. Acesso em: 19 jan. 2016.
Pare e pense
Reúna-se com alguns colegas, releiam os textos da seção e identifiquem os tipos sociais apresentados neles. Em seguida, pesquisem novelas, filmes ou séries de TV que façam uma crítica social com o auxílio de situações cômicas e discutam: que comportamentos são ridicularizados nessas manifestações artísticas? Há semelhanças entre os tipos nelas apresentados e aqueles retratados nos textos? De que maneira os diferentes recursos dessas linguagens favorecem a construção da sátira?
Depois, realizem uma exposição oral em que cada grupo apresentará, para a classe, seu ponto de vista e suas conclusões sobre essas questões.
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Capítulo 7 Humanismo
DOMENICO DI MICHELINO – BASÍLICA DE SANTA MARIA DEL FIORE, FLORENÇA
DI MICHELINO, D. Dante iluminando Florença com seu poema. 1465. Têmpera sobre madeira.
Leitura da imagem
1. Em primeiro plano, no quadro de Domenico di Michelino (1417-1491), aparece o poeta italiano Dante Alighieri (1265-1321), autor de A divina comédia. No caderno, descreva de modo resumido como Dante foi representado.
2. Ao fundo do quadro vemos a montanha do purgatório, local para onde vão as almas que precisam expiar seus pecados antes de chegar ao paraíso. Que outros símbolos da religião católica podem ser identificados na pintura?
3. O que a posição de destaque e a relação de tamanho entre a representação de Dante e os outros elementos do quadro sugerem ao observador sobre sua importância?
> O destaque dado a um ser humano, no quadro, é compatível com a visão teocêntrica que marcou a Idade Média? Por quê?
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Da imagem para o texto
4. A divina comédia, de Dante Alighieri, ilustra o olhar humanista para a religião e o desejo de compreender e explicar as coisas do mundo, da vida e da morte que caracterizam a literatura no Humanismo. Leia um trecho dessa obra.
Canto IV
Após cruzarem o rio Aqueronte e entrarem no Limbo, o primeiro círculo do Inferno, Dante e Virgílio encontram as almas dos grandes mestres gregos e romanos.
[...]
A vista descansada então lançando
em derredor, olhei detidamente,
a ver onde me achava, e como, e quando.
[...]
Bem à distância estávamos, mas não
tanto que eu não pudesse ver em parte
que a gente ali mostrava distinção.
“Ó tu, que glorificam ciência e arte,
quem são estes”, falei, “com dignidade
tal que os conserva assim dos mais à parte?”
Disse-me, então: “A notabilidade
deles, que soa lá onde tens vida,
do céu lhes houve a justa prioridade.”
[...]
O meu bom mestre prosseguiu, falando:
“Olha o que à mão aquela espada traz,
à frente dos demais, como em comando:
É Homero, cantor alto e capaz:
Com Horácio, o satírico, ali vem;
Ovídio logo após, Lucano atrás.
E porque cada um comigo tem
este nome em comum que a voz entoa,
disto me orgulho, e a nada aspiro além.”
Assim reunida a bela escola e boa
eu vi do mestre altíssimo do canto,
que sobre os outros, como a águia, revoa.
Depois de terem conversado a um canto,
volveram-se e fitaram-me, acenando:
e meu mestre sorriu de favor tanto.
E honra maior me foram demonstrando,
tal, que acolhido em sua companhia,
eu era o sexto aos mais ali somando.
[...]
ALIGHIERI, Dante. A divina comédia. Tradução de Cristiano Martins. 6. ed. Belo Horizonte: Villa Rica, 1991. p. 128-134. v. 1. (Fragmento).
Notabilidade: atributo de pessoa que é notável, admirável.
