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de prazeres sensuais. O deus o tenta com a promessa de poder, oferece um reino para governar que Siddhartha já havia recusado antes. Ameaça-o com flechas. Envia suas três filhas - Tanha (desejo), Raga (luxúria) e Arati (aversão) - para seduzi-lo e quebrar sua concentração. Mara o ataca com as bestas mais apavorantes que é capaz de conjurar. Troncos sem cabeça, monstros de duas cabeças sem olhos e sem braços, outros com muitos braços, alguns com espadas e facas, outros soprando fogo - eles representam os lados mais feios e mais horrendos da natureza humana que impedem a nossa felicidade. Mara então tenta afirmar que ele mesmo devia receber aquela luz divina, apontando para seus exércitos atrás dele como testemunhas do seu mérito. Perguntado sobre quem iria testemunhar em seu benefício, Siddhartha invoca a terra como testemunha, e a terra responde afirmativamente com um rugido. Ele aponta para o chão com a mão direita. Esse gesto com a mão, ou mudra, é chamado de "tocando a terra", ou bhumisparsha mudra. Um dos mudras mais famosos é simbolizado em muitas estátuas e quadros de Buda.
Nada disso funciona, é claro. Com firmeza, Siddhartha encara esses demônios - os demônios que existem dentro dele - e não deixa de fitar o prêmio. Esse rito de passagem é remanescente das histórias da Tentação de Cristo, nos evangelhos de Mateus e de Lucas. Elas também "são lendárias", disse-me o irmão David Steindl-Rast. "Foram criadas pelas primeiras comunidades cristãs para transmitir conceitos importantes sobre a vida e a mensagem de Jesus."
Deixando para trás as tentações de Mara, o futuro Buda passa por vários níveis de estados profundos de transe. Conquistados nas "vigílias" ao longo da noite, cada nível revela um mundo de conhecimento que vai formando sua filosofia. Na primeira parte da noite ele adquire o conhecimento sobre suas existências anteriores. Na segunda conquista o "olho divino super-humano", o poder de ver a morte e o renascimento dos seres. Na última parte da noite ele compreende as Quatro Verdades Nobres que são os pilares sobre os quais seu dharma ("verdade") é erigido.
Após compreender essas verdades, ele diz:
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- Destruído está o renascimento para mim; consumida a minha luta; feito o que tinha de ser feito; não nascerei para outra existência!
Ou palavras com sentido parecido.
Naquela noite de lua cheia no mês de Vesakha (maio), aos 35 anos de idade, nasceu o Buda. Ele havia conquistado a quietude da mente chamada de nirvana. Em estado de bem-aventurança extasiada, permaneceu à sombra da árvore e ficou lá sentado ainda uma semana. Esse lugar, o mais sagrado para todos os budistas de qualquer seita, é chamado de Vajrasana (que quer dizer "trono de diamante"); uma plataforma de pedra foi construída ali. O Vajrasana também era às vezes chamado de trono da Vitória de todos os Budas {Sabbabuddhanam Jayapallankam), ou o Umbigo da Terra (Pathavinabbi). Ainda atônito com aquela façanha ele passou as seis semanas seguintes perambulando na área em volta da árvore. Lemos que parou num ponto de uma elevação a oeste da figueira e ficou uma semana sem piscar, olhando para a árvore sob a qual tinha sido iluminado. Esse ponto ficou conhecido como o "santuário do olhar firme (ou fixo, sem piscar)" {Ani-meshlochana Chaityd). Na terceira semana aprendemos que ele andou para um lado e para outro em profunda meditação e esse breve caminho é chamado de "santuário do caminho da meditação preciosa" {Cankamana). A lenda diz que flores de lótus brotaram por onde ele andava. Na quarta semana o Buda meditou na casa da jóia (Ratanaghara) que dizem ter sido construída pelos devas para ele. Ele contemplou a metafísica {Abhidhamma) e desenvolveu sua filosofia sobre as leis de causa e efeito {Paticca-samuppada). Enquanto meditava, raios azuis, vermelhos, amarelos, brancos e cor de laranja emanavam do seu corpo - as cores que temos na bandeira budista, criada em 1880 para marcar a renovação do budismo no Ceilão e que agora é a bandeira do Conselho Sangha do Budismo Mundial.
