Verso e reverso
I Parte
A música sem partitura
Herculano Alencar
1-A música e o soneto
A música, poeta, é endorfina!
Um misto de torpor e estesia,
que embala sonhos bons na melodia,
ao tempo em que instiga e que fascina.
A música é a voz da poesia
no recital dos sons da natureza!
Um misto de emoção e de beleza
que à arte, ao talento, propicia.
Ai quem me dera a luz desse talento!
Quiçá saber tocar um instrumento,
assobiar ao som de um violão...
pra solfejar os versos de um soneto,
de sorte que no último terceto
a rima faça às vezes da canção.
2-Bolero de Ravel
A hora da verdade se aproxima!
Já se ouvem ruflares dos tambores!
Sua atenção, senhoras e senhores:
o verso encontrou-se com a rima!
Ravel pôs a marchar a obra prima,
por onde quer que exista um peregrino
a carregar no ombro um violino,
qual uma espada pronta pra esgrima.
Quem disse que a verdade não tem hora,
morreu sem ver as luzes da aurora
anunciar o sol que vem ao céu.
Morreu sem perceber a poesia
marchar por sob a luz da luz do dia
à sombra do bolero de Ravel.
3-Primavera de Vivaldi
A flor que ora afoga a partitura
no rio de perfume que lhe sobra,
assina a autoria desta obra,
com um rabisco posto na pintura.
A poesia envolve, qual moldura,
o céu que anuncia a primavera,
enquanto o poeta, em vão, espera
apor ao quadro sua assinatura.
A música viaja e eu, debalde,
procuro, sob o rastro de Vivaldi,
um verso que fugiu do pensamento.
E enquanto a primavera se anuncia,
meu coração, contrito, silencia
e ouve a eternidade do momento.
4-Nona de Beethoven
Enfim, pôde-se ouvir a voz humana
a modular, no tom da sinfonia,
parte de uma ode à alegria,
qual lírica de amor camoniana.
E assim o mundo inteiro se apaixona
e clama, ao fulgor da liberdade,
um novo hino à humanidade
que houve ser cantado após a Nona.
A nona sinfonia de Beethoven
penetra os ouvidos que a ouvem
(enquanto até a alma se inebria)
e segue, a navegar pelos neurônios,
em busca de um remanso de hormônios
que possa ancorar a poesia.
5-Parodiando a criação aos pés de Beethoven.
O mundo dá sinais de nascimento!
O choro da manhã já anuncia,
que o átomo fundiu-se à poesia
e a vida deu à luz ao firmamento.
Há uma grande roda em movimento
em torno de um poema em expansão.
E o verso da costela de Adão,
espalha a poesia pelo vento.
Cabelos longos, curvas na cintura!...
O mundo anuncia a criatura
que há de embalar o recém-nato.
Enquanto isso, em missão secreta,
o átomo instiga o poeta,
que tira Adão e Eva do retrato.
6-Vozes da primavera
Fosse uma flor de um chão primaveril,
ainda que vulgar e sem perfume,
quiçá um beija-flor infante, implume...
à espera de um botão que não abriu.
Fosse o piscar de luz de um vagalume
traído pela luz de um sol de abril,
quiçá uma paixão que descobriu
o cheiro inebriante do ciúme.
Fosse uma nota a mais na melodia,
um verso a debutar na poesia
bem antes que o soneto chegue ao fim.
Fosse Bocage à sombra de Camões,
teria achado tantos corações,
que um deles serviria para mim.
7-Concerto no.1 op.23-Tchaikovsky
Flutuam os acordes como a pluma,
que o vento tange além do infinito!
Meu coração, debalde, afoga o grito,
enquanto as bulhas fogem, uma a uma.
A música viaja pela a bruma,
que embaça a luz solene da ribalta.
E tudo o que já tenho e o que me falta
esvai-se feito bolhas na espuma.
O som acaricia meu ouvido,
e quando a voz me falta, não duvido
há de faltar-me, em breve, a visão.
