Fortune, uma mulher impiedosa. Bertrice small



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ULSTER E INGLATERRA 1630-1631
"Tudo que sei sobre o amor é que o amor é tudo que há." — Emily Dickinson
Capítulo 7
O dia 21 de junho, véspera do solstício de verão, marcava o ponto intermediário na estação entre May Day, o festival de pri­mavera, e as comemorações de Lammastide, a primeira colhei­ta, em lg de agosto. Em Ulster, o dia amanheceu ensolarado, o que era incomum. Kieran Devers cavalgou de Erne Rock a Mallow Court para se certificar de que a propriedade do pai era administrada corretamente em sua ausência. Foi uma gran­de surpresa encontrar a irmã, Lady Colleen Kelly, na casa.

— Quando chegou? — perguntou ele com grande alegria ao cumprimentá-la.

— Mamãe escreveu da Inglaterra pedindo-me que viesse conferir se você estava bem — respondeu ela, sorrindo.—Onde estava, Kieran? Cheguei há três dias, e os criados foram todos muito misteriosos. — Ela era uma mulher bela e ainda jovem, com cabelos negros como os dos irmãos e lindos olhos azuis. — Mamãe ainda se inquieta por Willy ter sido recusado por Lady Lindley, mas já planeja casá-lo com Emily Anne. Diz que ele está se conformando, o que significa que, mais uma vez, nosso irmão submeteu-se à vontade materna. — Colleen riu. — Lady Lindley é realmente horrível como mamãe diz que é?

—Fortune Lindley é independente, determinada, inteligen­te, astuta e linda. Ela teria feito Willy absolutamente miserável, porque viveria sempre pressionado entre a esposa e a mãe. Lady Lindley foi esperta o bastante para compreender a situação e recusá-lo, embora tenha usado de grande gentileza para isso.

— Fala como se a conhecesse bem, meu irmão.

— Vou me casar com ela, Colleen.

— Kieran!

— Eu sei, eu sei... Fortune e eu nos apaixonamos. Nunca teremos o perdão de Lady Jane ou de Willy, mas nada podemos fazer contra a força de nossos sentimentos. É impossível con­trolar a direção do coração, como descobri recentemente, para minha grande surpresa.

— Mamãe cobiça Maguire's Ford desde que soube, pelo Reverendo Steen, que a proprietária é uma duquesa mãe de uma filha solteira. Ela jamais o perdoará pelo insulto por ter roubado dela essa oportunidade, Kieran.

— Lady Jane conheceu Fortune e não gostou dela. Na ver­dade, não mediu esforços para afastar o filho da influência da jovem.

— Mas você vai se apoderar de Maguire's Ford, que é mui­to maior e mais próspera que Mallow Court, e depois de Willy ter sido preterido para desposar a herdeira do lugar. Ela vai considerar sua atitude uma afronta imperdoável, meu irmão. Sabe disso tão bem quanto eu. Se ela não permitiu que herdas­se os bens de nosso pai por ser católico, acha mesmo que ela vai ficar quieta enquanto arranca das mãos dela uma propriedade muito maior?

— Maguire's Ford não pertence a Fortune. Pertence à mãe dela, a duquesa de Glenkirk. Fortune só a herdaria se despo-sasse um protestante. Lady Leslie não é tola, Colleen. Fortune e eu iremos para a Inglaterra, e de lá provavelmente seguiremos para o Novo Mundo. Nenhum de nós se sente em casa em ne­nhum dos lugares em que vivemos até hoje.

— Por que não pode simplesmente tornar-se protestante? Pense nisso, Kieran! Se sua Fortune conseguisse trazê-lo para nossa Igreja, mamãe se sentiria ainda mais frustrada depois de tantas tentativas infrutíferas.

— Você sabe por que não me converto.

— Kieran, nossa verdadeira mãe morreu há 27 anos. Você já mostrou o que pensa. Odeio que tenha de deixar a Irlanda! Nunca mais o veremos. Se não tivesse aquela miniatura de nossa mãe, você nem se lembraria mais de como ela era — argumen­tou Colleen, desesperada.

— Ela era parecida com você, Colleen. Tinha olhos azuis e cabelos negros, e havia completado 20 anos quando morreu para trazê-la ao mundo. Não a culpo pelo que aconteceu, minha irmã. Você tinha apenas 2 anos quando papai se casou novamente. Não culpo Moire, porque ela não queria ser afastada de nosso pai. Quanto a mim, tomei minha decisão há muito tempo. Não vejo razão para mudá-la.

— Mas você não é devoto nem praticante fervoroso! Por que se importa tanto com isso? Não entendo!

— Venha comigo a Erne Rock e conheça Fortune. Os Leslie são muito hospitaleiros.

— Não, Kieran. Se for, terei de contar a mamãe que sei so­bre seus planos e não quero fazer isso. Você reverencia a me­mória de nossa mãe, mas esquece que Lady Jane é a única mãe que tive. Ela não fez distinção entre seus filhos e enteados, e mesmo quando a desapontei casando-me com um protestante irlandês, em vez de preferir üm inglês, nunca me abandonou. Mary também a ama. Você foi o único filho de meu pai que não conseguiu se entender com ela, Kieran.

— Você voltará para casa e não verá nossa madrasta antes do casamento de Will e Emily Anne. Até lá, todos saberão que Fortune e eu nos casamos. Lady Jane estará dividida entre a alegria de unir o filho a Emily Anne e o ultraje causado por meu casamento. Ela nem terá tempo para pensar se você co­nheceu ou não os Leslie quando esteve aqui. Vai presumir que guardei segredo, porque sabia que você contaria tudo a ela. Você sempre foi boa demais, Colleen; nossa madrasta jamais suspei­taria de um subterfúgio. — Ele sorriu com ternura para a irmã. — E bem provável que não voltemos a nos ver depois dessa reunião, minha irmã. Essa é a sua única chance de conhecer Fortune. Quero que conheça a mulher que será minha esposa. Você é minha irmã preferida, o último presente de nossa verda­deira mãe para a família.

— Maldição, Kieran! — exclamou ela com lágrimas nos olhos. — Você fala com a astúcia de um diabo! Está bem, irei conhecer sua escolhida e depois voltarei para minha casa no sul. Mamãe voltará logo depois do Lammastide, pois o casa­mento de Willy acontecerá no dia de São Miguel.

— Preciso de algumas horas para examinar os livros contá­beis da propriedade. Passarei a noite aqui, e amanhã iremos juntos a Maguire's Ford.

— Terei de fingir que estou indo embora — disse Colleen. — Não quero as criadas de mamãe fazendo comentários quan­do ela voltar, e elas certamente comentarão. Para você não im­porta, eu sei, mas é importante para mim, Kieran.

— Sim — respondeu ele. — Eu entendo, Colleen, mas que­ro que você, minha irmã preferida, saiba que Fortune não é a criatura diabólica e terrível que Lady Jane descreve.

— Está apaixonado, meu irmão! Realmente apaixonado. Nunca pensei que um dia isso pudesse acontecer.

— Os católicos também se apaixonam. Ela riu.

— Meu irmão, não ouse pintar-me com as mesmas cores que desenha nossa madrasta. Graças a você, não tenho esse tipo de preconceito.

Ele riu.


— Se Lady Jane soubesse que costumava ir à missa comigo de vez em quando, também a teria deserdado. Sempre confiei em você. Moire não teria feito nada que pudesse provocar a ira de nossa madrasta, porque temia qualquer tipo de desaprova­ção, mas você era aventureira e rebelde como eu. Sempre fo­mos diferentes dos outros. Só nós dois conhecemos Molly, a bondosa amante de nosso pai, e nossas meio-irmãs.

—Até hoje não entendo como nunca me descobriram. Qua­se fui pega quando Bessie tinha 8 anos. Ela ficou curiosa sobre nossos passeios misteriosos. Eu disse a ela que procurávamos um leprechaun e seu ouro. Sempre foi muito parecida com ma­mãe e zombou de mim por eu acreditar nessas coisas, mas o improviso saciou sua curiosidade. Com Mary foi diferente. Ela nos seguiu um dia, quando fomos visitar Molly e as meninas.

Quando voltamos, ameaçou contar tudo a Lady Jane. Era tão cruel! Eu disse que, se contasse, você lançaria sobre ela uma maldição irlandesa que faria crescer uma enorme verruga bem na ponta de seu nariz, e ela nunca encontraria um marido. Mary duvidou, mas ficou com medo, eu sei, porque nunca contou nada à mamãe.

— Então, foi por isso que nunca mais voltou à casa de Molly.

— Achei melhor evitar mais problemas. Mary não sabia se a visita que havia testemunhado era um evento isolado ou uma ocorrência freqüente. Foi melhor assim.

À noite, os dois irmãos viram as fogueiras acesas nas en­costas em honra ao solstício de verão. Haveria dança e banque­tes nos vilarejos próximos. Kieran deu permissão aos criados para celebrarem, se quisessem. Sem a presença de Lady Jane e sua desaprovação, a casa ficou vazia ao entardecer. Colleen ins­truiu seu cocheiro e a criada que a acompanhava para que pre­parassem tudo, pois partiriam cedo no dia seguinte.

Ao amanhecer, deixaram Mallow Court. Assim que chega­ram à estrada, Colleen ordenou ao cocheiro que parasse. Ali, ela saiu da carruagem, desamarrou a égua que viajava presa atrás do veículo, montou nela e informou ao condutor:

— Tenho de fazer uma breve parada antes de seguirmos para o sul, Joseph. Siga-nos sem fazer perguntas.

No meio da tarde, avistaram Maguire's Ford e foram vistos por seus habitantes. Fortune foi encontrá-los cavalgando seu imponente garanhão cinza, os cabelos vermelhos soltos ao vento enquanto ela galopava pelas colinas.

— Se essa é sua esposa e você mentiu para mim, Kieran Devers, cortarei sua cabeça antes que possa dar meia volta! — exclamou ela rindo ao parar diante dos irmãos.

— Esta é minha irmã Colleen, e eu a trouxe para conhecê-la. Alguém na família precisa me ajudar a defender sua reputa­ção. Mas você, megera de língua ferina e temperamento explo­sivo, acaba de desgraçar-se por completo!

Fortune olhou para Lady Colleen Kelly.

— Então é a última filha de Mary Maguire — disse. — Seja bem-vinda a Maguire's Ford, milady. Ficará conosco por alguns dias?

— Suponho que sim — Colleen ouviu-se dizendo.

— Ótimo! Venham, vamos ver quem chega primeiro em casa! Espero que seja melhor que seu irmão em corridas a cava­lo. Ele sempre reclama e choraminga quando perde, o que acon­tece com grande freqüência.

— Eu nunca choramingo — anunciou Colleen, partindo num galope frenético.

Fortune a seguiu. Balançando a cabeça, Kieran trotou sem pressa, razão pela qual só alcançou as duas mulheres quando já estavam todos no pátio de Erne Rock, onde elas riam e se abraçavam.

— Suspeito de que têm muito em comum — comentou ele enquanto desmontava.

— Vamos entrar — convidou Fortune, dando o braço a Colleen. — Meus pais terão grande prazer em conhecê-la.

Jasmine e James Leslie estavam no salão de Erne Rock. A duquesa descansava sentada diante do fogo, e o duque con­versava com ela em pé, apoiado no console da lareira. As apre­sentações foram feitas, mas Fortune percebeu de repente que os pais pareciam quietos, taciturnos.

— Aconteceu alguma coisa? — perguntou ela, apreensiva.

— Sua mãe tem notícias inesperadas — respondeu o du­que, passando um braço sobre os ombros da esposa como se quisesse transmitir força e apoio.

— Mamãe? — Fortune não escondia a preocupação.

— Talvez este não seja um bom momento para hóspedes inesperados — sugeriu Colleen.

— Não, minha querida, você é muito bem-vinda — respon­deu Jasmine. — Acontece que hoje tive uma grande surpresa. Tudo indica que... vou ter um bebê.

— O quê? — o rosto de Fortune ficou pálido. — Mamãe! Não pode ser! Você não tem mais idade para ter um bebê!

Jasmine riu, afagando o rosto da filha.

— Foi exatamente o que pensei, meu bem, mas parece que não estou tão velha assim, afinal.

— Nem eu — acrescentou James Leslie.

Fortune corou, visivelmente embaraçada pelo comporta­mento dos pais. Porém, a idéia de ter outro bebê em casa era agradável. Assim, os pais não sentiriam tanto sua falta quando partisse com Kieran.

— Para quando esperam esse filho?

— Novembro — respondeu Jasmine.

—Senhora, minhas congratulações—manifestou-se Colleen. — Sou mãe de três filhos.

— Como pode ter certeza de que está grávida, mamãe?

— Tenho certeza porque já tive oito filhos antes, minha que­rida. Confesso que, quando percebi que meu ciclo se havia in­terrompido, cheguei a pensar que o outono de meus anos fér­teis se aproximava. Mas depois notei... Bem, não sei se essa é uma conversa adequada para um momento como este, quan­do recebemos visitas, mas vamos dizer apenas que tenho certe­za, e Bride Murphy, que é a parteira do vilarejo, confirmou mi­nha suspeita.

— Então, devemos retornar a Glenkirk imediatamente — reagiu Fortune apreensiva.

— Não. Bride aconselhou-me a ficar aqui e evitar viagens desnecessárias por causa da minha idade. O bebê nascerá aqui, como você. Já mandei um mensageiro buscar Adam e Dundan. Assim, o povo daqui poderá conhecê-los antes do que planejá­vamos. Seu irmão Patrick terá de ficar sozinho em Glenkirk. Mandei outro mensageiro a Edimburgo para pedir a tio Adam e tia Fiona que fiquem com ele. Patrick gosta da companhia dos dois e não se sentirá tão desamparado com eles em casa. Sei que Adam e Fiona se aborreceram com a cidade nos últimos anos. Acredito que não perderão uma oportunidade de voltar a Glenkirk. Então, meus queridos, devemos nos preparar para uma estada mais prolongada do que prevíamos.

— Nesse caso, Kieran e eu devemos nos casar imediata­mente. Colleen contou que os Devers retornarão da Inglaterra depois do Lammastide. Will se casará com sua prima Emily Anne no dia de São Miguel.

— Não deve se casar com Kieran antes das núpcias de William, Fortune — James Leslie manifestou-se. — Os Devers não vão gostar de saber sobre o que aconteceu aqui em sua au­sência. Se voltarem e encontrarem Kieran casado, isso causará grande mal-estar entre o povo de Maguire's Ford e o de Lisnaskea. William a pediu em casamento, e você o recusou. Com delica­deza, mas recusou. Se você e Kieran se declararem publicamen­te, e se forem unidos em matrimônio antes de William se casar com a prima, o insulto se tornará ainda maior. Sabe que tem nossa permissão para se casar com Kieran. Pedimos apenas que espere até o dia de São Miguel, quando William se casará.

— Concordo com sua posição, milorde — anunciou Kieran com tom grave, antecipando o protesto de Fortune, para quem olhou com ar muito sério. — Seu pai está certo. Amo meu pai e meu irmão. Não quero causar mais problemas entre nós.

— Eles ficarão ofendidos de qualquer maneira!—argumen­tou Fortune.

— Mas a ofensa será menor depois do casamento de Willy — interferiu Colleen. — Minha madrasta vai ficar furiosa, é cer­to, mas se Willy estiver casado, será mais fácil preservar as apa­rências. Porém, se ela chegar e descobrir que você e Kieran são um fait accompli, tudo será muito pior. O que me preocupa é a vontade dela de possuir Maguire's Ford, o que esperava conse­guir por intermédio do casamento entre Willy e Fortune. Milady duquesa, Kieran afirma que a propriedade é sua. É verdade? Por favor, entenda: amo minha madrasta e jamais seria desleal com ela, mas também amo meu irmão Kieran. Lady Jane é ambi­ciosa. Ela não vai gostar de saber que o enteado vai tomar posse das terras e da noiva que ela cobiçava para o próprio filho.

— Kieran não terá Maguire's Ford — respondeu Jasmine com a habitual serenidade. — Meus dois filhos mais novos, ambos Leslie, foram criados na Igreja protestante. Sendo os ca­çulas da família, eles nada têm que os recomende, além de um bom nome. Meu filho mais velho é o marquês de Westleigh. O segundo é o duque de Lundy. O terceiro herdará um dia o ducado do pai. Só Adam e Duncan não têm títulos ou terras. Eles bem podem viver sem os títulos, mas nada farão sem bens e propriedades. Vou dividir Maguire's Ford igualmente entre os dois. Roubar de mim essa propriedade, seja qual for a alega­ção, exigiria grande influência na corte. Não creio que sua ma­drasta disponha desse recurso, mas eu o possuo.

— Milady, mas onde viverão Kieran e Fortune, especial­mente com toda essa intransigência com a questão religiosa? Meu irmão disse alguma coisa sobre o Novo Mundo...

— Sim. George Calvert está tentando fundar uma colônia no Novo Mundo com base nos princípios da liberdade religio­sa. Ele é católico, é benquisto e muito respeitado. O rei tem gran­de amizade por ele. Se alguém tem chance de alcançar sucesso nessa empreitada, esse homem é Sir George. Creio que há um lugar para Fortune e seu irmão na colônia. Quando voltarmos à Inglaterra, veremos que progressos ele conseguiu realizar. Enquanto isso, escreverei para meu filho Charlie, que está na corte. Ele obterá todas as informações de que necessito. Não se preocupe com Kieran, minha cara. Há um porto seguro para ele e para Fortune. Agora, porém, temos de providenciar aco­modações para você. Nossos aposentos de hóspedes são pe­quenos, mas muito confortáveis. Tenho certeza de que Adali já está providenciando tudo.

— É muito generosa, milady — comentou Colleen com sim­patia e gratidão. — Fico feliz por Kieran ter insistido em me trazer aqui. Agora sei que meu irmão está seguro e cercado de pessoas de boa índole e bom coração.

Lady Colleen passou vários dias em Erne Rock, apesar de sua intenção inicial de não prolongar a estadia. Gostava do duque e da duquesa. Fortune a encantava e divertia, apesar da franqueza excessiva. Podia entender com facilidade por que o irmão se apaixonara pela jovem. Embora fosse a mulher errada para Willy, era perfeita para Kieran. Por ter passado alguns anos fora, em contato com outras formas de convício social, Colleen constatava que Lady Jane levava uma existência isolada em Lisnaskea, e entendia que, em Dublin, Fortune seria muito apre­ciada por sua força e determinação, pela beleza e por seu inte­lecto. Seu irmão mais velho e a jovem Lady Fortune formavam um par perfeito, apesar de todos os problemas que teriam de enfrentar por causa do casamento. Sua madrasta encontraria um meio de vingar-se.

— Já marcaram a data do casamento? — perguntou ela ao casal na noite anterior à sua partida.

Kieran olhou para Fortune.

— Alguns dias depois do casamento de William — disse ela. — Quando Lady Jane souber que passaremos os próximos meses aqui em Maguire's Ford, certamente se sentirá obrigada a convidar minha família para o casamento. Excluir-nos seria uma terrível gafe social, considerando que .meus pais detêm posições elevadas e títulos de nobreza, sem mencionar que man­têm forte e ativa amizade com o rei. E nós teremos, de compare­cer à cerimônia, senão podemos causar a impressão de estar esnobando os Devers. Além disso, nossa ausência daria mar­gem a rumores sobre Will ter me rejeitado em favor de sua pri­ma, Elliot Anne. E isso seria impensável.

— Mamãe ficaria muito satisfeita com isso — comentou Colleen com sinceridade bem-humorada. — Quando informa­rão a família sobre seus planos?

— Não sei — respondeu Fortune preocupada. — Estou con­fusa quanto à melhor maneira de abordar o assunto. Não que­ro estragar o dia do casamento de seu irmão Willy e receio que essa notícia caia como uma bomba sobre a comemoração.

Colleen assentiu.

— Kieran vai ter de voltar a Mallow Court. Se ficar aqui, as fofocas serão inevitáveis, e meus pais tomarão conhecimento dos rumores assim que chegarem. Os criados de nossa família adoram Kieran. Mas agora que ele não é mais o herdeiro, são mais leais à minha madrasta e a Willy, porque precisam pen­sar na própria segurança e em seu futuro. Não posso culpá-los por isso.

— Lady Kelly está absolutamente correta — declarou o du­que de Glenkirk. — Sei que vocês se amam, minha querida, mas, até o dia do casamento, devem se manter separados. Os Devers ficarão furiosos quando souberem de tudo. Porém, Sir Shane é um homem razoável e sensato. Sei que poderei chegar a um bom termo com ele. Mas sua esposa e William ficarão mortalmente ofendidos. Não esperem perdão, minha querida. Eles não vão poupar esforços para criar dificuldades.

— Mas Lady Jane conseguiu o que sempre quis. Will vai se casar com a prima, Elliot Anne — argumentou Fortune com desespero.

— Não era vacê que minha mãe queria para Willy, Fortune — explicou Colleen. — Era a sua propriedade. Ela esperava poder sufocar a decepção de não ter a sobrinha por nora e aceitá-la nessa posição porque o enlace traria Maguire's Ford para nossa família. Mas, quando a conheceu, quando tomou conhecimento de sua beleza e de sua força interior, quando soube de sua determinação e da tradição das mulheres de sua família, todas no comando da própria vida e de suas rique­zas, decidiu que não poderia suportá-la, pois você teria tirado Willy dela, algo que a pobre Emily Anne jamais conseguirá fazer.

— Você é muito astuta — constatou a duquesa.

— Por favor, não me julgue desleal, milady. Amo minha família e só quero que todos sejam felizes. Mamãe não pode evitar essas atitudes. Ela é ambiciosa, e essa ambição se esten­de a todos os filhos. Lady Jane usou parte da herança que o pai deixou para ela para arranjar casamentos para minhas irmãs, Mary e Bessie, com pequenos senhores de terra na Inglaterra. Ela se orgulha muito dessas associações. A mãe de meu Hugh é inglesa, e só por isso ela permitiu nosso casamento. Ela não gosta de irlandeses, embora tenha se casado com um. E não é uma atitude maldosa. Sempre se empenhou para ser uma boa espo­sa para meu pai e uma boa mãe para os filhos dele. Só Kieran escapou de sua vigilância, mas, por ele não ter se oposto à sua sugestão de fazer de William o herdeiro de meu pai, ela se dis­pôs a tolerar o que chama de seu comportamento impossível. Lady Jane diz que toda família tem sua ovelha negra.

— Kieran não é uma ovelha negra — protestou Fortune, indignada. — Ele é um homem de fortes princípios.

— Infelizmente meus princípios não são os mesmos de mi­nha madrasta — Kieran Devers sorriu.

Colleen gargalhou.

— Tem razão, meu irmão, não são.

Na manhã seguinte, Lady Kelly deixou Erne Rock Castle para voltar à sua casa nos arredores de Dublin.

— Talvez ofenda minha madrasta, milady duquesa — dis­se ela a Jasmine ao se despedir — mas, se o casamento de sua filha acontecer logo depois do de meu irmão Willy, estarei aqui para assistir à cerimônia. Pode escrever informando a data es­colhida pelos noivos? Se não estiver enganada, meu pai tam­bém comparecerá. Ele não diz nada porque ama minha madras­ta. Mas também ama Kieran, embora fique muito magoado com a intransigência de meu irmão mais velho.

— Eu escreverei — prometeu Jasmine.

A carruagem de Lady Kelly deixou o pátio e atravessou a ponte. Kieran e Fortune cavalgavam ao lado do veículo, que acompanharam até a estrada para Dublin. Lá, a carruagem pa­rou por um minuto, enquanto os dois irmãos se despediam e Fortune beijava o rosto de Colleen. Depois, o coche seguiu via­gem, e Kieran e Fortune ficaram acenando até perdê-lo de vista.

A manhã de final de junho estava nublada e morna. Era óbvio que teriam chuva forte no final da tarde. Cavalgaram como sempre, porém sem conversar, buscando seu lugar favo­rito — as ruínas do salão de Black Colm Maguire. Fortune con­versara com Rory sobre aquele lugar depois de ter estado ali pela primeira vez com Kieran. Colm, o Negro, passara a ser cha­mado assim não pela cor de seus cabelos, mas por ter um cora­ção negro. Quando raptara e violentara a esposa de um chefe do clã, os parentes enfurecidos decidiram detê-lo. Eles haviam invadido o salão numa noite escura e sem luar, mas não o en­contraram, porque ele desaparecera levado por seu mestre, o diabo, como se dizia. E nunca mais voltara a ser visto. Sua infe­liz vítima fora resgatada e levada de volta para casa, mas nun­ca mais dissera uma só palavra a ninguém, para grande triste­za do marido. O salão de Black Colm fora destruído e saqueado.

"É um lugar repleto de infelicidade", havia concluído Rory. Mas Fortune não concordava com ele, pois ali ela e Kieran po­diam ficar a sós, livres de olhares intrusos. Para ela, as ruínas eram um palácio de felicidade. A chuva de verão caiu repenti­namente, embalada por violentos trovões. A água formava den­sas cortinas brancas, escondendo o rio e as colinas. Os cavalos se protegeram sob um patamar rochoso dentro das ruínas, e Kieran e Fortune se encolheram na alcova de costume, onde ficaram abraçados.

— Temos de marcar a data do nosso casamento antes de você me deixar — disse Fortune.

— Só precisa me dizer o dia, minha querida, e estarei lá.

— Outubro, então. Assim que for possível, depois do casa­mento de seu irmão William. No quinto dia de outubro?

— É uma data tão boa quanto qualquer outra, minha que­rida.

— Kieran, não suporto a idéia de nos separarmos. Sei que me comporto como uma criança mimada, mas pensar em não ver você todos os dias é muito difícil. — Ela levantou o rosto para beijá-lo.

— Não é para sempre, meu amor. — Kieran beijou seus lá­bios várias vezes, excitado por sua inocência.

— Não podemos nos encontrar aqui, onde não há ninguém para nos ver? — ela o persuadia docemente, a língua formando círculos ao redor dos lábios dele.

— Minha família retornará depois do Lammastide. Ainda temos um mês, Fortune. E, quando eles voltarem, vai ser mais difícil sair sem despertar suspeitas. Quando minha madrasta organiza uma celebração em família, somos todos pressiona­dos a colaborar, e ela espera resposta imediata para seus cha­mados. O casamento de Willy será o grande triunfo de sua vida até agora, porque ele é o herdeiro de Mallow Court. Se a pobre Emily Anne espera que esse seja seu dia por ser a noiva, vai ficar muito desapontada, pois a sogra certamente aparecerá mais do que ela. — Kieran riu. — Podemos nos encontrar aqui vá­rias vezes por semana até o início dos preparativos. Depois, não há como prever quando nos veremos, minha querida.

Por alguns momentos, Fortune foi dominada por forte sen­timento de decepção, mas depois riu:

— Suponho que estarei tão ocupada preparando nosso ca­samento que nem sentirei sua falta. Quero dizer... quase nada — consertou ela. — Não vai ser uma surpresa para todos quan­do nos casarmos apenas uma semana depois de Will e sua Emily?

— Acho que choque é uma palavra mais adequada — res­pondeu ele, rindo. — Tem certeza de que não quer preveni-los?

— Não, Kieran! Não temos tempo para informar sua famí­lia. Acabaríamos arruinando o casamento de Will e causaría­mos tamanha comoção que seríamos o foco de todas as aten­ções. Isso não agradaria Lady Jane. Além do mais, por mais que não simpatize com sua madrasta, gosto de Will e não quero causar a ele nenhuma infelicidade.

— Nosso casamento não vai agradar minha madrasta.

