Sam bourne o código dos justos


Inclinou a cabeça de lado para retirar os brincos. Depois aproximou mais a cabeça do espelho e começou a complexa manobra de remover



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Inclinou a cabeça de lado para retirar os brincos. Depois aproximou mais a cabeça do espelho e começou a complexa manobra de remover o piercing do nariz. Por fim, desatarraxou o piercing de argola do um­bigo. Ficou com um punhado de metal na mão, que colocou junto à pia.

- Agora o trabalho mais difícil de todos. Enfiou a mão na bolsa e pegou um frasco de xampu recém-comprado, especialmente destina­do para aqueles momentos de correria.



Abriu a torneira, pegou uma toalha e estendeu-a em volta dos om­bros. Como a preparar-se para uma desagradável provação, curvou-se e abaixou a cabeça em direção à água.

Com Will olhando em sua direção, começou a ensaboar e lavar os cabelos. Teve de esfregar bastante, mas logo seu esforço foi recompen­sado. A água da pia começou a tornar-se de um roxo azulado. A tin­tura saía, uma torrente que rodopiava em volta da porcelana branca e desaparecia. Ele ficou fascinado com a água colorida. Não apenas removia um produto químico dos cabelos; parecia escoar pelo ralo a última década de sua vida.

Ele saiu para pegar algumas coisas pessoais. Que dissera o rabino? "Tudo se esclarecerá daqui a alguns dias." Isso fora dois dias atrás. Tal­vez estivesse prestes a acontecer de verdade, enfim. O que seria? Qual era essa "antiga história" na qual ele e sua mulher haviam de algum modo se envolvido? Iria abraçá-la mais uma vez? Seria esta noite?

Então, o que acha?



Will deu meia-volta e viu uma mulher diferente. Tinha agora os cabelos castanho-escuros, lisos e longos num coque ao estilo dos anos 1990. Usava sapatos pretos, saia comprida preta e blusa branca. Pega­ra uma jaqueta xadrez, grossa, de Beth, que em outras circunstâncias poderia ser usada para dar um toque de elegância, mas agora parecia apenas prática. Parada ali em seu apartamento, surgia uma mulher que teria passado por qualquer uma das jovens esposas e mães que ele tinha visto em Crown Heights dois dias antes. Parecia Tova Chaya Lieberman.

Fiquei tão feliz com os sapatos. Graças a Deus, couberam em mim, e isso é tudo o que importa...



Will levou um segundo para perceber o que TC estava fazendo. En­saiava o sotaque recitado e monótono, com inflexão iídiche de uma hassídica nova-iorquina. O acento viera-lhe com tanta facilidade que logo o convenceu.

  • Uau! Que jeito de falar... diferente.

  • Esta era a música de minha juventude, Will—disse, falando mais uma vez como TC. Só que se desprendia da voz uma melancolia que ele nunca ouvira antes. Então, abandonando a melancolia da voz, ela disse: — Agora, e você?

  • Eu?

  • Sim, você. Vamos juntos lá. Tova Chaya não seria vista com al­gum shaygets. Você também precisa ter a aparência certa. Agora, va­mos: terno preto, camisa branca. Conhece o número.

Will obedeceu, escolhendo o traje mais simples que conseguiu. Teve de rejeitar um terno de listras finas e uma camisa branca Ralph Lauren. Simples, simples, simples.

Olhou-se no espelho, esperando que a indumentária estivesse tão convincente quanto a de TC. Mas o rosto o denunciava. Poderia passar por americano, mas judeu? Não. Tinha o colorido e a estrutura óssea de um anglo-saxão cujas raízes se encontravam mais nas aldeias da Inglaterra que nas estepes da Rússia. Embora isso não fosse um pro­blema. Não vira rostos de Hanói e Helsinque entre os fiéis na noite de sexta-feira? Diria que era um convertido.

Só precisava de uma última coisa.

  • TC, onde vou arranjar um solidéu a essa hora da noite?

  • Já pensei nisso. — Com um floreio, ela ergueu um grande disco negro. — Peguei emprestado do seu amigo Sandy quando estávamos no parque.

  • Emprestado?

  • Bem, eu sei que eles sempre levam um de reserva. E olhei por acaso em um dos bolsos de seu casaco. Pegue. Coloque. — Como numa cerimônia, esticou-se nas pontas dos pés e pôs o solidéu na cabeça dele. Correu até o banheiro e voltou com um grampo de cabelo. — Pronto — disse, prendendo-o. — Rabino William Monroe, é um prazer conhecê-lo.