Lucano: poeta épico latino, que viveu entre os anos 39 e 65 d.C. Escreveu Farsália, em que narra episódios da guerra civil romana.
a) Na época em que foi escrito esse poema, para a Igreja Católica as almas das pessoas não batizadas eram encaminhadas ao Limbo, pois não poderiam permanecer na presença de Deus sem ter sido purificadas do pecado original. De quem são as almas que Dante e Virgílio encontram no Limbo?
b) De que modo Dante apresenta essas personagens?
5. Dante pergunta a Virgílio por que razão os poetas gregos e latinos encontram-se separados das outras almas que estão no Limbo. Que explicação ele recebeu de seu mestre?
6. Além de chamar Virgílio de “mestre”, Dante revela, nessa passagem de A divina comédia, que o considera superior aos outros poetas identificados. Transcreva no caderno os versos que comprovam essa afirmação.
a) O que a referência à “bela escola e boa” revela sobre a importância desses poetas na visão de Dante?
b) Qual é a “honra maior” vivida por Dante nesse momento? Explique.
7. Que elementos desse trecho ilustram a tentativa, característica do Humanismo, de conciliar a religião católica e as influências da cultura greco-latina? Por quê?
Um mundo em mudança
O quadro de Domenico Di Michelino não somente destaca a figura do poeta Dante Alighieri. Vai mais além: sugere que sua obra, A divina comédia, contém a explicação para a vida e a morte. Essa nova maneira de representar a importância do ser humano sinaliza o surgimento de uma nova mentalidade. Outras transformações começam a ocorrer na Europa do fim da Idade Média: a vida nas cidades é retomada e o comércio se intensifica, provocando maior interação entre pessoas de diferentes segmentos da sociedade.
O surgimento da burguesia
Na Itália do século XIII, as cidades-Estado que se desenvolveram no norte do país tornaram-se prósperos centros comerciais e bancários. Roma, Milão, Florença, Veneza, Mântua, Ferrara, Pádua, Bolonha e Gênova dominavam o comércio marítimo com o Oriente e controlavam a economia mercantil. A riqueza passou a ser associada ao capital obtido pelo comércio e não mais à terra, como ocorria na sociedade feudal.
Muitos camponeses, atraídos pelas promessas de prosperidade, transferiram-se para os burgos, onde começaram a trabalhar como pequenos mercadores. Surgia, assim, a burguesia.
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De burgo a burguesia
Na Idade Média, burgo era o nome dado à muralha edificada em torno das vilas ou cidades para proteção de seus moradores. O termo passou a denominar a própria cidade fortificada. Desse termo derivou a palavra burguesia, que designava originalmente o segmento da sociedade formado pelos homens livres que moravam nos burgos, dedicavam-se ao comércio e desfrutavam de uma situação econômica confortável.
ADAM WOOLFITT/CORBIS/LATINSTOCK
Vista aérea do burgo medieval de Carcassonne, França, c. 1995.
Uma cultura leiga
Enriquecida com as atividades comerciais, a burguesia necessita de uma formação cultural mais sólida, que a ajude a administrar a riqueza acumulada. O burguês passa a investir em cultura, algo que até então só era feito pela Igreja e pelos grandes soberanos. Aos poucos, os leigos começam a conquistar um papel importante na produção e circulação da cultura.
A busca por uma formação leva à redescoberta de textos e autores da Antiguidade clássica, considerada uma fonte de saber a respeito do ser humano.
O Humanismo: um novo olhar para o mundo
O Humanismo foi um movimento artístico e intelectual que surgiu na Itália no final da Idade Média (século XIV) e alcançou plena maturidade no Renascimento. O foco dos humanistas era o ser humano, o que os afastava do teocentrismo medieval. Resgatava-se, assim, a visão antropocêntrica característica da cultura greco-latina.
Tome nota
Antropocentrismo é a atitude ou doutrina que considera o ser humano o centro ou a medida de todas as coisas.
O projeto literário do Humanismo
O Humanismo representa um momento de transição entre o mundo medieval e o moderno. Por esse motivo, o projeto literário humanista não tem características completamente definidas: o velho e o novo convivem, provocando uma tensão que se evidencia na produção artística e cultural.