Então peço perdão à poesia
e quedo-me, refém da estesia,
até reencontrar meu coração.
8-As flores de Tchaikovsky
Quem sabe ouvir as flores, acredito
saiba guardar de cor cada perfume
e distinguir, à luz de um vaga-lume,
o belo que se esconde no bonito.
Como o profeta disse, está escrito
nas leis que nos impinge a natureza:
—as flores têm a aura da beleza ,
que veste do vulgar ao erudito.
Quem já ouviu as flores que me diga!
Assim, quem sabe eu também consiga
ouvir a rosa presa na lapela.
E antes que a valsa chegue ao fim,
eu possa segredar algo de mim,
que lhe faça sentir inda mais bela.
9-Sinfonia nº 40 de Mozart
E fez-se a luz ao som do violino,
e fez-se amor às teclas do piano,
e fez-se a vida à luz do ser humano,
e fez-se o homem um sopro do divino.
E fez-se o som à luz do violino,
e fez-se o homem muito mais humano,
e fez-se a vida às teclas do piano,
e fez-se, do piano, um som divino.
E fez-se, do divino, a sinfonia,
e fez-se, do humano, a poesia,
e, da música, fez-se o soneto.
E fez-se amor às teclas do piano,
e fez-se do soneto um ser humano,
e, do humano, um verso imperfeito.
10-Valsinha de Chico Buarque de Holanda
Seus olhos, embotados de ternura,
saíram pela rua atrás de mim,
em cada bar, em cada botequim...
e até onde a moral pede censura.
A solidão tem lá sua loucura,
mas é muito mais sóbria que a paixão.
E eu que era paixão e solidão
andava louco e só na noite escura.
Mas quando a sua mão tocou a minha,
meu coração dançou pela valsinha
de Chico e de Vinícius de Moraes.
Então eu me entreguei ao seu abraço
e a noite, quase morta de cansaço,
enfim pôde dormir um pouco mais.
11-Geni, a meretriz...
Vi cuspir dos fuzis de um Zepelim,
pelos céus de um solo americano,
meteoros fecais de ser humano,
como chuvas de balas de festim.
Vi um padre, um bispo e um decano,
rogativos, a pedir ao Criador
para ungir o pecado com amor
e cerzir o sagrado ao profano.
As donzelas, rasgando seus preceitos,
bendisseram Geni, a meretriz.
As madamas baixaram o nariz
e cuspiram orgulho sobre o peito.
O medo anistiou o preconceito
pois, Geni, a putana infeliz...
conseguiu emudecer todos os fuzis,
ao abrir o pudendo sob o leito.
Foi Geni, uma poça de defeitos,
que limpou toda a bosta do país.
12-Ode para Noel Rosa
Estava eu e a folha de papel,
qual fosse casal de namorados.
No dedo, um grafite apontado,
um fósforo apagado, um anel...
Na radiola um disco de aluguel
tocava o seu samba mais bonito.
Cheguei até ouvir os três apitos
e o grito do gerente do motel.
Ouvi também o último desejo
por sobre o silêncio de um minuto.
Meu coração, de pronto, botou luto
por todas as juras e por todos beijos...
Me debrucei na folha de papel
e fiz este poema pra Noel.
13-Canção de ninar
Insone, gasto as horas sobre a cama
a espiar a lua da janela!
A noite dá realce à luz da vela,
que a brisa da paixão atiça a chama.
Meus olhos (ora escravos das pestanas)
teimam em dar visão ao sofrimento.
O sono me escraviza o pensamento
e torna a vigília desumana.
Acordes de fadiga e depressão
ensaiam o estribilho da canção,
que um dia eu sonhei houvesse feito.
Hoje tenho na noite a cicerone
do sonho que me deixa, à noite, insone,
enquanto a dor solfeja no meu peito.
14-Frevo-Poesia
Qual um frevo de rua, passo a passo,
a saudade (distinta bailarina)
põe um pé sobre a terra nordestina,
quando outro levita no espaço.