— Absolutamente não, mas, francamente, esse não é um problema dela, é? Você não é filho dela. Além disso, por pura inveja e ganância, ela prestou a você grande desserviço, rou-bando-lhe a herança que agora será transmitida ao filho dela. Não tenho nenhuma simpatia por Lady Jane.

— Você é tão forte e determinada... — Kieran tomou-a nos braços para um beijo prolongado.

— Faça amor comigo, Kieran... — sussurrou ela em seu ouvi­do, usando a ponta da língua para umedecer sua orelha antes de beijá-la suavemente, movendo o corpo contra o dele de ma­neira sinuosa e provocante. — Você me deseja, Kieran. Eu sei que me quer!

— Quanta maldade — respondeu ele por entre os dentes. Podia sentir seu membro despertando com sério interesse.

Em resposta, Fortune soltou os botões de seu colete e as fi­tas que mantinham fechada sua blusa. Sorriu quando, incapaz de conter-se, Kieran introduziu a mão pela abertura para acari­ciar um seio, apertando o mamilo entre os dedos.

— Ohhh... — gemeu Fortune.

Ele a pressionou contra a parede de pedra da alcova.

— Não devia me provocar assim, Fortune. Não sabe o que está fazendo!

— Sim, eu sei exatamente o que estou fazendo, Kieran. Es­tou farta de ser virgem! Faça amor comigo!

— Não. Em nossa noite de núpcias você será virgem, Fortune. Mas, como está curiosa, vou lhe dar uma pequena amostra do que pode ser a paixão. Veremos se é corajosa o bas­tante para enfrentá-la até o final. Antes que ela pudesse protes­tar, Kieran a despiu da cintura para cima. — Ahhhh... — suspi­rou ele, acomodando-a sobre o banco de pedra para melhor apreciá-la.

Fortune estava surpresa, mas sorria com ar sedutor enquan­to soltava o cinturão e baixava a calça de montaria, deixando-a cair em torno dos canos das botas.

— E você, Kieran? Até onde vai sua coragem?

— Jesus... — Fortune estava nua e ao alcance de suas mãos. Sua pele era alva, suave e acetinada. Não havia pêlos sobre seu monte de Vênus. Ouvira dizer que as damas se depila-vam daquela maneira, mas nunca tivera aquela visão antes. Suas amantes no campo exibiam orgulhosas, os pêlos púbicos sobre a área rosada e macia. Mas Fortune exibia apenas uma fenda estreita que parecia convidá-lo a um mergulho na insa­nidade. — Cubra-se — implorou ele. — É linda demais para que eu possa resistir, Fortune. — As mãos já acariciavam seu corpo tentador.

Com um profundo suspiro de prazer, Fortune fechou os olhos, sentindo o hálito úmido e morno em seu ventre. Ela se espantou ao sentir os beijos naquela região tão íntima. As mãos acariciavam seus seios. Todo seu corpo clamava pelo dele, buscando-o instintivamente.

Kieran Devers estava abalado, dominado pelo desejo. A sim­plicidade com que Fortune se oferecia e a confiança implícita no gesto de despir-se para ele eram, ao mesmo tempo, como­ventes e perigosas. Tinha uma ereção que era como ferro indes­trutível. Por que não? Onde estava o mal em possuí-la? Logo estariam casados.

Sim, seriam casados, mas sentia por Fortune uma mistura densa de amor e respeito. E se a engravidasse? E se, Deus o pro­tegesse, sofresse algum acidente fatal e morresse antes do casa­mento? Ela teria um filho bastardo! E não era como a mãe dela, uma princesa real Mugal, nem teria em seu ventre um bastardo de um príncipe Stuart, uma criança que seria bem-vinda, em­bora ilegítima. Estava à beira de perder a sanidade. Gemendo, ele a vestiu depressa e exigiu, irritado:

— Cubra-se!

— Qual é o problema? O que foi que eu fiz? Por que não me quer, Kieran?

— Termine de vestir-se e então conversaremos — respon­deu ele, virando-se ao ver as lágrimas nos olhos dela.

Confusa, tomada por sentimentos que nunca experimen­tara antes, coisas que certamente não entendia, Fortune vestiu a camisa e a amarrou. Depois foi a vez da calça.

— Estou vestida — anunciou ela finalmente, sentando-se outra vez no banco.

Ele se virou. Sem dizer nada, abraçou-a.

— Amo você — disse ele. — Quando tirar sua virgindade, quero que seja em nosso leito nupcial. Quero ter tempo para acariciá-la e admirar sua beleza. Quero cobri-la de beijos lon­gos e doces, não só em seus lábios, mas em todo seu corpo. Se alguma coisa acontecer comigo antes de trocarmos nossos vo­tos de casamento, e se você estiver grávida, se estiver esperan­do um filho nosso, uma criança feita com amor, nosso inocente herdeiro será considerado bastardo, e por isso será discrimina­do. Não posso permitir que isso aconteça, Fortune. Não farei isso com você e com nosso filho. Entendeu?

Ela assentiu, apoiou a cabeça em seu peito e disse:

— Mas eu o quero tanto, Kieran! Meu corpo dói com essa necessidade pelo desconhecido.

— Como o meu arde por você e pelo prazer que descobrire­mos quando finalmente estivermos juntos por inteiro, meu amor. Agora compreendo que é melhor nos separarmos por um tempo antes de sermos dominados pela paixão.

— Mas vamos continuar nos encontrando aqui? — pediu ela. — Pelo menos até o Lammastide?

— Nós, os celtas, na Irlanda, chamamos a data de Lugnasadh. É um festival relacionado à colheita, mas, em tempos antigos, era a celebração anual do deus de muitas habilidades, Lugh.

— Conhece as histórias antigas, não é? Embora diga não ter lugar aqui na Irlanda. Tem certeza disso, Kieran?

Ele sorriu.

— Gosto das velhas histórias, das lendas sobre nossos an­cestrais, mas isso não significa que me sinta em casa aqui. Não minha doce Fortune, nosso futuro está em outro lugar. Talvez nessa nova colônia que almeja fundar o conhecido de sua mãe, Lorde Baltimore. Gosto da idéia de recomeçar a vida em um local novo, onde seremos aceitos pelo que somos, sem sermos julgados.

— Sempre haverá os que julgarão. Ele riu.

— É tão inocente em alguns aspectos e tão madura em outros!

— Tive uma criação muito eclética. Sempre que minha mãe ia para a corte, ficávamos em Queen's Malvern com os avós dela. Era meu lugar favorito, porque Madame Skye era muito interessante. Ela transbordava conhecimento. Éramos muito pequenos naquela época. Eu tinha apenas 4 anos quando meu bisavô de Marisco morreu. Depois disso, Madame Skye nunca mais foi a mesma, embora nunca tenha deixado de nos amar ou de participar de nossa vida. Vivi na França e na Escócia. As­sisti ao casamento por procuração do Rei Charles em Paris. Nunca conheci o tédio, Kieran. Estou ansiosa para conhecer esse novo lugar com você. Nunca fui aventureira, tudo que quero é um bom casamento, mas algo em mim deseja deixar esse velho mundo e conhecer o novo. Sempre fui considerada prática. Porém, ultimamente, tenho percebido que talvez seja mais parecida com as mulheres da minha família do que acre­ditava no passado. E nunca quis ser como elas. São todas im­possíveis, desastrosamente passionais. Ele riu.

— E acha que se desnudar diante de um homem num salão em ruínas sob uma violenta tempestade não é passional, de­sastroso ou aventureiro?

— Mas eu só queria que fizesse amor comigo! Não sei real­mente o que é fazer amor, mas sei que preciso disso, ou morre­rei vítima dessa dolorosa necessidade que me dominou.

— Adoro você, Fortune Lindley. Por que é louca e maravi­lhosa. Nunca esperei encontrar uma mulher como você, mas, agora que a tenho, nunca mais a deixarei escapar de mim.

Fortune suspirou feliz.

— Não me importa para onde vamos, Kieran, desde que estejamos juntos.

— Vá para casa, minha adorável tentação. Estarei aqui nes­se mesmo horário dentro de três dias. Se minha família planeja chegar em casa no início de agosto, em breve haverá uma men­sagem da Inglaterra para mim. Minha madrasta é extremamente organizada. Se Willy vai se casar no dia 29 de setembro, certa­mente terá instruções para transmitir aos criados; e ela vai que­rer que eu seja o elo entre os Devers e os Elliot antes de seu retorno. Pobre Willy! Agora tem sua vida inteiramente mapeada.

— Seu irmão vai ser feliz assim. Ele não é um homem de muita iniciativa nem espírito aventureiro. Por isso cheguei a pensar que ele seria um bom marido para mim. Depois, desco­bri que não sou tão pacata e caseira quanto imaginava.

Ele riu.


— Pacata é uma palavra que eu jamais usaria para descre­ver você, minha adorada. Indomável e voluntariosa são mais indicadas. Agora, pegue seu cavalo e volte para casa. Tenho uma longa cavalgada até chegar à casa de meu pai.

— Vou ficar muito feliz quando nós dois pudermos voltar para a mesma casa — confessou ela com tom suave. Quase con­seguira seduzi-lo. Pretendia tentar novamente. Sabia que a mãe tomava uma poção que era transmitida a todas as mulheres de sua família de geração em geração, uma mistura que impedia a concepção. Não queria esperar até outubro para sentir aquele corpo másculo e rijo no dela, amando-a como jamais fora ama­da antes. Queria Kieran agora!

— Daqui a três dias, meu amor — repetiu ele, tentando ima­ginar o significado da luz que cintilava em seus olhos. Ele se­gurou a mão dela e beijou-a.

Fortune montou e partiu num galope frenético que refletia sua frustração, sua determinação e sua revolta. Kieran a obser­vava sorrindo. Ela o tentara cruelmente, levando-o quase além do limite da perdição, mas não permitiria que isso acontecesse novamente. Era mais velho, e a responsabilidade pela reputação dela estava em suas mãos. Amava-a demais para desampará-la.

Capítulo 8
— O que minha mãe usava para impedir a concepção de um filho? — perguntou Fortune a Rohana. Depois riu. — É eviden­te que ela não tem feito uso do artifício ultimamente, ou não estaria grávida outra vez.

Os olhos escuros de Rohana eram inexpressivos, e ela con­tinuou dobrando cuidadosamente as camisas limpas de sua senhora.

— Sua mãe acreditava ter passado do tempo de ter mais filhos, criança. Quanto à pergunta que fez, não cabe a mim res­ponder. Pergunte à sua mãe; tenho certeza de que ela explicará tudo antes de você se casar com Mestre Kieran.

Fortune bateu o pé.

— Rohana, você sabe! Por que não me conta?

— Pelo mesmo motivo que a fez vir a mim, em vez de ir fazer essa pergunta à sua mãe. Você é neta do Mugal, seu sangue corre quente nas veias, Fortune. Quer seduzir seu amado e evitar as conseqüências do mau ato. Não conte com minha ajuda.

Fortune encolheu os ombros.

— Não tem importância. Eu o terei quando quiser, de qual­quer maneira.

— Qual é o problema com você? Sempre foi a filha com quem minha senhora não teve de se preocupar. O que a transformou nessa criatura tão obstinada e incauta?

Fortune suspirou.

— Eu sei, eu sei — disse. — Nem eu entendo, Rohana. Sou a filha prática e sensata, ou sempre fui, mas não quero mais ser assim. Tudo que quero é estar com Kieran. O que aconteceu comigo?

— Amor — respondeu Rohana sem rodeios, os olhos cheios de compreensão. — Está apaixonada, criança. Isso torna as mulheres incautas, especialmente as de sua família. Porém, não há motivo para aflição. Estamos agora em julho, e você vai se casar dentro de três meses. Seja paciente.

— Mas e se o que eu quero for uma grande decepção? Rohana riu.

— Não vai ser. Não com aquele celta tão forte e vigoroso. Ele roubou seu coração, criança. Além do mais... Bem, se uma vaca dá leite a um possível comprador e ele não aprecia o sabor, talvez desista de comprá-la. Entendeu? Mestre Kieran é um homem em todos os sentidos, como podem atestar as jovens desse vilarejo. Você, Fortune, é uma virgem inexperiente. Guar­de-se até ter a aliança no dedo, ou ele perderá o interesse.

— Não havia pensado nisso. Deixei a paixão dominar a ra­zão e estou me comportando de maneira tola. Você tem razão, Rohana. Melhor ter um anel no meu dedo e pôr uma coleira no pescoço de Kieran Devers antes de me entregar a ele.

Rohana riu.

— Agora você entendeu. Provoque-o, se quiser, para ali­mentar seu interesse e mantê-lo ansioso, mas espere até a noite de núpcias para aceitá-lo entre suas pernas, minha menina.

— Como pode saber tanto, sendo ainda considerada donzela?

— Donzela? Na minha idade? — Rohana bufou. — Sei tudo isso porque tive minhas aventuras na juventude. Sei, porque tenho uma irmã casada. Sei, porque sirvo sua mãe desde que ela nasceu. Eu sei.

— Por que nunca se casou?

— Porque nunca desejei me casar. Gosto da liberdade de ser uma donzela. Gosto de servir sua mãe. Isso me faz feliz, Fortune, e toda mulher tem o direito de ser feliz. Agora, criança — ela passou um braço sobre os ombros de Fortune — chega de perguntas, e prometa-me que vai cultivar a paciência. E que vai se comportar.

Fortune assentiu.

— Vai contar à minha mãe?

— Não. Sei que posso confiar em você e que essa conversa foi só entre nós. Não me desaponte, criança.

— Não vai ser fácil — Fortune admitiu.

— Eu sei.

As semanas seguintes transcorreram aparentemente de­pressa. Fortune passava boa parte do tempo ao ar livre, caval­gando, e via Kieran brevemente e de vez em quando. O apetite dela desaparecera. Ficava agitada à noite, e seu sono, quando vinha, era instável, cheio de sonhos confusos que só conseguia lembrar vagamente com a chegada da manhã, sem nunca apreender realmente seu conteúdo. Perto do final de julho, ela e Kieran se encontraram em Black Colm's Hall.

— Este será nosso último encontro por um bom tempo — disse ele. — Meu irmão estará em casa no dia primeiro. Minha querida madrasta se mostra prestativa e eficiente, como sem­pre. Os Elliot chegarão de Londonderry no dia cinco para fina­lizar o acordo de casamento e planejar a cerimônia. Não terei como me ausentar, minha adorada. Todos os momentos do meu dia serão ocupados por meu pai e sua esposa nessa cruzada pelo casamento perfeito de Willy e sua prima. Vou tentar esca­par, se puder, mas não terei como mandar notícias. Se você não estiver aqui, deixarei uma mensagem para você sob o nosso banco, escondida por uma grande pedra. E você deve fazer o mesmo.

Fortune assentiu. Chorar e lamentar a mudança inespera­da em seus planos de nada adiantaria.

— Vai ser difícil, Kieran.

— Eu sei. — Ele a tomou em seus braços e beijou-a nos lá­bios. — Notei que não tentou me seduzir em nossos últimos encontros, Fortune. Ainda me ama ou mudou de idéia?

— Acredita que eu seja assim, volúvel, então? E por que diz que não tentei seduzi-lo? Dizem que as mulheres são vaidosas, mas começo a pensar que os homens são ainda mais cheios de presunção.

Ele riu.

— Se eu me oferecesse para fazer amor com você agora, aqui, o que diria, minha adorada? — brincou ele.

— Diria que é um patife presunçoso! — disparou ela. Kieran riu ainda mais.

— Amo você, minha pequena megera, e em pouco mais de dois meses seremos marido e mulher. Mal posso esperar, Fortune.

Ela o puxou contra seu corpo e o beijou sem pressa, de ma­neira apaixonada e sedutora. Seu corpo jovem estava colado ao dele, e a língua invadia com ousadia a boca do jovem, provocando-o, inflamando-o. Afagando sua nuca, ela movia o corpo numa dança sensual e tentadora. Era cada vez mais difícil lem­brar a promessa que fizera a Rohana. A calça de montar não oferecia a proteção que teria tido vestindo inúmeras saias, e podia sentir a ereção rígida em seu ventre.

Kieran sentia a cabeça girar. Apertava-a com tanta avidez que era espantoso que ela ainda pudesse respirar. Mesmo as­sim, Fortune se movia e se retorcia entre seus braços, provocando-o e despertando nele paixões primitivas. Era difícil con­ter o impulso de deitá-la no chão e possuí-la como desejava. Queria Fortune como jamais quisera outra mulher, mas sentia que algo estava diferente. Um mês atrás, ela teria sucumbido ao erotismo da situação. Agora, porém, sentia sua resistência inabalável. Ela não o seduziria, nem se deixaria seduzir. Ele a soltou. Fortune recuou um passo.

— Lembre-se de mim até nosso próximo encontro, Kieran Devers — disse ela. Depois se virou, montou e partiu sem olhar para trás.

Ele a viu se afastar. Sabia que Fortune era dele e que se tor­naria sua mulher em todos os sentidos, mas estivera certo. Ela teria destruído seu jovem irmão. Willy ficaria furioso quando soubesse sobre a verdadeira paixão de Fortune, mas Kieran sa­bia com absoluta certeza que Emily Anne Elliot era melhor par­ceira para o herdeiro de Mallow Court.

Ansioso pelo dia em que finalmente teria Fortune por com­pleto, montou e voltou para casa.

No início da tarde de primeiro de agosto, os Devers chega­ram a Lisnaskea. A carruagem percorreu toda a distância da alameda calçada da propriedade até parar diante da porta da casa em Mallow Court. Um lacaio correu para abrir a porta. Ajustou a escada no veículo e ajudou sua senhora a desembar­car. Jane Anne Devers olhou em volta com um sorriso satisfeito e sacudiu as saias que se haviam amarrotado em função do lon­go período de confinamento.

— Seja bem-vinda à casa, senhora — disse Kieran ao se adiantar para cumprimentar a madrasta com um sorriso lumi­noso. — Espero que minhas irmãs e seus familiares estejam bem. Elas virão para as núpcias de Willy?

— Infelizmente, não, porque ambas estão grávidas nova­mente. São mais católicas do que protestantes na vontade de ter famílias grandes. Tudo parece estar em boa ordem por aqui, Kieran. Agradeço por ter administrado o patrimônio de seu ir­mão com tanta diligência. — Ela passou por ele para entrar na casa.

O pai e o meio-irmão também haviam desembarcado.

— Graças a Deus estamos em casa! — exclamou Shane Devers, aliviado. — Espero nunca mais ter de me afastar de Lisnaskea. Não por mais de cinqüenta quilômetros, rapaz. Sua irmã Colleen mandou uma carta para você e, como já notou, sua madrasta está satisfeita. Agora, meus rapazes, quero uma boa dose do meu próprio uísque.

— A bandeja o espera na biblioteca, meu pai. Vem conosco, Willy? — Kieran estranhava o silêncio do irmão.

— Vou me casar com Emily Anne — anunciou William Devers com tom desprovido de emoção.

— Eu sei.

— Não a amo.

— Vai aprender a amá-la — interferiu o pai, impaciente. — Agora venha, vamos beber o bom uísque de nossa casa. — Ele se dirigiu ao interior da residência.

— Suponho que os Leslie já tenham retornado à Escócia — comentou William. — Nunca mais verei Fortune.

— Eles ainda estão aqui. Para surpresa de todos, a duquesa descobriu que espera mais um filho. Foi um grande choque. A criança nascerá em novembro, e Lady Jasmine foi aconselhada a não viajar. Não se comenta outra coisa em Maguire's Ford. Como sabe, tenho várias amizades naquele vilarejo tão hospita­leiro.

— Se ainda estão aqui, eles devem ser convidados para o meu casamento! — deduziu William Devers, horrorizado. — Não suportarei vê-la no dia em que me casarei com outra mulher.

Kieran segurou o irmão pelos ombros e o sacudiu com força.

— Controle-se, Willy. Você não é mais um menino a quem foi negado um brinquedo interessante. É um homem. Lady Lindley o rejeitou. Supere e trate de ser feliz com a jovem devo­tada e fiel que é Emily Anne. Ela o quer por marido. Pare de sentir pena de si mesmo e de choramingar pelo que poderia ter sido. Já aceitou se casar com sua prima e, ainda que não perce­ba, ela é a esposa perfeita para você. Não magoe Emily Anne com sua fantasia ingênua e egoísta de que um dia existiu algu­ma coisa entre você e Lady Lindley. Não houve. Não haverá. Nunca. Agora entre e vá tomar um drinque com nosso pai.

— Você a viu? — perguntou William, quando caminhavam juntos para a porta.

— Sim, cavalgando.

— Ela estava sozinha?

— Sim, estava. Não havia nenhum cavalheiro galante com ela. Suspeito de que Lady Fortune não aprecie os irlandeses.

— Não sou irlandês.

— É claro que é. Nosso pai é irlandês. Você mora na Irlanda desde que nasceu. É irlandês.

— Ela já me disse a mesma coisa.

— Então, tem mais senso do que eu havia imaginado. — Kieran abriu a porta da biblioteca. — Aqui estamos, meu pai.

Sentado diante da lareira, sem as botas, com os pés calça­dos por meias e voltados para as chamas, Shane Devers sabo­reava seu uísque. Fez um gesto convidando os dois filhos a se servirem da garrafa sobre a bandeja de prata em cima de um móvel.

— Sirvam-se, rapazes e venham se sentar aqui comigo. Ah, estou esperando por isso desde que Lady Jane me arrastou para longe daqui em junho. Suas irmãs moram no campo e ambas têm casas insuportavelmente úmidas no verão. Mary é mãe de cinco crianças, e Bessie tem quatro filhos. Nunca vi pirralhos mais barulhentos ou de piores maneiras. Até sua mãe concor­dou comigo, embora seja avó daquelas pestes. Suas irmãs es­tão no comando de residências à beira do caos. Crianças, cria­dos, amas e cachorros correm de um lado para o outro, nunca há um momento de paz. Vocês eram cinco, mas minha casa nunca viveu aquela confusão desenfreada, graças à minha Jane.

Kieran Devers riu.

— Tenho de concordar com o que diz, pai. Minha madrasta sempre conseguiu preservar a ordem e as maneiras que tenho, e sei que são muito boas, devo a ela.

Shane Devers olhou para o filho mais velho com uma mis­tura de tristeza e esperança.

— Se ao menos...

— Por favor, meu pai. Conquistarei com meu próprio es­forço tudo de que necessito. Não me adapto à vida que você e sua família têm aqui. Willy é o melhor herdeiro. Não me arre­pendo de nada, nem guardo ressentimentos. Tudo é como deve ser, e a linhagem dos Devers terá continuidade em Mallow Court.

— Você é nobre demais! — explodiu William Devers com fúria assustadora.

— Vá para o inferno, irmãozinho — respondeu Kieran com tom brincalhão.

— Você não precisa se casar com uma mulher que não ama! — veio a resposta petulante. — Eu tenho esse dever. Toda a minha vida foi mapeada por mim! — Ele arremessou o copo de uísque contra a lareira.

Os olhos de Kieran Devers tornaram-se mais escuros e ten­sos. Agarrou o irmão pela nunca com uma das mãos e o trouxe para a frente, aproximando o rosto do dele.

— Escute bem o que vou dizer, jovem Willy. Você não tem do que se queixar. É herdeiro de uma bela propriedade e porta­dor de um nome antigo e respeitado. Vai se casar com uma jo­vem que conhece há muitos anos. Uma jovem que é inteira­mente dedicada a você e que o fará muito feliz, se assim você permitir. Qual é o seu problema? Sei que não quer aventura nem emoção, pois é muito parecido com sua mãe. Agora, meu irmão, ouça-me: se fizer Emily Anne infeliz eu mesmo o farei pagar por isso. Juro que o espancarei até se arrepender de to­dos os seus pecados. Essa jovem vem para sua casa cheia de esperanças e sonhos. Você não vai destruí-losl

— E por que se importa com isso?

— Porque abri mão de tudo que podia ser meu, e agora você herdará todos os bens da família. Se me tornasse protestante, você perderia seu precioso direito de herança. Um segundo fi­lho raramente tem a sorte que você teve. Mas tudo isso pode mudar num piscar de olhos, se eu quiser. E nem sua formidá­vel mãe poderia impedir essa mudança. Agora, aceite de bom grado sua boa sorte e seja generoso e bom com sua prima. Você não merece Mallow Court nem Emily Anne, porque é egoísta, superficial e tolo. Tente melhorar para o seu próprio bem. — Soltou o irmão e o empurrou para longe.

William Devers saiu do salão batendo a porta.

Kieran riu e foi se sentar diante do pai.

— Espero que tenha vida longa, meu pai, porque é óbvio que Willy não está preparado para assumir todas as responsa­bilidades que um dia serão dele. — Kieran sorveu o uísque e saboreou o calor agradável que invadia seu corpo.

— Pretendo viver muito ainda, meu rapaz — respondeu Shane Devers. — Compreendo que seu irmão ainda precisa amadurecer. Viajar com ele não foi nenhuma alegria, asseguro-lhe. Ele nada fez além de lamentar a perda de sua preciosa Lady Lindley. Não imagina como lamento o dia em que essa jovem chegou em Ulster! Ela deve ser uma feiticeira para exercer ta­manho poder sobre William. Não entendo, Kieran.

— Fortune Lindley não exerce nenhum poder voluntário sobre William, pai. Está imaginando coisas. E ele também ima­ginou que algum dia houve alguma coisa entre ele e essa jo­vem. A propósito, como minha madrasta conseguiu convencer Willy a se casar com Emily Anne?

— Ela o informou de que não havia alternativa, já que ne­nhuma outra jovem que ele tenha apreciado o aceitou. E disse também que era seu dever se casar e trazer ao mundo outra geração de Devers para Mallow Court. Conhece sua madrasta, Kieran. No início, William resistiu, mas, quando Mary e Bessie a apoiaram na empreitada, ele desistiu de lutar contra o desti­no que, obviamente, era inevitável. Até eu fui forçado a admitir que esse é o melhor caminho para William.

— É melhor se certificar de que William será gentil e aten­cioso com a prima quando os Elliot chegarem, meu pai.

— Falarei com ele eu mesmo, e a mãe dele também o ins­truirá. Ele tratará essa jovem com o devido respeito de um pre­tendente ou, católico ou não, você terá de volta seu direito de herança.

— Deus me livre! — Kieran riu. — Com essa ameaça pai­rando sobre mim, eu mesmo falarei com meu irmão!

Os dois homens gargalharam. Shane Devers amava os dois filhos, mas gostava realmente do mais velho. Kieran era estra­nhamente sensível para um homem de natureza tão obstinada e era honrado a ponto de se tornar obcecado. Shane Devers se entristecia por pensar que o filho mais velho desistira tão facil­mente de seu patrimônio, mas, de maneira estranha, ele o com­preendia. Com sua origem celta, Kieran era muito parecido com seus ancestrais arrojados e aventureiros. William, fruto de uma mãe inglesa, era mais apropriado a Mallow Court, particular­mente em um mundo em rápida transformação. Ulster, com suas fazendas e tantos imigrantes escoceses e ingleses, ganha­va um verniz mais propício às terras do centro da Inglaterra do que ao norte da Irlanda.

Jane Devers ficou horrorizada quando soube que o duque e a duquesa de Glenkirk ainda permaneciam em Erne Rock Castle. Não havia nenhuma possibilidade de deixar de convidá-los para o casamento de William e Emily. Não existia atualmente vizinhos nobres, e todos na região sabiam que os Devers co­nheciam os Leslie, um relacionamento que começara com uma intenção de casamento. Uma intenção que acabara frustrada. Ninguém parecia particularmente surpreso com o casamento de William e Emily, um enlace que sempre fora antecipado, apesar da investida dos Devers na herdeira Lindley, mas o es­cândalo que se abateria sobre a família se deixassem de convi­dar os Glenkirk para a cerimônia seria impossível de superar.