Em linhas gerais, essa produção será marcada pelo abandono da subordinação absoluta à Igreja Católica e pelo resgate dos valores clássicos. Como consequência do estudo das obras greco-latinas, ganha força um olhar mais racional para o mundo, que procura na ciência uma explicação para fenômenos até então atribuídos a Deus.
A obra de Dante Alighieri e de Francesco Petrarca (1304-1374), poetas italianos, constituiu a base para o desenvolvimento da literatura no período humanista e serviu de inspiração para artistas de outros países europeus.
Os agentes do discurso
O contexto de produção da literatura humanista é o mesmo do Trovadorismo: as cortes e os palácios. A função principal da literatura é promover a diversão e o prazer da aristocracia.
Por volta de 1450, Johann Gutenberg cria a prensa e revoluciona a produção de livros na Europa, fazendo com que a cultura oral comece a perder espaço para a cultura escrita. Essa mudança no contexto de circulação das obras permitirá que escritores e poetas explorem novos recursos de linguagem que não dependem da oralidade e da memória, como acontecia até então.
COLEÇÃO PARTICULAR
Gravura do século XIX que representa Gutenberg verificando prova de impressão.
• O Humanismo e o público
O público das trovas e canções produzidas durante o Humanismo é essencialmente o mesmo das cantigas dos trovadores: os nobres.
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Aos poucos, porém, o perfil desse público começa a mudar. Com o investimento da burguesia na aquisição de cultura e com a maior facilidade de produção e circulação do livro, um maior número de pessoas passa a ter acesso à produção literária, antes restrita aos ambientes da corte. Essa mudança, porém, é lenta e só será consolidada durante o Renascimento.
Linguagem: a importância das metonímias
A grande novidade da literatura humanista é a adoção do soneto como forma poética fixa. Como foi visto no Capítulo 3, essa forma poética conquistará o gosto da elite, por acomodar, em uma estrutura fixa, o novo olhar indagador, analítico, que procura explicar racionalmente os sentimentos humanos.
Uma consequência dessa intenção humanista ficará evidente na seleção de imagens trabalhadas em poemas da época. Partes do corpo humano — geralmente olhos e coração — são mencionadas para ilustrar os efeitos do amor. Observe como esse recurso foi utilizado no poema a seguir.
Cantiga
Acho que me deu Deus tudo
para mais meu padecer:
os olhos — para vos ver,
coração — para sofrer,
e língua — para ser mudo.
Olhos com que vos olhasse,
coração que consentisse,
língua que me condenasse:
mas não já que me salvasse
de quantos males sentisse.
Assi que me deu Deus tudo
para mais meu padecer:
os olhos — para vos ver,
coração — para sofrer,
e língua — para ser mudo.
SOUSA, Francisco de. In: SPINA, Segismundo. Era medieval. 8. ed. São Paulo: Difel, 1985. p. 136. (Coleção Presença da Literatura Portuguesa).
Tome nota
A metonímia ocorre quando se opta por utilizar uma palavra em lugar de outra. Pode ser empregada em várias situações. Uma delas é quando a parte é utilizada para representar o todo. Nas cantigas do Humanismo, os poetas recorrem às metonímias para melhor ilustrar os efeitos do amor no eu lírico.
Esse mesmo procedimento também é utilizado para mostrar como determinada parte do corpo feminino simboliza todas as qualidades da mulher louvada no poema.
A produção do Humanismo em Portugal
Quando o Humanismo chega a Portugal, no início do reinado da Dinastia de Avis (1385), a produção poética passa por uma crise. Entre 1350 e 1450 não se tem notícia da circulação de textos poéticos no país. Nesse período, Portugal vive o apogeu da crônica historiográfica e da prosa doutrinária, tipo de manual escrito por reis e nobres que apresentava normas e modelos de comportamento para os fidalgos da corte.