Assim que entraram no táxi, Will viu-se retorcendo-se de excitação e nervosismo. Jamais chegara a usar um disfarce, e era exatamente isso o que estava fazendo. Fantasiado, tentava passar por outra pes­soa. Seu escudo protetor — calça de algodão, camisa azul, livrinho de anotações — havia desaparecido. Sentia-se exposto.

Numa tentativa de tranqüilizar-se, pegou o celular — um lembrete de sua vida normal. Uma nova mensagem, aparentemente do mesmo remetente desconhecido que antes julgara fosse Yosef Yitzhok.
Somos apenas homens justos, em pequeno número

Expressos em dois dígitos

Ficaremos pela metade se eles se multiplicarem

Se nós poucos perecermos, todos têm de morrer.
Não tinha a menor idéia do que significava, mas isso dificilmente importava agora. Segundo TC, tudo estava prestes a ser explicado. O hábito fez com que checasse o BlackBerry em seguida. A luz vermelha piscava: um Alerta de Notícia do Guardian. A nostalgia tornara-o um assinante eletrônico do jornal que lia na Inglaterra. De praxe, logo apagava essas mensagens: já tinha bastante a fazer pondo-se a par das no­tícias de Nova York e dos Estados Unidos. Mas aquele "alerta" chamou sua atenção: que notícias sensacionais poderiam justificar um boletim extraordinário? Abriu-o.
O ROBIN HOOD DE DOWNING STREET
O mais quente escândalo político na Grã-Bretanha em décadas tomou o mais bizarro rumo até hoje.

O ex-ministro das Finanças, Gavin Curtis, que a polícia acredita haver tirado a própria vida na semana passada, parece destinado a transformar-se da noite para o dia de uma figura desgraçada e odiada num herói popular póstumo. Autoridades do Tesouro, que antes revelaram que o Sr. Curtis desviara grandes somas do orçamento do Reino Unido para uma conta secreta num banco suíço, informaram onde o dinheiro foi parar nas mãos das pessoas mais pobres do mundo.

Instantaneamente saudado pelos tablóides como "um Robin Hood da vida real", parece que o Sr. Curtis passou a maior parte de seus sete anos como ministro das Finanças na Grã-Bretanha roubando dos ricos para dar aos pobres.

O auxílio do governo dobrou, e depois triplicou sob a administração ao Sr. Curtis", disse Rebecca Morris, porta-voz da Ação contra Fome, importante agência de socorro. "Achamos que era apenas política governamental."

Não foi bem assim. Em vez disso, tamanha generosidade com os que combatiam nas guerras à pobreza, Aids e fome foi uma decisão pessoal do próprio Sr. Curtis viabilizada pela retirada de dinheiro de contas bancárias inativas que haviam ficado esquecidas e não foram reivindicadas durante anos, tendo sido incorporadas no complexo labirinto de dados do Tesouro.

Alguns observadores especulam que o ministro tenha ido bem além disso nos últimos meses, conseguindo fundos extras atacando subsídios destinados a exportadores de armas britânicos. "Eles receberam menos para que os famintos da África e os doentes do oceano Índico pudessem ganhar mais", explicou um aliado ministerial ontem à noite. Um comunicado sugeriu que foi essa medida que levou à sua eventual denúncia.

"Ele certamente sabia os riscos que corria", disse a Sra. Morris ao Guardian. "E, no entanto, se dispôs afazer isso tudo para que os mais famintos e debilitados tivessem maiores chances. Não sei lhe dizer quantas vidas Gavin Curtis deve ter salvado. Alguns descreverão isso como um escândalo, mas acho que foi a ação de um homem verda­deiramente justo."
QUARENTA E QUATRO
DOMINGO, 20H16, CROWN HEIGHTS, BROOKLYN
TC não quis correr o risco de dar um telefonema. Temia que o rabino Mandelbaum ficasse abalado demais ao ouvir uma voz do passado. Também temia que ele ligasse imediatamente para seus pais. Era provável que tivesse ficado atormentado pela culpa durante aqueles longos anos; fizera um acordo com a jovem Tova Chaya e vejam o que acontecera. Havia de culpar-se por encorajar sua rebeldia quando devia tê-la contido. Era o que imaginava.

Portanto, em vez de telefonar, apareceria na porta da casa dele, não lhe deixando nenhuma opção. Conferiu as horas no relógio: com um pouco de sorte, ele já teria voltado da sinagoga a essa altura. Lembra­va-se do endereço e, assim que viu as luzes acesas no interior, mandou o motorista do táxi esperar.