O convite foi enviado e aceito. O próprio Adali se encarre­gou de entregar o presente, uma enorme vasilha de ponche fei­ta em prata e gravada com o brasão da família e cachos e folhas de uva. O conjunto continha 24 taças do mesmo material, cada uma com o mesmo desenho gravado, e uma graciosa concha para servir a bebida. Lady Devers mal podia conter o entusias­mo enquanto o criado indiano removia da caixa forrada de veludo o utensílio de rara beleza e grande valor. Ao ver o brasão de sua família e o nome Devers gravado na prata, ela teve de respirar fundo para sufocar a euforia e dizer:

— Transmita ao duque e à duquesa nossa gratidão por sua generosidade. A noiva certamente escreverá uma nota de agra­decimento quando chegar de Londonderry na semana que vem. Esperaremos ansiosos pelo casal na cerimônia de núpcias.

Adali se curvou com sua habitual elegância.

— Transmitirei suas palavras tão bondosas aos meus se­nhores — respondeu ele e se retirou.

Sozinha, Jane Devers não fez mais nenhum esforço para esconder sua alegria.

— Shane, olhe para isto! É magnífico! William, não é mara­vilhoso? Emily ficará encantada. Esta peça merece lugar de des­taque, pois será ponto de convergência a todos que admiram a beleza. Vai poder dizer a todos que a virem que foi presente do duque e a da duquesa de Glenkirk, amigos e parentes do rei! Quanta generosidade, especialmente se considerarmos... — Ela interrompeu o discurso. — É linda.

— Pensarei em Fortune cada vez que olhar para ela — disse William.

— Pare com isso! — Lady Jane irritou-se. — Estou começan­do a pensar que perdeu a razão, William. Só posso orar por você. Pare de pensar em si mesmo! Pense em Emily Anne. Mal falou com ela quando sua prima esteve aqui em agosto. Os Elliot es­tranharam, mas eu justifiquei sua atitude dizendo que estava exausto da viagem à Inglaterra. Quando sua prima e a família chegarem, na semana que vem, espero que se comporte de ma­neira adorável e carinhosa com Emily e que demonstre respei­to e dignidade pela família dela.

— Vamos sair para cavalgar, Willy — Kieran convidou-o, piscando para a madrasta. — O ar de setembro vai clarear seus pensamentos.

Jane Devers assentiu discretamente para o enteado. Kieran estava tão prestativo ultimamente! Com toda a sinceridade, ele nunca havia sido difícil, exceto com relação à questão religio­sa, mas, ainda assim, estranhava sua atitude. Estava grata, po­rém, porque ele era o único a quem William ouvia recentemen­te. Ela se aproximou da janela do salão e viu os dois irmãos se afastarem a cavalo.

— Pode sentir os olhos dela sobre nós? — William pergun­tou ao irmão. — Ela tem tanto medo que eu desista no último minuto, que estrague seus sonhos... Mas não vou desistir. Não tenho escolha. Vou me casar com minha prima, ter filhos com ela e farei tudo que é esperado de mim. E por quê? Porque acre­dito realmente que nosso pai é capaz de recuar em sua decisão e devolver-lhe o direito de herança.

— Não quero Mallow Court — declarou Kieran.

— Mas eu quero! — Pela primeira vez, William admitia o que Kieran já sabia: que ele era realmente como a mãe.

Os dois irmãos cavalgaram em silêncio por algum tempo, até Kieran perceber que se dirigiam a Black Colm's Hall. Outro cavalo vinha em direção oposta. Kieran reconheceu Thunder e tentou distrair o irmão e retornar, mas William também ha­via reconhecido o garanhão montado por Fortune. Ele se lan­çou num galope ansioso. Praguejando em voz baixa, Kieran o seguiu.

Fortune reconheceu os irmãos e lamentou sua falta de sor­te. Não podia simplesmente virar o cavalo e ir embora. Pelo menos teria uma chance de ver Kieran, mesmo em companhia de William. Só conseguira encontrá-lo uma vez desde o final de julho, e rapidamente, porque ele não queria ser interrogado sobre uma ausência mais prolongada.

— Olá! — Ela os cumprimentou, sorrindo. — Que grande surpresa encontrá-los aqui. Will, como foi a viagem? Espero que suas irmãs estejam bem. Minhas mais sinceras felicitações por seu casamento. Estou ansiosa para conhecer a noiva.

— Eu amo você! — gritou William Devers. — Só precisa dizer que me aceita, Fortune, e o casamento com minha prima será cancelado! — Os olhos azuis eram suplicantes.

Fortune o encarou como se houvesse sofrido terrível ofen­sa. Kieran a prevenira sobre a paixão inabalável do irmão mais novo. Tinha de matar esse sentimento quanto antes, pelo bem de todos.

— Menino estúpido! — disparou ela. — Não quero me ca­sar com você! Minha família não foi clara? Se não, eu mesma serei. Você é um rapaz agradável, Will Devers, mas não me ca­saria com você nem que fosse o último homem na face da terra!

— Mas por quê? — choramingou ele, desesperado. Fortune suspirou. Era evidente que a atitude ríspida não surtira o efeito desejado. Ela insistiu:

— Por quê? Porque você me aborrece, Will! Nunca conheci outro homem mais tedioso. Até o administrador da proprieda­de de minha mãe, Rory Maguire, tem mais vitalidade que você, é mais interessante. Não temos nada em comum. Sou educada. Você não se importa com conhecimento. Acredito que uma mulher pode fazer quase tudo. Você acha que as mulheres só servem para cuidar da casa e ter filhos. Jamais poderia me ca­sar com um homem como você. Entendeu agora? Ele a encarou perplexo.

— Não me ama? — perguntou, atordoado.

— Não, eu não o amo, nem poderia amá-lo, Will.

— Então, por que não posso tirá-la de minha alma e de meu coração? Você me atormenta, Fortune, seja em sonhos ou em pensamentos. Por que me enfeitiçou?

— Não enfeiticei ninguém, Will. Você sempre foi amado por sua família e nunca foi frustrado em um de seus desejos. Devo ser a primeira coisa que você quer e não pode ter. Tem muita sorte por ter sua prima para desposar. Soube que ela é perfeita para você e será uma boa esposa. Contente-se com isso, Will Devers.

Ele a encarou por um instante. Depois, virando o cavalo, afastou-se deles.

— Foi dura com ele — comentou Kieran.

— Devia ter sido mais branda?

— Não. Sabia exatamente o que tinha de fazer, e fez. Sinto sua falta, minha adorada.

— E eu a sua, mas é melhor ir atrás de seu irmão, ou ele pode desconfiar de alguma coisa. Vejo você no casamento em duas semanas. — Ela partiu galopando e sem olhar para trás. Não ousava fazê-lo. O anseio por Kieran a tomara de assalto quando o vira cavalgando em sua direção, tanto que só depois de um instante notara a presença de Will. Até aquele dia, tivera piedade do rapaz. Agora, porém, ele só despertava irritação. William Devers era um tolo. Seus pais o haviam levado para longe de Ulster na esperança de ajudá-lo a superar a frustração do desejo negado, de prepará-lo para o casamento com a pri­ma. Pobre menina.

Para alegria de todos, William Devers cumprimentou a fu­tura esposa com alegria e entusiasmo quando ela chegou a sua casa, uma semana antes do casamento. Aos 16 anos, era uma bela jovem de rosto doce e redondo e grandes olhos azuis.

Os cabelos louros e avermelhados eram cacheados e emoldu­ravam seu rosto de maneira graciosa. O nariz era pequeno e reto, e a boca lembrava um arco de cupido. Sua pele era acetinada, com o tom de pêssegos maduros, e William a beijou nos lábios com uma avidez que a fez corar.

— Oh, William! — exclamou ela, surpresa.

— Seja bem-vinda à sua nova casa, querida Emily. — Ele a saudou, segurando-a pelo braço para conduzi-la ao interior.

— O que causou essa transformação? — Shane Devers per­guntou ao filho mais velho.

— Encontramos Lady Lindley há vários dias, quando saí­mos para cavalgar. Will foi patético, e ela o censurou com uma rispidez de que jamais pensei que fosse capaz. As palavras "tolo" e "aborrecido" foram usadas mais de uma vez, pai. Ela deixou claro que não o ama, que jamais poderia amá-lo, e des­truiu definitivamente qualquer esperança que Will ainda pu­desse ter. Arruinou seus sonhos, e creio que o sermão fez nosso William ver a razão de uma vez por todas. Ele ficou muito sur­preso, já que alimentou durante meses essa paixão obsessiva.

— Graças a Deus! — exclamou Sir Shane, aliviado. — Sua madrasta tem sido uma companhia infernal nos últimos tem­pos, pois temia que William desistisse do casamento no último momento. Ela sempre quis muito essa união. Só pensou breve­mente em desistir desse sonho por causa de Maguire's Ford, mas, ao conhecer Lady Lindley, reconheceu uma adversária poderosa que poderia tirar seu precioso William dela, e foi com grande alívio que recebeu a notícia da recusa da proposta de nosso Will.

— Mas ela ainda cobiça Maguire's Ford.

— Sim — admitiu Sir Shane.

— Dizem que Lady Leslie vai dividir a propriedade entre os dois filhos mais novos, ambos protestantes. Eles já chega­ram da Escócia, pelo que ouvi dizer. Creio que os conhecere­mos no casamento.

— Sua madrasta já sabe. Ela espera que Will e Emily tenham uma filha, porque assim poderá casar a primeira neta com um dos herdeiros Leslie. Se não pode ter Maguire's Ford por intei­ro, ela se contentará com a metade da propriedade.

— Sua esposa é sempre uma grande surpresa para mim, meu pai.

— Para todos nós. Graças à Deus estamos a poucos dias desse casamento. Não creio que possa suportar muito mais des­sa tara, meu rapaz.

Kieran riu. Sabia exatamente como o pai se sentia, pois ti­nha sentimentos muito parecidos, embora por razões diferen­tes. Seis dias depois do casamento de seu irmão com Emily Anne Elliot, ele se casaria com Lady Fortune Lindley na antiga igreja de Maguire's Ford. Esperava ansioso por esse dia. Julgara os Leslie excessivamente cautelosos com relação ao seu casamen­to com Fortune. Queria compartilhar sua felicidade ao menos com o pai, mas hoje compreendera que a família de sua esco­lhida estava certa. A obsessão de William por Fortune era uma ameaça a ser evitada. Não confiava no irmão porque, apesar do severo sermão que ouvira, suspeitava que William ainda nutrisse sentimentos intensos por Fortune Lindley. Sua atitude com a jovem Emily Anne era apenas parcialmente sincera. Quando William Devers soubesse que o irmão mais velho ha­via se casado com a mulher que cobiçava, o céu desabaria. Te­ria de esperar até William estar a caminho de Dublin em sua viagem de núpcias para anunciar o enlace.

Mesmo assim, sentia necessidade de conversar com alguém, por isso cavalgou para o norte do vilarejo de Lisnaskea, onde residia a amante de seu pai, Molly Fitzgerald, e suas duas meio-irmãs. A casa de Molly era sólida e confortável, um abrigo de tijolos que Shane Devers construíra sem economizar. Biddy, a velha criada de Molly, o recebeu na porta com um sorriso de alegria genuína.

— Mestre Kieran, entre! Minha senhora vai ficar feliz em vê-lo. E suas irmãs também! — Ela o levou ao salão, onde um fogo acolhedor ardia na lareira. — Sabe onde fica o uísque, Mestre Kieran. Vou chamar minha senhora.

Ele se serviu da bebida, que sorveu com avidez, pois a ca­valgada o deixara gelado. Ao ouvir os passos na entrada do salão, Kieran se virou, sorrindo.

— Molly, perdoe-me por vir sem me anunciar.

— Venha quando quiser, Kieran Devers. Sempre. — Ela era uma bela mulher de longos cabelos negros e olhos cor de âmbar. — As meninas sentem sua falta. Então, tem cavalgado com a jovem inglesa e visitado Black Colm's Hall?

Ele riu.

— Pensei que seríamos discretos, Molly. Felizmente, os ru­mores ainda não se espalharam, ou eu estaria enfrentando sé­rios problemas em casa. Como sabem, ela recusou a proposta de casamento de William. Pois bem, ela não me rejeitou. Padre Butler vai realizar a cerimônia do nosso casamento no dia 5 de outubro.

— E seu pai não sabe? — perguntou Molly, preocupada.

— Como posso dizer alguma coisa agora? William ainda se diz apaixonado por ela, embora tenha sido duramente critica­do pela jovem há alguns dias quando a encontramos durante uma cavalgada. Ele agora finge estar contente com a prima, mas conheço Willy. Ainda está apaixonado por Fortune. Não quere­mos arruinar o casamento de meu irmão com o anúncio de nosso noivado. Informarei meu pai quando William e Emily estive­rem longe daqui, a caminho de Dublin. Se meu pai quiser com­parecer à cerimônia, terei grande alegria em vê-lo na igreja. Se não, eu me casarei da mesma maneira.

— Espero que nos convide — disse Molly Fitzgerald com sua habitual serenidade, tomando as mãos dele e levando-o até o divã estofado.

— É claro que sim!

— Então, vai ser o novo senhor de Erne Rock e Maguire's Ford... Sua madrasta não vai gostar nada disso.

— Não, Moll, não terei a propriedade. A mãe de Fortune conhece e compreende a situação aqui em Ulster. Ela sabe que, se der a propriedade a Fortune e eu me casar com ela, minha madrasta e meu irmão causarão muitas dificuldades e tenta­rão tomar os bens de mim, porque permaneço católico. Por isso ela preferiu deixar Erne Rock e Maguire's Ford para os dois fi­lhos mais novos, ambos protestantes. Fortune e eu deixaremos Ulster. Iremos primeiro para a Inglaterra, depois para o Novo Mundo. A duquesa diz que conhece um cavalheiro de elevada posição no círculo de favores do rei que quer fundar, no Novo Mundo, uma colônia para católicos e outros que sofrem perse­guição religiosa. Iremos para lá e começaremos uma nova vida juntos.

— O duque e a duquesa não vão se opor a esse casamento? Ouvi dizer que são pessoas estranhas; parece que têm um cria­do estrangeiro que usa um chapéu em forma de pudim na ca­beça. Isso é verdade, Kieran?

Ele riu.


— O chapéu se chama turbante. Adali é meio francês e meio indiano. A duquesa nasceu princesa em outra terra e é filha de um grande rei. Ela veio para a Inglaterra com 16 anos, onde vive desde então. É linda e muito gentil. Seu marido é um cava­lheiro decente que a adora. Fortune é filha do segundo casa­mento. A duquesa ficou viúva duas vezes antes de se casar com o Duque de Glenkirk. Ela tem sete filhos vivos. Isso satisfaz sua curiosidade?

— Já é um começo. Ouvi dizer que a duquesa espera outro filho.

— Sim, e foi uma grande surpresa para ela, posso afirmar. Eles planejam permanecer na Irlanda até o próximo verão, quan­do a criança já terá nascido.

— Você e Fortune ficarão com eles?

— Não sei. Não pude ir a Erne Rock discutir o assunto des­de que minha família retornou da Inglaterra. Sei que eles farão tudo o que tiver de ser feito, Molly, e tenho de me contentar com isso agora. É estranho, pois estou acostumado a cuidar da minha vida sozinho.

— E logo poderá retomar o controle, Kieran. Agora, conte-me de seu pai. Não o vi desde que retornou. Sei que está ocupa­do com os preparativos para o casamento, mas sinto falta dele. E as meninas também.

— Onde estão Maeve e Aine?

— Na cozinha, aprendendo a preparar uma boa sopa. Não quero que elas andem pelo vilarejo expondo-se à maledicência do povo. Muita gente de mente pequena pensa que, por eu não ser considerada respeitável, minhas meninas são alvos fáceis. Minhas filhas se casarão com cavalheiros respeitáveis; isso eu garanto!

— Não há mais muitos católicos por aqui, Molly. Talvez tenha de se contentar com protestantes ou mandar as meninas para um convento na França ou na Espanha.

— Um convento? Minhas filhas serão esposas e mães. Pro­testantes ou católicos, não importa, desde que os proclamas sejam lidos publicamente e a cerimônia realizada diante de todo o povo de Lisnaskea. Quero netos daquelas duas!

— Kieran! — As duas filhas de Molly entraram na sala. Eram lindas jovens de cabelos escuros. Maeve tinha os olhos cor de âmbar da mãe, mas Aine, a mais nova, tinha os olhos azuis e brilhantes do pai. Ele as abraçou e as beijou com carinho. Maeve tinha 17 anos, e logo Molly encontraria um marido para ela, sem dúvida. Ela estava pronta para ser conquistada, seduzida, e por isso entendia a preocupação de Molly. Aine, porém, tinha apenas 14 anos, e só agora começava a adquirir traços mais fe­mininos, menos infantis. Ela se sentou ao lado do irmão no divã.

— Dizem que você tem uma amante — comentou Aine.

— Aine — exclamou a mãe, mortificada.

— Bem, é o que dizem, senhora — justificou-se ela.

— Vou me casar, mas isso ainda é segredo, mocinha.

— Por quê?

— Porque me casarei com Lady Fortune Lindley no dia 5 de outubro, e você só será convidada se souber se comportar.

— Vai se casar com a jovem que seria esposa de William Devers? — perguntou Maeve, surpresa.

— A mesma que recusou nosso irmão Willy, sim, mas não queremos estragar o casamento dele com Emily Anne Elliot; também não quero que ele me desafie para um duelo por ainda ter sentimentos secretos por Fortune.

— Ela é leviana, ou não teria brincado com Willy para de­pois escolher você — decretou Maeve com tom crítico.

— Ela não é leviana — Kieran a defendeu. — Foi trazida a Ulster para conhecer William e verificar se havia uma possibi­lidade para eles. Descobriu que nunca seriam compatíveis e comunicou sua decisão aos pais, que falaram imediatamente com nosso pai e Lady Jane. Eles levaram Willy para a Inglaterra para impedir o surgimento de escândalos, pois ele se compor­tava como um tolo imaturo e mimado. Fortune não brincou com nosso irmão, nem fez promessas a ele. Willy está apaixonado por ela e comportou-se como um perfeito tolo. Outro dia, quan­do cavalgávamos juntos, nós a encontramos, e ele declarou seu amor. Fortune foi forçada a dizer claramente o que sente, em­bora no passado tivesse tentado poupá-lo dessa humilhação. Fortune Lindley é tudo que eu jamais pude desejar em uma mulher, e você vai gostar dela.

— Kieran está apaixonado! — cantarolou Aine. — Kieran está apaixonado!

Ele riu.

— Um dia você vai se apaixonar, mocinha. Só lamento o fato de que não estarei aqui para ver. — Ele se virou para Maeve, que estava em pé ao lado da lareira. — E você, minha bela irmã?

— Nem sempre concordo com Aine, mas dessa vez ela está certa. Você está apaixonado, Kieran Devers. Nunca imaginei que viveria para ver esse dia chegar.

Ele riu.


— Qualquer coisa é possível, minha Maeve. Até você pode se apaixonar um dia!

— Não creio que terei esse luxo, irmão. Devo ser respeitá­vel e me casar com um homem igualmente respeitável, como mamãe está sempre repetindo, embora ela mesma tenha esco­lhido o amor.

— Eu era uma viúva respeitável quando seu pai me conhe­ceu — respondeu Molly, séria. — Era uma mulher adulta que sabia exatamente o que estava fazendo e quais eram as conse­qüências de meus atos. Você é uma menina, Maeve, sem ne­nhuma experiência. Vai fazer como eu disser, porque sou sua mãe, e não vou tolerar desobediência.

— Ei, ei! — interferiu Kieran. — Vim visitá-las e matar as saudades. Não quero trazer a discórdia a esta casa. Molly, o que vai me servir para o jantar? Sou um homem grande, forte e cavalguei até aqui enfrentando frio e umidade...

— Você não me engana, Kieran Devers. É um sedutor, como seu pai. Deus proteja sua escolhida! Vai trazê-la para conhe­cer-nos?

— Sim, mas não antes do casamento de Willy. Hoje ficarei com vocês apenas para a refeição. Depois, retornarei ao salão de meu pai, pois minha madrasta já deve estar se perguntando onde me meti e por que não estou lá para aceitar suas incumbências.

— Vai ser um evento grandioso, segundo me disseram os que foram chamados para prestar serviços temporários — co­mentou Molly.

— Eu gostaria de poder ir — suspirou Aine, sonhadora.

— Mas não pode! — reagiu Maeve, firme. — O choque eco­aria por Fermanagh por anos, caso as duas lindas bastardas do papai aparecessem no casamento do filho mais legítimo e her­deiro. Dê-se por satisfeita por Lady Jane ainda não ter nos ex­pulsado de Lisnaskea com nossa mãe.

— Ela não faria isso! — gritou Aine, perturbada.

— Não? Faria, se fosse conveniente para ela, como também convenceu nosso pai a deserdar Kieran se ele não se tornasse protestante! Aquela mulher é o diabo! — disparou Maeve.

— Chega — Kieran Devers decidiu em voz baixa. — Maeve, escute o que vou dizer, porque tem idade suficiente para enten­der. Eu não queria Mallow Court. Se quisesse, teria feito o que fosse necessário para ficar com ela. Agora, deixe de lado essa revolta e vá verificar o que Biddy está preparando para o jantar.

— Kieran, não vá embora! — pediu a menina, chorosa. — Não deixe a Irlanda, ou, se for mesmo necessário partir, leve­ nos com você. Mamãe ainda tem grandes esperanças e sonhos grandiosos, mas ninguém aqui vai se casar com as bastardas de Sir Shane. Precisamos de uma vida nova tanto quanto você! Kieran levantou-se, abraçou a irmã e olhou para Molly.

— Ela pode estar certa — disse. — Se essa colônia for real­mente um lugar seguro, talvez seja um lugar melhor também para suas duas filhas.

Lágrimas corriam pelo rosto de Molly Fitzgerald. Ela assentiu devagar.

— Sempre soube que terminaria minha vida sozinha — dis­se. — Você pode estar certo, Kieran. Mas aceitaria assumir a responsabilidade por essas duas? E qual vai ser a opinião de Fortune?

— Não saberemos até perguntarmos a ela — disse Kieran, mas Fortune é uma mulher prática e de bom coração. Espere até conhecê-la, Molly. Depois voltaremos ao assunto.

Capítulo 9


Madame, está deslumbrante! — elogiou Lady Jane Devers, o duque de Glenkirk. — Este é um dia feliz para sua família. Lamento que minha esposa não possa estar presente, pois sua condição a impede de viajar, mesmo que por curtas distâncias. Espero que entenda. — Ele beijou sua mão.

Como era belo, pensou Jane Devers. E tão elegante e distin­to em seu colete bordado sobre calça de veludo preto. A parte superior das botas havia sido dobrada para revelar o revesti­mento interno de renda. Ele daria prestígio ao casamento. Sor­rindo, Lady Devers se virou para cumprimentar a jovem que o acompanhava.

Fortune inclinou a cabeça.

— É um belo dia para um casamento — disse. — Foi muita bondade sua incluir-me, senhora.

— Como poderia ser diferente? — respondeu Jane Devers, séria.

Fortune estava ricamente vestida em veludo vermelho; o vestido tinha um decote largo que exibia os ombros e um apli­que de renda que conferia um ar misterioso ao decote. As man­gas eram divididas por fitas cor de lavanda em duas partes amplas. A saia chegava ao chão em pregas largas, mais cheia na parte posterior, a parte frontal aberta para mostrar um saiote cor de creme delicadamente bordado com margaridas e borbo­letas confeccionadas em fios de ouro. Seus cabelos vermelhos estavam presos num coque na altura da nuca, com uma mecha solta e adornada por uma fina fita de seda perfumada com la­vanda. Ela levava no pescoço um longo cordão de pérolas e ostentava brincos de pérolas e ametistas. Era muito elegante, e certamente estava dentro dos rigores da moda, mais do que qualquer outra convidada; e, ainda assim, seu traje não osten­tava, nem era tão esplêndido que pudesse desviar a atenção da noiva.

Lady Jane Devers tinha de admitir que a jovem Lady Lindley se vestia de maneira muito apropriada. Suas maneiras eram muito discretas. Sua mão repousava sobre o braço do padrasto, e os olhos estavam baixos na maior parte do tempo, como convinha a uma donzela de respeito e classe. De certa forma, era irritante cons­tatar que ela pareceria perfeita aos olhos dos convidados. Espera­va sinceramente que as pessoas não começassem a especular por que tal pilar de virtude e beleza havia rejeitado a proposta de casamento de seu filho, afinal. A especulação poderia refletir mal sobre a família toda, mas não havia nada que ela pudesse fazer. Lady Devers sorriu quando o duque e Fortune seguiram em frente. Era hora de recepcionar outros convidados.

O casamento propriamente dito seria realizado no salão principal de Mallow Court, pois a igreja de Lisnaskea era pe­quena demais para receber todos os convidados. A noiva esta­va linda no vestido cor-de-rosa de tafetá, renda e cetim. Em sua cabeça havia uma delicada guirlanda de margaridas. O noivo era sóbrio em seu traje de veludo azul-escuro. Havia uma ex­pressão quase entediada em seu belo rosto, embora a noiva sorrisse constantemente, certamente incapaz de conter-se. Suas respostas eram claras. As dele, apenas resmungos graves. Quan­do o casal finalmente foi declarado marido e mulher, os convi­dados aplaudiram. William Devers, sempre cumpridor de seus deveres, beijou a esposa.

Fortune não sentia nenhum pesar pela união. Seus olhos estavam fixos em Kieran, elegante no traje de veludo verde que combinava com seus olhos. Mal podia esperar até estarem so­zinhos. Fazia tanto tempo... Ela suspirou alto e corou ao ouvir a risada de James Leslie.

— Acalme-se, menina — preveniu-a, seguindo a direção de seu olhar. — Conseguiu ser discreta por semanas seguidas. Não estrague tudo agora, quando o sucesso está tão próximo.

— Papai! — reagiu ela, constrangida.

— Discrição, milady Lindley — disse ele com suavidade. — Temos de mantê-la até o próximo verão. Não quero discórdia entre nossas famílias.

— E acha que nosso casamento não vai causar indisposi­ções? — comentou ela, quase zombando.

— No início eles não vão ficar felizes, eu sei, mas vamos superar essa animosidade, minha querida, especialmente se seu marido não tiver Maguire's Ford — respondeu o duque. — Você sabe o que Lady Devers queria realmente com aquela proposta de casamento.

O banquete comemorativo foi servido na grande sala de jantar de Mallow Court, que já havia sido um dia o saguão prin­cipal da casa. Criados corriam de um lado para o outro servin­do salmão, carne, porco, patos e pequenas aves. Havia presun­tos inteiros e costelas de carneiro, alcachofras nadando em vinho branco, alfaces frescas, ervilhas servidas com hortelã, pães, manteiga, fino queijo cheddar da Inglaterra e macios queijos franceses. As taças continham o melhor vinho que os Devers haviam conseguido importar. Alguns homens resmungavam contra a falta de cerveja, mas Lady Devers não considerava essa uma bebida refinada.