O ressurgimento da poesia, então separada da música, ocorre durante o reinado de D. Afonso V, no século XV, impulsionado pela renovação cultural promovida na corte portuguesa.
Destaca-se ainda nessa produção o teatro de Gil Vicente, que faz um retrato vivo da sociedade portuguesa da época.
Fernão Lopes: cronista dos reis e do povo
A nomeação de Fernão Lopes como cronista-mor do reino, em 1434, é considerada o marco inicial do Humanismo português. Ele escreveu três crônicas:
• Crônica de El-Rei D. Pedro I: compilação e crítica dos principais acontecimentos do reinado de D. Pedro I. Nesse volume, encontra-se o relato do episódio da morte de Inês de Castro, amante do rei, assassinada a mando de D. Afonso IV, pai de D. Pedro.
• Crônica de El-Rei D. Fernando: reconstituição do período que se inicia com o casamento de D. Fernando com Dona Leonor Teles e encerra-se com a Revolução de Avis.
• Crônica de El-Rei D. João: dividida em duas partes, a primeira começa com a morte de D. Fernando, em 1383, e termina com a revolução que leva D. João I ao trono português; na segunda parte é descrito o reinado de D. João até 1411.
Fernão Lopes distinguia-se dos demais cronistas pela importância que dava ao povo, tratado por ele como coadjuvante da história dos reis. Essa opção do cronista exemplifica o seu espírito humanista.
COLEÇÃO PARTICULAR
Fernão Lopes, em selo português emitido em 1949.
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De olho no teatro
A tragédia da saudade
O teu Pedro quer falar: deixa-o dizer... [...] O nosso amor, amor, ainda era pouco. Só abraçado à morte ele inicia: só a Saudade revela, sabe a Deus. Oh! Os meus dias... os meus longos dias — dias de hiena triste, a sonhar sangue... O teu Pedro quer mostrar-tos para que os beijes: — e serão puros na Saudade, como tu. [...]
PATRÍCIO, António. Pedro, o cru. In: Teatro completo. Lisboa: Assírio e Alvim, 1982. p. 166. (Fragmento).
....................................................
A história trágica do amor do rei Pedro I e Dona Inês de Castro, contada pela primeira vez na crônica de Fernão Lopes, transformou-se em um tema recorrente da literatura portuguesa. Aparece em Camões e também nessa peça de António Patrício, escrita em 1913.
A poesia palaciana
A poesia palaciana consistia em composições coletivas, produzidas para serem apresentadas nos serões do Paço Real, diante da corte.
Os poemas palacianos apresentaram muitas inovações em relação ao Trovadorismo, principalmente no tratamento do tema do amor, agora apresentado de modo menos idealizado. Esses poemas foram compilados pelo poeta Garcia de Resende em um único volume, o Cancioneiro geral, em 1516.
• Formas da poesia palaciana
A poesia reunida no Cancioneiro geral traz algumas diferenças importantes em relação à lírica dos trovadores galego-portugueses. A primeira delas diz respeito à exploração de versos com metro fixo, dentre os quais se destacam as redondilhas (de cinco e sete sílabas métricas). Outra inovação se refere ao uso sistemático de formas poéticas regulares, como:
• a trova: composta de duas ou mais quadras de versos de sete sílabas e rimas ABAB;
• o vilancete: composto de um mote (motivo de dois ou três versos) seguido de voltas ou glosas (estrofes em que o mote é desenvolvido) de sete versos;
• a cantiga: composta de um mote de quatro ou cinco versos e de uma glosa de oito ou dez versos, com repetição total ou parcial do mote no fim da glosa;
• a esparsa: composta de uma única estrofe de oito, nove ou dez versos de seis sílabas métricas.
A métrica regular, as estrofes com menor número de versos e o uso de glosas que retomavam o mote deram maior autonomia à linguagem poética. O acompanhamento musical deixou de ser necessário para garantir o ritmo, porque a própria linguagem passou a desempenhar essa função.