Desculpe, Will. Preciso apenas de um segundo. Olhava para fora pela janela, incapaz de se mexer. Faz quase dez anos. Eu era uma pessoa diferente.

Leve o tempo que precisar.

Will olhou para o lado de fora, as ruas sobrenaturalmente silencio­sas. O carro deles era o único; não se via ninguém andando por ali. O único barulho vinha do rádio, tocando uma música. Will não notou a princípio, mas uma frase da letra o atraiu. Era John Lennon, declaran­do que "Deus é um conceito pelo qual medimos nossa dor". Ouviu com mais atenção; a música aproximava-se do clímax. "Eu não acredito em magia... Não acredito na Bíblia... Não acredito em Jesus... Não acredito nos Beatles. Só acredito em mim, em Yoko e em mim, e essa é a realidade."

Nunca a ouvira antes, mas a música fez sua garganta ficar seca. Era como se a própria Beth estivesse falando com ele, como se ela, afinal, houvesse mandado, às escondidas, uma mensagem para fora de sua cela. O anseio que sentiu pela mulher nesse momento era tão grande que ele teve a impressão de que era feito apenas disso.

Por fim, TC deu o sinal para saltarem do carro. Pagaram ao moto­rista e encaminharam-se para a casa. Will ajeitou o solidéu. Mais uma vez. TC bateu à porta. Levou algum tempo, mas ele ouvia alguma ati­vidade. Um lento arrastar de pés até a porta, e depois um velho curva­do e de barba grisalha. Não poderia ter menos de 80 anos.

Rabino Mandelbaum, sou Tova Chaya Lieberman. Sua aluna. Voltei.



Os olhos falaram primeiro, iluminando-se e umedecendo-se num ins­tante. Ele olhava e olhava, sem dizer uma palavra. Depois balançou deli­cadamente a cabeça e fez um gesto para que entrassem. Seguiu na frente, deixando o braço erguido quando transpôs a porta para a sala de jantar; seu modo de dizer: Entrem ali. Continuou na direção da cozinha.

Will foi imediatamente atingido pelo cheiro dos livros velhos: o aposento estava abarrotado do piso ao teto de volumes encadernados em couro, as bordas douradas que ele vira na sala de interrogatório na noite de sexta-feira. Textos sagrados. A superfície da mesa da sala de jantar estava coberta: forrada primeiro por uma toalha de tecido, depois por outra de plástico, e por último dezenas de livros abertos. Era difícil enxergar alguma coisa; a sala tinha como iluminação apenas uma lâmpada elétrica. Mas mesmo com uma olhada superficial, ele perce­beu — dificilmente uma palavra escrita em inglês.

Não havia pinturas na parede, apenas fotografias. Talvez uma dezena delas, talvez mais, todas exibindo o mesmo tema. O rabino. Morto fazia mais de dois anos, olhava de lado, às vezes sorrindo, às vezes com um braço no alto, mas sempre olhando intensamente. Numa das fotografias, ele aparecia com o rabino Mandelbaum num grupo. As outras pareciam comercialmente produzidas, em molduras vagabundas de madeira falsa, como se fossem pedaços de lenha. Lembravam os suvenires vendidos em pequenas aldeias italianas, que retratavam o santo local.

O rabino Mandelbaum estava de volta, trazendo uma bandeja com um único copo d'água.

Sentem-se, sentem-se — ele insistiu, oferecendo a bandeja a Will.



O rapaz ficou intrigado. Por que ele era o único a receber algo para beber? TC curvou-se e sussurrou:

O Yom Kippur já começou. Esta noite. Não é permitido comida nem bebida.



  • Então por que ele me ofereceu água?

  • Porque é um cara esperto.

Ela se instalara defronte do antigo professor.

E a Sra. Mandelbaum? — perguntou numa voz ao mesmo tem­po hesitante e gentil.

Haya Hindel Rachel, aleyha hosholom.

Sinto muito. HaMakom y'nachen oscha b'soch sh'ar aveilei Tzion v'Yerushalayim. Que o Senhor a reconforte entre todos aqueles que choram por Sion e Jerusalém.



Will só podia ver e ouvir, mas conhecia linguagem corporal o sufi­ciente para saber que TC apresentava condolências.

Rabino Mandelbaum, vim aqui depois de todos esses anos numa questão de vida e morte. Creio que exista a sakono fur die gantseh breeye. Um risco para toda a criação.



Ela fez uma pausa, lembrando-se.

Este é meu amigo William Monroe.