Os convidados se divertiam, e muitos brindes foram ergui­dos aos noivos. Um bolo decorado foi apresentado, para delei­te de todos. O luxo era incomum, mas Lady Devers aprendera na Inglaterra que essa era a última e mais moderna extrava­gância nos casamentos importantes. Era, portanto, imperativo que um bolo fosse servido no banquete de casamento de seu único filho.

Depois da refeição, todos foram convidados a dançar no grande salão onde a cerimônia de casamento havia sido cele­brada. A mobília fora retirada e havia um palco para os músi­cos em um dos cantos. Nos cantos do lado oposto, ao fundo, foram colocadas telas pintadas, atrás das quais os convidados encontrariam cadeiras e penicos de alcova para sua conveniên­cia. As danças, no início, seguiram o estilo do campo; os dança­rinos as executavam de mãos dadas, em círculo, ou em fila. Lady Devers foi conversar com os músicos, e eles passaram a tocar ritmos mais animados e próprios da corte.

Kieran Devers conduziu Fortune à pista de dança. A mão dele era quente, e seus olhos falavam silenciosos de uma ar­dente paixão. A música era vibrante e rápida. Só os jovens dan­çavam. Todos, menos os noivos. William Devers olhava com rancor para o irmão e Fortune. Não fora forçado a notá-la até esse momento. Mas, quando ela passou a se exibir no centro do salão nos braços de seu irmão, ele não teve alternativa além de reconhecer sua presença. Como a desejava!

— Quem é a bela jovem dançando com seu irmão? — per­guntou a noiva, inocente.

— Lady Lindley — respondeu William, contrariado.

— Oh... — Emily Devers gemeu. Sua mãe havia sido abso­lutamente honesta ao explicar a situação com Lady Lindley antes de permitir que ela aceitasse o pedido de casamento do primo. William Devers havia feito a proposta de enlace antes a Lady Lindley, que o rejeitara. Ele ficara muito abalado com essa recusa, conforme relato da Senhora Elliot. Era bem possível que ainda amasse a jovem de família nobre e rica.

"Eu o farei esquecer", Emily Anne respondera à mãe com a pura inocência da juventude. Mas agora, vendo a rival em car­ne e osso, a nova senhora Devers não tinha tanta certeza de que poderia fazer William esquecer a fascinante Fortune Lindley. Emily Anne sentia os primeiros sinais de um amargo ciúme começando a corroer sua alma.

A música chegou ao fim. Fortune ria animada para Kieran. Ele era um excelente dançarino, como acabara de descobrir, encantada. Estava ofegante, com as faces coradas pelo exercí­cio. Os cabelos se libertavam do coque, caindo em caracóis ver­melhos em torno de seu rosto luminoso.

— Você está tão linda — disse ele, inclinando-se para mur­murar o elogio em seu ouvido. — Se não fosse um homem hon­rado, procuraria um canto discreto para tê-la só para mim, mi­nha querida.

Fortune corou ainda mais intensamente pelo prazer provo­cado pelas palavras.

Os músicos tomaram seus instrumentos novamente. A pri­meira nota soou, e Kieran tomou a mão dela novamente. Dan­çavam tão absortos um no outro que esqueciam a presença de outras pessoas no salão. Eram tão perfeitos juntos que outros convidados pararam de dançar para apreciar a elegância de seus passos cadenciados.

Fortune o fitava sorrido. Seu rosto refletia o amor que sen­tia por ele. Seus olhos brilhavam como esmeraldas puras. Os lábios estavam entreabertos, e havia neles um sorriso pálido, secreto. Kieran mantinha a cabeça inclinada para estar mais perto dela. As bocas quase se tocavam. Eles giravam e gira­vam ao som da melodia sensual; seus corpos se enrascavam graciosamente com a dança. O amor era visível e inconfundí­vel no olhar de Kieran; a paixão dele, palpável. Eram um só ser, e a evidência dessa união varria o salão como um incên­dio na mata seca.

James Leslie se desesperava diante da cena. Agora o segredo fora revelado. Ele olhou para o noivo e reconheceu em sua ex­pressão a repentina compreensão que causava fúria cega. O du­que de Glenkirk lamentou ter comparecido à festa desarmado.

A voz de William Devers rompeu a magia que dominava o salão naquele momento, interrompendo a música.

— Seu calhorda! — vociferou ele. — Calhorda mentiroso! Sempre a quis, embora tenha negado! Eu seria capaz de matá-lo.

— William! — soou a voz imperiosa do pai dele.

— Se eu não pude tê-la, por que você a teria? — prosseguiu William Devers, agoniado. Estava quase chorando.

Jane Devers sentia-se morrer de vergonha. Agora toda Fermanagh, ou melhor, toda Ulster comentaria o ultrajante escândalo!

— Sua meretriz! — gritou William, atacando também Fortune. — Enganou-me, envolveu-me, e desde o início queria fornicar com meu irmão!

Os convidados olhavam de um lado para o outro para os membros do trio. Kieran Devers permanecia silencioso diante das acusações do irmão, mas Fortune era menos contida.

— Como ousa, senhor? — respondeu ela com seu tom mais altivo e nobre. Sua voz vertia desdém. De cabeça erguida, ela se dirigiu a Emily Devers, que estava pálida e trêmula. Fortune empregou um tom mais doce com a jovem noiva. — Senhora, peço desculpas por minha presença ter perturbado o dia de seu casamento. Retiro-me agora na esperança de que a normalida­de seja restaurada e as festividades prossigam. — Segurando a saia, deixou o salão.

James Leslie colocou-se imediatamente o lado da enteada. Ele se curvou para a noiva, depois para os pais do noivo, mas não pronunciou uma única palavra e mantinha uma expressão severa. Então guiou Fortune para fora do salão, sua grande mão segurando e confortando a dela, que repousava em seu braço vestido de veludo.

Quando William ameaçou segui-los, Kieran Devers entrou em ação, segurando-o pelo braço. Os dedos ameaçavam cortar a carne do noivo.

— Não está satisfeito, William, por ter partido o coração da jovem Emily e arruinado sua festa de casamento com essa ob­sessão? — disse ele por entre os dentes. — Vá se desculpar com sua esposa, ou ela ficará viúva antes de deixar de ser virgem, porque eu mesmo o matarei para restaurar a honra da família, algo com que parece não se preocupar. — Kieran se virou e fez um sinal, ordenando que os músicos voltassem a tocar. As no­tas de uma melodia vibrante invadiram o salão, e ele conduziu forçosamente o irmão à presença de sua esposa. Depois, voltou para perto da madrasta, que estava pálida, beijou as mãos dela e, conduzindo-a à pista, murmurou:

— Venha, senhora, vamos tentar amenizar o constrangimen­to que seu filho causou a todos aqui.

Pela primeira vez na vida, Kieran sentia pena dela.

— Oh, Kieran! Acha que é possível? — sussurrou ela, a voz trêmula.

— É necessário, senhora. — respondeu o jovem, firme.

Sir Shane, que só então superava o choque inicial, curvou-se para a mãe de Emily.

— Vamos nos juntar aos dançarinos madame, e deixar nos­sos filhos resolverem essa questão tola?

Ele conduziu a perturbada Senhora Elliot à pista, onde um círculo de convidados já se formava para o próximo número. Seu marido escolheu outra dama sem nem sequer olhar para a filha e o novo marido.

Os noivos ficaram sozinhos em um canto do salão.

— Ela o enfeitiçou — disse Emily Anne com tom calmo para o marido. — Posso ver que está fora de seu juízo normal, meu pobre querido. Ela deve ser uma mulher muito maldosa, mas eu amo você, William. Se permitir, eu o ajudarei a superar todo esse mal causado por aquela megera. — Ela se ergueu na ponta dos pés para beijar seu rosto. — Nunca mais terá de vê-la. Ama­nhã partiremos para Dublin em nossa viagem de núpcias. Quan­do voltarmos, sua mãe cuidará para que Lady Lindley não seja mais bem-vinda nem aceita em Mallow Court nem em qual­quer evento ou reunião em que estejamos presentes. Fiquei cho­cada com o comportamento leviano e impróprio dessa mulher com seu irmão. Creio que devamos tomar providências para que Kieran também não seja mais bem-vindo aqui, não? Sua mãe foi muito generosa permitindo a presença do primogênito de seu pai, mas ele não vai mudar, e não podemos aceitar que um católico influencie nossos filhos, meu querido. Afinal, um dia esta casa será sua. Nesse dia, ele teria mesmo de partir. Tudo vai ficar bem, querido. Teremos uma vida perfeita e feliz juntos.

Ele a encarou, perplexo. Até esse momento, nunca havia notado como Emily Anne era determinada e voluntariosa. E percebia também que precisava de sua força.

— Emily, eu sinto muito...

Ela o calou pousando dois dedos sobre seus lábios.

— Vamos esquecer, meu querido William. Você foi envol­vido e enfeitiçado por uma jovem nobre de moral questionável. Isso ocorreu antes do nosso casamento e, portanto, não tem nenhuma importância para mim. Normalmente, não aprovo demonstrações públicas de afeto, sejam elas quais forem, mas acho que nossos convidados ficariam mais sossegados e satis­feitos se você me beijasse nos lábios. Em seguida, nós nos uni­remos aos dançarinos.

William a beijou com ternura, devagar. Emily estava certa, ele pensou. Fortune realmente o enfeitiçara. Era uma mulher leviana e libertina, que provavelmente não tinha mais controle sobre seus desejos de luxúria por seu irmão do que tinha sobre sua língua ferina.

— Você é a esposa perfeita para mim, querida Emily. E aca­ba de dizer coisas que fazem muito sentido. Kieran deve deixar Mallow Court. Ele é tão ardiloso quanto aquela mulher. Não o quero influenciando os filhos que teremos: — Ele a beijou no­vamente, dessa vez com mais ousadia, o que a fez corar. — Sou grato por perdoar-me, querida esposa — concluiu ele, levan­do-a para a pista de dança.

Tudo prosseguiu como se nada houvesse acontecido. Ven­do os noivos sorridentes e reconciliados, os convidados relaxa­ram. A comemoração seguiu noite adentro. Os noivos foram conduzidos ao leito nupcial com todo o decoro possível. Os convidados partiram. Os criados limparam as marcas da cele­bração. Lady Devers se recolheu com uma garrafa de vinho, enquanto Sir Shane se sentava com o filho mais velho na bi­blioteca, onde havia um fogo acolhedor e muito uísque.

— Foi um dia de grande sucesso, pai — comentou Kieran.

— Sim. Ninguém se feriu nem morreu, apesar de nosso William. Foi sorte o duque de Glenkirk ter vindo desarmado, ou ele poderia ter defendido a honra da enteada depois das graves ofensas proferidas contra ela por seu irmão. Devo admitir que admiro o temperamento controlado do duque. E a jovem Lady... Não conheço mulher que, afrontada como ela foi, não tivesse causado uma lamentável cena para se defender. Qual­quer outra teria exigido que seu irmão fosse imediatamente punido diante de todos, o que ela poderia ter feito revelando a simples verdade dos fatos. Fortune Lindley é uma mulher for­te e de muita fibra.

Era o momento perfeito para a revelação, Kieran decidiu.

— Vou me casar com ela no dia 5 de outubro, pai. Gostaria de poder contar com sua presença, mas compreenderei se não comparecer à cerimônia. William não deve saber de nada até voltar de Dublin com a esposa. Deve entender por quê.

Shane Devers assentiu.

— Sim, eu entendo.

— Não parece surpreso.

— Depois de vê-los juntos hoje? É claro que não estou. Como aconteceu? Você realmente a queria desde o início, Kieran? William estava correto em suas acusações?

— Honestamente não sei, pai. Fortune e eu nos encontra­mos no dia em que vocês partiram para a Inglaterra, quando eu retomava da estrada onde nos despedimos. Depois desse en­contro... — ele encolheu os ombros. — Nós nos apaixonamos.

— Não deve dizer nada à sua madrasta antes da realização do casamento. Quando ela souber que você ficará com Erne Rock e Maguire's Ford...

— Não terei a propriedade, pai. Lady Jasmine decidiu doá-las aos filhos mais novos, ambos Leslie. Minha madrasta pode continuar sonhando com o casamento da primeira filha de William com um dos herdeiros. Talvez isso até aconteça. Fortune e eu iremos para a Inglaterra com o duque e a duquesa. Lorde Baltimore planeja uma expedição para o Novo Mundo a fim de fundar uma colônia católica onde todas as crenças poderão con­viver em paz, especialmente os católicos. Fortune e eu pretende­mos nos juntar a essa expedição e recomeçar a vida em outro lugar longe daqui. Não estaremos por perto quando meu ir­mão voltar. Não vamos permanecer visíveis e vulneráveis aos estratagemas de meu irmão e da mãe dele.

Shane Devers ficou em silêncio por um momento, mas, fi­nalmente, falou:

— É triste que tenhamos de chegar a esse ponto. Meu filho mais velho é deserdado, banido de sua casa e da terra onde nasceu. — Ele sorveu um gole do copo de uísque. Lágrimas corriam por seu rosto cansado. — Previa que seria assim quan­do me casei com Jane, mas não quis lutar. Só queria paz e con­forto para todos nós. Agora você está nos deixando. Kieran serviu mais uísque no copo do pai.

— Sabe que nunca me senti realmente em casa aqui — ar­gumentou ele. — Não entendo o porquê, mas é assim. Ulster não é o meu lugar. Fortune sente o mesmo. Ela já viveu na In­glaterra, na França e na Escócia. É amada pela família, mas nun­ca se sentiu confortável em nenhum desses lugares. Somos como almas gêmeas, unidas apesar de nossas intenções. O Novo Mun­do nos chama, pai. Precisamos um do outro. E temos de deixar esse velho mundo.

— Tem certeza, rapaz? Não está se agarrando a esperanças vãs de uma vida nova só por ter se apaixonado por Fortune Lindley?

— Eu tenho certeza, pai. Nós temos certeza.

— Então, que Deus os abençoe, meu filho. Estarei em seu casamento, mesmo sabendo que terei de enfrentar o ultraje de sua madrasta depois.

— Colleen também vai estar lá.

— Este será o primeiro segredo que manterei oculto de mi­nha Jane, rapaz. Deve saber que o amo muito para desafiá-la dessa maneira.

— Meu pai, nunca duvidei de seu afeto por mim. E quero que saiba que sou grato por abençoar minha união com Fortune.

— E eu sou grato por já ter vivido boa parte da minha vida quando vejo todas essas mudanças.

— Mudar com o mundo sem abrir mão de seus ideais e de sua ética é a única maneira de sobreviver, meu pai.

— Os jovens podem mudar. Os velhos não podem. Ou não querem mudar.

— Você não é tão velho assim, meu pai.

— Sou velho o bastante para desejar paz em minha casa e paz na terra.—Sir Shane bebeu seu uísque e levantou-se.—Agora vou me deitar, meu filho. Sugiro que não esteja por perto ama­nhã cedo, quando seu irmão e a esposa partirem para Dublin.

— Não estarei, pai. Talvez siga para Erne Rock ainda esta noite. Não está chovendo, e a lua ilumina o caminho. Diga a Colleen que a verei no dia 5 de outubro. Molly e as meninas também estarão lá. — Ele riu. — Todo o seu rebanho de ovelhas negras, meu pai.

Shane Devers riu.

— As ovelhas negras são sempre mais interessantes que as brancas e dóceis — opinou ele, antes de deixar a biblioteca.

Kieran ainda ficou por mais alguns minutos diante da la­reira; depois se levantou e deixou o copo sobre a bandeja de prata. Do lado de fora, no corredor, olhou para o alto da escada. O pai já se recolhera. A madrasta devia estar dormindo sob efeito do vinho. William, esperava-se, já devia ter vencido a barreira da virgindade de Emily Anne. E faria pouco mais do que isso, Kieran pensou sorrindo, imaginando se haveria alguma pai­xão na união do irmão com sua nova cunhada. Não importa, concluiu, saindo para ir ao estábulo selar seu cavalo.

Cavalgando, pensava que seu casamento com Fortune se­ria muito mais interessante e ativo do que o do irmão. Willy, porém, cumpriria seu dever e daria herdeiros a Mallow Court, filhos que comporiam a próxima geração de Devers. Crianças que seriam mais inglesas que irlandesas, Kieran percebeu, sus­pirando com tristeza. Havia algumas mudanças que ele tam­bém não apreciava.

A cavalgada era tranqüila, embora ele identificasse as som­bras de vários ladrões da região. Os homens, porém, reconhe­ciam seu cavalo e o deixavam passar sem incomodá-lo. Kieran seguiu pela rua principal de Maguire's Ford, passando por dois chalés onde sabia que seria bem-recebido. O cavalo transpôs a ponte levadiça de Erne Rock e entrou no pátio. Um cavalariço sonolento correu para ajudá-lo a desmontar, levando o animal para uma baia enquanto Kieran se dirigia à porta do castelo.

Encontrou o futuro sogro esperando por ele no salão.

— Eu sabia que viria — comentou o duque.

— Contei a meu pai sobre meu casamento com Fortune — revelou Kieran sem rodeios.

— E...?


— Ele estará presente na cerimônia e já nos deu sua bên­ção. Minha madrasta planeja casar uma das netas com um de seus filhos.

James Leslie não conteve uma gargalhada.

— Ela não desiste, não é? Bem, os homens da família Leslie, quando não são prometidos desde o berço, normalmente de­moram a se casar. Ela não vai poder realizar esse sonho tão cedo. Não quero a discórdia entre nossas famílias, Kieran. A dificul­dade está em seu irmão. Caberá a seu pai e à mulher dele man­ter William na linha. Não vou admitir que ele volte a insultar minha enteada. Foi sorte eu ter ido ao casamento desarmado, ou a noiva teria ficado viúva antes da lua-de-mel.

— Eu disse exatamente a mesma coisa a meu irmão.

— Você é um bom homem, Kieran Devers. Terei orgulho em chamá-lo de filho. Só lamento que sua natureza obstinada vá afastar Fortune de sua família, mas, se ela está contente com a idéia de segui-lo, nós devemos nos contentar também.

— Sua família não foi católica no passado, milorde?

— Sim, mas os tempos mudam rapaz, e é inútil discutir a semântica dessa questão religiosa. A fé é o que importa, Kieran. Nosso bom Senhor Jesus já disse que eram muitas as moradas de Seu Pai. Certamente, uma única estrada não pode conduzir a todas essas moradas. Particularmente, não o condeno pela maneira como pratica sua fé, mas sei que existem pessoas que o condenarão e o perseguirão, e existem leis pelas quais pode ser punido por seu inconformismo. Não concordo com essas leis, mas as seguirei até que sejam modificadas. Quando esti­vermos na Inglaterra, deverá obedecer às leis do rei. Não reco­nheço em você a natureza dos mártires e não vou permitir que minha família seja posta em perigo por opções religiosas. Isso está claro, Kieran Devers? Se quer minha ajuda, tem de acatar minhas regras. Entendeu, não é?

— Sim, milorde, perfeitamente. Farei tudo que puder para que Fortune e eu possamos viver bem e com segurança. Eu prometo!

— Ótimo. Agora, não vejo motivo algum para voltar a Mallow Court, senão para pegar suas coisas. Acha que pode en­contrar o quarto que ocupou quando esteve aqui pela última vez, quando dividiu a cama com seu irmão?

— Sim, milorde, eu posso.

— Então, seja bem-vindo a Erne Rock e à nossa família. Não tem idéia da confusão em que está se metendo — riu o duque. — Ah, e tente não deixar Fortune seduzi-lo antes do casamento. Ela está pronta para arrumar problemas, mas, por outro lado, não creio que um ou dois dias possam fazer diferença. Vá dor­mir, rapaz. E não fique constrangido. Eu seria um tolo se não conhecesse bem as mulheres de minha casa e confesso que elas ainda conseguem me surpreender algumas vezes.

Kieran se curvou para o anfitrião e saiu apressado do salão, subindo a escada para o quarto de hóspedes onde já havia fica­do anteriormente. O aposento estava gelado. As tochas que ilu­minavam o corredor tremulavam de maneira sombria. Ele en­trou no quarto e fechou a porta, depois se virou e teve de conter a respiração para não emitir um grito surpreso.

— Sabia que viria esta noite — disse Fortune, sorrindo. Ela estava deitada na cama dele, nua, usando apenas os cabelos vermelhos como adorno.

— E decidiu seduzir-me, então? — respondeu ele num sus­surro, aproximando-se com passos lentos.

— Sim. Sei que quer ser seduzido. — Ela estendeu a mão para puxá-lo para a cama.

— Você é a virgem mais ousada que jamais conheci.

— Não sabia que havia conhecido tantas assim. — Fortune riu. — Kieran, sabe que sou louca por você, e sei que me ama. Em menos de uma semana seremos marido e mulher. Por que temos de esperar mais? — os lábios úmidos e tentadores esta­vam perigosamente próximos dos dele.

Nesse momento, Kieran teve certeza de que jamais seria um santo. Ele a beijou com avidez e ardor, a cabeça girando pela força do desejo que o consumia. O perfume do corpo dela o envolvia.

— Será apenas uma prova de sabor, minha adorada, e de­pois não mais até o casamento — decretou ele, severo. — Não quero que suba ao altar parecendo saciada e satisfeita. Acha que pode guardar esse tipo de segredo? — uma das mãos já passeava pelo corpo de Fortune, percorrendo as curvas delicadas.

Ser tocada de maneira tão sugestiva era bem diferente do que havia imaginado. Quando decidira esperá-lo no quarto, sentira que essa era a atitude certa a tomar. Agora não tinha tanta certeza de estar preparada para essa intimidade. Quando ele a empurrou sobre os travesseiros, seu coração disparou. Fascinada, ela viu os dedos dele deslizando por seu corpo. Era delicioso, mas de repente se perguntava se ainda haveria al­gum casamento, agora que se oferecera tão completamente. A boca tocava seu pescoço e descia devagar até um seio. Fortune cerrou os punhos com evidente nervosismo. Havia cometido um grave engano. Precisava exigir que ele parasse imediatamente. Choramingando nervosa, ela sentiu a mão dele deslizar por seu ventre, provocando e despertando, até tocar a parte mais ínti­ma de seu corpo.

Kieran podia sentir Fortune tremendo de medo e desejo. Ele se sentou para despir o colete e a camisa. Os olhos dela se abriram ainda mais diante da visão do peito largo e musculoso. Quando se debruçou sobre o corpo delicado para pressionar a pele desnuda contra a dela, Kieran deslizou a língua por sua orelha e murmurou:

— Gosta disso, minha doce Fortune? Sinto que é quente e vibrante, pois tenho seu corpo em minhas mãos.

Era maravilhoso. Fortune suspirou e, ousada, abraçou-o. Não se sentia capaz de falar. O momento era intenso demais. Ama­va-o. Estavam juntos como devia ser com os amantes. Tímida, ela deixou as mãos deslizarem pelas costas dele. Então, de re­pente, ficou tensa. Kieran pressionava o membro rígido contra seu corpo, como se quisesse forçar passagem.

— Não posso! — gemeu ela. Ele se sentou imediatamente.

— Levou tempo demais para chegar a essa conclusão, me­gera provocante. — Ele segurou a mão dela e a colocou sobre seu membro pulsante. — Seu toque vai acalmá-lo. É isso ou...

— Como sabia? —Fortune perguntou confusa enquanto o acariciava.

— Sou experiente, minha querida. Você é uma criatura quente e passional, mas não é uma meretriz.

— Mas não desejo mais ser virgem!

— E deixará de ser em alguns dias.

— Sente-se melhor assim? — perguntou ela, afagando-o e sentindo sua curiosidade crescer.

— Sim, muito melhor.

— Também preciso de conforto, Kieran Devers. Não existe uma maneira de me saciar sem arruinar a surpresa da nossa noi­te de núpcias? Deve haver alguma coisa que você possa fazer!

— Até onde vai sua coragem, Fortune? — indagou ele com um misto de provocação e deboche.

— Não sei.

— Então, fique deitada e confie em mim — ordenou ele, deitando-se de lado e usando uma das mãos para tocá-la entre as pernas. Os dedos a acariciavam de um jeito provocante e delicioso.

Fortune fechou os olhos, um pouco assustada, mas deter­minada a descobrir o que ele pretendia. O contato começou a provocar arrepios. Ela se movia, incapaz de conter-se, mas ten­tava se manter concentrada nas sensações que Kieran provoca­va. Um único dedo começou a se mover por sua intimidade, pres­sionando entre as dobras da carne macia. Fortune ficou tensa.

— Relaxe, minha adorada. Confie em mim.

Ela relaxou, mas não conteve uma exclamação de espanto quando ele tocou aquele que era, aparentemente, o ponto mais sensível de seu corpo.

— Kieran!

— Esse é o seu botão do amor. Tocado da maneira correta, pode dar prazer extraordinário. — O dedo friccionava a protuberância inchada. — Gosta disso, Fortune?

— Ohhh, sim — Era maravilhoso. Por que ele não havia feito isso antes? Experimentava um prazer inimaginável. Era celestial. Ela murmurava palavras incompreensíveis e gemia baixinho, sentindo que o prazer crescia como uma onda pres­tes a se quebrar na praia. Quando a onda se rompeu, um único dedo a penetrou, movendo-se para dentro e para fora de seu corpo.

— Oh.... Ohhhhh...

Ele a beijou. Foi um beijo profundo, erótico, e Kieran sentiu que poderia explodir de desejo por ela. Não a possuiria de fato enquanto não fossem marido e mulher, mas conter-se seria muito difícil!

— Não tenho mais medo — declarou ela, sorrindo. — Não quero esperar, Kieran. Por favor!

Ele removeu o dedo de seu corpo úmido e quente.

— Não, minha adorada. Não enquanto não formos marido e mulher. Só então viveremos a plena experiência da entrega e do prazer.

— Odeio você! — exclamou ela com ardor quase infantil, virando-se de costas para ele. — Odeio você! Acho que nem quero mais ser sua esposa, Kieran Devers!

Ele olhou para as nádegas nuas e, incapaz de conter-se, afagou-as.

— Depois de ter provado seu sabor, minha amada, não te­nho a menor intenção de deixá-la. Nunca mais. Em poucos dias estaremos casados, e então, minha querida, poderei saciar por completo seus desejos picantes, e até despertar alguns que você nem imagina. — Ele deu uma palmada na nádega arredondada.

Fortune virou-se para encará-lo.

— Suponho que agora queira que eu volte para o meu quarto — disse.

— Acho que é uma boa idéia. Tente não acordar Róis. Temo que ela possa ficar chocada. Entende por que estou fazendo tudo isso, Fortune?

— Não, eu não entendo. Por quê?

— É um velho costume deixar pendurado na janela o len­çol sujo de sangue na manhã seguinte à noite de núpcias. As­sim, os vizinhos podem ter certeza de que a noiva era real­mente pura. Amanhã, em Mallow Court, Lady Jane exibirá orgulhosa o lençol manchado de sangue, a prova de que Willy foi o primeiro homem na vida de sua esposa Emily. Ela não aprecia nem aprova o costume, mas sabe que essa é a atitude esperada, e certamente haverá muitos comentários se o lençol não for pendurado na janela. Quero ter meu lençol para exibir. Não vou admitir que ninguém duvide de sua pureza em nossa noite de núpcias. Especialmente meu irmão Willy! Não quero ter de matá-lo, mas não hesitarei em fazê-lo, caso ele atente no­vamente contra sua honra.

— Também não quero a morte de Willy em minha cons­ciência. Não vou permitir que você se coloque em tal posição por minha causa, Kieran. Porém, se seu irmão ousar me ofen­der novamente, eu mesma o matarei, e para o inferno com mi­nha consciência!

Assustado com seu tom firme, ele a encarou e constatou que Fortune não estava brincando.