O teatro de Gil Vicente
Na Idade Média, as peças de teatro eram todas de caráter religioso e costumavam ser apresentadas no pátio das igrejas e dos mosteiros. Quando o Paço Real adquire maior importância, torna-se centro da movimentação cultural, e é lá que as peças serão encenadas. A atividade teatral se intensifica e passa a abordar temas mais variados.
Em Portugal, o grande nome do teatro no Humanismo é Gil Vicente. Em 71 anos de vida, estima-se que tenha escrito cerca de 44 peças (17 em português, 11 em castelhano e 16 bilíngues). Escrita em 1502, sua primeira peça foi Auto da visitação, em homenagem à rainha D. Maria pelo nascimento de seu filho, o futuro rei D. João III. Como não se tem notícia de autores teatrais anteriores a Gil Vicente, ele é considerado o “pai do teatro português”.
• Teatro, crítica e humor
As peças de Gil Vicente têm caráter moralizante, ou seja, procuram tematizar os comportamentos condenáveis e enaltecer as virtudes. A religião católica é tomada como referência para a identificação das virtudes e dos erros humanos. Embora critique o comportamento mundano de membros da Igreja, a formação medieval faz com que as críticas de Gil Vicente sejam sempre voltadas para os indivíduos, jamais para as instituições religiosas.
Sem fazer distinção entre os segmentos da sociedade, o teatro vicentino coloca no centro da cena erros de ricos e pobres, nobres e plebeus. O autor denuncia os exploradores do povo, como o fidalgo, o sapateiro e o agiota do Auto da barca do inferno; enfim, traça um quadro animado da sociedade portuguesa do século XVI, procurando sempre, além de divertir, estimular um comportamento virtuoso.
Um recurso muito explorado por Gil Vicente é o uso de alegorias, ou seja, de representações, por meio de personagens ou objetos, de ideias abstratas, geralmente relacionadas aos vícios e virtudes humanas. Assim, no Auto da barca do inferno, o agiota traz consigo uma bolsa cheia de moedas que representa, alegoricamente, a sua ganância.
ROQUE GAMEIRO - BIBLIOTECA DA CASA DE PORTUGAL, SÃO PAULO
GAMEIRO, R. Gil Vicente na corte de Dom Manuel I. In: História da Literatura Portuguesa Ilustrada. Lisboa: Bertrand, 1930. p. 63. v. 2.
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As obras de Gil Vicente costumam ser divididas em três tipos:
• Autos pastoris (éclogas): gênero a que pertencem algumas das primeiras obras do autor. Algumas dessas peças têm caráter religioso, como o Auto pastoril português; outras, profano, como o Auto pastoril da serra da Estrela.
• Autos de moralidade: gênero em que Gil Vicente se celebrizou. Seus autos mais conhecidos são deste tipo: Trilogia das barcas (Auto da barca do inferno, Auto da barca do purgatório e Auto da barca da glória) e Auto da Alma.
• Farsas: peças de caráter crítico, utilizam como personagens tipos populares e desenvolvem-se em torno de problemas da sociedade. As mais populares são a Farsa de Inês Pereira, história de uma jovem que vê no casamento a sua chance de ascensão social, e O velho da horta, que ridiculariza a paixão de um velho casado por uma jovem virgem.
BIBLIOTECA DA CASA DE PORTUGAL, SÃO PAULO
Representação de Inês Pereira. In: História da Literatura Portuguesa ilustrada. Lisboa: Bertrand, 1930. p. 35. v. 2.
Leia a seguir um trecho da farsa O velho da horta.
[...]
Entra a MOÇA na horta e diz o VELHO
Senhora, benza-vos Deus.
MOÇA
Deus vos mantenha, senhor.
VELHO
Onde se criou tal flor? Eu diria que nos céus.
MOÇA
Mas no chão.
VELHO
Pois damas se acharão que não são vosso sapato!
MOÇA
Ai! Como isso é tão vão, e como as lisonjas são de barato!