O rabino fez um mínimo movimento com a sobrancelha, um mi­núsculo reflexo que dizia: "Não pense que sou um jovem ingênuo, moça. Entendo como são as coisas mundanas. Sei que um homem cha­mado William Monroe não é judeu, não importa como esteja vestido. E também entendo que uma palavra como 'amigo' tem múltiplos sen­tidos."

A esposa dele foi seqüestrada. É mantida refém aqui em Crown Heights. Will falou com um rabino, creio que deve ser o rabino Freilich. Olhou para Will, que a encarava com surpresa: Por que não me disse que sabia o nome dele? E continuou: Ele não nega que a tenha levado. Mas não explicou o porquê.



No rosto de Mandelbaum não se registrou nenhum choque. Ele apenas balançava a cabeça, incentivando-a a prosseguir.

Temos recebido várias mensagens, transmitidas por celular. Mensagens de texto.



Enunciou a frase como se talvez fosse desconhecida do idoso rabi­no. Mas ele não pareceu perturbar-se com isso.

Não sabemos de quem são as mensagens. Mas realmente pare­cem indicar alguma forma de explicação para os acontecimentos até agora e daqui por diante. Não consigo ter certeza do significado delas. Mas tenho uma idéia. Por isso estou aqui.

Fregt mich a shale. Faça a sua pergunta.

Rabino Mandelbaum, poderia explicar a Will a idéia de tzaddik? Pela primeira vez, o rabino deixou transparecer uma emoção.



Olhou-a interrogativo, como se a perguntar no que ela estava prestes a se meter.

Tova Chaya, sabe muito bem o que é um tzaddik. Isso já apren­demos juntos. Por isso você voltou?

Quero que ele ouça do senhor. Pode dizer a ele?

O rabino encarou-a com um olhar intenso, como se tentasse enten­der seus motivos. Por fim, virou-se para Will e começou hesitante:

Sr. Monroe, um tzaddik é um homem justo. A raiz da palavra é tzedek, que significa justiça. Um tzaddik não é apenas sábio, honrado ou erudito. Para isso temos palavras diferentes. Um tzaddik é um homem de sabedoria especial. Personifica a própria justiça. A palavra "justo" é a mais próxima que vocês têm.



William nunca tinha ouvido uma voz como aquela. O rabino que o interrogara tão energicamente — e que agora ele descobria chamar-se Freilich — falara com uma entonação incomum, um canto cadenciado que aumentava e diminuía. Mas apesar disso continuava sendo um sotaque americano identificável. Esse era outra coisa. Não era alemão, nem do leste europeu exatamente, talvez uma mistura dos dois. Seria o sotaque da Mittel Europa? Ou era, de fato, a voz de um lugar que não mais existia? Nesse som, Will reconhecia as imagens que havia estuda­do em livros de história da Segunda Guerra Mundial: os judeus da Polônia, ou Hungria, ou Rússia, os olhos sombrios projetando-se de fotografias em preto-e-branco, à beira de um terrível destino que ainda desconheciam. Ouvia os lamentosos e aberrantes violinos da klezmer música folclórica judaica — que de vez em quando tocava na rádio de Nova York. Na voz desse único homem, Will Monroe imaginou que ouvia uma civilização que não mais existia.

Forçou-se a voltar ao presente, concentrando-se com determinação no que dizia o rabino.

Nossa tradição fala de dois tipos de tzaddikim, os que são conhe­cidos e os ocultos. Os ocultos são entendidos como os que estão em um plano mais elevado do que aqueles cuja santidade é pública. São jus­tos, mas não buscam fama nem glória. Não têm nada da vaidade que acompanha a vida pública. Mesmo os vizinhos mais próximos não têm a mínima idéia de sua verdadeira natureza. Muitas vezes são pobres. Tova Chaya vai se lembrar das histórias folclóricas que ela lia na infân­cia: os tzaddikim que viviam em segredo, trabalhando com as mãos. Às vezes eram pobres ou faziam tarefas muito humildes. Nos contos folcló­ricos, quase sempre são ferreiros ou sapateiros; talvez um faxineiro. E, no entanto, realizam ações da mais elevada bondade. Ações santas.



  • Mas ninguém sabe quem são? A pergunta simplesmente sal­tou da boca de Will.

  • Exatamente. Na verdade e com isso o rabino se permitiu um sorriso —, o tzaddik não mede esforços para se afastar das pessoas, por assim dizer. Nossos textos estão cheios de histórias paradoxas: o mais santo dos homens encontrado no menos santo dos lugares. Isso é deli­berado: eles querem esconder sua verdadeira natureza atrás de uma máscara, por isso se disfarçam como homens grosseiros, até desagra­dáveis. Tova Chaya talvez se lembre da história do rabino Levi Yitzhok, de Berditchev?