— Sou uma excelente espadachim — revelou ela. Kieran Devers riu.

— Você nunca deixará de me surpreender, minha adora­da. Agora, vista-se e volte para o seu quarto. Onde estão suas roupas?

Rindo, Fortune levantou-se e caminhou nua para a porta, por onde desapareceu no corredor escuro.

— Jesus! — exclamou Kieran, aturdido. Depois riu com vontade.


Capítulo 10


— Fique quieta, milady — suplicou Róis enquanto escova­va os cabelos de Fortune.

— Não sei por que tenho de manter o cabelo solto. Emily Anne ostentava um belo penteado quando se casou com Will.

— Os ingleses não seguem costumes próprios, milady.

— Sou parcialmente inglesa — lembrou Fortune.

— Pode ser, mas foi criada por um padrasto escocês, e ele, como sua mãe, sabe o que é certo. Agora fique quieta por mais um instante enquanto desembaraço as últimas mechas.

Fortune permaneceu em silêncio, olhando para o próprio rosto no espelho. Era o dia de seu casamento. Não poderia es­tar mais elegante do que se estivesse se casando em Londres na corte. Decotes baixos e quadrados ainda eram moda na Irlan­da, mas Fortune preferia os que exibiam os ombros. O vestido era de veludo castanho com uma gola de renda drapeada cor de creme. As mangas eram divididas por fitas douradas em dois gomos bufantes, sendo o superior decorado com botões de topázio. As metades inferiores e os punhos eram de renda, e havia uma fita de seda prendendo-as ao punho. Os saiotes que apareciam pela fresta da saia do vestido eram de tafetá de seda cor de creme bordado com fios de ouro. A saia caía em camadas e era mais cheia na parte posterior. As meias eram de seda dou­rada, e os sapatos eram decorados por pérolas. Fortune usava brincos de pérolas que faziam conjunto com um colar longo de uma só volta.

— Pronto! — anunciou Róis, orgulhosa. — Você tem cabe­los lindos, milady. Eles parecem ter vida própria. Está anima­da? Mestre Kieran é um belo cavalheiro e... — ela baixou a voz

— bem, as mulheres que o conhecem dizem que é um grande amante. Fogoso, mas terno, também. Como conseguiu ser tão paciente, milady? Fortune riu.

— Não foi fácil. Acho que desejo me deitar com ele desde que o vi pela primeira vez, embora não tenha admitido nem para mim mesma.

— Esta noite poderá realizar seu desejo, milady, e amanhã exibirá o lençol manchado para que todos vejam e comprovem sua pureza. Estamos todos muito felizes por seu destino, senhora! Veio a Ulster em busca do amor e o encontrou! Certa­mente sentirei sua falta quando voltar para a Inglaterra.

Surpresa, Fortune se virou para olhar para a criada.

— Mas eu quero que vá comigo! Por que fala como se pre­tendesse ficar?

— Milady, não posso deixar meu Kevin.

— Nesse caso, vocês devem se casar, e ele irá conosco. Te­rão mais oportunidades conosco no Novo Mundo do que aqui na Irlanda, Róis. Seu Kevin é bom com os cavalos, e dizem que parte da América, para onde vamos, é um excelente lugar para criar esses animais. Kevin terá essa incumbência. Não é me­lhor do que ficar aqui esperando Rory Maguire envelhecer? Duvido que ele algum dia fique velho — riu Fortune.

Róis estava pensativa. Poder se casar com seu amado antes do que planejava era uma idéia tentadora, por certo. Mas não sabia se era corajosa o bastante para viajar até o Novo Mundo. Porém, se Kevin estivesse ao seu lado, sabia que sua coragem cresceria.

— Preciso perguntar a ele, milady. Confesso que sua oferta me agrada.

A porta do quarto se abriu e Jasmine entrou.

— Deixe-me ver minha filha — disse ela. — Ah... — Seus olhos azuis se encheram de lágrimas emocionadas. — Linda, meu bem. Linda. — A duquesa de Glenkirk sentou-se sobre a cama. — Não sei para onde foram os anos — lamentou ela como se pensasse em voz alta. — Tenho a impressão de que foi ontem que você nasceu aqui mesmo, em Erne Rock. Rowan ficaria or­gulhoso de você, Fortune. Eu sinto em meu coração. Fortune foi abraçar a mãe com os olhos úmidos.

— Estou tão feliz! — disse.

— Róis, desça e avise a todos no salão que iremos em um minuto. Você fica, criança. Não precisa subir novamente.

— Sim, milady. — Róis saiu e fechou a porta. Não era tola. Sabia que a duquesa queria conversar com a filha sem interfe­rências. E já haviam falado sobre os deveres maritais de uma mulher.

— Por que mandou Róis sair, mãe?

— Porque o que tenho a dizer só interessa a você. Há quase um mês Rohana tem trazido todas as manhãs uma caneca do que ela chama de poção de fortalecimento. O líquido que você tem bebido nada tem a ver com vitalidade, meu bem. É uma receita dada à sua bisavó Skye pela irmã dela, Eibhlin, a parteira. Serve para prevenir a concepção. Não queria que subisse ao altar hoje com um segredo em seu ventre.

Fortune corou.

— Mas nós não... Jasmine riu.

— Eu sei. Ele é um homem muito teimoso, não é? E honra­do, também. Porém, um pouco de cautela nunca fez mal a nin­guém. Agora você vai se casar com Kieran Devers. Sei que vocês dois querem filhos, Fortune, mas, se quer um conselho, espe­rem até terem saído da Irlanda. Não confio nos Devers, porque Sir Shane, pobre homem, quer a paz a qualquer preço. William ainda pensa estar apaixonado por você, o que o torna um inimi­go perigoso, apesar do casamento. Lady Jane cobiça Maguire's Ford, apesar de saber que dei a propriedade aos meus dois fi­lhos mais novos. Escrevi para seu irmão, o duque de Lundy, e pedi a ele que fale com o rei sobre Maguire's Ford. Quero que Adam e Duncan Leslie sejam confirmados em seus direitos às terras e ao castelo.

— E então?

— Ontem, depois de um mês de espera, recebi uma carta de seu irmão contando que o rei concordou, e que a nova pa­tente está sendo redigida, mas não chegará aqui antes da pri­mavera. Até que eu possa exibir publicamente esse documen­to, acredito que os Devers, mãe e filho, usarão essa falta de provas legais como desculpa para nos atormentar, para causar dificuldades por causa de seu casamento com o católico Kieran. Devemos proteger Maguire's Ford e todo o seu povo, protes­tantes e católicos, desse perigoso fanatismo. Os fanáticos nun­ca mudam. Agora tenho de mandar você e Kieran para a Ingla­terra, mas sou egoísta. Quero ter minha filha comigo por mais um tempo. Quando partir para o Novo Mundo, é pouco prová­vel que voltemos a nos ver, minha querida. Além do mais, os ventos de outono já começam a soprar do norte, e atravessar a fronteira para a Inglaterra ou a Escócia seria perigoso agora.

— Ficarei ao seu lado enquanto for possível, mãe, e concor­do com o que diz sobre esse não ser um bom momento para ter­mos filhos. Kieran, é claro, não deve saber. Suspeito de que pa­pai nunca tenha sabido dessa poção, e é melhor assim, certo?

Jasmine sorriu.

— Você sempre foi minha filha mais prática — disse, abra­çando Fortune com imenso carinho. — Agora vamos descer, meu bem. Padre Cullen a espera para casá-los em particular antes da cerimônia aberta ao público, que será realizada pelo Reverendo Steen. Rohana continuará servindo sua poção to­das as manhãs e, quando chegar a hora de você nos deixar, ela lhe dará a receita e os ingredientes. Você vai decidir se Róis de­verá saber disso ou não.

— Por que deixou de tomar a poção, mamãe? Jasmine pôs as mãos sobre o ventre distendido e sorriu. —Pensei que houvesse passado da idade fértil. Meu Jemmie e eu nos deliciamos com os esportes de alcova há dois sem res­trições nem reservas. Bride Murphy me disse, porém, que isso pode acontecer com uma mulher na minha idade. Prometo que serei mais cuidadosa no futuro. Havia esquecido quanto é difí­cil a gravidez perto de seu final. E esse seu último irmão é uma criatura ativa.

Mãe e filha desceram a escada estreita para o principal piso do castelo. Lá, em um pequeno aposento próximo do cor­redor, Fortune Mary Lindley e Kieran Sean Devers foram uni­dos pelo ritual da Santa Madre Igreja. Padre Cullen absolveu Kieran do pecado que estava prestes a cometer casando-se novamente em uma cerimônia pública de outra fé, dessa vez pelo protestante Samuel Steen, na pequena igreja freqüenta­da pela população não-católica do vilarejo — população que se tornava rapidamente a maioria em Maguire's Ford. Todos os católicos que compareceriam à cerimônia foram previamen­te absolvidos, e Cullen Butler, deixando de lado suas vestes de sacerdote, juntou-se à prima Jasmine e à sua família para a feliz ocasião.

Fortune atravessou o vilarejo conduzida pelo braço do pa­drasto. A mãe os seguia em uma pequena carroça puxada por pôneis e ia acompanhada pelo sacerdote; Rory Maguire e Bride Duffy seguiam orgulhosos a afilhada. A igreja estava lotada. Sir Shane, sua filha Lady Colleen Kelly e o marido dela esta­vam sentados no primeiro banco. Atrás deles estavam Molly Fitzgerald e as duas filhas, Maeve e Aine. Se alguém julgou a situação estranha, não manifestou essa opinião.

A noiva foi conduzida pela igreja pelo duque. Carregava um buquê de rosas de cor champanhe presas por fitas doura­das. O Reverendo Samuel Steen sorriu para o jovem casal. De­pois de tantos anos, ainda havia esperança para Kieran Devers, afinal. A noiva, devidamente preparada pelos pais, finalmente o conduzira à igreja apropriada. Ele seria salvo das práticas dis­torcidas e maldosas dos papistas. O amor podia mesmo mover montanhas. Inspirado por essa feliz seqüência de eventos, Re­verendo Steen recitou as palavras do ritual anglicano de casa­mento, o elegante discurso enchendo a igreja com sua força. O noivo repetia sua parte com calma, em voz alta e clara. Até a voz da noiva podia ser ouvida em todos os recantos da modes­ta catedral.

Finalmente, foram declarados marido e mulher. Kieran Devers tomou a esposa nos braços e beijou-a. A igreja explodiu em aplausos calorosos. Samuel Steen sorria, satisfeito com a situação. O casal se retirava, seguido pelo duque e pela duquesa, por Sir Shane, Lady Colleen e todos os outros — até mesmo pela meretriz Fitzgerald que, apesar do comportamento licencioso, parecia ter criado filhas decentes, embora católicas.

O dia estava claro e o sol brilhava forte sobre os recém-casados. O vilarejo havia sido convidado para o banquete nupcial no salão. Havia alvos, arcos e flechas para torneios no pátio e, no campo, perto do lago, um grupo de jovens fortes e anima­dos começava um jogo com uma bola inflável, uma bexiga de carneiro que havia sido enchida com ar para a brincadeira.

No salão, várias mesas e muitos bancos haviam sido arran­jados em torno da mesa principal, mais alta, e o cheiro de carne assada e carneiro pairava no ar. Pratos com salmão, truta, patos e gansos eram passados entre os convidados. Havia pão quen­te em todas as mesas, tortas de carne de caça, porcos assados e recheados com frutas e guisado de carneiro com um molho rico e espesso. Havia cenouras, ervilhas e alface em grande quanti­dade, e manteiga e queijos finos de várias qualidades. Os que ocupavam os assentos à mesa principal bebiam o vinho fino de Archambault. Os outros convidados brindavam com cer­veja e cidra.

O velho bardo que estivera em Erne Rock meses antes ha­via ficado. Seus dias de andarilho haviam chegado ao fim, e agora ele tinha um lar permanente. Entretinha os convidados com canções e contos de uma Irlanda antiga que abrigava gi­gantes, fadas e seres de honra inabalável, um lugar de grandes batalhas. Tocava sua velha harpa e, quando se cansava, era substituído por um flautista. Logo todos estavam bem alimen­tados, e muitos já manifestavam os primeiros sinais do consu­mo excessivo de cerveja ou vinho. Os brindes eram interminá­veis. As mesas foram empurradas contra a parede, o flautista juntou-se aos músicos e o baile começou. Como a maioria ali era de gente do campo, as melodias eram quase todas familia­res. Muitas mulheres queriam dançar com o noivo, mas a noi­va não ficava sem parceiros.

O sol se pôs cedo, pois era outubro. O fogo ardia nas larei­ras do salão. Os noivos desapareceram repentinamente. Os con­vidados, bem alimentados e repletos de boa cerveja, foram sain­do aos poucos, todos agradecendo ao duque e à duquesa pela esplêndida recepção. A família se sentou diante da lareira para conversar. Lady Colleen não via as irmãs havia muitos anos e lamentava ter sido forçada a escolher entre elas e a madrasta. As duas jovens eram seu sangue, e isso já havia sido muito im­portante no passado da Irlanda.

— Está escuro demais para voltarem para casa agora — disse o duque a Sir. Shane. — Devem passar a noite conosco, é claro.

Sir Shane assentiu.

— Sim, Jane não vai se preocupar, pois já passei outras noi­tes fora antes, e ela pensa que Colleen voltou para Dublin com Hugh, meu genro, um homem tão rebelde quanto a mulher que desposou.

Hugh Kelly riu do comentário.

— Sim, meu sogro, é verdade. Porém, partiremos amanhã cedo para Dublin e não voltaremos no futuro próximo. Não consigo nem imaginar qual será a reação de Lady Jane quando souber sobre essa reunião tão formidável para celebrar o casa­mento de Kieran e Fortune. Vai ter de enfrentar a ira de sua esposa, meu sogro.

— Meu primogênito também tem o direito de ser feliz. Pelo bem da conveniência eu me tornei protestante, e pelo mesmo motivo deserdei meu filho, mas nunca o desonrei nem o neguei e nunca farei qualquer coisa que o impeça de ser feliz. Jane já conseguiu o que queria para o filho. Não há mais nada. — Ele riu. — E, James Leslie, meu filho não entra em sua família como um pobre desvalido. Arranjei para que ele tenha agora o que receberia um dia, depois de minha morte. Enviei tudo para o meu banqueiro, Michael Kira, em Dublin. Ele enviou os bens para os primos Kira em Londres. Conhecem a família?

— Sim — respondeu o duque, sorrindo. — Os Kira são nos­sos banqueiros há mais de um século.

— Pois bem, meu filho tem seu próprio dinheiro. Não é muito, eu sei, mas minha esposa e meu segundo filho não po­dem negar a ele o que já é dele por direito e, de fato, acredito que agi corretamente. Jane tem um senso de ética muito severo que não se estende aos católicos. Ela não saberá sobre o que fiz até que eu morra, e então não estarei mais aqui para ser castiga­do por sua língua cáustica — Sir Shane riu. Depois, olhou para a filha e o genro. — Vocês não ouviram nada.

Colleen levantou as mãos.

— Não ouvi mesmo! — exclamou. — Já terei problemas de sobra quando mamãe souber que compareci ao casamento de Kieran. Mas não importa. Eu não o teria perdido por nada! Bem, creio que Hugh e eu devemos nos recolher, porque partiremos amanhã bem cedo.

— Adali — chamou Jasmine — acompanhe Sir Hugh e Lady Colleen aos seus aposentos. — Ela sorriu para o casal. — Estou muito feliz por terem estado aqui conosco, pois sei o quanto isso significa para Fortune. Obrigada.

Os Kelly se retiraram, e Shane Devers olhou para a amante de muitos anos.

— Também providenciei uma pequena herança para nossas filhas — disse ele. — Todos sabem que nunca as desamparei.

— Decidi mandá-las para o Novo Mundo com Kieran — contou Molly. — Apesar de mantermos um relacionamento es­tável e duradouro, elas ainda são consideradas bastardas em Lisnaskea. Como poderão encontrar maridos respeitáveis, se carregam essa mancha? Dizem que nessa nova colônia a ser fundada elas não serão penalizadas por serem católicas. Em um lugar tão distante, com Kieran como guardião, poderão apagar definitivamente sua história passada e encontrar bons maridos. É o que desejo para elas, Shane.

— Quando forem para a Inglaterra, elas terão sua porção de meu legado — prometeu Sir Shane.

Jasmine reconheceu o amor e o respeito que havia entre os dois. Era triste que Shane Devers não se houvesse casado com Molly Fitzgerald, tendo preferido sua inglesa Jane. Por outro lado, a riqueza de Jane salvara Mallow Court da ruína. Jasmine levantou-se fingindo bocejar.

— Adali os conduzirá aos seus aposentos — disse. — Estou exausta, devo me retirar agora. Eu os verei amanhã.

O salão ficou vazio, exceto pelos criados que ainda limpa­vam os sinais do banquete do casamento. Ninguém notou Rory Maguire sentado à sombra ao lado da lareira, com a cabeça de um cachorro enorme e peludo apoiada em seu joelho. Olhando para as chamas, o irlandês pensou em como era bem-aventura­do por ter descoberto que Fortune era sua filha. Nunca imagi­nara poder sentir a felicidade que experimentara hoje ao vê-la se casar com o homem que amava. Saber que Adali e o sacerdo­te católico conheciam seu segredo era confortante, pois eles tam­bém tinham de carregar seu fardo.

Fortune havia sido uma noiva linda. Ele suspirou. Só mais alguns meses e ela partiria para sempre. Deixaria Maguire's Ford, a propriedade que deveria ter sido dela, não apenas pela mãe, mas pelos laços sangüíneos com os Maguire. Iria para um novo mundo do outro lado do oceano, um lugar que ele nem podia imaginar. Rory Maguire fez algo que não fazia havia anos. Ele rezou com todo o fervor de seu coração. Orou para que a filha fosse feliz até o último de seus dias.

Feliz.


Fortune nunca havia sido mais feliz. No meio do baile, Kieran havia tomado sua mão e a levado do salão, roubando-a dos convidados e subindo para seus aposentos sem dizer nada. Lá, ele trancou a porta.

— Kieran, estamos sozinhos! Por acaso sabe como ajudar uma dama a se despir?

Ele riu. Virando-a, começou a soltar as fitas de seu esparti­lho, enquanto a própria Fortune fazia o mesmo com as fitas que sustentavam a saia. Em pouco tempo ela se viu de camisoIa e saiotes. Removendo as peças uma a uma, ela estendeu uma das pernas na direção do marido, que se ajoelhou para remo­ver a liga e a meia de seda dourada, beijando sua perna e o pé enquanto os despia. Ela riu. Kieran repetiu o procedimento com a outra perna e a surpreendeu introduzindo as mãos sob seus saiotes e segurando-a pelas nádegas, puxando-a para frente e pressionando o rosto contra seu ventre.

Fortune sentia o calor através do tecido que ainda a cobria. Podia sentir com intensidade o desejo que o queimava. As mãos dela acariciavam os cabelos negros. Ele ergueu o rosto, exibin­do a paixão que iluminava seus olhos azuis. Fortune terminou de despir-se. Kieran a soltou apenas para permitir que os saio­tes caíssem, depois a segurou novamente e beijou a região de seu liso monte de Vênus.

Fortune sentiu a cabeça girar e se agarrou aos cabelos do marido. Não conseguia falar, pois sua garganta estava oprimi­da. O coração batia loucamente no peito, espalhando um forte calor por todo o seu corpo.

Kieran levantou-se.

— Gostei de vê-lo ajoelhado aos meus pés — provocou ela, excitada.

— E eu estou adorando vê-la nua.

— Desta vez também vai remover suas roupas, senhor — anunciou ela, começando a despi-lo com uma desenvoltura sur­preendente para uma virgem. Kieran a ajudava, e em pouco tempo ambos estavam nus. Ela o cobria com beijos rápidos e quentes, úmidos e provocantes, e em alguns trechos de seu cor­po usava a língua para levá-lo à loucura.

Kieran rangia os dentes. Fortune tinha as maneiras de uma cortesã, mas não era uma meretriz. Ardendo de paixão, ele des­piu a calça e exibiu orgulhoso sua masculinidade, tomando a esposa nos braços para fazê-la sentir a urgência de seu desejo. Fortune também estava tomada pela febre do amor.

— Depressa! — murmurou ela em seu ouvido, sentindo seu membro rígido entre as coxas.

— Você ainda não está pronta. Quero possuí-la como ja­mais quis outra coisa em minha vida, Fortune, mas não devo me apressar. Quero que essa primeira vez entre nós seja perfei­ta. Esperei por você minha vida inteira! — Ele a beijou com ar­dor, roubando-lhe o fôlego enquanto invadia sua boca com a língua. Podia sentir os mamilos túrgidos contra seu peito másculo. Erguendo-a nos braços, Kieran a levou para a cama.

Fortune abriu os braços num convite silencioso. Ele sorriu e se deitou ao lado da esposa, segurando sua mão e beijando primeiro a palma, depois um por um todos os dedos.

— Não conheci jovem mais bela, minha adorada. E quero que saiba que é a única que jamais teve meu amor.

— Em termos práticos, jamais poderia ter imaginado mari­do menos provável, mas amo você, Kieran, e nunca amei outro homem. Nem mesmo me apaixonei por outro. Quero satisfazê-lo, mas não tenho idéia de como devo agir. Mamãe nada me disse, exceto o fundamental, porque, como minha irmã, ela afir­ma que a paixão entre duas pessoas que se amam e se desejam é única, indescritível.

Ele sorriu, e Fortune foi repentinamente inundada pelo bem-estar proporcionado pela certeza de ser amada.

— Quero idolatrá-la à minha maneira. Não há nada a te­mer, Fortune. — Ele a beijou novamente nos lábios, sem pressa, depois deixou os lábios deslizarem pela coluna branca de seu pescoço até encontrar uma orelha, que ele mordeu levemente.

— Quer me devorar, então?

— Sim, aos poucos, para que meu delicioso banquete dure para sempre — respondeu ele num sussurro sedutor. Sentindo o pulsar frenético da veia na base do pescoço dela, apoiou a cabeça em seu peito para ouvir as batidas do coração que agora era dele.

Fortune acariciou os cabelos escuros. Não sabia o que es­perar e, embora a experiência até ali tivesse sido deliciosa, nada havia de muito excitante nela. Mas sua mãe e índia davam mostras de apreciar o sexo com o marido. Haveria algo de er­rado com ela? Kieran ergueu a cabeça e beijou um de seus seios. Ela parou de respirar por uma fração de segundo. Com uma das mãos, ele acariciava um mamilo túrgido e sensível. Os dedos o apertavam, provocando sensações deliciosas e des­conhecidas.

Kieran deitou-se de costas, puxando-a sobre seu corpo. Ela sentia o rosto queimar pela intimidade da posição. As mãos a acariciavam da cabeça aos pés, despertando seu corpo. Ele a segurou pela cintura e a ergueu, de forma que os seios dela fi­caram sobre seu rosto. Erguendo o rosto, ele lambeu um mami­lo, arrancando de seu peito um gemido seguido por uma excla­mação, porque agora a boca sugava seu seio com avidez. Agora isso está ficando mais excitante, Fortune pensou, entregando-se às delícias que Kieran sabia proporcionar.

Ele rolou novamente, colocando-a sobre o colchão. E co­meçou a afagar seus seios e o ventre. Ondas de calor percor­riam o corpo dela. Havia um formigamento estranho naquela região proibida entre suas pernas. Incapaz de conter-se, ela se moveu, tentando encontrar um pouco de conforto. Kieran sor­riu e tocou seu monte de Vênus, pressionando-o. Uma sensa­ção intensa explodiu dentro dela. Um único dedo começou a passear pela brecha entre seus grandes lábios, indo e voltando. Fortune sentia-se úmida, quente.

— Logo vai estar pronta, meu bem — murmurou ele contra sua boca. Estava rígido como granito, seu membro latejando de antecipação e excitação.

— Faça o que fez anteriormente — implorou ela. — Por favor!

— Libertina — ele riu, encontrando com o dedo aquele pe­queno botão sensível que a levava à loucura.

Fortune gemeu de prazer. Era isso o que ela queria. Não as carícias preliminares, mas a excitação da própria luxúria.

— Isso mesmo... Isso... Não pare, Kieran... Não pare!

Ele não tinha a intenção de parar. Brincava com o sensível órgão, despertando-a para a paixão e, ao mesmo tempo, alimen­tando o próprio desejo. Fortune chegou ao clímax uma vez, mas ele continuou friccionando e acariciando até ouvi-la gritar nas garras do mais lancinante prazer. Então, ele cochichou em seu ouvido.

— Abra-se para mim, Fortune!

— Ainda não — pediu ela, desejando muito mais.

— Agora! — Ele usou um joelho para ganhar espaço entre suas pernas e posicionar-se. — Agora, minha deliciosa meretriz, antes que eu exploda de desejo por você! — Enquanto a penetrava, usou dois dedos para beliscar o clitóris dela, lançando-a no poço sem fundo do prazer. Nesse momento, ele a penetrou profundamente, sentindo sua virgindade explodir com a força do movimento. Ela gritou.

Foi um grito de dor e prazer. A entrada havia sido dolorosa, mas agora a dor desaparecia rapidamente. Tinha consciência do momento da posse. Sua primeira reação foi de medo, mas depois ela percebeu como o membro de Kieran a preenchia por completo. Era tão natural! Tão perfeito. Suspirando, Fortune abraçou o marido e entregou-se sem reservas.

— Olhe para mim — ordenou ele.

Ela abriu os olhos para fitar os dele, tão cheios de amor e paixão.

— Eu amo você, Fortune. Amo você! — Kieran começou a se mover dentro dela. Cada movimento despertava nela a cons­ciência de um novo prazer, de um sentimento que inundava corpo e alma. Com o olhar fixo no dele, tentava transmitir to­das as emoções que ganhavam força em seu ser, e pela primeira vez na vida Fortune flutuou entre as estrelas.

Ele mergulhou mais fundo na doçura do corpo ainda juve­nil. Sentia os dedos cravados em seus ombros, agarrando-se a eles como se ali estivesse sua única chance de salvação.

— Por favor... Por favor... — implorava ela, acompanhando-o rumo ao pico da experiência sensual. — Kieran! Oh, Kieran — gritou ela quando explodiram juntos num orgasmo violento. — Oh, Kieran! Isso é maravilhoso, meu amor!

Era maravilhoso poder inundar seu jardim secreto com a seiva de seu corpo. Kieran mal podia respirar, mas logo perce­beu que devia ser pesado demais para ela e rolou para o lado, ofegante e cansado, sentindo-se totalmente comovido pela ex­periência que acabara de viver. Quando seu coração finalmen­te voltou a bater no ritmo normal, ele escutou. Choro. Um cho­ro contido e sincero.

— Fortune! O que foi, meu amor? Por que está chorando? Machuquei você? — Ele a tomou nos braços. — O que foi, mi­nha adorada?

— Estou tão feliz... — ela chorou, escondendo o rosto em seu peito. — Nunca me senti mais feliz em toda a minha vida, Kieran! Valeu a pena esperar por você, meu amor. Nunca pen­sei que o amor me encontraria. Quando conheci seu irmão, soube imediatamente que ele não era o homem de minha vida, mas pensei em aceitá-lo porque era essa a atitude correta a ser tomada.

Ele queria rir da confissão inocente, mas Fortune agora cho­rava copiosamente, despertando nele um forte sentimento de proteção.

