbricia

Roça o firmamento nu até que chova sangue.

Arranca a pele do sol e a come em brasa.

Enfia a lua em foice em seu paciente bolso.

E a joga fora, como pedra falsa que cresceu.

Caco por caco ela rearranja o mundo.

Parece o mesmo, diz, mas já não é.

Parece o que esperavam, mas não é.”

“Cuidado com aqueles a que servem", disse o Mágico de Oz. E então se foi, e os regos no chão abriram-se em borbotões, e as velas foram imediata­mente apagadas. Não havia nada que pudessem fazer além de voltar sobre seus passos.

Na carruagem, Glinda tinha se instalado e feito um pequeno ninho para elas no desejável banco da frente, protegendo o lugar de Elphaba dos outros passageiros. “Minha irmã”, ela mentiu: “Estou guardando este lugar para a minha irmã”. E como mudei, ela pensou, em um ano e pouco. Passei do desprezo que tinha pela garota colorida a proclamar que pertencemos ao mesmo sangue! Assim, a vida universitária muda você realmente, de um modo que você não pode imaginar. Eu devo ser a única pessoa em toda Co­linas de Pertha a ter visto uma vez nosso Mágico. Não por meu próprio esforço, não por minha iniciativa ― mesmo assim, estive lá. Eu fiz a coisa. E nós não estamos mortas.

Mas, não conseguimos muita coisa.

Então, apareceu Elfinha, finalmente, correndo pelas pedras do pavimen­to com seus cotovelos se salientando e seu magro torso ossudo enfrentando os elementos, como de hábito, com uma capa. Ela vinha pelo meio da multidão, afastando os passantes mais lerdos para poder passar, e Glinda empurrou a porta aberta. “Graças aos céus, pensei que você ia se atrasar”, ela disse. “O condutor está doido para partir. Você conseguiu um almoço para nós?”

Elphaba lançou em seu colo um par de laranjas, um naco de queijo im­penitente, e uma bisnaga de pão que encheu o compartimento de um ranço pungente. “Isso terá de dar até a sua parada nesta noite”, ela disse.

“Minha, minha?”, disse Glinda. “Que você quer dizer com isso? Você tem alguma coisa melhor para comer?”

“Algo pior, eu desconfio”, disse Elphaba, “mas algo que precisa ser feito. Eu vim para dizer adeus. Eu não vou voltar com você para Crage Hall. Eu acharei um lugar para estudar do meu jeito. Eu não farei parte da escola de Madame Morrible novamente.”

“Não, não”, protestou Glinda: “Não vou deixar você fazer isso! A Babá vai me comer viva! Nessarose morrerá! Madame Morrible vai ― Elfinha, não me faça isso. Não!”

“Diga a eles que raptei você e lhe obriguei a vir aqui, eles acreditarão nis­so, vindo de quem vem”, disse Elphaba. Ela estava plantada no piso do degrau. Uma gorda anã glikkunesa, tendo captado a essência do drama, mudou para o assento mais confortável próximo a Glinda. “Eles não precisam procurar por mim, Glinda, porque não vou ser fácil de encontrar. Vou descer.”

“Descer para onde? De volta ao Estado de Quadling?”

“Isso seria revelar”, Elphaba disse. “Mas não vou mentir para você, mi­nha querida. Não preciso mentir. Eu não sei ainda para onde irei. Eu não decidi, portanto, eu não tenho de mentir.”

“Elfinha, entre nesta carruagem, não seja uma louca”, Glinda gritou. O con­dutor estava ajustando as rédeas e gritando para Elphaba subir rapidamente.

“Você ficará bem”, disse Elphaba, “agora que é uma viajante experimen­tada. Essa é só uma pernada de volta numa viagem que você já conhece.” Ela pôs o seu rosto contra o de Glinda e o beijou. “Agüente as pontas, se você puder”, ela murmurou, e beijou-a novamente. “Agüente as pontas, minha querida.”

O condutor estalou as rédeas, e lançou um grito para partir. Glinda es­ticou sua cabeça para ver Elphaba desaparecer lá atrás, no meio da multidão. Levando em conta a sua compleição singular, foi espantoso vê-la rapidamen­te ficar camuflada no indigente mosaico urbano da Cidade Esmeralda. Ou talvez isso se devesse a algumas lágrimas bobas que estivessem embaçando a visão de Glinda. Elphaba não havia chorado, é claro. Sua cabeça tinha se virado rapidamente enquanto ela descia, não para esconder lágrimas, mas para amenizar a realidade de sua ausência. Mas a dor, no caso de Glinda, foi verdadeira.