Ferve a "mente-poeta" essa usina
que forja energia do cansaço
e o amor embutido no abraço,
que o passista enlaça a dançarina.
Qual um frevo canção do Vassourinhas,
os meus versos empunham as sombrinhas
que rodaram meus sonhos algum dia.
Ferve a "alma-poeta" essa arte,
que desfaz, na saudade, o estandarte,
quando o frevo sucumbe à poesia.
15-Frevo de rua
Meu coração que dança, cá no peito,
na sístole-diástole do passo,
sem nunca dar amostra de cansaço,
enfim pode entender do que foi feito.
Se cada coração tem o seu jeito
de reagir à peça musical,
o meu, atualmente, dá sinal
de que não aprendeu dançar direito.
Mas, mesmo assim, ainda me atrevo
a afinar as bulhas com o frevo
até o despertar da isquemia.
E quando, finalmente, a madrugada
puser-me a vomitar pela calçada,
a dor há de render-se à sinfonia.
16-A dor do tango
O tango, esse punhal de fio agudo,
que espeta o coração sem piedade,
que sangra na mentira e na verdade,
sabe, da minha vida, quase tudo.
Fala por mim (enquanto vivo mudo)
e mente, e inventa, e arrebata,
e canta, e encanta, e maltrata
com suas mãos sangrentas, de veludo.
O tango, essa dor intermitente,
que dança, entre a alma e a mente,
nos braços traiçoeiros do ciúme...
ouve por mim (enquanto vivo surdo)
sussurros sensuais e, sobretudo,
os versos da paixão, que a dor resume.
17-Aos pés do Tango
Meu coração arranha o violino
e sangra melodias pelo chão.
O tango apaga as luzes do salão
e acende o abajur do mezanino.
De lá se ouve voz da solidão
soar pelo silêncio no recinto;
um copo a suplicar por absinto
e um pecado em busca de perdão.
Há um bandaneon inda com sono
e um toco de cigarro ao abandono
a fumaçar à beira do cinzeiro.
E eu, este poeta sem presente,
me abraço ao passado inutilmente
à espera de um futuro alvissareiro.
18-Cinegrafia do ciúme
Um tango na vitrola, a noite fria,
um vulto de mulher sobe a escada.
À mesa, uma bebida derramada
e um bêbado com fácies de orgia.
No lenço de papel a poesia,
um vulto de mulher sobre a sacada..
À mesa, uma arma carregada
e o ódio tem a mão por companhia.
O cabaré parece não ver nada.
O tango tange a noite esfumaçada
por entre os pigarros e suspiros.
O sangue tinge o chão da madrugada...
um bêbado vomita na calçada
e o tango se confunde ao som dos tiros.
19-Assum Preto
Cego dos olhos olha (com alma)
o mundo a rodar, feito peão
e sente acarinhar o coração
a mão que, generosa, o acalma.
A dor, incontinente, bate palma
pro verso que seduz o sofrimento
e voa, pelas as asas do lamento,
por onde já não voa uma vivalma.
E lá se vai, com ela, o assum Preto,
a tropeçar nos versos de um soneto,
por sob "a mata em flor no sol de abril"...
A mim resta chorar em poesia
o canto que tristonho ele assobia,
qual um mandacaru que não floriu.
20-Cantiga para a Musa
Dorme, ó bela musa, embalada
por cânticos de amor e poesia,
que, no teu sonho, o sonho anuncia
um sonho que sonhaste acordada.
Dorme, no bocejar da madrugada,
à espera do cantar da cotovia,
enquanto a noite, a seduzir o dia,
faz do poeta menos do que nada.
Dorme, que esse poeta enamorado
há de ficar em tua companhia,
a remoer de onirodinia,
até teu sonho ser realizado.
E assim tu fingirás não ter sonhado
o sonho que um poeta fingiria.
21-Canto da quimera
Ouvi teu canto, lua de lirismo,
nos recitais da abóbada celeste!