— Também não esperava ser encontrado pelo amor, minha adorada, mas então a vi... e soube que não poderia permitir que Willy a tivesse. Eu a teria roubado como faziam meus ances­trais celtas se você o houvesse escolhido. Você é minha! Sempre foi, e sempre será. Agora, pare de chorar, meu amor, e beije-me.

O beijo foi quase desesperado. Quando se afastaram, ela declarou com pureza comovente:

— Podemos fazer tudo outra vez esta noite? Ele assentiu.

— Sim, mas antes devo descansar um pouco, e você tam­bém, minha querida. Ainda tenho muito o que lhe mostrar, muito para ensinar. Espero não desapontá-la.

— Quero saber como satisfazê-lo. — Ela se levantou e foi buscar uma vasilha com água e lavanda deixada sobre um mó­vel. Quando voltou com a bacia e as toalhas, ela se lavou e lim­pou o membro do marido, que não protestou.

— Gosto disso. Vai cuidar de mim sempre com essa mesma ternura, Fortune?

— Sim, sempre. — Ela deixou bacia e toalhas no chão e vol­tou para a cama. Kieran a acariciava novamente, e Fortune o prendeu entre as coxas pálidas. — Estou pensando que gosta­ria de cavalgá-lo, meu marido, como faço com Thunder.

— Então, não tem medo de minha luxúria, bela esposa? — Ele a acariciava de maneira provocante, começando na nuca e descendo pelas costas até o quadril. Jamais desejara outra mu­lher como desejava Fortune. Normalmente, ficava satisfeito com um orgasmo, mas já se descobria querendo mais.

Ela podia sentir o pulsar do membro sob seu corpo e, erguendo-se, ajeitou-se de forma a aceitá-lo em seu corpo.

— Fortune, meu amor — gemeu Kieran enquanto se movia. O orgasmo foi novamente poderoso e envolvente para ambos.

Mais tarde, quando estavam deitados lado a lado, de mãos dadas, ele insistiu que deviam dormir um pouco.

— Você é uma amante ardente, mas precisa descansar um pouco.

— Sim, senhor, milorde marido. Mas podemos fazer tudo de novo quando acordarmos? Kieran? Por que está rindo? Eu disse alguma bobagem?

— Todas as mulheres em sua família são fogosas como você, Fortune?

— A paixão não é algo que um marido deseja encontrar em sua esposa?

— Jamais me ouvirá reclamar, querida. Mas, de repente, um estranho pensamento tomou-me a mente...

— O que é?

— Não preciso temer que meu irmão me mate quando des­cobrir que me casei com aquela que ele pretendia. Você vai me matar com essa sua natureza insaciável!

— Maldoso! Afinal, podemos ou não fazer amor outra vez quando acordarmos?

— Sim, quantas vezes quiser. Se tiver de morrer nesta cama, morrerei feliz.

— Nem pense nisso. Agora que me mostrou as delícias da paixão, precisa continuar vivo.

— Mantê-la satisfeita será uma ocupação vitalícia e em tem­po integral.

— E vai ter de trabalhar duro, meu marido.

— Minha querida esposa, pode estar certa de que vou me esforçar. Sempre!

Capítulo 11


— O que está dizendo? Kieran se casou com Fortune Lindley? — Jane Devers olhava estupefata para o marido.

— Eles se casaram na quarta-feira, diante do Reverendo Steen, na igreja de Maguire's Ford — respondeu Sir Shane. — Eu estava lá. Testemunhei a cerimônia.

— Você permitiu isso? — Ela sentia a raiva crescer. — Deixou aquele seu bastardo celta se casar com a maior herdeira de toda Fermanagh? Como teve coragem? — sua pele pálida ostentava manchas vermelhas e ela arfava.

— Como poderia ter impedido? O duque de Glenkirk e sua esposa estão contentes com a união. E nunca mais se refira ao meu filho mais velho como bastardo, Jane. — Seu olhar era duro.

— E o que ele é? Seu casamento católico foi declarado ile­gal! Essa é a lei do rei! Os filhos que teve com aquela criatura que chama de primeira esposa são ilegítimos, mas eu ignorei tudo isso, criando-os como se fossem meus. Quando reconhe­ceu William como seu legítimo herdeiro, pensei que fôssemos da mesma opinião, Shane.

— Foi você, minha cara, quem decidiu que eu devia deser­dar Kieran, a menos que ele se tornasse protestante, pois só as­sim Mallow Court seria protegida e permaneceria na família Devers. Agora está me dizendo que, se Kieran houvesse se con­vertido, se ele se houvesse feito protestante, você o teria decla­rado ilegítimo porque meu casamento com Mary Maguire, a mãe dele, foi celebrado na igreja católica?

— Sim! Sim, é isso mesmo! Não nos casamos por amor, Shane. Você se casou comigo por minha herança, e eu o aceitei como marido porque queria Mallow Court. Chegou mesmo a pensar que eu deixaria Kieran ficar com a propriedade depois do nascimento de meu William? E, se tivesse tido somente uma filha, eu teria reclamado as terras para Bessie. Mallow Court não pertence a você, Shane. Meu pai comprou este lugar com seu ouro, e eu selei a barganha quando o aceitei gemendo e suan­do sobre meu corpo para lhe dar filhos. Aos olhos da lei, William e Bessie são seus filhos legítimos! Nunca se esqueça disso!

— Nunca pensei que nossa união fosse de amor, Jane, mas cheguei a pensar que houvesse afeto entre nós depois de ter­mos tido dois filhos, depois de tantos anos de convivência. É triste descobrir que me enganei.

— Vocês, irlandeses, são muito românticos. O casamento, como qualquer outra associação, é uma questão prática. Ago­ra, vamos discutir esse desastre que se abateu sobre nós. Kieran não pode ficar com Erne Rock e Maguire's Ford. Isso daria uma grande vantagem aos católicos que insistem em ficar aqui.

— Kieran e Fortune não ficarão em Ulster, Jane. Não terão Maguire's Ford. Você já sabe disso. A propriedade foi dividida entre os dois filhos mais novos do duque, Adam e Duncan Leslie, que já se instalaram no castelo. O duque, sua esposa, Fortune e Kieran partirão na primavera, depois de a duquesa ter seu filho.

— Isso é o que eles dizem! Não sou idiota o bastante para não perceber o que Kieran fez. Ele envolveu Lady Lindley para que William não pudesse tê-la. William sempre suspeitou. Por que outra razão Kieran teria se casado com aquela jovem, senão por sua propriedade? Ele é irlandês! A terra tem grande importân­cia para Kieran. Ele planejava obter propriedade maior e mais importante que a do irmão. Por isso abriu mão de Willow Court. Ah, vocês irlandeses são mesmo diabólicos, mas Kieran não vai conseguir o que quer, eu juro! A lei não permitirá que um católico traidor fique com tal prêmio!

— Jane, não se meta nisso! Eu a proibo de atrair o desastre para minha casa. Kieran e a esposa não herdarão Maguire's Ford. Os Leslie de Glenkirk não são tolos para jogar fora uma riqueza tão grande entregando-a a um genro católico. Eles são amigos do Rei Charles e têm certa influência na corte. O filho da duquesa é sobrinho do rei. Se eles quisessem Maguire's Ford e Erne Rock para a filha e o genro, certamente obteriam a prote­ção do rei, apesar da lei, mas eles não querem. Eles são sensatos o bas­tante para saber que isso causaria grandes dificuldades e não querem prejudicar o povo que depende deles e da proprieda­de. Os dois filhos que dividirão a terra são protestantes. Não pode tirar Maguire's Ford dos Leslie de Glenkirk, Jane. Não tem base para suas acusações. Esqueça. Pense, em vez disso, em como vamos contar a William sobre o casamento. Em algumas semanas ele e Emily estarão de volta da lua-de-mel. Ela empalideceu.

— Ah, meu filho! O que ele vai pensar de tudo isso? Pobre William!

— Pobre William?! — Shane Devers repetiu com tom sar­cástico. — Por que tem piedade dele, Jane? William é herdeiro de tudo o que tenho. Casou-se com uma jovem que o ama de verdade e um dia terá tudo o que hoje pertence ao pai dela, o que não é pouco. Por que sente pena dele? Porque ele insiste em alimentar uma paixão tola que nunca foi correspondida por uma jovem que nunca viu nele nada digno de seu amor? É me­lhor William desistir desse capricho infantil, dessa luxúria insana, porque é só isso o que ele sente. E é melhor não cobiçar a esposa do irmão. — Ele olhou sério para a esposa. — E você não vai arruinar a viagem de William e Emily Arme enviando uma mensagem para Dublin. Deixe que eles vivam em paz es­sas semanas e encontrem alguma felicidade antes de começar a infectar a vida do casal com sua amargura.

— Esse casamento de Kieran é ilegal! Farei com que seja anulado e...

— Kieran se casou com Fortune na Igreja anglicana, Jane. A igreja do rei! Não há nada que possa fazer contra isso. A união é legal, aprovada pelos Leslie, e hoje cedo havia na janela de Erne Rock um lençol manchado de sangue, a prova de que o matri­mônio foi consumado. Kieran nunca lhe causou mal, Jane! Como William, ele tem direito à felicidade. Você não vai interferir.

— Seu filho católico se casou na igreja protestante? Então, a moça não é mais que uma meretriz para ele, porque esse casa­mento só poderia ser santificado pelos ritos da Igreja romana. A menos, é claro, que eles tenham se casado antes pelo sacer­dote que a duquesa chama de parente. E isso, Shane? Seu pre­cioso filho e aquela meretriz burlaram antes a lei do rei, para depois zombarem de nossa verdadeira Igreja?

— Se houve outra cerimônia, Jane, eu não tomei conheci­mento dela nem a presenciei. — De fato, ele não estivera mes­mo presente. Rory Maguire e Bride Duffy haviam sido testemunhas da união católica, e Sir Shane fora esperar na pequena igreja protestante de Maguire's Ford com Colleen, Hugh, Molly e suas filhas. Não queria nem pensar no que Jane faria quando soubesse daquilo, e ela saberia. — Os Leslie de Glenkirk são protestantes, Jane. É natural que a filha deles, criada na fé in­glesa, tenha se casado na presença do Reverendo Steen. E, por favor, minha cara, não chame minha nora de meretriz.

Frustrada e enfurecida além da razão, Jane Devers perdeu o controle. Seus dedos se fecharam em torno da garrafa de vi­nho, e ela a arremessou contra o marido.

— Odeio você! — gritou Jane Devers.

Shane se esquivou do ataque e explodiu em gargalhadas.

— Minha querida Jane, essa é a maior demonstração de paixão que já vi em nossa casa desde que nos casamos. Adorei!

Ela o encarou boquiaberta por um instante. Depois, com um grito irado, saiu da biblioteca do marido e bateu a porta com violência. Estava aturdida com a situação; perplexa com sua impossibilidade de assumir o controle; espantada com a própria falta de controle. Jane começou a chorar, mas, depois de alguns momentos, conteve o pranto. Precisava saber mais sobre aquele casamento. Em seus aposentos, chamou Susanna, sua criada.

— Descubra se algum criado da casa tem parentes em Maguire's Ford — ordenou ela. — Meu enteado casou-se com Fortune Lindley ontem, e quero saber tudo sobre o evento.

— Sim, milady — respondeu Susanna sem demonstrar ne­nhuma emoção. Sua senhora não gostava de expressões de afe­to. Mas, na verdade, ela estava muito surpresa com a notícia. — Há na cozinha alguém que tem parentes em Maguire's Ford, milady. Uma ajudante. Devo falar com ela?

— Sim. Diga que ela será recompensada com uma moeda de prata se me trouxer informações.

— Sim, milady. — Susanna se retirou para ir cumprir a ordem.

Vários dias mais tarde Jane Devers sabia tudo de que preci­sava sobre o casamento do enteado. Havia sido uma ocasião feliz, e o duque convidara todo o vilarejo para celebrar com sua família. Saber disso alimentou sua satisfação por William por não ter contraído núpcias com Fortune Líndley. O duque se as­sociava com os menos favorecidos, então? Era revoltante! Os Leslie podiam ser ricos, mas não eram pessoas de reais quali­dades, evidentemente. Prova disso era a maneira despudorada como a duquesa se gabava de ter um filho bastardo do príncipe morto.

Mais interessante, porém, era saber que a amante de seu marido estivera nas comemorações com suas duas bastardas. E todos haviam passado a noite em Erne Rock. Tivera oportu­nidade de ver as duas jovens prostitutas em Lisnaskea em vá­rias ocasiões, e havia conversado com o Reverendo Dundas sobre nenhuma família decente poder aceitá-las como esposas para seus filhos. Eram bastardas! Eram católicas! Mas o fato de Shane ter se exibido publicamente com elas no casamento de Kieran era um insulto que jamais esqueceria. Ele pagaria caro por essa atitude. E Kieran também teria de pagar por sua traição.

Nos últimos tempos mal via o marido. Dormiam em quar­tos separados havia anos e só se encontravam à mesa do jantar, exceto quando Shane estava ausente, o que vinha acontecendo com freqüência cada vez maior. Devia estar com sua meretriz e as duas bastardas. Conseqüentemente, pouco conversavam. E ela não se importava. Logo William estaria em casa com Emily Anne e então decidiriam o que deveria ser feito com Kieran e a propriedade que chamavam de Maguire's Ford. Shane podia dizer o que quisesse; Kieran não a teria. Não acreditava no ma­rido. Por que a duquesa daria aos filhos do duque as terras que havia herdado de outro casamento? Não. Jasmine Leslie usaria sua influência com o Rei Charles para dar Maguire's Ford à filha e ao marido. Trazer os dois filhos mais novos da Inglater­ra era só um truque, uma cortina de fumaça. E não ia dar certo. Kieran Devers não teria a chance de ser melhor ou mais rico que seu filho!

Sem ter consciência da ira de Jane Devers, Kieran e Fortune passavam os dias fazendo amor e cavalgando. A paixão que havia entre eles era tão grande que mal podiam esperar para deixar o salão todas as noites. Finalmente, Jasmine disse ao jo­vem casal que nem precisavam se incomodar em ir ao salão, pois uma criada levaria uma bandeja com o jantar para o quar­to, e eles poderiam saciar o real apetite quando aplacassem a fome de amor.

— Mamãe! — protestou Fortune, embaraçada. Kieran apenas riu.

— Agradeço por sua compreensão, senhora — disse ele, sorrindo.

O duque e Rory Maguire riam da situação, e até padre Cullen continha o riso com grande esforço.

— O silêncio de Lisnaskea é ensurdecedor, não acham? — comentou o duque.

— Ouvi dizer que Lady Jane e o marido tiveram uma terrí­vel briga por causa do casamento — respondeu Rory. — A aju­dante de cozinha em Mallow Court ganhou uma moeda de prata para obter todas as informações que pudesse com um parente que trabalha aqui. Agora dizem que Sir Shane e a esposa nem conversam mais, exceto quando é inevitável. Tudo vai ficar ain­da mais interessante quando o jovem Willy voltar com a esposa.

— Ele não vai se atrever a criar uma cena — opinou Fortune.

— Você o rejeitou e se casou com o irmão dele — foi a res­posta. — Kieran pode confirmar o que vou dizer: William nun­ca soube lidar com a frustração, e poucas vezes deixou de obter o que queria.

— Eu mesmo irei conversar com meu irmão — anunciou Kieran.

Maguire levantou uma sobrancelha.

— Se conseguir se aproximar dele, Kieran Devers, porque ele vai estar clamando por sangue, a menos que aquela jovem com quem se casou tenha conseguido conquistá-lo.

— Acredita que ele pode ser perigoso? — perguntou Fortune ao marido naquela noite, quando já estavam deitados. Nus e sa­ciados, conversavam reclinados nos braços um do outro.

— Não sei. Nunca vi William fazer as coisas que fez por você.

— Acha que a esposa vai conseguir dominá-lo como a mãe dele sempre fez? Talvez seja mais sensato tentarmos nos apro­ximar de Emily Arme.

— Não sei se será possível, minha querida. Emily Arme ama William com todo o seu coração e fará tudo que puder para agradá-lo, seja o que for. Não, acho que há poucas chances de uma reconciliação entre mim e minha família.

— Seu pai não vai abandoná-lo.

— Não, mas também não vai fazer nada por mim. Ele tem de conviver com minha madrasta e com meus irmãos, e vai con­tinuar aqui depois de nossa partida.

— Nesse caso, vamos ignorá-los e encerrar o assunto — sugeriu Fortune. — Não vejo outra saída. Em seis meses estare­mos longe daqui. Com a chegada do inverno, sua madrasta não vai poder causar muitos problemas.

Kieran beijou a esposa para não ter de responder ao comen­tário. Fortune não conhecia Jane Devers como ele a conhecia. Sabia que a mente distorcida da madrasta devia estar traba­lhando no esforço de encontrar um meio de criar dificuldades para os Leslie de Glenkirk e para justificar seu comportamento como certo, baseando-o em suas crenças religiosas. Não que os católicos não tivessem entre suas fileiras maus elementos; eles existiam, certamente. Como podiam justificar tanto ressenti­mento e tanta maldade uns contra os outros, e ainda acreditar que Deus os favorecia, era algo que Kieran jamais compreen­deria. A situação desafiava a lógica.

Perto do final de outubro, Maeve Fitzgerald cavalgou por Lisnaskea para informar o irmão mais velho sobre a chegada de William e Emily Arme. O casal era esperado em casa naque­le dia.

— Papai me pede para preveni-lo. Ele quer que você se mantenha alerta porque tem certeza de que a esposa está pla­nejando alguma maldade.

— Ouvi dizer que nosso pai quase não fica mais em Mallow Court — especulou Kieran.

— Ele passa ali tempo suficiente para saber de tudo que acontece.

Kieran passou um braço por cima dos ombros da jovem.

— Está acontecendo alguma coisa, minha irmã? Maeve suspirou profundamente.

— Não quero deixar nossa mãe, mas ela quer que tudo es­teja pronto para nossa partida na primavera, e devo reconhecer que ela tem razão. Não há nada aqui para nós. Estamos sendo expulsos de nossas casas por gente como Jane Devers e seus amigos protestantes. E o que vai acontecer com minha mãe quando não estivermos mais aqui?

— Papai a protegerá — respondeu Kieran, numa tentativa de confortá-la.

— E quando papai não estiver mais aqui? Acha que seu irmão William vai respeitar o fato de papai ter construído uma casa para minha mãe e dado a ela um rendimento? Ele vai arrancá-la de lá, vai expulsá-la de Lisnaskea, o único lugar que ela ja­mais conheceu, e tudo porque ela é católica!

— Vamos pensar em um plano. Se isso que teme realmente acontecer, ela irá viver conosco no Novo Mundo.

— Odeio os protestantes! Eles podem estar no comando aqui em Ulster agora, mas vão arder no fogo do inferno um dia por sua falta de compaixão e por usarem o nome de Deus para jus­tificar sua crueldade. Fico feliz quando penso nisso!

— Minha esposa é protestante.

— Fortune é diferente, e pelo menos foi batizada na Igreja católica. Com sua ajuda, Kieran, um dia ela se voltará para a verdadeira Igreja, especialmente quando tiverem filhos.

— Não se desgaste com o ódio, irmãzinha.

Kieran despediu-se da irmã e a mandou de volta a Lisnaskea, pois precisava informar os sogros sobre a chegada iminente de William Devers.

O jovem chegou cedo no dia seguinte, cavalgando por Maguire's Ford como se o próprio diabo o perseguisse. Des­controlado, invadiu Erne Rock Castle, atropelando criados e empurrando-os para fora de seu caminho. A família estava reu­nida no Grande Salão, tomando o desjejum, e ninguém o viu até ele apontar um dedo para Fortune e gritar:

— Meretriz!

Antes que James Leslie, Kieran ou os dois jovens Leslie pudessem responder, Fortune já estava em pé e parada diante do invasor. Ela o esbofeteou no rosto com toda a força que tinha.

— Como ousa insultar-me? Quem pensa que é, William Devers, para invadir a casa de minha família e ofender-me? Não tem nenhum direito sobre mim! Nunca teve!

— Ia se casar comigo! — gritou ele, surpreso com a reação furiosa. Sua mãe e Emily Anne haviam passado toda a noite anterior falando da afronta que representava o casamento de Fortune Lindley com Kieran. Era dele o direito de se sentir ofendido!

— Nunca houve nenhum contrato de compromisso entre nós ou entre nossas famílias, Mestre Devers. Vim à Irlanda para encontrar um marido, e você foi o primeiro candidato que se apresentou. E eu o recusei!

— Para poder fornicar com meu irmão bastardo! — acusou-a. — Durante todo o tempo em que a cortejei com respeito e ter­nura, você pensava nele!

Fortune o agrediu novamente, para grande surpresa de William.

— Se continuar me insultando e atacando verbalmente meu marido, Mestre Devers, irei ao magistrado local para registrar uma queixa formal. Não pense que serei ignorada por Kieran ser católico, porque se engana. Sou protestante, e meu irmão é sobrinho do rei e querido por ele. Quanto ao rei, a esposa dele é católica. Que lado da questão acha que o rei favorecerá, Mestre Devers? O de um insignificante irlandês herdeiro de terras sem nenhuma importância ou o meu?

— Eu a amei, Fortune — declarou ele, baixando a voz.

— Ficou fascinado por mim. O que amava, William, mes­mo sem ter consciência disso, era Maguire's Ford e seu castelo. Como sua mãe queria que fosse. Como sua mãe ensinou a você — concluiu ela, com efeito devastador.

— Kieran não terá a propriedade! — insistiu William Devers com tom rancoroso. — Meu meio-irmão bastardo não terá Maguire's Ford e Erne Rock. Não permitirei que um católico seja melhor ou mais rico que eu, senhora!

— Conhece a disposição desta propriedade, William. Ela será igualmente dividida entre meus dois irmãos mais novos, que agora estão sentados à mesa empunhando adagas prontas para cortar sua garganta. Sendo assim, exijo que me peça des­culpas. E peça desculpas também ao seu irmão, meu marido. Não há razão para mal-estar entre nós.

— Vá para o inferno, cadela! — ele se virou para sair. Nesse momento, Kieran Devers saltou de seu assento à mesa e atravessou a sala para ir atrás do irmão. Agarrando-o pelo colete, ele o impediu de deixar o castelo.

— Não vou atentar contra sua vida porque não quero mi­nha alma maculada pelo pecado de Caim, William, e prometi à minha esposa que não o mataria; porém, se voltar a insultar qualquer um de nós novamente, irmãozinho, esquecerei minha promessa e não pensarei nas conseqüências para minha alma. O casamento de meu pai e minha mãe foi tão legítimo quanto o casamento de meu pai e sua mãe. E, se eu fosse um fanático como você, já o teria contestado, porque a Santa Igreja católica é a única verdadeira. E o que afirmam alguns, embora os protestantes discordem. Como Fortune e a família dela, não desejo a discórdia entre nós, mas não hesitarei em espancá-lo até deixá-lo inconsciente se ousar voltar a Erne Rock sem ser convidado para criar problemas! — ele o soltou e o empurrou, quase der­rubando o irmão mais novo. — Agora, saia daqui, Willy! — virando-o pela gola do colete, Kieran chutou seu traseiro com força.

Cambaleando, William quase correu para fora do salão, mas, na porta, virou-se e brandiu um punho cerrado para todos ali reunidos.

— Vai se arrepender pelo que fez comigo, Kieran! Não des­cansarei enquanto não o vir morto, enquanto não der cabo da vida da feiticeira com quem se casou, a meretriz que atormenta meus sonhos!

Quando ele saiu, Fortune olhou em volta e declarou:

— Ele enlouqueceu. Nunca houve nada entre nós! William é agora um homem casado, como eu também me casei, mas, ainda assim, ele insiste nessa fantasia de amor!

— Você foi a primeira mulher que ele amou, minha queri­da — explicou Kieran. — Sei que parece estranho, mas entendo meu irmão. Como um homem pode ser feliz com outra depois de tê-la amado, Fortune?

As palavras fizeram com que sorrisse para o marido.

— Também amo você, meu querido. Muito.

James e Jasmine Leslie sorriam embevecidos, mas Adam e Duncan reviravam os olhos, numa demonstração de desgosto e impaciência.

Percebendo a reação, a irmã deles disse:

— Um dia estarão fazendo essas mesmas coisas que hoje julgam tolas, meus meninos.

— Nunca! — jurou Adam. — Meninas são tolas!

— Mas vão gostar delas um dia — interferiu o pai. — E não vai demorar muito.

— Acha que queremos fazer esse papel estúpido que acaba de fazer William Devers? Não, obrigado — respondeu Adam com desdém. Depois tratou de se desculpar com o cunhado. — Peço que me perdoe, Kieran. Sei que é seu irmão, mas... Kieran sorriu para o garoto.

— Não se incomode, não estou ofendido, Adam Leslie, por­que sei que é mais sensato e maduro que William.

— Pobre William — comentou Jasmine, com tom piedoso.

Mas William Devers não precisava da compaixão da duquesa de Glenkirk. Cheio de ressentimento e profundamente ultrajado, voltou a Mallow Court decidido a punir o irmão e Fortune. E foi incentivado em sua decisão pela mãe e pela es­posa, porque, como a sogra, Emily Anne Devers tinha pouca tolerância com os católicos.

— Eles devem ser arrancados de Lisnaskea de uma vez por todas — disse a jovem ao marido. — Seu pai vai ter de ouvir a voz da razão, William. Essas pessoas nos odeiam, por isso re­presentam perigo para todos nós.

— Falarei com meu pai — prometeu William.

Mas, quando tocou no assunto, foi recebido pelo pai com um misto de surpresa e impaciência.

— O que está dizendo? Banir os católicos de Lisnaskea? Você perdeu o juízo? A paz entre católicos e protestantes é frá­gil o bastante sem sua ridícula interferência! E para onde irão essas pessoas que vivem aqui há séculos?

— Os católicos nos colocam em perigo, pai. Seus hábitos papistas podem prejudicar nossos filhos, contaminá-los.

Shane Devers balançou a cabeça. Estava farto das tolices da esposa, do filho e da nora. Eram todos rancorosos, invejosos e maldosos. Tornara-se protestante para obter a mão de Jane e sua fortuna, mas nunca discriminara os vizinhos católicos.

Uma criada que passava pela biblioteca ouviu a discussão entre pai e filho. Comentou o que ouvira com outro criado, cuja escolhida e amada, que também servia em Mallow Court, ou­vira conversa semelhante entre Lady Devers e a jovem senho­ra. Os rumores começaram a se espalhar, transbordando de Mallow Court para Lisnaskea. Vizinhos começaram a se olhar desconfiados, embora antes fossem amigos.

O sacerdote em Lisnaskea, Padre Brendan, começou a pre­gar contra aqueles que haviam chegado em Ulster com suas tradições de grandeza, diminuindo sua herança de maravilho­sas heranças e mitos, chamando os irlandeses de bárbaros, vo­ciferando contra papistas. O ministro protestante, Reverendo Dundas, passou a fazer sermões defendendo a fé protestante como única verdadeira, afirmando que aqueles que a contra­riavam deviam ser levados à verdade pela força ou destruídos. A prática religiosa contrária àquela prescrita passava a ser con­siderada traição.

Então, certa noite, Shane Devers estava sentado com sua amante na casa dela, bebendo uísque e conversando, quando ouviu gritos. Levantando-se de sua poltrona perto da lareira, aproximou-se da porta, abriu-a e olhou para fora. Chocado, viu várias fogueiras ardendo no vilarejo. Vozes alteradas gritavam palavras de ordem.

— Acho melhor ir ver o que está acontecendo, Molly. Tran­que a porta e não abra para ninguém. Só para mim. Eu voltarei.