Numa noite nevoenta de fim de verão, cerca de três anos depois da gra­duação na Universidade de Shiz, Fiyero parou na capela unionista da Praça de Santa Glinda, para passar algum tempo até se encontrar com um conterrâneo seu na ópera.

Fiyero não fora levado ao unionismo como estudante, mas tinha de­senvolvido um olho apreciador para os afrescos que adornavam os cubículos das velhas capelas. Ele esperava encontrar um retrato de Santa Glinda. Ele não via Glinda dos Arduennas das Terras Altas desde a sua formatura ― ela tinha se graduado no ano anterior. Mas ele esperava que não fosse sacrílego acender uma vela devota em frente ao retrato de Santa Glinda, e ter em mente o nome da jovem.

Um ofício terminava, e a congregação de sensíveis rapazes na adolescên­cia e avós cobertas de xales negros saía lentamente da capela. Fiyero esperou até que a tocadora de lira da nave terminasse de dedilhar um hábil minueto, e aí se aproximou dela. “Peço perdão ― eu sou um visitante do oeste.” Bem óbvio, com a rica cor de ocre de sua pele e as suas marcas tribais. “Eu não vejo um atendente ― um oficial de igreja ― um sacristão, seja lá qual for a palavra ― nem acho um panfleto para me informar ― eu estava procurando um ícone de Santa Glinda.”

O rosto dela permaneceu sério. “Você terá sorte se isso não houver sido coberto por um cartaz de Nosso Glorioso Mágico. Sou uma instrumentista itinerante, que passa por aqui só de vez em quando. Mas, acho que você pode dar uma conferida na última nave; há ali um oratório para Santa Glinda, ou havia. Boa sorte.”

Localizando-a ― um espaço tumular com uma fenda de arqueiro em vez de uma janela ― Fiyero viu, iluminada por uma rósea luz de santuário, uma nevoenta imagem da Santa, um pouco pendida para a direita. O retrato era meramente sentimental e não vigorosamente primitivo, uma decepção. O dano causado pelas águas deixara grandes manchas brancas como falhas de lavagem a sabão nos sagrados trajes da Santa. Ele não conseguia se lem­brar de sua lenda particular, nem o modo elevado pelo qual ela fora levada à morte em consideração à salvação de sua alma e para a edificação de seus admiradores.

Mas aí ele viu, nas sombras profundas, que o oratório tinha a presença de um penitente. A cabeça se curvava em oração, e ele estava para se retirar quando lhe ocorreu, com sobressalto, que sabia quem era aquela figura.

“Elphaba!”, ele disse.

Ela virou sua cabeça lentamente; um xale rendado caiu em seus ombros. Seu cabelo estava preso em laçada na sua cabeça, com presilhas de marfim. Seus olhos se cruzaram uma ou duas vezes lentamente, como se ela estivesse indo em direção a ele, vinda de uma grande distância. Ele havia interrom­pido a sua oração ― não se lembrava que fosse religiosa ―, talvez ela não o reconhecesse.

“Elphaba, é Fiyero”, ele disse, rumando para a porta, bloqueando a sua saí­da, e também a luz ― de repente, ele não podia ver seu rosto, e se perguntava se teria ouvido corretamente o que ela dissera: “Queira desculpar-me, senhor?”.

“Elphaba ― sou Fiyero ― estivemos juntos em Shiz”, ele disse. “Minha esplêndida Elfinha ― como vai você?”

“Senhor, acho que está me confundindo com outra pessoa”, ela disse, com a voz de Elphaba.

“Elphaba, a Terceira Descendente do Thropp, se bem recordo a nomen­clatura”, ele disse, rindo decididamente: “Eu não estou enganado, de modo algum. Eu sou Fiyero dos Arjikis ― você me conhece, você se lembra de mim! Das aulas do Doutor Nikidik em ciências da vida!”.

“Você se confundiu”, ela disse, “senhor.” Esta última palavra soou um pouco como advertência sarcástica, bem ao gênero de Elphaba. “Agora, não se importa se eu desejar ficar em paz, fazendo a minha devoção?” Ela pôs o seu xale sobre a cabeça, e ajeitou-o para cair em suas têmporas. O queixo em perfil poderia fatiar um salame, e mesmo na luz débil ele sabia que não estava equivocado.