VELHO
Que buscais vós cá, donzela, senhora, meu coração?
MOÇA
Vinha ao vosso hortelão, por cheiros para a panela.
VELHO
E a isso
vinde vós, meu paraíso.
Minha senhora, e não a aí?
MOÇA
Vistes vós! Segundo isso, nenhum velho não tem siso natural.
VELHO
Ó meus olhinhos garridos, minha rosa, meu arminho!
MOÇA
Onde é vosso ratinho?
Não tem os cheiros colhidos?
VELHO
Tão depressa
vinde vós, minha condessa,
meu amor, meu coração!
VICENTE, Gil. O velho da horta. 32. ed. São Paulo: Ateliê Editorial, 1998. p. 70-72. (Fragmento).
Garridos: alegres, graciosos.
Ratinho: designação para camponês da região das Beiras (Litoral, Alta e Baixa regiões de Portugal).
Preocupado com a correção dos costumes, Gil Vicente adotava como lema uma famosa frase de Plauto, dramaturgo latino: “rindo, corrigem-se os costumes”. O riso desencadeado pelas cenas revelava que o público identificava e censurava uma conduta socialmente inadequada, como o velho apaixonado por uma jovem.
Essa opção garantia que, ao mesmo tempo que suas peças divertiam a nobreza, também contribuíam para educá-la.
TEXTO PARA ANÁLISE
O texto a seguir refere-se às questões de 1 a 3.
Texto 1
Cantiga
Este poema é um exemplo da poesia palaciana apresentada nos serões do Paço Real português no século XV.
A vida, sem ver-vos,
é dor e cuidado
que sinto dobrado
querendo esquecer-vos;
porque, sem querer-vos,
já não poderia
viver um só dia.
Já tanta paixão
valer não pudera,
se vos não tivera
em meu coração;
sem tal difensão,
meu bem, um só dia
viver não queria.
Difensão: defesa, proteção.
VIMIOSO, Conde de. In: SILVEIRA, Francisco Maciel. Poesia clássica. São Paulo: Global, 1988. p. 31.
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1. Qual é o tema do poema? Explique como ele é desenvolvido.
a) Embora o texto pertença à poesia palaciana, o tema e o tratamento dado a ele sugerem uma influência da poesia trovadoresca, estudada no capítulo anterior? Justifique.
b) O que, do ponto de vista formal, permite reconhecer o poema como característico da poesia palaciana?
2. Como o eu lírico caracteriza o seu estado de espírito em função do sentimento que o domina?
> De que maneira essa caracterização revela a contradição do eu lírico em relação a esse sentimento?
3. O eu lírico se refere à sua amada como “meu bem”. O que o uso dessa expressão sugere a respeito da relação entre ele e a mulher a quem dirige seus versos?
> No caderno, explique a diferença entre essa forma de tratamento e a que os trovadores das cantigas trovadorescas dispensavam às damas que louvavam.
O texto a seguir refere-se às questões de 4 a 7.
Texto 2
Auto da Alma
No trecho a seguir, a Alma fica dividida entre a salvação oferecida pelo Anjo e a tentação do Diabo.
[...]
Vem o Anjo da guarda com a Alma e diz:
ANJO
Alma humana, formada
de nenhuma coisa feita,
mais preciosa,
da morte desobrigada,
e esmaltada
naquela forja perfeita,
e gloriosa;
[...]
ALMA
Anjo que sois minha guarda,
velai por minha fraqueza
terrenal:
seja em tudo resguardada
e que não arda
a minha rara riqueza
essencial.
Permanecei-me ao redor
porque parto temerosa
de contenda;
ó precioso defensor,
por favor,
vossa espada luminosa
me defenda.
Tende a mão por sobre mim,
que temo de tropeçar
e cair.
[...]
Afasta-se o Anjo / vem o Diabo, aproxima-se e diz à Alma:
DIABO
Tão depressa, ó delicada,
alva pomba, aonde ides?