Molly Fitzgerald pôs a tranca na porta, conforme havia sido instruída, e chamou as filhas, que estavam no quarto, reunindo-as na sala com Biddy, a criada.

— Há problemas no vilarejo — anunciou ela. — Seu pai foi investigar.

— Isso está se anunciando há dias — comentou Biddy com tom sombrio.

— Ouviu alguma coisa? — quis saber sua senhora.

— Não mais do que a senhora, mas posso afirmar que o jovem William Devers tem instigado os protestantes, conven­cendo-os de que somos perigosos para eles, de que nossa parti­da seria a salvação para Lisnaskea. E alguns escutam o que ele diz, senhora.

— Dissidentes imundos! — reagiu Maeve, revoltada. — Gostaria de ser homem para poder lutar contra eles em nome da verdadeira fé!

— Não seja tola — censurou-a sua mãe com impaciência. — O ultraje de William Devers não é religioso. Ele está ofendi­do porque o irmão se casou com Fortune Lindley. O que ele realmente deseja é Maguire's Ford.

— Mas Kieran não terá a propriedade — disse Aine, a filha mais nova. — Ele sabe disso, mãe.

— Sabe, mas não acredita. E nem a mãe dele, aquela mu­lher ressentida e gananciosa, vai acreditar nisso. Não enquan­to Fortune e Kieran não saírem de Ulster.

Os gritos soavam mais próximos, e as quatro mulheres se reuniram perto da lareira. Sem dizer nada, Biddy levantou-se e foi fechar as cortinas. Vira as sombras dos homens que se diri­giam à casa, suas silhuetas recortadas contra a luminosidade intensa das fogueiras, mas não comentou nada, preferindo agir. Carregando a pesada trava de carvalho que ficava atrás da por­ta, ela a colocou sobre a primeira tranca, reforçando a seguran­ça. Depois, foi aos fundos da casa e repetiu o procedimento com a outra porta. Molly observava sua criada em silêncio, trocan­do um olhar assustado com Biddy, que balançou a cabeça em sinal de cautela.

O cheiro de fumaça invadia a casa, mas Molly não estava preocupada, porque morava em uma edificação de tijolos com uma laje por telhado. Os gritos furiosos se aproximavam, e a senhora da casa começou a se preocupar com a segurança de Sir Shane. Onde ele se metera? As duas filhas estavam abraçadas diante da lareira. Ambas guardavam um silêncio incomum. Até Maeve, normalmente falante, preferia se manter calada nesse momento de tensão. De repente, todas ouviram um som estron­doso na porta da frente. Biddy buscou refúgio nas sombras da sala enquanto Molly levava o indicador aos lábios, sugerindo silêncio.

A vidraça de uma das janelas explodiu. As mulheres grita­ram assustadas. A cortina foi arrancada, e um homem pulou a janela. Ele as encarou sem nada dizer e, determinado, removeu as trancas da porta, permitindo que uma multidão enfurecida invadisse o local. Todos se amontoaram no elegante salão, e Molly reconheceu no grupo vários vizinhos. As meninas solu­çavam apavoradas.

— Como ousam invadir minha casa! — reagiu Molly, fu­riosa. — O que significa isso? Robert Morgan, James Curran! Todos vocês são conhecidos! O que está acontecendo?

Os dois homens que ela chamara pelos nomes pareciam envergonhados, mas permaneciam onde estavam. Os outros se agitavam com evidente desconforto.

— A meretriz é ousada, não é? — William Devers tomou a frente da multidão. — Essa prostituta católica que é amante de meu pai pensa poder se impor sobre todos nós! Pois bem, não pode, meretriz imunda, e nunca mais nos afrontará com sua ar­rogância. — Erguendo a pistola que levava escondida, atirou con­tra o peito de Molly Fitzgerald, matando-a instantaneamente.

Com um grito angustiado, Maeve correu para abraçar o cor­po sem vida da mãe.

— Demônio protestante! — gritou ela para o meio-irmão. — Como teve coragem? Nosso pai saberá sobre o que fez, William Devers! Espero que ele mesmo ponha fim nessa sua vida inútil! — Soluçando, segurava a mãe contra o peito.

Mantendo o rosto inexpressivo, William levantou a pistola mais uma vez e atirou na cabeça da meia-irmã. Maeve caiu sem vida sobre o cadáver da mãe. Em seguida foi a vez de Aine, que esperava encolhida e apavorada ao lado da lareira. O brilho da loucura iluminava os olhos de William. Ele agarrou a menina pelo braço.

— Vejam, aqui temos uma bela criatura, e tão vadia quanto a mãe, estou certo disso. Vamos levá-la para cima para celebrar. Vai gostar disso, pequena meretriz? — William rasgou o corpete e a blusa de Aine, agarrando seus pequenos seios.

A menina o encarava, chocada.

— Você é meu irmão — gemeu ela, tremendo.

William acertou seu rosto com uma violenta bofetada. Ela gritou de dor e medo.

— Não pode se dizer minha irmã, vadia. É só uma bastar­da, filha de prostituta, e meretriz, como sua mãe! Vamos, suba a escada! Esta noite, antes de morrer, vai poder desempenhar o ofício de sua mãe. Uma cadela católica a mais ou a menos não vai fazer diferença. Amanhã, Lisnaskea vai amanhecer livre dessa raça de impuros. — Ele arrastou Aine pelo salão, virando-se para chamar os que o acompanhavam. — Venham todos. Ela parece ser muito suculenta. Todos vocês poderão prová-la.

Nem todos os homens seguiram William. Muitos deixaram a casa de Molly Fitzgerald em silêncio, sem ousar olhar para os corpos caídos no chão. Tudo o que queriam era que Lisnaskea fosse uma cidade inteiramente protestante. Não queriam ma­tar nem estuprar. Mas, desde que o Reverendo Dundas os exor­tou a seguir William Devers e limpar Lisnaskea de católicos, viram a morte tantas vezes que não podiam mais se dizer ino­centes. Sentiam culpa, e a culpa alimentava a raiva contra os vizinhos católicos. Ouviram gritos terríveis, manifestações do terror que se desenrolava no quarto da casa de Molly Fitzgerald. Ouviram gargalhadas e gritos de incentivo daqueles que espe­ravam para violar a pobre menina. Muitos ali tinham filhas da idade de Aine. Os homens corriam pela escuridão para fugir dos sons aterrorizantes.

Então um rapaz correu pelo campo escuro, gritando:

— Os papistas incendiaram a igreja! Trancaram o Reveren­do Dundas e sua família lá dentro! Nossas mulheres não con­seguem abrir a porta!

— Corram! — instruiu os companheiros Robert Morgan. — Vou buscar Mestre William e os outros.

A casa de Molly Fitzgerald mergulhou novamente no si­lêncio. A porta, presa apenas por algumas dobradiças, pendia escancarada. Biddy deixou seu esconderijo com o rosto lavado pelo pranto. Suas pernas tremiam quando subiu a escada em busca de Aine. Ela encontrou a menina nua, morta sobre a cama da mãe. Sua garganta havia sido cortada de orelha a orelha. Os olhos azuis estavam abertos e cheios de terror. O rosto antes tão doce já começava a inchar, e as coxas alvas estavam cobertas de sangue, evidência da violação. Biddy fechou os olhos da meni­na e a cobriu, embora a modéstia já não tivesse nenhuma importância agora.

A velha criada enxugou os olhos com a ponta do avental. Depois ergueu os ombros, o rosto tomado pela determinação. Olhando para a jovem Aine, que ajudara a trazer ao mundo, ela se benzeu com o sinal da cruz e fez uma prece. Só então desceu a escada para voltar ao salão. Fez mais uma prece sobre os cor­pos sem vida de Maeve e Molly, e saiu da casa pela porta dos fundos para ir ao estábulo. Biddy tinha pavor de cavalos, mas, com coragem, selou o pônei de Aine e montou, deixando a ci­dade envolta pelo manto da escuridão.

Conhecia todos os caminhos, pois passara a vida naquela região. Não era de Lisnaskea. Seu lugar de origem era Maguire's Ford. Devagar, com extremo cuidado, guiou o pônei para a se­gurança. A noite começava a abrir caminho para o dia quan­do ela entrou no vilarejo de Maguire's Ford e atravessou a pon­te levadiça de Erne Rock. O jovem guardião da entrada teve de ampará-la quando ela desmontou.

— Vá chamar Maguire! — pediu ela, ofegante. — Houve mortes!

Rory Maguire se apresentou minutos depois, ainda termi­nando de se vestir, apavorado com a urgência do chamado. Ele reconheceu Biddy assim que a viu.

— Lisnaskea se cobriu de sangue! — disse ela. — Meu se­nhor estava conosco ontem à noite quando a chacina começou. Não sei onde ele está agora. William Devers atirou contra mi­nha senhora e sua filha Maeve. Ambas estão mortas. O que ele fez com nossa pequena Aine é vergonhoso demais para que eu possa relatar. Ela também está morta, e por isso sou grata ao nosso Deus misericordioso.

— Então, finalmente começou — respondeu Rory Maguire com ar sombrio. — Venha comigo, Biddy. Temos de falar com o duque e a duquesa. Precisa contar a todos o que aconteceu.

— E o que farão esses protestantes para vingar minha se­nhora e suas filhas? — reagiu Biddy, furiosa. — Foram eles que as mataram, e Deus sabe quantos outros em Lisnaskea!

— Não. Nem todos os protestantes e católicos são iguais. Por isso pude ficar aqui todos esses anos com nossa gente. Lady Jasmine é uma boa mulher que não tem preconceitos contra nenhuma crença. Admito que nisso ela é rara, mas ela é a dona de Maguire's Ford, e sua vontade nos manteve em paz por muito tempo. Lembre-se de que a filha dela, nascida aqui no castelo, casou-se com Kieran Devers. Ela conhecia sua senhora e as fi­lhas dela. Vai ficar horrorizada com seu relato.

Estavam entrando no salão, e Rory mandou um criado cha­mar a duquesa e seu marido. Eles atenderam quase imediata­mente, embora Jasmine Leslie estivesse já pesada em função da gravidez.

— O que aconteceu? — perguntou ela ao se sentar.

— Esta é Biddy, criada de Molly Fitzgerald — começou Rory.

— Ela tem algo a relatar, milady, e creio que deva estar prepara­da, porque o que vai ouvir é terrível.

Os Leslie ouviram com horror crescente o que a velha cria­da tinha para dizer. Era uma história de terror, violência, assas­sinato e estupro, tudo em uma só noite, ali perto, em Lisnaskea.

— Envergonho-me por ter me escondido, por não ter sido capaz de ajudar minha senhora e as duas filhas dela, meninas que ajudei a criar. — Biddy chorava. — Mas alguém tinha de escapar com vida para delatar a perfídia de William Devers.

— Agiu corretamente — Jasmine apoiou a pobre criada, abraçando-a para confortá-la. — Sem você, jamais saberíamos quem foram os culpados. Agora me preocupo com Sir Shane. Disse que deixou a casa quando a rebelião recomeçava, e que não voltou a vê-lo? O que pode ter acontecido com ele?

— Deve ter sido assassinado pela cria da cadela inglesa — opinou Kieran Devers ao entrar no salão, chamado pelo mes­mo criado que havia ido buscar os Leslie.

— Certamente não! — gritou Jasmine.

— William nunca foi paciente quando queria alguma coisa — argumentou Kieran. — Se foi capaz de matar a pobre Molly e as filhas dela, suas meio-irmãs, por que não o pai? Agora mi­nha madrasta tem quase tudo o que queria. Meu pai não teria mais nenhuma utilidade para ela. Ela tem a casa dele, suas ter­ras... As meninas estão mortas. Eu fui deserdado, mas me ca­sei com a jovem que ela queria para o próprio filho. Tenho certeza de que ela está por trás do tumulto em Lisnaskea, mas quero saber o que aconteceu com meu pai antes de matar William Devers.

— Não vai haver mais mortes — anunciou James Leslie com firmeza. — Não quero minha Fortune casada com um assassi­no, com um condenado à forca. E você será enforcado se matar seu irmão, Kieran, apesar de tudo que ele fez.

— Sugere então que ele escape impune, milorde? Nenhu­ma corte em Ulster aceitará a palavra de um católico, muito menos de uma criada católica, especialmente contra a palavra de um cavalheiro protestante.

— Seja paciente, rapaz. Há muitos caminhos para a justiça, e com o tempo você terá sua revanche. Mas, agora, devemos descobrir se seu pai está vivo. Iremos juntos a Mallow Court.

— Não, Jemmie — gritou Jasmine. — Não pode acreditar que os Devers deixarão que você e nosso Kieran saiam de lá vivos depois de tudo!

— Eu tenho de ir — insistiu James, firme. — Se não for, que­rida Jasmine, o mesmo mal que infectou o povo de Lisnaskea pode infectar também a gente de Maguire's Ford. Quer que isso aconteça?

Jasmine Leslie baixou o olhar e comprimiu os lábios. Sa­bia que o marido estava certo, mas de repente se sentia toma­da por um terrível pressentimento. Não que temesse pela morte de James ou Kieran, porque não acreditava nessa pos­sibilidade, mas podia sentir a maldade no ar que os cercava e, pela primeira vez desde o assassinato de Rowan Lindley nes­se mesmo lugar, sentia-se desconfortável em Erne Rock. Ela olhou para Rory Maguire.

— Acha que eles estarão seguros?

— Sim, embora não possam se fazer acompanhar por um grupo numeroso, milady. Nessa situação tensa em que nos en­contramos, a chegada de milorde cercado por cavaleiros arma­dos seria considerada uma ameaça proposital. Talvez alguns homens de seu clã, milorde, como é de praxe quando viaja. O duque de Glenkirk assentiu.

— Deve ir com ele, Rory! — pediu Jasmine.

— Ele não pode ir conosco — afirmou James. — Ele é o Maguire, embora você seja proprietária legal da terra. Seria uma provocação levar um Maguire a Lisnaskea depois de tão san­grento massacre. Quero Rory aqui, caso alguém tente criar pro­blemas. Esse tipo de confronto é como um câncer que cresce, tornando-se mais venenoso a cada hora que passa.

— O que aconteceu? — perguntou Fortune ao entrar no sa­lão. — Róis está dizendo que os protestantes assassinaram to­dos os católicos em Lisnaskea. E que estão a caminho daqui para fazer o mesmo!

— Jesus! — gemeu Maguire. — Já começou! Vou me pre­parar e acalmar o vilarejo antes que a situação escape ao con­trole. — Ele se voltou para Jasmine. — Com sua licença, milady.

— Vá, Rory, e que Deus o acompanhe. E vocês também — disse ela a James e Kieran. — Fortune, fique comigo; vou lhe contar tudo o que aconteceu realmente. Biddy, quero que per­maneça no castelo, onde estará segura. Adali vai alimentá-la e providenciar um lugar quente para você dormir. Deve estar exausta depois dessa noite tão turbulenta.

— Obrigada, milady. — Biddy olhou para Maguire. — Você tem razão. Nem todos os protestantes são maus.

Capítulo 12


O duque de Glenkirk e seu genro foram recebidos em Mallow Court por Lady Jane.

— Como ousam entrar nesta casa depois de seus imundos papistas terem atacado meu marido! — explodiu ela, revoltada.

James Leslie pôs a mão diante de Kieran, tentando contê-lo.

— Acabamos de saber sobre os problemas ocorridos em Lisnaskea ontem à noite e viemos imediatamente em busca de notícias de Sir Shane, senhora.

— Ele está acamado, à beira da morte! Sua meretriz tentou matá-lo, mas William conseguiu salvar o pai.

— É mesmo? — perguntou o duque, sarcástico. — Gostarí­amos de ver Sir Shane, senhora. Entenda, Kieran está muito preocupado com o pai. Ouvimos uma versão diferente sobre o que aconteceu em Lisnaskea.

— Meu marido está muito doente. Não pode ser perturba­do. Volte em outra ocasião, milorde.

James Leslie olhou em volta. Não havia mais ninguém no sa­lão, e sabia que a residência não contava com guardas armados.

— Senhora, como já expliquei, a versão que ouvimos é bem diferente. Veremos Sir Shane agora, pois quero me certificar de que ele está vivo. E não ouse tentar me impedir! Ou nos leva até seu marido, ou mandarei os homens de meu clã revistarem sua casa até encontrá-lo.

Jane Devers queria se livrar dos dois visitantes inoportu­nos, mas o duque era homem de autoridade. Não ousaria con­trariá-lo, mesmo depois de William ter informado que o pai não deveria ser incomodado. Não via o marido desde que o filho o trouxera para casa na noite anterior, e só William tinha a chave do quarto de Shane.

— Meu filho mantém o pai trancado para sua própria segu­rança — contou ela ao duque. — Não tenho a chave da porta, milorde, e William não está aqui no momento.

— Quero saber onde fica o quarto de Sir Shane. Arrombare­mos a porta, senhora. Esse tratamento é ultrajante, e estou per­plexo por ter permitido tal coisa. É a senhora desta casa, não é?

Irritada e constrangida, Jane Devers conduziu os dois ho­mens aos aposentos do marido. Era surpreendente que seu en­teado ainda não houvesse falado nada. William a prevenira so­bre a possibilidade de Kieran chegar contando histórias loucas e fazendo ameaças, mas Kieran nada dissera. Porém, o silêncio e seu olhar penetrante a faziam ainda mais consciente da fúria dele. Ela parou diante da porta do quarto do marido.

— É aqui — disse.

Sem dizer nada, Kieran usou o ombro, alternando-o com um dos pés, e em poucos minutos conseguiu abrir a porta. Ele e o duque invadiram o quarto. Sir Shane estava deitado sobre a cama, amordaçado, com pés e mãos amarrados. Eles o liberta­ram sem demora e o ajudaram a se sentar. Havia um horrível ferimento em sua testa e uma pequena mancha de sangue seco na parte posterior de sua cabeça.

— Pai! — Kieran o abraçou.

— Ele matou Molly! — declarou Sir Shane. — O jovem de­mônio confessou com orgulho! E matou minhas meninas tam­bém, que Deus o amaldiçoe!

— Sabemos de tudo, pai. Biddy testemunhou o crime e cor­reu a Erne Rock para contar tudo.

— Ele também tentou me matar, e teria conseguido, não fosse pela intervenção oportuna de vocês. Sou muito grato.

— O que está dizendo? — perguntou Jane Devers, com voz trêmula. — Como pode acusar nosso menino de algo tão terrí­vel? Matar o próprio pai!

— Seu filho, senhora — disse Sir Shane friamente — assas­sinou a mulher que amo e também matou as duas filhas que tive com ela, suas meio-irmãs! Ele me atacou e, depois, quando descobriu que eu não havia morrido e que por isso não poderia me culpar pela morte dos católicos em Lisnaskea, trouxe-me para casa e me amarrou. E me informou com todas as letras que pretendia me matar para assim ter logo sua herança. Seu filho é uma víbora, e eu o quero fora desta casa imediatamente!

— Está ferido, meu querido — choramingou Jane Devers, tocando sua testa. — Deve ter entendido mal o que disse nosso William. Ele jamais o teria atacado, Shane.

Sir Shane empurrou a mão dela.

— Senhora, não fui ferido com tanta gravidade que não te­nha podido entender seu filho quando ele se gabou de como matou Molly Fitzgerald e nossas duas filhas. Maeve tinha 17 anos, e Aine era só uma menina de 14. Elas se preparavam para deixar a Irlanda, pois iriam viver com Kieran no Novo Mundo no ano que vem. Sabíamos que não havia futuro para elas em Ulster. Que mal elas fizeram a William para que o con­denado as matasse com tanta frieza? Meninas inocentes, se­nhora! Amaldiçôo o dia em que me casei com você e a trouxe para esta casa, Jane! Amaldiçôo o filho que fiz em seu corpo frígido. Ele é um monstro!

— Não é! Se matou aquela mulher, ele o fez para proteger minha honra! Tomar uma amante já é um ato horrível, Shane, mas uma amante católica? E aquelas duas criaturas que fez nela só me causaram vergonha, exibindo-se pelo vilarejo! Fui alvo de pena por causa de suas indiscrições, e não fosse pela bonda­de do Reverendo Dundas, já me teria tornado motivo de piada em Lisnaskea. Agora o pobre James está morto com a esposa e os filhos, e tudo por causa de seus papistas sanguinários!

— Foi o próprio Dundas quem encorajou o massacre de on­tem à noite, e sob sua ordem, usando seu filho como testa-de-ferro, certamente — manifestou-se Kieran. — Willy não é tão as­tuto, senhora, mas é certamente cruel o bastante para agir como agiu, especialmente com o incentivo que recebeu. Imagino que a senhora e a esposa dele tenham lhe despertado essa natureza sádica. O que em nome de Deus esperava ganhar com isso?

— Não terei católicos influenciando meus filhos — decla­rou William, entrando repentinamente no quarto. — Minha es­posa espera um bebê, e já era hora de esses papistas serem ex­pulsos de nossas terras. Ah, vejo que meu pai se recupera — comentou ele com um sorriso gelado.

— Você não é meu filho! — respondeu Shane Devers com ódio. — Quero que deixe esta casa ainda hoje!

— O quê? Quer me expulsar do lugar onde nasci? E quanto à minha pobre esposa, agora grávida de seu primeiro filho, pa­pai? — perguntou ele com tom debochado.

— Leve-a com você. E leve também esta cadela que o pôs no mundo. Não vou permitir que o homem que matou minha Molly e nossas duas filhas durma sob meu teto. Nem mesmo por mais uma noite! — Shane Devers levantou-se e acertou o nariz do filho com um soco violento, jogando-o ao chão.

Surpreso, William levantou-se com a ajuda da mãe.

— Só matei sua meretriz e a filha mais velha — anunciou ele com tom cruel. — A outra, a pequena, serviu para me entre­ter. Não imagina como ela lutou e gritou enquanto eu me di­vertia com sua virgindade. Queria que meus homens também se divertissem com ela, mas fomos informados de que a igreja ardia com o pobre e velho Dundas trancado dentro dela. Antes de sairmos, achei melhor cortar a garganta dela. Agora, sacie minha curiosidade, meu pai: acha que ela teria se tornado tão fogosa quanto a vadia da mãe dela?

Shane Devers olhava boquiaberto para o filho.

— Você violentou sua irmã? — perguntou, horrorizado. — Aine era uma criança!

— Mas tinha belos seios. Além disso, nunca a considerei mi­nha irmã, pai. Sua meretriz não podia ter certeza de quem era o pai daquelas bastardas miseráveis. — Ele sorria, satisfeito.

Shane Devers ouvia as batidas do próprio coração como trovões ecoando em seus ouvidos. Suas têmporas latejavam. O mundo ficou vermelho diante de seus olhos, e de repente uma dor violenta rasgou o interior de sua cabeça, como se quisesse abri-la ao meio. Com um grito, ele caiu. Sabia que estava mor­rendo. Seus olhos buscavam desesperados os do filho mais ve­lho. Sua respiração era arfante, difícil. Ele se esforçava para fa­lar pela última vez.

— Perdoe-me, Kieran — disse.

O esforço heróico foi seu único ato em vida. Houve um longo silêncio. William Devers foi o primeiro a falar.

— Bem, é isso. Saia de minha casa, Kieran, e não volte nun­ca mais. Estou avisando. Já cuidei dos católicos de Lisnaskea. Agora vou cuidar dos de Maguire's Ford.

James Leslie agarrou o rapaz pela gola da camisa.

— É você quem deve estar prevenido, William Devers. Po­nha um pé imundo nas terras que pertencem à minha esposa e você e seus seguidores nojentos nunca mais sairão de lá. Não posso impedi-lo de causar problemas aqui, mas em Maguire's Ford farei valer minha autoridade. Acredite em mim, menino, não vai querer ter James Leslie como seu inimigo. Acabei de receber notícias de meu primo, o Rei Charles, aprovando a trans­ferência da propriedade para meus dois filhos, Adam e Duncan Leslie. Só um tolo como você pode pensar que vai conseguir aquelas terras dos meus garotos. Eu usaria isso tranqüilamen­te como desculpa para matá-lo pelo que fez com a Senhora Fitzgerald, as filhas dela e seu pai. É responsável pela morte de Shane Devers, Sir William. Tente culpar qualquer outra pessoa e farei com que o mundo saiba a verdade. Pelo bem de seu ir­mão, pelo bem do bom nome dos Devers, nada revelarei por enquanto. Não acusarei sua família pelas ações de um único vilão, pois os Devers sempre foram honrados. Está entenden­do o que digo, Sir William? — James Leslie o soltou e o empur­rou como se sentisse nojo por tê-lo tocado.

Os olhos frios de William estudaram o duque, traindo um certo medo. Depois, buscou o olhar do irmão, numa tentativa de provocá-lo, mas Kieran estava devastado pelo luto. Ajoelhado ao lado do corpo, chorava copiosamente e parecia rezar. Pois que lamentasse a morte do velho imprestável, William pen­sou com desdém. Ele não voltaria mais. Nunca mais! Agora ele era o senhor de Mallow Court. Pensar nisso provocou-lhe um pra­zer quase erótico, mas então Kieran olhou para ele. Havia na­quele olhar uma mistura de desdém e piedade.

— Não olhe assim para mim! — quase gritou William.

— Deus tenha piedade de você, William — murmurou Kieran, exausto. — Não creio que seja forte o bastante para car­regar essa culpa em sua consciência por muito tempo.

— Saia! Saia daqui, bastardo papista imundo!

Kieran levantou-se com calma, fechou os olhos do pai, de­pois desferiu um soco violento no queixo do irmão, derruban-do-o. Sua madrasta gritou e correu para o filho desfalecido.

— A lei o alcançará, Kieran Devers! — ameaçou-o.

— Espero que sim, senhora, porque estou ansioso para in­formar os representantes da lei sobre o que aconteceu ontem à noite em Lisnaskea. Há tantos protestantes esmagados sob o peso da culpa que muitos não hesitariam em acusar seu filho pelos horrores que cometeram instigados por ele. William nunca foi muito popular, pois era arrogante no trato dessas pobres al­mas que considerava inferiores. As autoridades podem não acreditar nos católicos, mas certamente acreditarão em seus companheiros protestantes. E não esqueça, senhora: seu pre­cioso filho estuprou a meio-irmã de 14 anos diante de seus com­panheiros e depois a assassinou friamente. Não deve ter sido uma cena agradável, especialmente porque Aine era conheci­da por todos por sua decência. Muitos que seguiam William têm filhas da mesma idade. Agora, senhora, vou ao vilarejo para sepultar os corpos de minhas irmãs e da mãe delas. Tente me impedir ou permitir que esse verme que chama de filho faça alguma coisa para atrapalhar o sepultamento e matarei os dois. Estamos entendidos, senhora? Willy? — Kieran chutou o irmão com a ponta da bota. — Está me entendendo, verme miserável?

William gemeu.

— Ótimo! — respondeu Kieran. Então, curvou-se para a madrasta. — Senhora, estarei no funeral de meu pai. Se tentar me impedir, vai viver para se arrepender disso. — Ele se virou e saiu. O som de seus passos na escada ecoavam como trovoadas na casa.

Um sorriso amargo se apoderou do rosto de James Leslie. Acabara de ver um lado do genro que ainda não havia conheci­do. Kieran Devers era duro, o que o contentava muito, pois a vida não seria fácil no Novo Mundo. Sem dizer nada, ajudou William Devers a se levantar. Depois, também se curvou para a dona da casa e seu filho.

— Espero que tenham um bom dia — disse, e partiu. Kieran o esperava do lado de fora.

— Acha que eles o informarão sobre a data do funeral, Kieran?