“O que é isso?”, ele disse. “Elfinha ― bem, Senhorita Elphaba, se preferir ― não me expulse assim. É claro que é você. Não há disfarce para alguém como você. Que joguinho é esse que está fazendo?”

Ela não respondeu em palavras, mas, mostrando seu rosário ostensiva­mente, estava lhe pedindo que sumisse.

“Não vou embora”, ele disse.

“Está interrompendo minha meditação, senhor”, ela disse suavemente: “Será que vou ter de chamar o sacristão e botar o senhor para fora?”

“Eu a encontrarei lá fora”, ele disse. “Quanto tempo leva para você ter­minar essa reza? Meia, uma hora? Esperarei.”

“Uma hora, então, do outro lado da rua; há uma pequena fonte pública com alguns bancos. Conversarei com você por cinco minutos, apenas cinco minutos, e lhe mostrarei que você cometeu um equívoco. Não um equívoco sério, mas que fica cada vez mais irritante para mim.”

“Perdoe se me intrometi. Numa hora, então ― Elphaba.” Ele não ia deixá-la bater em retirada, fosse qual fosse o jogo que estivesse jogando. No entanto, ele se afastou, e se dirigiu à musicista que estava por trás da nave. “Há alguma outra saída deste edifício além das portas principais?”, ele per­guntou, a voz se sobrepondo aos jorros de seus arpejos. Quando ela achou conveniente lhe responder, ergueu a cabeça e moveu os olhos. “A porta ao lado do claustro das freiras não é aberta ao público, mas você pode pegar uma saída de serviço por ali.”

Ele esperou à sombra de um pilar. Dentro de uns quarenta minutos, uma figura oculta sob um manto entrou na capela e rumou, apoiando-se numa bengala, diretamente para o oratório que Elphaba ocupava. Ele estava distante demais para ouvir as palavras que fossem trocadas, ou qualquer outra coisa. (Talvez o recém-chegado fosse simplesmente outro devoto de Santa Glinda, e quisesse solidão para orar.) A figura não se demorou; foi-se embora tão agilmente quanto suas juntas enrijecidas poderiam permitir.

Fiyero deixou cair uma oferenda na pobre caixa ― uma cédula, para evitar o tinido de uma moeda. Numa parte da cidade tão infestada de mise­ráveis, sua situação de relativa riqueza requeria a dádiva penitencial, embora sua motivação fosse caracterizada mais por culpa que por caridade. Então, ele deslizou pela porta lateral, entrando num grande jardim de claustro. Algumas mulheres velhas em cadeiras de rodas riam lá no fundo e não o notaram. Ele imaginou se Elphaba não pertenceria a essa comunidade de freiras monásti­cas ― monjas, eram chamadas.

Ele agora se lembrava que elas eram mulheres vivendo na mais parado­xal das instituições: uma comunidade de ermitões. Aparentemente, porém, seus votos de silêncio eram revogados quando chegavam à decadência de anciãs. Ele concluiu que Elphaba não podia ter mudado tanto em cinco anos. Então, ele saiu pela passagem de serviço, indo para a rua.

Três minutos se passaram, e Elphaba emergiu da saída de serviço, como ele suspeitava que ela faria. Ela tinha a intenção de evitá-lo! Por que, por quê? A última vez que a vira ― ele se lembrava bem! ― fora no dia do funeral de Ama Clutch, e da festa de bebedeira no boteco. Ela fora para a Cidade Esme­ralda em alguma missão obscura, da qual nunca retornara, enquanto ele fora arrastado para os estupefacientes terrores e alegrias do Clube de Filosofia. Houve boato de que o bisavô, o Eminente Thropp, havia contratado agentes para procurar por ela em Shiz, na Cidade Esmeralda. De Elphaba mesmo nunca veio um postal, uma mensagem, nem uma só pista. Nessarose ficara inconsolável a princípio, e depois começara a se ressentir por a irmã tê-la feito sofrer com tal separação. Nessa se perdeu nas profundezas da religião, a tal ponto que seus amigos começaram a evitá-la.