Quem vos engana,
e vos leva tão cansada
nesta estrada,
na qual nem sequer sentis
que sois humana?
[...]
Disputai dos bens da terra,
e conquistai senhorios
e haveres.
Quem da vida vos desterra
à íngreme serra?
Quem diz serem desvarios
os prazeres?
Esta vida é de descanso,
doce e manso,
não há outro paraíso,
quem vos meteu no juízo
outro remanso?
[...]
ANJO
Oh, andai! Quem vos detém?
Como vindes para a glória
devagar!
Oh, meu Deus! Oh, sumo bem!
Já ninguém
se empenha nesta vitória
de se salvar!
Já cansais, alma preciosa?
Tão depressa descuidais?
Sede esforçada!
Viríeis tão pressurosa
e ansiosa,
se vísseis quanto ganhais
nesta jornada!
[...]
Afasta-se o Anjo e volta Satanás:
DIABO
Que intenções de atos e obras
tão supremas!
Para que tamanha pressa?
Viva a vida!
Andais desmoralizada,
descalça, pobre, perdida.
Em conclusão:
não levais de vosso, nada;
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amargurada
assim passais esta vida,
sem razão.
Vesti agora esta estola,
dai-me o braço. Por aqui.
Deixai ver:
como vindes tão real!
Isto assim
me parece bem a mim:
caminhai!
[...]
Volta o Anjo e diz à Alma:
ANJO
Que andas aqui fazendo?
ALMA
Faço o que vejo fazerem pelo mundo.
ANJO
Alma, vós estais perdendo;
[...]
Na estrada em que caminhais,
andas andando pra trás
e de lado;
porque quereis escolher
como guia
o corsário Satanás
nesta via.
Oh, caminhai com cuidado,
que a Virgem gloriosa
vos espera.
Deixais vosso principado
deserdado?
Enjeitais a vossa Glória
e a grande Pátria?
[...]
Andemos! Dai vossa mão.
ALMA
Andai vós que eu andarei
quando puder.
[...]
VICENTE, Gil. Três autos – Da Alma, Da barca do inferno, De Mofina Mendes. Livre adaptação de Walmir Ayala. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004. p. 23-35. (Fragmento).
Forja: fornalha.
Velai: olhai.
Terrenal: terreno, referente ao mundo.
Contenda: luta, combate.
Senhorios: posse, autoridade.
Haveres: conjunto de bens, dinheiro, posses.
Pressurosa: apressada.
Estola: espécie de xale, de tecido fino ou de pele animal, usado pelas mulheres em torno do pescoço ou em volta dos ombros.
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Representação de Lúcifer. In: História da Literatura Portuguesa Ilustrada. Lisboa: Bertrand, 1930. p. 23. v. 2.
4. Que acontecimentos são apresentados no trecho transcrito?
a) Quem são as personagens?
b) Qual é o papel que cada personagem desempenha no auto?
5. Qual seria a “rara riqueza essencial” da Alma?
> De que maneira essa fala sugere o objetivo moralizante do texto? Explique.
6. Que argumentos o Diabo utiliza para desviar a Alma do caminho do Bem?
a) A Alma sucumbe à tentação? Por quê? Transcreva no caderno o trecho em que ela se justifica ao Anjo.
b) Os argumentos utilizados pelo Diabo e a justificativa da Alma permitem identificar os valores da sociedade criticados por Gil Vicente? Explique.
7. Gil Vicente é conhecido por fazer uma crítica forte aos costumes de sua época. Releia a última fala do Anjo. Que crítica ele faz?
Literatura e arte
Em 1320, tem início a restauração cultural na Itália. Dentre os artistas desse período, Giotto teve grande destaque, pois definiu novos rumos para a pintura ao humanizar a representação dos anjos e santos. Pesquise sobre a obra dele e discuta com seus colegas:
a) O que significa afirmar que Giotto humanizou a representação de anjos e santos? Por que essa forma de representação define novos rumos para a pintura?
b) Qual é a relação entre essa maneira de representação na pintura e o resgate de uma visão antropocêntrica durante o Humanismo?