Ouvi estrelas lúdicas, ciprestes...
contarem a visão de um cataclismo.
A tua voz se impondo à voz do sismo,
que sacudia a terra e o céu,
solene, qual bolero de Ravel,
solava mil acordes entre abismos.
Ouvi teu canto, canto de elegia,
como louvor à estrela que caia
pelo vazio breu da escuridão...
Até que o céu, sepulcro anil da lua,
fez minha voz pensar que fosse tua:
a estrela que jamais quedou ao chão.
22-Soneto chorado por Pixinguinha
Um disco de vinil beija a vitrola
enquanto a sua mão procura a minha
e a noite faz chorar, por Pixiguinha,
os dedos de Paulinho da Viola.
A poesia beija, enquanto evola
um verso desgarrado do soneto
e minha mão gorjeia por seu peito,
qual sabiá fugido da gaiola.
De Pixiguinha, um sopro de carinho
transmuda-se no Sax, qual chorinho,
que o som da natureza silencia.
E nesse instante, prenhe de ternura,
o cavaquinho beija a partitura
e a música abraça a poesia.
23-Eu e o violão ao som de carrilhões.
No meu primeiro acorde, o violão
não quis obedecer ao meu comando.
Inda me lembro onde, como e quando,
o pólex tocou-lhe no bordão.
Enquanto eu dedilhava, a outra mão
fazia ainda o seu primeiro calo
e o violão, qual sino sem badalo,
ouviu calado o som de um carrilhão.
No meu segundo acorde e, desde então,
eu vivo a ensaiar uma canção
que teima e desafina no meu peito.
Se músico não fui (faltou talento)
eu hoje simplesmente me contento
em dedilhar os versos de um soneto.
24-La Bohème
Enquanto minha alma evapora,
meu coração explode pela boca,
a música vagueia feito louca
e eu hei de chorar a qualquer hora.
A poesia é parte da demora,
como a paixão é parte da espera.
E se já não sou metade do que era,
é que algo de mim já foi embora.
E cai o pranto ao som de La Bohème,
e dentro em mim alguma coisa geme,
mas eu não sei o quê e de onde vem.
Só sei que é tão forte, tão intensa...
que até provavelmente me convença
que Deus há de estar aqui também.
25-Lembranças de Moscou
Bateu-me uma saudade neste instante,
(nem sei se é saudade realmente)
como se abrisse um livro e, de repente,
o mundo desabasse da estante.
Uma espécie de paz aconchegante
a flautear nos idos da memória,
qual uma sombra vinda da história,
trazida de um passado tão distante.
Saudade, sol maior desafinado
perdido nos acordes do passado,
quando o amor ainda era menino.
Qual uma tecla a mais do acordeão,
que espera a carícia de uma mão
e um beijo viril de um violino.
26-Robert Schumann
Meu coração padece o seu destino
de repetir em cada batimento
(qual uma fresta aberta pelo vento)
as dores que ganhei inda menino.
Meu coração é como o violino
que cala no final da sinfonia,
quando a última palma silencia
ao encurvar sutil do bailarino.
Pudesse ó, meu Deus! Se eu pudesse
sentir e entender o que há na prece
que reza cada nota musical.
Quiçá, ao encerrar este poema,
livrasse minhas dores das algemas
para aplaudirem o fim do recital.
27-Fado-solidão
Na solidão do fado eu me consumo
e arrasto a tristeza ao meu lado.
Meu coração procura um aliado,
enquanto minha alma perde o rumo.
A luz da lua acende a luz do fado
com medo que a tristeza vá embora,
enquanto a dor, no peito, embolora
por sob as finas teias do passado.
O fado dá abrigo ao sofrimento,
enquanto este poeta, ao relento,
abraça-se a ninguém na solidão.
E quando enfim a lágrima escoa,
no peito, a paixão desabotoa
e a poesia sangra sobre o chão.