Amanhã Fiyero pediria desculpas por ter perdido a ópera e feito seu colega de negócios esperar. Hoje, não perderia Elphaba de vista. Enquanto ela ia apressada pelas ruas, olhando para trás mais que uma vez para ver se alguém a seguia, ele pensou: se você estivesse tentando perder-se de alguém, se você realmente pensasse que havia alguém em seus calcanhares, era essa a hora certa do dia para fazê-lo ― não por causa das sombras, mas por causa da luz. Elphaba seguia dobrando esquinas ao sol de verão que, reluzente, disparava setas ofuscantes de luz sobre as ruas laterais, através das arcadas e ao longo dos muros dos jardins.

Mas ele tinha muitos anos de prática de rastrear animais sob condições similares ― nenhum lugar de Oz tinha o sol como tão grande adversário quanto as Pastagens Milenares. Ele sabia como olhar de esguelha e manter a persistência do movimento, e esquecer a idéia de identificar pela forma. Ele sabia também como esconder-se ao longo do caminho sem dar na pinta ou perder o equilíbrio, como se agachar subitamente, como procurar outras pistas de que a presa começara a se mover novamente ― os pássaros assus­tados, uma mudança de som, o vento rompendo. Ela não ia se perder dele, e tampouco conseguiria notar que ele estava em seu rastro.

Assim, ele deu voltas por meia cidade, desde o elegante centro cita­dino ao distrito comercial de baixos aluguéis, em cujas portas sombrias os destituídos erguiam seus lares fedorentos. A uma distância mínima de uma barraca de exército, Elphaba parou diante de algum pequeno armazém de cereais coberto de tábuas, localizou uma chave em algum bolso interno, e abriu a porta.

Ele a chamou de uma curta distância, numa voz comum: “Fabala!”. Mes­mo no ato de se virar, ela tomou ciência de que estava se revelando e tentou recompor a expressão. Mas, era tarde demais. Tinha demonstrado que o re­conhecia, e percebeu. O pé dele estava bloqueando o caminho antes que ela pudesse bater-lhe a pesada porta na cara.

“Você está metida em alguma encrenca?”, ele perguntou.

“Deixe-me em paz”, ela disse. “Por favor. Por favor.”

“Você está com problemas, deixe-me entrar.”

“Você é o problema. Cai fora.” Suas últimas dúvidas sumiram. Ele arrombou a porta com seu ombro.

“Você está me transformando num monstro”, ele disse, grunhindo com o esforço ― ela era forte. “Não vou roubá-la nem estuprá-la. Eu apenas ― não vou ― ser ignorado desse jeito. Por quê?”

Ela então desistiu, e ele caiu estupidamente sobre a parede de tijolos sem reboco do vão da escada, como um personagem bobo se esborrachando num trecho de vaudeville. “Eu me lembrava de você como um cara cheio de delicadeza e graça”, ela disse. “Você queria pegar alguma coisa por acaso, ou estudou para ser desastrado?”

“Ora, vamos”, ele disse, “você força um cara a se comportar como um caipira desajeitado, você não dá chance a ninguém. Não fique tão surpresa. Eu ainda posso ter um pouco de graça. Eu posso fazer delicadezas. Um mo­mentinho só.”

“Shiz ficou em você”, ela disse, com as sobrancelhas erguidas, mas zom­beteira; ela não estava realmente surpresa. “Ouça só as afetações de escola su­perior. Onde está o rapaz do interior cheirando a uma charmosa ingenuidade como um almíscar bem selecionado?”

“Você me parece bem também”, ele disse, um pouco magoado. “Você mora neste vão de escada ou nós vamos a algum outro lugar um pouquinho mais confortável?”

Ela praguejou e escalou os degraus; eles estavam cobertos de excremen­tos de rato e tiras de palha de embrulho. Uma baça luz noturna era filtrada pelas janelas de vidro de um cinzento enfarruscado. Numa curva da escada um gato branco estava esperando, desdenhoso e hostil como todos de sua espécie. “Malky, Malky, miau, miau”, disse Elphaba ao passar por ele, e o bicho se dignou a segui-la até a porta arqueada no topo da escada.

“Da casa?”, disse Fiyero.

“Oh, essa é boa”, disse Elphaba. “Bem, logo serei tomada por bruxa, como sou tomada por outras coisas. Por que não? Aqui, Malky, um leitinho.”