Na quinta semana o Buda meditou à sombra de uma figueira-brava (Ajapaia Nigrodhd) e entendeu que o bom carma, e não o nascimento, era o que fazia um brâmane. Dizem que ele teve uma conversa com Brahma, o deus hindu da criação. O discurso aqui
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é importante porque mostra o Buda se libertando do sistema de castas que prevalece naquela sociedade. "Não é pelo cabelo em trancas naturais dos homens santos, pela linhagem, não é pelo nascimento (casta) que alguém se torna um brâmane. Mas sim aquele em quem habita a verdade e a justiça, ele é puro; ele é um brâmane", ele diz em O Dhammapada, coleção de todos os seus discursos. O Buda passou a sexta semana meditando na parte sul do templo, perto do lago Muchhalinda; ali, durante forte tempestade, Muchhalinda, o rei cobra cobriu o corpo de Buda para protegê-lo da chuva. A sétima semana ele passou ao pé da árvore Rájáyatana, onde conheceu seus primeiros discípulos leigos, Tapussa e Bhallika, dois comerciantes numa viagem a trabalho.
Hoje cada um desses lugares está marcado na região do templo Mahabodhi. A origem do próprio templo é envolta em mistério. A primeira construção em homenagem ao lugar dizem que foi feita pelo rei indiano Ashoka (304-232 a.C), que foi um dos conquistadores mais cruéis e violentos, e que depois abdicou dessa agressividade quando descobriu o budismo por volta de 250 a.C. Como devoto, Ashoka espalhou stupas por toda a índia, contendo relíquias do Buda e até enviou algumas (junto com um broto da figueira religiosa original) para o Ceilão (hoje Sri Lanka) com seu filho Mahinda, no ano de 251 a.C. Os dois grandes peregrinos budistas chineses que viajaram para a índia para aprender em primeira mão essa nova religião da qual tinham ouvido falar, Fa-Hsien no início do século V e Huang Tsang no século VII, registraram terem visto o templo. A estrutura era bem menor e mais modesta - parecida com uma pirâmide primitiva bem alta — do que o monumento de pedra com mais de 52 metros de altura que vemos hoje, coberto de esculturas elaboradas. Muitos e muitos séculos depois dos mongóis terem varrido o budismo da índia, a árvore e o templo foram eliminados da consciência da maior parte do povo, apesar de os budistas mais engajados terem continuado a fazer a peregrinação ao local mais reverenciado. Foi só em meados do século XIX que o general Alexander Cunningham, a serviço da British Archeological Survey of índia, removeu a cobertura de mato e reconstruiu o que sobrara do que devia ser uma construção do século V.
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A figueira, a Árvore Bodhi, não é na verdade a árvore original também. De acordo com as crônicas ceilonesas, diz a lenda que a mulher de Ashoka mandou destruir a primeira, pois tinha ciúme da devoção quase obsessiva do marido por ela e temia que ele a deixasse, como Siddhartha tinha deixado a mulher dele. O dr. Huntington, no estado de Ohio, botânico amador, acredita que a árvore foi restaurada por Ashoka pessoalmente, enquanto os cei-loneses afirmam que cresceu a partir de uma semente enviada por eles, da árvore de lá, que era filha da original. A árvore indiana, dizem que foi destruída duas vezes depois disso, uma por saqueadores shivitas no século VII, e outra por um raio em 1876. A árvore atual deve ter 135 anos.
A primeira vez que ouvi falar de Bodh Gaya foi em 1975, de amigos em Cambridge, Massachusetts, que faziam parte da onda de peregrinos ocidentais do final da década de 1960, início dos anos 70, que redescobriram Bodh Gaya mais uma vez. John Bush, chamado de Krishna quando o conheci, estava entre eles. Ele e sua mulher na época, Mirabai, tinham uma pequena indústria de fundo de quintal de silk-screen que produzia imagens transparentes adesivas do Buda e de mandalas tibetanas. Chamavam-nas de Selos Dharma. Num certo momento criaram um Selo Dharma arco-íris e subitamente o pequeno negócio tornou-se um negócio muito grande. Aqueles arco-íris enfeitavam o vidro traseiro de quase todos os fuscas e kombis da época. John e Yoko puseram os Selos Dharma em todas as janelas do apartamento deles no edifício Dakota em Manhattan; lembro que apontava para eles quando estava com amigos na esquina da Central Park West com a rua 72 em 1976. Depois de vender a empresa e de se separar de Mirabai, John tornou-se diretor e produtor de cinema.