28-Ne me quitte pas
Meu coração espira o meu pesar
e faz da dor um preito à solidão,
pois que a dor inspira o coração
e a solidão respira o mesmo ar.
E nesta condição elementar
(em que a dor se torna inspiração)
a poesia encontra a multidão,
enquanto a solidão busca seu par.
Ontem deixei um verso sobre a mesa,
a descansar por sob a vela acesa
e fui dormir sozinho, ao abandono...
Hoje, no degustar da sobremesa,
eu pude finalmente ter clareza
de que a solidão roubou-me o sono.
29-Gorjeio no Tom.
Hoje meu sono veio cá, comigo!
Nem o sol conseguiu incomodá-lo!
Não houve água turva no gargalo
nem tu gargarejaste ao meu ouvido.
Catou o jardineiro, comovido,
as folhas despedidas do verão
e deu às flores um sorriso em vão
e um beijo de outono amanhecido.
Ao longe ouvi dobrar um passarinho
a dar o tom das notas, com carinho,
em um arranjo "Tomjobiniano".
Então, tirei as pedras do caminho
e recolhi as flores, e sozinho
adormeci sentado ao piano.
30-Noturno de Chopin
Quisera traduzir a emoção
que ora toma conta do meu peito!
Quisera achar um verso tão perfeito,
que mal coubesse aqui no coração!
Quisera adormecer na ilusão
de que Chopin viveu este soneto
e que achou um verso tão perfeito
que pôde traduzir essa emoção.
Um verso que encerre o sentimento
que, a guisa e à deriva do momento,
navegue em minha mente sem destino.
Um verso tão bonito, tão singelo...
quanto o aplauso do violoncelo
ao solo do piano e o violino.
31-Poeta noturno
—Que fazes tu da noite, ó poeta,
quando não há luar nem serenata?
Que fazes tu do breu, que sobre a mata
acolhe a escuridão que se completa?
—Que fazes tu da noite sem estrela,
quando sequer a luz de um vaga-lume
oscila pelo céu, quando o negrume
cobre de luto a última estrela?
—Eu finjo que enxergo o que não vejo,
acendo a lanterna do desejo
e assim posso enxergar na escuridão.
—Então faço da noite o quem bem quero:
escuto um tango, canto um bolero...
e danço a valsa triste da paixão.
32-O voo do Condor
A poesia (ave em extinção)
que inda voa só por teimosia,
olha do alto outra poesia,
que teima florescer aqui no chão.
E no seu voo pela imensidão
do céu que emoldura a paisagem,
esconde um verso triste na bagagem
pra demonstrar que não sofreu em vão.
A poesia (flor inda botão),
que desabrocha só por teimosia,
olha pro alto a outra poesia,
como se fosse chuva de verão.
E a vida se completa em uma mão,
enquanto a outra mão se esvazia.
33-Ocaso do amor em si bemol
Foi-se a última nota musical
rangendo em dissonante sofrimento...
Um Si bemol, acordes de um lamento,
a sostenir um grande recital.
A partitura enverga-se ao final!
Resta a última clave em solidão
no lúgubre sepulcro da canção,
tal qual fora um doente terminal.
Foi-se a última dor de uma paixão:
um Si bemol, em busca do destino,
deixando amargo rastro no refrão,
qual mugidos de dor do violino.
Restam alguns pedaços de ilusão
e o pranto do amor se consumindo.
34-Se eu fosse Chopin
Soubesse acarinhar um violino
e dedilhar meus sonhos no piano,
quiçá eu viveria mais um ano
sem precisar deixar de ser menino.
Pudesse antever o meu destino
inda menino, quando era humano,
quiçá eu viveria no piano
e morreria ao som do violino.
Fosse Chopin invés de ser poeta
quiçá encontraria a rima certa
pra musicar os versos do poema.
E assim escreveria a partitura
pra entoar o verso na cesura
e modular o timbre do fonema.
35-Sentimental
Hoje meu coração está em festa,
como se fosse um bardo, sem juízo,
a esbanjar paixão, amor e riso
e tudo mais que vida nos empresta.
