reservas de energia do planeta Terra. O resultado é a ameaça sobre a vida
no planeta. São discutidos, neste capítulo, temas como desenvolvimento
capitalista, sociedade de risco, separação natureza-cultura, ação humana,
consumismo, desenvolvimento sustentável e consciência ecológica.
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A relação ser humano-natureza
Se você assistir ao filme A guerra do fogo, do diretor Jean-Jacques Annaud,
produzido em 1981, vai perceber o quanto os seres humanos sempre tiveram
de enfrentar riscos, a grande maioria deles de ordem natural: as secas, os
terremotos, os raios, as tempestades, os vulcões, as enchentes. Com o
desenvolvimento das técnicas e tecnologias, muitos desses riscos podem, hoje,
ser previstos e ter seus efeitos reduzidos.
Na sociedade contemporânea, entretanto, predominam riscos de outra ordem -
são aqueles produzidos ou intensificados pela própria humanidade. Isso
significa que esses riscos estão ligados à forma como nosso conhecimento
aplicado se relaciona com aquilo que se passou a denominar natureza. Em
outras palavras, uma grande ameaça contra a vida humana no planeta Terra
resulta da maneira como, na maioria das vezes, empreendemos o
desenvolvimento econômico, social, político, cultural e o modo como nos
organizamos para garantir nossa sobrevivência.
Em sua trajetória de ocupação da Terra, os seres humanos têm transformado a
natureza. Mesmo antes da industrialização e da constituição da sociedade
capitalista, as ações humanas provocaram mudanças ambientais, porém em
ritmo mais lento. A agricultura provavelmente significou a primeira tentativa de
domesticação da natureza. A partir do século XX, a produção e o consumo em
massa característicos do sistema fordista implicaram a padronização e a
produção de mercadorias em larga escala, visando à competitividade. Com
isso, as mudanças no ambiente se aceleraram e se intensificaram, por causa
da exploração intensiva de recursos naturais. Consequentemente, em
frequência e velocidade nunca vistas, algumas espécies da flora e da fauna
foram extintas ou postas em risco, reservas de recursos minerais começaram a
diminuir ou se esgotaram e o solo e o subsolo foram degradados.
LEGENDA: Na tirinha de Bill Watterson, o personagem Calvin acredita na ideia
de controle absoluto sobre a natureza.
FONTE: © 1988 Bill Watterson/Dist. By Atlantic Syndication/Universal Uclick
Nas sociedades que originaram a civilização ocidental, foi se constituindo, aos
poucos, a ideia de que os humanos seriam superiores às demais coisas em
razão de sua capacidade de transformá-las mediante o trabalho. Decorreu
desse processo a premissa de que ser humano e natureza são distintos, como
se não fôssemos parte dela. Desse modo, o ser humano se encontra alienado
como ser natural, isto é, se torna estranho a si mesmo e ao mundo em que
vive, não se reconhecendo nele. A alienação é um fenômeno social de
estranhamento do indivíduo ou grupo, de uma instituição ou de uma sociedade
quanto aos resultados de sua própria atividade, um distanciamento em relação
a si mesmo, ao contexto em que vive e a outros seres humanos.
O resultado da alienação do ser humano em relação à natureza são conflitos
de diversas ordens: desarticulação das práticas de culturas tradicionais,
destruição dos recursos disponíveis no planeta, políticas que promovem a
desagregação de comunidades, interferências nos processos de transmissão
de conhecimento, desarranjos sociais. Esses e outros conflitos e riscos têm
levado muitos estudiosos e militantes a duvidar dos benefícios dos avanços da
ciência e daquilo que a partir do século XIX foi denominado "progresso".
FONTE: Filipe Rocha/Arquivo da editora
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Progresso ou dominação?
Em suas reflexões sobre o contexto atual, os sociólogos Anthony Giddens
(1938-) e Boaventura de Sousa Santos (1940-) mostram que as promessas de
emancipação social por meio do progresso anunciadas pela modernidade não
se concretizaram. A emancipação social é um conceito-chave na
modernidade ocidental, um ideal de que o progresso histórico das técnicas e
instituições sociais levaria o ser humano a superar a rudeza do trabalho e da
dominação social por ser dotado de vontade e liberdade.