Nos primeiros anos do século XXI ele viajou por todo o sudeste da Ásia com uma videocâmera digital Sony com qualidade de câmera de televisão. O resultante Yatra Trilogy é uma série de documentários em filme que leva os espectadores a uma peregrinação budista pelo Laos, a Tailândia, Birmânia, Bali, Camboja, Java e Tibete {yatra é a palavra em sânscrito que quer dizer viagem sagrada). Junto com exibições em lugares como o Rubin Museum
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of Art em Nova York e festivais de cinema por todo o mundo, seu filme do Tibete, Vajra Sky, percorreu os Estados Unidos com Sua Santidade o 14° Dalai Lama em 2005. Quando vi os filmes fiquei deslumbrado com as tomadas longas, lentas e quase dolorosas, com a paciência das lentes da câmera dele. Diferente de todos os outros filmes que vi sobre esses lugares, davam a sensação de estar lá - parado no alto de uma colina, por exemplo, no templo Borobudur, o monumento mandala budista do século IX em Java, calor e odores pungentes quase palpáveis, os sons dos pássaros e das moscas nos ouvidos, a realização humana incompreensível e misteriosa. Quando pedi a John para invocar suas lembranças de Bodh Gaya de 1970, a recuperação vivida que ele fez nos enviou de volta para um tempo cheio de mito e magia. Ele rastreia o início da sua peregrinação para aquele tempo em Bodh Gaya.
- Mira e eu tínhamos saído de uma comuna na Colúmbia Britânica e viajamos por terra de Londres até a índia. Eu queria aprender a meditação budista. Em Nova Deli logo esbarramos em Sharon Salzberg, que eu já conhecia da Universidade Estadual de Nova York em Buffalo, onde Mira e eu tínhamos estudado.
(Sharon mais tarde foi ajudar a fundar o primeiro centro de retiro vipassana nos Estados Unidos, a Insight Meditation Society, em Barre, Massachusetts.)
- Ela mencionou um retiro de meditação em Bodh Gaya, conduzido para ocidentais por um mestre birmanês chamado Goenka. Parecia ser o que eu queria fazer. Chegamos a Bodh Gaya no dia de Natal em 1970. Naquela época era apenas uma parada poeirenta na estrada, no que parecia ser o fim do mundo. Búfalos e vacas nas ruas, um asilo do governo, mendigos, moscas, algumas lojas chai [casas de chá] com ocidentais nelas. Deixamos nossa bagagem no vihara birmanês onde ia acontecer o retiro e fomos andando até a cidade. Dei uma espiada numa loja chai e vi Richard Alpert, que tinha visto em Buffalo dando uma palestra no departamento de química.
Alpert e Tim Leary, ambos professores de psicologia em Harvard na década de 1960, tinham sido dispensados por ter submetido os alunos da faculdade de psicologia a experiências com
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LSD. Alpert mais tarde abraçou o hinduísmo e ficou conhecido como Ram Dass, autor de Esteja aqui agora e um dos meus mestres pessoais.
- Ele tinha se registrado para fazer o curso com Goenka também. Naquele momento eu soube que um novo capítulo da minha vida ia começar. Ficamos em Bodh Gaya uns dois meses e fizemos cerca de cinco cursos de dez dias com Goenka seguidos. No dia entre um curso e outro, nos reuníamos nas chai, depois íamos caminhar por onde Buda andou e ficávamos vagando pela área do templo Mahabodhi. Aquela se transformou na nossa topografia sagrada.
"O Buda era um imenso modelo de vida", disse ele, rindo da própria falta de ironia, "Bodh Gaya representou o princípio do meu yatra pessoal, minha viagem sagrada. Foi a minha primeira experiência profunda; alimentou a minha compreensão do sagrado. Mobilizou-me para uma forma mais clássica de compreender quem nós somos como pessoas, como quem está sempre buscando de forma arquetípica. Minha viagem espiritual partiu daquele lugar e daquele momento."
Essa descrição me fez entender o quanto Bodh Gaya havia mudado nos 35 anos entre o tempo em que ele esteve lá e o meu. Eu nem podia imaginar como seria desolado 2.500 anos atrás, como devia ser tranqüilo e quieto.
Hoje esse epicentro espiritual para budistas de toda parte é mais como um circo espiritual com três picadeiros, e é tudo menos quieto. Com muitas centenas de pessoas o nosso grupo do Caminho de Buda circulou pelo templo Mahabodhi três vezes, como é o costume em qualquer santuário budista (ou stupa). Depois sentamos e meditamos ao lado da árvore. Encostei as costas na base fria do templo e procurei simular o estado mental do Buda com a esperança de que um pouco da serenidade e da felicidade que ele encontrou passassem para mim.
Sem chance.