— Certamente tentarão esconder de mim essa informação, mas tenho aliados na casa que me manterão informado.

— Vamos até Lisnaskea buscar os corpos de suas irmãs e da Senhora Fitzgerald.

— Agradeço pela companhia e pela ajuda, meu sogro.

Quando entraram no vilarejo, ficaram chocados com o ce­nário de destruição. Casas haviam sido queimadas, e a igreja estava completamente destruída. O cheiro de morte pairava no ar, mas as pessoas já se uniam num mutirão de reconstrução. As famílias católicas que haviam sobrevivido permaneciam fechadas em um curral. James Leslie estava perplexo e exigiu que todos fossem libertados imediatamente.

— O que diabos pretendiam fazer com essas pessoas? — perguntou o duque, furioso.

— Sir William diz que todos devem ser mortos, milorde — respondeu Robert Morgan, o ferreiro do vilarejo.

O duque olhou para o curral onde havia principalmente mulheres, crianças e velhos.

— Abra esse maldito portão, deixe-os pegar o pouco que ainda têm, e não tente impedi-los de sair de Lisnaskea em se­gurança. Acreditam mesmo que Deus está satisfeito com toda essa violência? Acham que Ele apoia assassinatos?

— Mas, milorde, são papistas! Deus não se incomoda com eles.

— Quem é você para dizer? Pelo amor de Deus, somos to­dos filhos do mesmo Deus, embora o adoremos de maneiras diferentes.

— O Deus deles é um ídolo, milorde, não nosso verdadeiro Deus. Não consegue entender a diferença?

James Leslie fechou os olhos e respirou fundo. Era inútil argumentar com idiotas, pensou cansado. Esse tipo de atroci­dade nunca teria fim? Quando abriu os olhos novamente, os tinha cheios de frieza e determinação.

— Liberte essas pobres almas imediatamente! Tenho mais autoridade aqui do que seu estúpido Sir William e vou incen­diar o que restadeste lugar se não me obedecer agora mesmo!

Atrás dele, doze homens do clã esperavam silenciosos, mas ameaçadores.

O ferreiro pensou em desafiar o escocês, pois não reconhe­cia sua autoridade, mas deteye-se horrorizado ao ouvir suas próximas palavras.

— Gostaria que suas filhas tivessem o mesmo destino da pobre Aine Fitzgerald?

— Abram o curral! — gritou Robert Morgan para seus com­panheiros sem nenhuma hesitação. — Eles pegarão o que têm e sairão de Lisnaskea. Ninguém deve impedi-los!

— Nem segui-los! — avisou James Leslie. — Estamos dian­te de mulheres, crianças e velhos. Gente com quem vocês con­viveram em paz por anos, até se deixarem contaminar pelo pre­conceito. Dividiram momentos felizes aqui e choraram juntos por mortos conhecidos de todos. Tiveram filhos, dançaram nos casamentos e celebraram aniversários. Lembrem-se dessas da­tas, não do que aconteceu ontem à noite.

O duque ordenou que seis de seus homens ficassem ali su­pervisionando a libertação dos católicos enquanto ele, Kieran e os outros iam resgatar os corpos das Fitzgerald.

Quando chegaram à casa de tijolos, perceberam que a porta da frente ainda estava aberta, pendendo das dobradiças quebra­das. Ao entrar, foram surpreendidos pela presença de Padre Culleen Butler. Ele explicou que o sacerdote em Lisnaskea havia sido assassinado na noite anterior com o clérigo protestante. A morte do Padre Brendam enfurecera os católicos e os levara a matar, como faziam os protestantes. Até aquele momento, eles haviam se ocupado apenas de defender-se, mas, com a morte brutal de seu líder religioso, a revolta fora inevitável.

— Alguém tinha de vir orar por essas pobres mulheres — disse o padre com tom comovido. — Não poderão sepultá-las aqui. O cemitério foi destruído. E também não poderão enter­rá-las em Maguire's Ford, porque suas sepulturas seriam amar­gas lembranças do ódio entre protestantes e católicos. Elas te­rão de repousar em algum lugar tranqüilo, sem marcas, mas seguro. Eu mesmo consagrarei o solo e farei tudo o que for ne­cessário. Melhor seus homens cuidarem do enterro, James Leslie, pois assim ninguém jamais saberá onde Molly Fitzgerald e suas filhas foram sepultadas. Quando Kieran partir, não ha­verá mais ninguém para chorar sobre suas sepulturas.

Kieran Devers olhou para os dois corpos ho salão. O sacer­dote os libertara do abraço mortal e agora repousavam lado a lado no chão. A ferida de Maeve não era visível.

— Onde está Aine? — perguntou Kieran ao sacerdote.

— Onde William Devers a deixou. Biddy a cobriu antes de partir.

Sem dizer mais nada, Kieran Devers subiu a escada da casa e entrou no quarto onde Aine Fitzgerald jazia. Da sala era pos­sível ouvir os soluços doloridos que brotavam de seu peito. Todos sabiam que, depois de Colleen, Aine era a irmã que Kieran mais amava. Quando desceu a escada, levava nos braços o cor­po sem vida e envolto no cobertor que Biddy providenciara.

— William vai ter de pagar por isto — anunciou ele em voz baixa.

— Deus vai julgá-lo. Só Deus — respondeu o padre. — Agora você tem uma esposa, um futuro brilhante! Não se deixe apri­sionar aqui, no passado que é a Irlanda. Não ponha em risco sua alma imortal por um momento de vingança.

— Consegue me pedir isso enquanto olha para o corpo des­ta menina inocente? Ele a violou! Estuprou a própria irmã! Uma criança, pura como um dia de primavera! E depois a assassi­nou. Como posso perdoá-lo?

— É necessário, meu filho. Pelo bem de sua alma. Aine, Maeve e a Senhora Fitzgerald agora estão seguras no reino de Deus, porque a maneira como morreram certamente as pou­pou da provação do Purgatório. Seu meio-irmão enegreceu a própria alma e vai responder por isso, garanto Kieran Devers. Não ponha a perder sua alma esvaziando a autoridade de Deus e agindo em Seu lugar. A vingança é minha, disse o Senhor.

— Vamos enterrá-las.

— Providencie uma carroça — ordenou o duque a um de seus homens.-

Quando a carroça foi levada à frente da casa, os corpos foram postos nela para serem levados ao local onde seriam enterrados.

— Preciso de um momento — anunciou Kieran, voltando ao interior da casa.

Quando saiu de volta, o grupo partiu, retornando a Lisnaskea para que o duque pudesse se certificar de que os católicos so­breviventes haviam sido libertados. Todos haviam partido, e os homens do duque se juntaram ao cortejo fúnebre. Os protes­tantes de Lisnaskea alinharam-se pela única rua do vilarejo para vê-los passar. Alguns se mantinham sérios, contidos, mas ou­tros choravam. Um homem de rosto ainda jovem correu até a carroça para identificar as mortas e, ao vê-las, disse apenas:

— Aine! — E se afastou correndo.

James Leslie deteve a procissão. Olhando para o povo ali reunido, disse, em voz alta e firme:

— Isto é o que o ódio e a intolerância trouxeram para vocês. Espero que consigam viver com essas imagens e lembranças. — Depois, fez sinal para que seus homens seguissem em fren­te. Atrás deles, a casa que havia sido de Molly Fitzgerald e suas filhas ardia em chamas, pois Kieran a queimara para garantir que nenhum dos assassinos ficasse com os bens que haviam sido dela e das filhas.

Eles seguiram viagem até a metade do caminho para Maguire's Ford e, lá, no meio de um bosque, abriram uma cova larga, onde depositaram os corpos de Molly e suas duas filhas. O túmulo foi coberto cuidadosamente e camuflado com mus­go e folhas secas. O sacerdote havia consagrado o solo antes de as três serem postas em seu repouso eterno e depois fez breves orações em latim para encaminhar suas almas. Kieran rezou com ele, sua bela face rígida. James pensou em quanto ele ha­veria acatado as palavras do sacerdote sobre esquecer a vin­gança. Manteria os olhos bem abertos sobre Kieran, pois não queria a enteada viúva e infeliz. Ulster, ele decidiu, era um lu­gar impossível. Um assassinato levava a outro, e a outro. Não havia espaço para acordos.

O sol se punha quando o duque e seu grupo retornaram a Erne Rock Castle. Biddy cochilava ao lado da lareira, perto de Jasmine e Fortune.

Fortune levantou-se de um salto ao vê-los.

— E Sir Shane? Ele está bem? Kieran, por que está tão páli­do? — Ela correu para abraçar o marido.

— Enterramos Molly e as meninas — disse ele.

— E seu pai?

— Morto. William o matou.

Jasmine não conseguiu conter uma exclamação chocada.

— Ele é o próprio diabo — resmungou Biddy, repentina­mente acordada. — Vai queimar no inferno por sua crueldade, e quanto antes, melhor.

— Encontramos Sir Shane prisioneiro em sua própria casa — disse o duque para a esposa e a filha. — Nós o libertamos, mas depois William apareceu. O pai o expulsou de Mallow Court e disse que ele deveria levar a esposa e a mãe. O pobre homem estava revoltado com a maneira como o rapaz se gabava de ter matado Molly Fitzgerald e suas filhas. William se descontrolou e relatou com detalhes como a pobre Aine havia morrido. Sir Shane sofreu um ataque fulminante e caiu morto.

Fortune chorava abraçada ao marido. Jasmine tinha os olhos úmidos. Segurando o ventre, ela disse:

— Isso tudo é horrível! Agradeço a Deus por Fortune não ter se casado com aquele homem. Ele é louco!

A noite havia caído. Rory Maguire juntou-se ao grupo no salão e ficou muito preocupado com o que ouviu.

— Os protestantes aqui estão alterados — contou. — O re­verendo e eu fizemos tudo o que podíamos para manter a paz até hoje. Creio que alguns homens de Lisnaskea se infiltraram entre os de Maguire's Ford e os envenenaram, e agora estão tentando semear a discórdia entre os nossos.

— Os protestantes não podem ser tolos como seus irmãos de fé em Lisnaskea — disse Jasmine. — Nós os acolhemos no vilarejo quando não tinham onde morar, e os ingleses insistiam em mandá-los de volta depois de o navio em que viajavam, o Speedwell, ter quase naufragado no Mar da Irlanda. Eles vivem com mais conforto aqui do que teriam na Colônia Plymouth. Precisamos manter a paz em Maguire's Ford! Não permitirei que a intolerância destrua a herança de meus filhos!

Rory olhou para ela e para a filha que não podia reconhe­cer. O mesmo preconceito que causara o massacre em Lisnaskea expulsaria Fortune e Kieran de Ulster. Sua velhice seria tão so­litária quanto fora toda a sua vida. Nunca teria o prazer de ver os netos crescendo, mesmo que eles nem soubessem quem ele realmente era.

— Os católicos são igualmente ruins, mas juro que mante­rei a paz aqui, milady Jasmine — prometeu Rory com fervor.

— Vamos mantê-la juntos, Rory. Ninguém vai destruir o que fizemos aqui, o que você construiu ao longo de todos esses anos. Cullen, pode falar com o povo novamente?

— Sim, é claro, prima.

Nos dias seguintes, Erne Rock foi cercada por uma calma quase sinistra. A duquesa de Glenkirk proclamara sua vontade pessoalmente em cada igreja de Maguire's Ford.

— Se não pode viver em paz com os vizinhos como sempre viveu — dizia ela ao povo — é melhor ir embora daqui. Não vou admitir que aconteça aqui o que aconteceu em Lisnaskea. Bom povo, católicos e protestantes morreram naquele horrível confronto, e para quê? Todos nós adoramos o mesmo Deus, meus amigos. Acreditam mesmo que nosso Deus aprova a violência e o assassinato daqueles que são diferentes de nós? A Bíblia não prega o amor e a paz? Qual é o quinto mandamento, afinal? Não matarásl Esse mandamento não diz que não se deve matar?

Sir Shane foi enterrado sem incidentes, com Colleen Kelly e o marido na posição de pontos de neutralidade entre Lady Jane, William e Emily Arme, de um lado, e Kieran, Fortune e os Leslie de outro. Ela havia dito com toda a franqueza ao meio-irmão que nunca o perdoaria pelo que fizera com o pai e com as Fitzgerald.

"Você sempre foi mais próxima delas", William responde­ra por entre os dentes. "Sua família não é mais bem-vinda em Mallow Court."

"Você é um caso perdido, William", respondeu ela, triste.

A paz em Maguire's Ford se manteve, apesar dos rumores diários e das infiltrações de agitadores das duas vertentes. Vá­rios sobreviventes de Lisnaskea com familiares em Maguire's Ford buscaram refúgio no vilarejo e foram aceitos, o que ame­drontava alguns protestantes, que temiam que essas pessoas pudessem buscar vingança contra todos os que não fossem católicos.

Kieran Devers conversou com Padre Cullen, pois tinha uma idéia que talvez pudesse resolver parte do problema.

— O duque me disse que será mais fácil eu ser aceito na expedição de Lorde Calvert se tiver meu próprio barco e colo­nizadores que possam ajudar na construção desse novo povoado quando for escolhido o local da colônia. Como a pro­posta é fundar uma colônia basicamente para católicos, pensei em levar comigo uma embarcação cheia de homens e mulhe­res irlandeses.

Fortune ouviu a sugestão do marido e concordou imedia­tamente.

— Tenho dois navios que fazem aquela rota — contou ela. — Um deles é velho, mas lindo e muito sólido, o Cardiff Rose, que trouxe mamãe da índia há muito tempo. Em breve deve retornar pela rota da índia. Há também um navio mais novo, o Highlander, no Mediterrâneo. Ele voltará para a Inglaterra na próxima primavera. — Fortune olhou para o padrasto. — Não podemos preparar os dois navios, papai, e mandá-los para o Novo Mundo?

— Acho melhor comprar meu próprio navio — protestou Kieran.

— Não seja tolo — a esposa o censurou. — Vamos precisar desse dinheiro para outras coisas. Se vai se sentir melhor as­sim, pode me pagar uma taxa pelo uso das embarcações.

— É uma solução prática — disse o duque ao genro. — E sei que o Cardiff Rose e o Highlander estão em bom estado de con­servação, tanto acima quanto abaixo da linha da água. Não pode ter essa mesma certeza comprando um navio que não conhece, a menos, é claro, que mande secar a área onde ele está atracado para uma inspeção completa antes da aquisição, e duvido que o proprietário aceite essa idéia, pois o custo é muito alto.

— E o Cardiff Rose tem uma cabine maravilhosa para nos abrigar durante a viagem — comentou Fortune com um olhar apaixonado.

James Leslie riu. Como a jovem era parecida com a mãe, embora nem percebesse!

— Lamento estragar seu sonho romântico, meu bem, mas é pouco provável que alguma mulher seja aceita na expedição de Lorde Calvert, pelo menos até que se decida onde a colônia será fundada e as casas sejam construídas — disse o duque.

— Isso é ridículo! — reagiu Fortune.

— Mesmo assim, é como provavelmente será. Receio que não tenha escolha, querida — informou ele.

— Então, não iremos — decidiu Fortune com firmeza.

— E onde pretende viver? — quis saber o duque.

— Compraremos uma casa perto de Cadby, ou Queen's Malvern, ou perto de Oxton, onde vive minha irmã índia.

— Com um marido católico? Fortune empalideceu.

— Céus... — murmurou, percebendo de repente que devia parecer tola.—Os puritanos na Inglaterra são tão radicais quan­to os protestantes em Ulster, não é? Bem, podemos ir para a França, ou para a Espanha.

— E lá, minha querida esposa, você seria tão discriminada quanto eu em terras protestantes — lembrou Kieran. — Não há alternativa, Fortune. Se vamos viver juntos e em paz, temos de ir para o Novo Mundo; e se Lorde Calvert me aceitar, irei sozi­nho para a colônia construir um abrigo seguro para receber nossas mulheres.

Antes que Fortune pudesse dizer mais alguma coisa, Adali entrou no aposento.

— Padre Cullen manda avisar que um grupo de cavaleiros se aproxima do vilarejo vindo da direção de Lisnaskea, milor­de. Já demos início aos preparativos, conforme suas instruções.

— Que preparativos? — perguntou Jasmine ao marido.

— Para a defesa do vilarejo e do castelo — explicou o du­que. — Não podemos permitir que aquela gente estúpida de Lisnaskea faça com Maguire's Ford o que fizeram com o pró­prio ninho. — Ele se levantou. — Devo me juntar aos outros.

— Que outros? — indagou Jasmine, assustada, tentando se apoiar sobre os pés inchados. — Vou com você, Jemmie. Afinal, estas terras são minhas, e acho importante que me vejam.

James queria convencê-la a ficar, mas sabia que ela estava certa em sua argumentação. Além do mais, não poderia mes­mo dissuadi-la do propósito de agir.

— Vamos, então, senhora.

— Nós também vamos — anunciou Fortune.

O duque de Glenkirk riu, mas seguiu na frente sem dizer mais nada. Eles se reuniram no centro de Maguire's Ford, na praça cujo centro era marcado pela cruz celta feita de pedra. O Reverendo Steen, Padre Culleen e os líderes locais, protestantes e católicos, esperavam por eles. Todas as casas do vilarejo haviam sido trancadas. Não havia sequer um gato ou um ca­chorro perambulando pelas ruas. O céu era cinzento, e nuvens pesadas anunciavam uma tempestade de outono, mas no hori­zonte uma faixa de ouro e vermelho brilhava, lembrando que o sol se punha atrás das nuvens.

O grupo se aproximava, liderado por William Devers. To­dos portavam tochas e exibiam expressões duras, impiedosas. Ao ver o grupo reunido na praça, os cavaleiros pararam, e seu líder adiantou-se devagar até se deter diante do duque e da duquesa. Ele olhou para os dois com ódio.

— Se veio em paz, Sir William, é bem-vindo aqui — disse Jasmine. — Se não, peço que se retire.

Ele a ignorou, dirigindo-se a James Leslie como se a du­quesa nem existisse.

— E seu costume, milorde, permitir que uma mulher fale por você? — provocou.

James Leslie riu debochado.

— Maguire's Ford e seu castelo pertencem à minha esposa, Sir William. Não posso falar por ela, como ela também não fala­ria por mim na defesa daquilo que me pertence. Agora, senhor, minha esposa fez uma colocação séria e clara. Tenha a cortesia de responder a ela, ou podemos pensar que sua mãe não o edu­cou como deveria ter feito.

William Devers corou. O duque zombava dele diante de seus homens, e isso era algo que não o agradava. Alguém riu, mas ele não se virou para identificar o traidor porque tinha or­gulho demais para isso.

— Viemos em busca dos seus católicos. Entreguem-nos, pois assim poderemos limpar Maguire's Ford de sua imundície. Então iremos em paz.

— Saia de minhas terras e leve seu bando com você — A duquesa ordenou em tom gelado. — Acha que sou Pilates para trair inocentes, entregando-os a mãos intolerantes como as suas e de seus homens? Protestantes e católicos sempre viveram em paz em Maguire's Ford. Como ousa vir até aqui tentando cau­sar problemas? Temos aqui igrejas para as duas vertentes, e to­dos vivem em igualdade. É muita presunção sua, William Devers, pensar que tem a permissão de Deus para vir matar e espalhar o caos em minhas terras, e justamente na véspera de Todos os Santos. Você é mais discípulo do diabo que desse Deus que diz defender. Agora vá, antes que eu ordene um ataque contra você e seus homens!

— Senhora, não sairei daqui sem realizar meu propósito.

— Ele se virou para os homens que comandava. — Vasculhem as casas e tragam os católicos — ordenou.

De repente, uma flecha negra cruzou o céu cinzento sobre o vilarejo, e os sinos das duas igrejas começaram a dobrar violen­tamente. As portas dos templos se abriram, e a população de Maguire's Ford inundou a praça vindo das duas direções, cer­cando os homens de Lisnaskea. Todos estavam armados com alguma coisa, desde antigos mosquetes a rústicos utensílios de cozinha, como panelas e facas.

— Nosso povo não vai permitir que plante entre nós a se­mente da discórdia — informou Jasmine a Sir William. — To­dos aqui adoramos o mesmo Deus.

— Escutem-me! — gritou William do alto de sua montaria.

— Como podem conviver com esses imundos papistas, homens de Maguire's Ford? Limpamos Lisnaskea dessa gente torpe, e agora, com a ajuda de vocês, faremos o mesmo aqui! Juntem-se a nós!

O Reverendo Steen falou por seu rebanho.

— Ninguém aqui vai seguir seus passos trôpegos, William Devers! Vá embora!

— Uniu-se às legiões dos malditos, Samuel Steen? — pro­vocou William.

O ministro protestante gargalhou.

— Não presuma julgar-me ou aos meus, William Devers. Desrespeitou todos os mandamentos de Deus. Matou. Cobi­çou a mulher do próximo. Quer roubar terras que não são suas. Deixou de honrar pai e mãe! Não é um bom líder, homem. É só um desequilibrado invejoso, um homem frustrado e mimado. Saia daqui e leve sua gente com você!

William Devers instigou o cavalo, que saltou para frente e derrubou Jasmine e o Reverendo Steen. Um grito de ultraje ir­rompeu entre o povo de Maguire's Ford, mas, para surpresa de todos, um único disparo ecoou no ar úmido. Com uma expres­são completamente aturdida, William caiu de sua montaria.

— Eles mataram Sir William! — gritou um dos homens de Lisnaskea. — Precisamos vingá-lo!

— Não! — uma voz respondeu no meio do grupo. — Não foram os homens de Maguire's Ford. Fui eu.

O grupo se abriu para deixar passar um de seus cavaleiros.

— E Bruce Morgan, o filho do ferreiro — disse alguém.

O Reverendo Steen levantou-se, enquanto o duque ajuda­va a esposa a levantar-se.

— Por que fez isso? -- quis saber o religioso. — Por que matou Sir William? — Ele desarmou o rapaz, surpreso com o disparo tão preciso.

— Por Aine — soou a resposta devastadora. — Por Aine, pelo que ele fez com ela. Ouvi os rumores, mas não pude acre­ditar neles, então entrei na casa das Fitzgerald enquanto eles tentavam salvar os que morriam na igreja incendiada. Vi o que ele fez com minha adorada. Pretendíamos nos casar um dia. Eu a amava.

— E acha que eu o deixaria casar com uma maldita vadia católica, uma meretriz sem pai e filha de uma mulher sem mo­ral? — explodiu o pai, Robert Morgan, adiantando-se, furio­so. — Veja só o que fez, menino estúpido! Matou nosso líder. Não é mais meu filho!

— Sir William era diabólico, pai. — Bruce Morgan ergueu os ombros, e, de repente, todos constataram que o menino era agora quase um homem. — E eu não teria permitido que me impedisse de casar com Aine. Nunca me incomodei com essa questão religiosa, pai. Eu amava minha Aine!

— Estúpido! Eu mesmo o enforcarei para limpar a vergo­nha que trouxe sobre meu nome!

Houve um gemido abafado, e o Reverendo Steen gritou:

— Sir William não morreu. Está ferido, mas vivo! Kieran Devers aproximou-se do jovem Morgan e, tocando seu ombro enquanto os outros estavam distraídos, disse:

— Vá para o castelo, rapaz, antes que eles se lembrem de você. Não quero que seja enforcado. E Sir William não vai perdoá-lo pelo que fez. Vá!

O rapaz correu para o castelo.

— Providenciem alguma coisa para usarmos como maca — ordenou a duquesa de Glenkirk. — Não permitirei esse homem em minha casa, mas talvez o Reverendo Steen possa chamar um médico e abrigar Sir William até que ele tenha novamente con­dições de viajar. — Ela olhou para a multidão, forçando-se a erguer os ombros, apesar das dores que a castigavam. — Ho­mens de Lisnaskea, alguém aqui viu Bruce Morgan disparar o tiro que feriu Sir William? Se não, pelo bem do pai dele, guar­dem silêncio. Não verão mais aquele jovem, e quando Sir William e sua família considerarem quem fez o disparo, Bruce Morgan estará muito longe de Ulster. Ele é só um menino e amava uma criança que foi violentada, abusada e morta por Sir William. Todos vocês sabem que o que ele fez com Aine Fitzgerald foi uma iniqüidade, e um pecado, também. Não quei­ram adicionar seus próprios pecados aos dele ou ao desse ga­roto desesperado. Voltem para Lisnaskea. Não vou permitir que criem problemas em Maguire's Ford.

Os homens se retiraram em silêncio, suas tochas brilhando até desaparecerem na escuridão. Jasmine Leslie caiu de joelhos.

— Seu filho vai chegar antes do previsto, Jemmie — anun­ciou ela por entre os dentes.

— Mamãe! — Fortune correu para perto da duquesa.

James Leslie nem pensou em esperar pela ajuda. Empurran­do a enteada para o lado, ergueu a esposa nos braços e carregou-a pelo vilarejo, pela ponte levadiça e para dentro do castelo.

Ao vê-lo entrar no salão, a velha Biddy gritou:

— Tem uma mesa de parto, milorde?

Rohana juntou-se ao grupo.

— Eu cuido de minha senhora — disse ela. — É o que faço desde que ela nasceu.

— Deixe Biddy cuidar da criança depois do parto — Jasmi­ne ordenou, evitando que a velha criada se sentisse ofendida por Rohana. — E ela pode ajudá-la agora, porque tem muita experiência. Esta criança não vai esperar por ninguém, agora que decidiu vir ao mundo! Não vai ser como você, minha Fortune, que levou uma eternidade e ainda teve de ser virada em meu útero para poder deixá-lo. Já posso sentir a cabeça do bebê. Ele vem vindo...

James Leslie sabia o que fazer. Ele deitou a esposa sobre a mesa da sala e segurou seus ombros para que as outras pu­dessem ajudá-la. Não havia tempo para gentilezas e detalhes. Jasmine gemia de dor. Nunca tivera um parto tão rápido, mas já podia sentir a cabeça da criança passando pelo canal do nas­cimento.

— Rohana?

A criada ergueu suas saias e olhou por entre as pernas de sua senhora.

— Tem razão, milady, ele já está nascendo. Na próxima contração, faça força. Oh! Está quase aqui! Nunca vi um bebê nascer tão depressa, minha princesa. Oh! — Rohana amparou o bebê que brotava com facilidade do corpo da mãe. A criança chorou quase imediatamente, agitando os braços num pro­testo veemente contra ter sido arrancada do abrigo sereno e aquecido.

— O que é? — quis saber Jasmine.

— Uma menina — James Leslie gritou, eufórico. — Uma linda menina de temperamento explosivo, como suas irmãs!

— Bem, Jemmie, você queria outra menina para mimar e, como sempre, conseguiu o que queria — disse a duquesa, rindo.

Fortune havia assistido ao parto rápido e fácil e estava fas­cinada com a chegada da nova irmã.

— Todos os bebês nascem assim tão depressa, mamãe? Jasmine riu, cansada.

— Não, meu bem, a maioria demora mais. Deve ter sido a queda na praça do vilarejo. O parto foi precipitado pelo tombo, mas, felizmente, tudo indica que a criança está bem.

— Uma linda menina — elogiou Biddy, colocando o bebê limpo e envolto em panos nos braços da mãe. — Uma Samheinl

— Que nome daremos a ela? — perguntou James Leslie. Jasmine pensou um pouco antes de responder:

— Autumn, porque ela nasce já no outono de minha vida, e no outono deste ano. — Ela notou o vaso com rosas sobre um móvel. — Autumn Rose Leslie — decidiu. — O nome de nossa filha será Autumn Rose.

Parte Três


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