O Ébrio de Deus.

Alegra-me. Você não esqueceu o que estudamos juntos. O Ébrio de Deus é, na verdade, o conto que eu tinha em mente. Nele, o santo rabino Levi Yitzhok descobre que, quando se trata da graça divina, ele perde em brilho para Chaim, o carregador de água, um ignorante que fica shicker, bêbado, desde a manhã até a noite.



TC e o rabino riram juntos.

  • Então alguns dos homens mais justos parecem ser exatamente o contrário?

  • Sim. Considere isso uma espécie de brincadeira divina. Ou pro­va de que o judaísmo é uma filosofia profundamente democrática. Os mais santos não são os que mais sabem ou que têm mais letras após o nome. Nem é esse grupo formado por aqueles que oram energicamen­te, jejuam com mais constância ou observam com mais diligência os mandamentos.

  • Então esse homem, o beberrão, foi bom para seus conterrâneos?

  • Deve ter sido muito bom.

Os três ficaram ali sentados num breve silêncio, interrompido ape­nas pela ruidosa respiração do velho.

Tem um conto. Um dos mais antigos.



Mais uma vez, o esboço de um sorriso brincava em seus lábios. Will de repente percebeu que por trás da barba e do sotaque, havia um ho­mem muito charmoso. Agora velho e curvado, mas na juventude devia ter sido um professor bastante carismático.

O rabino Mandelbaum levantou-se da cadeira, arrastou-se em vol­ta da mesa para chegar à estante logo atrás da cabeça de Will.

Aqui, este é do Talmud Yerushalmi, extraído do tratado que fala dos dias de jejum. Tova Chaya, nós o estudamos juntos?



Will começava a ficar perdido:

Perdão, de onde é este?



TC adiantou-se:

  • É do que se conhece como talmude palestino: o livro de comen­tários rabínicos escritos em Jerusalém.

  • Quando?

O rabino Mandelbaum, já de volta à sua cadeira e folheando as pá­ginas, respondeu sem erguer os olhos.

  • O conto é do século III de nossa era comum. — A era comum. Um eufemismo para "d.C", depois de Jesus Cristo, expressão que ne­nhum judeu crente usaria. — Este talvez seja o mais antigo conto do gênero. — Percorria o texto com os olhos. — Muito bem, então não precisamos de todos os detalhes, mas nessa história, o rabino Abbahu observa que quando um certo homem está presente na congregação, as preces da comunidade por chuva são atendidas. Quando ele não está, nada de chuva. Bem, de qualquer modo, acaba-se por constatar que logo esse homem trabalha, vejam só, num prostíbulo! Perdoe-me, Tova Chaya, por falar dessas coisas.

  • Quer dizer — interrompeu Will — que é um cafetão? E apesar disso ele é um dos justos?

É o que diz o Talmude.

Will sentiu como se um estilhaço de gelo tivesse deslizado por suas costas. Arrepiou-se, seus ombros tremeram. Não conseguia ouvir o que TC ou o rabino diziam. Em sua cabeça só havia espaço para uma única voz. A de Letitia, a mulher que conhecera em Brownsville. Ouvia as palavras dela altas e claras. O homem que mataram ontem à noite talvez tenha pecado todos os dias da vida que Deus lhe deu, mas foi o homem mais justo que já conheci. Ela havia dito isso sobre Hovvard Macrae, que, como o homem daquela congregação do século III, ganhava a vida como cafetão.

As histórias quase parecem deleitar-se com esse tipo de para­doxo dizia o rabino. Homens bons disfarçados como humildes ou até como grandes pecadores.



A cabeça de Will latejava. Pat Baxter, o louco miliciano que, embo­ra envolvido com fanáticos portadores de arma, jamais fora preso e doara um de seus órgãos a um completo estranho. Gavin Curtis, des­prezado como um político corrupto, mas canalizando dinheiro para as pessoas mais pobres do mundo. Samak Sangsuk, executivo tailandês das altas esferas, mas que providenciava discretamente para que os marginalizados encontrassem a dignidade na morte.

Ele mal conseguia acompanhar seus próprios pensamentos. Lem­brou-se do carro curiosamente modesto de Curtis quando fugiu do as­sédio da imprensa. E o que dissera Geneviève Huntley sobre o doador do rim? O único pedido do Sr. Baxter foi o anonimato. Foi somente o que me pediu em troca do que fez. Todos esses homens haviam praticado ações nobres e todos as fizeram em segredo.
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