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Por cerca de 25 segundos tentei me concentrar na minha respiração, chegar àquele lugar onde não existe eu. Procurei imaginar a quietude que o Buda vivenciou naquele exato lugar, ouvindo apenas o sussurro do vento nas folhas, o cantar dos pássaros, seu coração bater.
Mas foi impossível. O bombardeio sensorial não podia ser ignorado. As vozes graves de uma centena de monges tibetanos, seus cânticos hipnotizantes amplificados por minúsculos alto-falantes invadiam meus ouvidos. O cheiro pungente de incenso barato grudava nos pêlos das minhas narinas. A visão de monges de mantos amarelo-açafrão se jogando em esteiras diante deles em perpétua prostração. A verdadeira parada girando em torno do templo: neófitos norte-americanos de olhos arregalados, padres zen japoneses muito sérios com seus séquitos caminhando lepida-mente atrás, hinduístas indianos curiosos seguindo um guia turístico com um megafone, pessoas de Sri Lanka graciosamente enroladas em mantos brancos.
Meus pensamentos se voltaram para a minha obsessão atual; não há sempre uma obsessão para nos distrair da iluminação espiritual? Shantum tinha me dito que ele ficou animado ao ver que pássaros e esquilos tinham voltado para a Arvore Bodhi. Recentemente, explicou ele, a árvore foi vítima de um tipo de praga, que um agrônomo especulou que talvez tivesse proliferado devido aos óleos e dióxido de carbono que infectavam a casca na base do tronco, onde seguidores fervorosos punham incenso e velas. Shantum e eu ficamos à sombra da árvore venerada especulando se a infestação tinha sido resultado de espiritualidade exagerada, uma distorção irônica que o Buda talvez tivesse desprezado. Aquele era também um preço a pagar pelo Buda Boom? Ou teria acontecido de qualquer maneira, devido ao surgimento e desaparecimento de todas as coisas, hipótese que o Buda também poderia ter desprezado?
Concordamos que não importava: Bodh Gaya não era lugar para insignificâncias intelectuais. A única coisa que podemos fazer é nos render aos sentidos - e a sensação de paz que mesmo assim consegue transcender, até naquele caos.
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Enquanto isso eu desperdiçava meu momento de meditação embaixo do pedaço de madeira mais santificado do mundo decidindo procurar um entomólogo na Universidade de Patna para ter uma avaliação mais precisa. Merecedora do Pulitzer, pensei. Talvez aquela meditação não tivesse sido um desperdício, afinal.
O templo Mahabodhi é propriedade do governo do estado de Bihar. Segundo a Lei do Templo Bodh Gaya de 1949, o estado criou um Comitê de Administração do templo Bodh Gaya para administrar, proteger e monitorar o templo e a propriedade de cerca de seis hectares que o cerca. A diretoria consultiva consiste no governador de Bihar e vinte a 25 membros, a metade de outros países. Burma, China, Japão, Tailândia, Butão, Nepal, Vietnã e Tibete, todos esses países têm templos na cidade. O comitê de nove membros consiste em cinco budistas e quatro hindus para garantir que os budistas possam ter ascendência sobre os hindus em algum empate dos votos. Os indianos são um povo altamente politizado e isso não exclui a administração dos locais espirituais, especialmente quando estão prestes a se tornarem locais turísticos que geram renda também. A burocracia é outra coisa necessária devido à alta incidência de propinas e corrupção no país. Segundo um artigo do Hindustan Times, os registros policiais de 2001 citam Bijar como o segundo estado na estatística de crimes, perdendo apenas para o estado de Uttar Pradesh. Na região por onde o Buda vagou hoje em dia o cidadão comum deve se preocupar com assassinato, seqüestro, roubo e vandalismo. Não são feitos registros policiais de suborno e corrupção, mas a mentalidade que prevalece é que qualquer um e qualquer coisa pode ser comprado ou vendido - seja sob a mira de uma arma ou do martelo do juiz. O homem cuja função é ser o zelador da propriedade e ao mesmo tempo elo diplomático entre todas as diversas facções era um dos monges mais engraçados, irônicos e inteligentes que conheci nas minhas viagens, o monge principal do templo, Bhikkhu Bodhipala.
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- É difícil, sim, encontrar o equilíbrio - disse ele rindo. - É uma boa prática para mim.
Ele tentou convencer os tibetanos cantantes a abaixar o volume dos seus alto-falantes e os hindus que vendiam lembranças a abaixar o volume da música ensurdecedora, e teve pouco sucesso.
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