O aposento era grande e parecia apenas casualmente arrumado para moradia. Originariamente um depósito de mercadorias, fora construído com portas duplas que podiam abrir para fora, para receber ou entregar sacos de cereal que eram transportados por guincho até a rua. A única luz natural incidia sobre um par de janelas de vidro numa clarabóia aberta em quatro ou cinco polegadas. Penas de pombo e uma torrente de dejetos brancos e sanguinolentos no assoalho lá embaixo. Oito ou dez caixotes em círculo, servindo como assentos. Uma cama de enrolar. Roupas dobradas num baú. Algumas plumas estranhas, lascas de ossos, dentes enfileirados, e uma pata murcha de ave, castanha e enrolada como uma tira de bife: estas coisas esta­vam penduradas em pregos na parede, e arranjadas como arte decorativa ou como objetos de feitiçaria. Uma mesa de madeira de salgueiro ― uma bela peça de mobília, aquela! ― cujos três pés arqueados terminavam em patas de corça elegantemente entalhadas. Alguns pratos de lata, vermelhos com pon­tinhos brancos, alguma comida embrulhada com pano e barbante. Uma pilha de livros ao lado da cama. Um gato de brinquedo amarrado a um cordão. De maior efeito, e mais horrível, havia a caveira de um elefante pendurada num caibro, e um buquê de rosas de um rosado cremoso, secas, emergia de um bu­raco central na carcaça do crânio ― como os miolos explodidos de um animal moribundo, ele não podia deixar de pensar, lembrando-se dos interesses de juventude de Elphaba. Ou talvez uma homenagem às pretensas habilidades mágicas dos elefantes?

Abaixo disso estava pendurada uma tosca fôrma oval de vidro, riscada e lascada, usada como espelho, talvez, embora seu potencial para refletir não parecesse confiável.

“Então, este é o seu lar”, disse Fiyero enquanto Elphaba trazia um pouco de comida para o gato e continuava indiferente a ele.

“Não me faça perguntas e eu não direi mentiras”, ela disse.

“Posso me sentar?”

“Essa é uma pergunta” ― mas ela estava rindo ― “oh, bem, então, sente­-se por uns dez minutos e me fale de você. Entre tantos, por que foi logo você quem se tornou sofisticado?”

“As aparências enganam”, ele disse. “Eu posso usar o traje e adotar a linguagem rebuscada, mas no fundo continuo sendo um membro da tribo de arjiki.”

“Como é a sua vida?”

“Tem aí alguma coisa para beber? Não álcool ― eu tenho apenas sede.”

“Eu não tenho água corrente. Eu não uso. Há algum leite duvidoso por aí ― ao menos o Malky pode encará-lo ― ou talvez haja uma garrafa de cerveja preta ali no alto da prateleira ― sirva-se.”

Ela tomou um pouco da cerveja de uma panela de barro, deixando o resto para ele.

Ele fez o mais conciso dos esboços de sua vida. De sua esposa, Sarima, a noiva de infância, que crescera e se tornara fecunda ― tiveram três filhos. Dos velhos centros administrativos das usinas hidráulicas do Escritório de Obras Públicas em Kiamo Ko, que, por emboscada e ocupação, seu pai ha­via transformado no reduto de um chefe e numa fortaleza tribal tal como nos tempos do Regente Ozma. Da atordoante vida esquizóide de ter de se mudar todo ano das Pastagens Milenares na primavera e no verão, quando o clã caçava e festejava, para um outono e inverno mais seguros em Kiamo Ko. “Um príncipe de Arjiki pode ter negócios aqui em Cidade Esmeralda?”, disse Elphaba. “Se forem financeiros, você deveria estar em Shiz. O negócio desta cidade é militarismo, meu velho amigo. Que é que você faz?”

“Você já sabe o bastante a meu respeito”, ele disse. “Também sei bancar o melindroso e enganador, se tudo se trata de fingimento e não segredos muito sérios.” Ele supôs que o negócio trivial de acordos comerciais não impressio­naria a sua velha amiga; ele se envergonhava por suas atividades não serem mais audaciosas ou emocionantes. “Mas, eu segui vivendo. E você, Elfinha?”

Ela não disse nada por uns momentos. Improvisou um pouco de salsi­cha seca e algum pão envelhecido, e pegou umas laranjas e limão, e colocou tudo sem cerimônia na mesa. Na atmosfera infestada de traças, ela parecia mais uma sombra que uma pessoa; sua pele verde parecia exoticamente suave, como folhas de primavera em seu mais suave aspecto, e alisada, como o cobre. Ele teve uma ânsia sem precedentes de agarrá-la pelo pulso e fazê-la parar de se movimentar ― se não para fazê-la falar, ao menos para imobilizá-la, a fim de poder olhar para ela.


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