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Diálogos literários: presente e passado
O impacto do tempo sobre a natureza e os indivíduos é um tema revisitado muitas vezes ao longo dos séculos e continua a intrigar e a instigar artistas modernos e contemporâneos, trazendo a reflexão sobre as transformações que a passagem dos dias promove nos sentimentos, na natureza, no corpo. Da percepção subjetiva, que relativiza o tempo, passando pela sensação de que a vida se repete, até a angústia diante da velhice e da morte, a relação entre as pessoas e o tempo que passa ainda é um tema fértil, como você verá nos textos desta seção.
Esse tema insere-se em uma tradição inaugurada na Antiguidade, com a poesia lírica grega, que abordou a impotência dos seres humanos diante dos deuses, os efeitos da passagem do tempo e a importância de viver o momento presente. O primeiro a explorar alguns dos temas relacionados a essa tradição foi Horácio, que analisou a fugacidade do tempo e a inevitável submissão humana à morte. No século XVIII, os temas clássicos renascem com os poetas árcades, como Tomás Antônio Gonzaga, os quais retomam a ideia de se aproveitar o presente, já que é impossível deter a ação do tempo sobre as pessoas.
No próximo capítulo, conheceremos como os grandes poetas do Renascimento, Petrarca e Camões, trataram dessa questão em seus sonetos. Antes disso, vamos conferir como autores e artistas modernos e contemporâneos, recorrendo a diferentes linguagens, expressaram a sua percepção do impacto da passagem do tempo para os seres humanos.
Jorge de Sena e o tempo marcado no corpo
IV
O que teu corpo foi, não imaginas:
A juventude, a força, a agilidade,
A fantasia obscena, a intensidade
Com que dos gestos se constrói prazer.
Mas isso ele foi em sonhos. Hei-de ver
teu corpo assim, ou como o possuí?
Ou hei-de vê-lo como ao longe o vi?
Ou como estátua, em lixo de ruínas
Jacente dormirá, estendida e pura?
Mas como dormirá, se em mim não dorme
o tempo que a teu rosto ainda tritura?
Como nos mata esta velhice enorme!
Que vinha vindo entre nós dois, tão dura,
que melhor fora te tornar informe...
Ou sombra dúbia pela noite escura.
SENA, Jorge de. In: NEJAR, Carlos (Org.). Poesia Portuguesa Contemporânea. São Paulo: Massao Ohno/Roswitha Kempf Editores, 1982. p. 92.
A permanência de quase todas as coisas na poesia de Eucanaã Ferraz
Notícias para Graça e Quitéria
As terras estão lá
e os céus de sempre.
As casas são as mesmas,
pequeninas, pele e osso.
De ser feliz não se sabe,
nem há notícias de Deus.
Usinas, canaviais,
como um dilúvio.
Morrer é fácil
e não há justiça.
O chão que vocês pisaram,
o azul que seus olhos viram — eternos.
A mãe, o irmão,
eternamente, dormindo
no Olho d’Água da Pedra.
FERRAZ, Eucanaã. In: HOLLANDA, Heloísa Buarque de (Org.). Esses poetas: uma antologia dos anos 90. Rio de Janeiro: Aeroplano, 1998. p. 134.
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Pare e pense
Observe o quadro e a tira a seguir e veja como os efeitos da passagem do tempo são o tema de manifestações artísticas que exploram linguagens distintas.
GUSTAV KLIMT - GALERIA NACIONAL DE ARTE MODERNA E CONTEMPORÂNEA, ROMA
KLIMT, G. As três idades da mulher. 1905. Óleo sobre tela, 180 × 180 cm.
BICHINHOS DE JARDIM
CLARA GOMES
© CLARA GOMES
GOMES, Clara. Bichinhos de jardim. Disponível em:
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