Ao contrário do esperado processo liberador das limitações humanas e sociais,
a modernização acelerada trouxe, com frequência, perigos cada vez mais reais
de catástrofes ecológicas, guerras nucleares, falta de água e outros riscos à
vida. Os filósofos e sociólogos alemães Max Horkheimer (1895-1973) e
Theodor Adorno (1903-1969), ligados à Teoria Crítica, apontam que nos
séculos XIX e XX o conhecimento muitas vezes não serviu para a emancipação
do ser humano (ou seja, em forma de razão crítica). Ao contrário: foi tomado
pela lógica da razão instrumental, também denominada técnico-científica, que
emprega a técnica e a tecnologia como instrumentos para reforçar a
dominação. No contexto da sociedade moderna, isso significa que a natureza
passou a ser vista, por parte da humanidade, como fonte de recursos para
satisfazer e permitir a expansão da produção capitalista.
Um dos custos da cisão entre seres humanos e natureza é a ameaça à
existência da vida humana.
Essa separação ideologicamente construída entre ser humano e natureza se
consolidou principalmente nos dois últimos séculos. Foi com esse pensamento
que os países imperialistas europeus, sob o pretexto de "civilizar" o mundo,
submeteram as populações das Américas, da África e da Ásia a uma lógica de
acumulação (ou crescimento) do capital econômico, ampliando o capitalismo
industrial.
LEGENDA: Trabalhadores africanos, asiáticos e europeus em mina de ouro na
África do Sul, em fotografia produzida entre o final do século XIX e o início do
XX. O imperialismo europeu empregou populações e recursos de outros
continentes na expansão do capital econômico.
FONTE: Library of Congress Prints and Photographs Division, Washington,
D.C./Creative Commons
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No entanto, formas de exploração intensiva de recursos naturais - e também
humanos - remontam a um período anterior, o da expansão mercantilista
europeia. Estima-se, por exemplo, que milhares de indígenas foram mortos
durante a ocupação do atual território brasileiro pelos portugueses e seus
descendentes. Isso ocorreu tanto em conflitos pela posse das terras e pela
exploração dos recursos nelas disponíveis quanto em decorrência da
disseminação de doenças contra as quais os indígenas não tinham defesas
imunológicas. Sociedades inteiras foram desestruturadas com a ruptura de
relações de troca e de parentesco e também da continuidade de costumes e
manifestações culturais; muitas outras foram dizimadas. Colaborou para isso a
concepção das missões religiosas, que viam o indígena como um ser primitivo
e herege que deveria aprender a cultura e os costumes dos europeus - suas
crenças, seu modo de comer, se vestir e se relacionar.
LEGENDA: Na cabana de Pindobuçu (1920), óleo sobre tela de Benedito
Calixto, representa o contato, no século XVI, entre padres portugueses e
indígenas do povo Tamoio, no litoral do atual estado de São Paulo. Se, por um
lado, os jesuítas buscavam proteger a integridade física dos indígenas de
ataques dos colonizadores, por outro, suas atividades de catequização levaram
à transformação radical ou ao desaparecimento de costumes e manifestações
tradicionais desses povos.
FONTE: Reprodução/Museu Paulista da USP, São Paulo, SP.
Mesmo nos séculos XIX e XX, após a independência e a consolidação dos
limites do território do Brasil, as populações indígenas continuaram sendo
atingidas de várias maneiras por políticas de Estado e pela ação de não
indígenas. Diversas ondas de migração para o interior do país foram
impulsionadas tanto pela exploração de recursos vegetais (como o látex) e
minerais (como metais preciosos) quanto pela busca de terras para agricultura
e pecuária, levando a novos conflitos. Expedições realizadas pela Amazônia
brasileira no último século mostraram também que os indígenas que haviam
incorporado costumes e crenças trazidos da Europa - por muito tempo
denominados "aculturados" - eram explorados e viviam na miséria, situação
corrente ainda hoje. Somente no início do século XX foram criados os primeiros
serviços de proteção aos indígenas (veja boxe na página seguinte). A
Fundação Nacional do Índio (Funai), criada em 1967, é hoje o órgão
governamental responsável pelas políticas de reconhecimento e demarcação
de terras indígenas e de proteção a comunidades indígenas.
Entre as consequências da dizimação de populações, podemos citar o
desaparecimento de muitas línguas. Segundo a Unesco, em 1900, havia no
mundo cerca de 10 mil línguas; hoje sobrevivem apenas cerca de 6,7 mil. Com
isso, perde-se também informação cultural e científica, presente nos saberes
tradicionais dessas comunidades - muitas das quais, ao longo dos séculos,
asseguraram o equilíbrio ambiental por meio do manejo adequado dos
recursos.
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