Meu coração tem sonhos de poeta
e sonhos de poeta não têm fim,
são como o revoar de um querubim
atrás de sua anjinha predileta.
Hoje meu coração ensaia um passo
e dança, no calor do teu abraço,
a valsa que o fez sentimental.
Meu coração tem sonhos de menino
e sonhos de menino são um hino
em que o amor é o verso principal.
36-A serenata de Schubert
Quando a janela abriu, a poesia
entrou sem que pedisse permissão.
E o poeta, ao som do violão,
há muito já tocava a melodia.
A musa acertou o coração
pelas estrelas vistas da janela
e frágil, como sombra à luz da vela,
tremeu por sob as ondas da paixão.
A brisa, a varrer a madrugada,
fazia remoinho na calçada,
como quisesse ouvir a serenata.
E o poeta, prenhe de estesia,
pinta o alvorecer de mais um dia
na linha, do horizonte, escarlata.
37-Intertexto com Tom
Um barzinho, um pinho, uma canção...
Vem cá Luiza, minha deusa nua,
olha que só dá Rosa nessa rua
de Betinha, Paulinho... de João.
Vê a sombra andando pelo chão?
Alguém que foi embora e não voltou
roeu o coração de quem sonhou
e se desfez mais uma ilusão.
Olha o regato, um pedaço de pão...
águas baldias fechando o verão...
Parece que o bar já vai fechar!
Eu e você, nos dois... Escureceu!
Um passarinho quis pousar, não deu!
Aperte os lábios, nós vamos beijar...
38-Visão à meia Luz
Mais um trago...a dor cai por sobre a mesa...
o tango faz-se ouvir... o olhar distante...
o coração soluça... o amante
inflama a chama há muito já acesa.
A lágrima oscila e, nesse instante,
a música abraça-se à tristeza,
enquanto o tango (sua realeza)
enxota a dor pra muito mais distante.
À meia Luz um fio de fumaça
(do trago de um cigarro) ronda a taça
e sai, em direção aos castiçais...
Enquanto, no vazio da cadeira,
a solidão, discreta companheira,
vela comigo o sonho dos casais.
39-Elepê (LP)
Hoje eu ouvi um disco de vinil
na velha radiola empoleirada.
Meu coração bateu o quase nada,
que bate um coração quase senil.
O velho "Chico" sempre tão servil
ao toque da agulha calejada,
quase sorriu! Por pouco, quase nada,
meu triste coração também sorriu.
Assim é saudade, meu amigo:
um disco, um coração quase parado;
um tom... algo perdido no passado;
um sonho a caducar, de tão antigo.
Hoje eu ouvi um disco, um velho disco
gravado no estúdio da memória.
A música declama, na história,
a bela poesia de Francisco .
40-Gorjeio no Tom.
Hoje meu sono veio cá, comigo!
Nem o sol conseguiu incomodá-lo!
Não houve água turva no gargalo,
nem tu gargarejaste ao meu ouvido.
Catou o jardineiro, comovido,
as folhas desprendidas do verão
e deu às flores seu sorriso em vão
e um beijo de outono amanhecido.
Ao longe ouvi dobrar um passarinho
a dar o tom das notas, com carinho,
em um arranjo "Tomjobiniano".
Então, tirei as pedras do caminho
e recolhi as flores e, sozinho,
adormeci sentado ao piano.
41-Eu, o Fado e a noite
Olhos fechados (súditos do Fado)
teimam em esconder o sofrimento...
enquanto a boca chora, num lamento,
a voz de um coração desesperado.
A jovem musa canta e, eu, atento,
beijo o rubor do vinho com ternura
e me embriago pela noite escura,
enquanto o Fado dói no pensamento.
A voz chorosa (como a melodia)
afaga meus ouvidos com carinho...
enquanto me entrego para o vinho,
até que a noite vire poesia.
O fado segue... a taça se vazia...
e eu me despedaço no caminho!
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