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porquanto grande parte das classes de sistemas dedutivos não tem consistência lógica interna. Os sistemas onde a aritmética pode ser desenvolvida são essencialmente incompletos, visto que há enunciados aritméticos verdadeiros que não podem derivar do conjunto.16 Por isso, o projeto filosófico do positivismojurídico, que busca dotar a ciência do direito de uma linguagem precisa e auto-suficiente, é equivocado, tanto quanto equivocada também é a idéia de que o cientista do direito opera dentro de um sistema cerrado de normas, no qual inexistem inconsistências ou lacunas.17
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(16) A respeito da influência de David Hilbert sobre o Círculo de Viena e sobre o pensamento de Wittgenstein, v. AlIan Janik e Stephen Toulmin, A Viena de Wittgenstein, Rio de Janeiro, Campus, 1 99 1, p.1 1 5, 209, 2 1 0, 2 1 7, 2 1 8 e 248. A propósito da refutação de Gödel à formalização absoluta da matemática, v. Ernest Nagel e James R. Newman, Prova de Gödel, 2. ed., São Paulo, Perspectiva, 1 998 (coleção Debates, ed. 75), p. 1 3-38 e 65-85; mais especificamente sobre o teorema da incompletude, v. p. 56-63. A propósito de um paralelo entre o Teorema de Gödel e a questão da unidade e coerência do ordenamentojuridico, v. Tercio Sampaio Ferraz Jr., Introdução ao Estudo do Direito, São Paulo, Atlas, 1 988, p. 1 99, Juan-Ramon Capella, E1 derecho como Ienguaje, Barcelona, Ariel, 1 986 (Colección Zetein), p. 276-279 e 288-290, e Luiz Sergio Fernandes de Souza, O papel da ideologia no preenchimento das lacunas no direito, 2 ed., São Paulo, RT, 2005, p. 241 e 242.
(17) Kelsen, em diversas passagens da Teoria Pura do Direito, acaba revelando estas fisuras, não sem antes dizer que se trata de um problema de ordem prática, que não cabe ao estudioso considerar. Assim, a existência de lacunas no direito, por exemplo, justifica-se de um ponto de vista operacional, permitindo que o juiz possa contornar uma situação que entenda injusta. Trata-se de uma ficção, que cumpre um objetivo ideológico (Hans Kelsen, op. cit., p. 338-343 e 472). Aqui se insere a clássica distinção entre lacuna técnica e lacuna axiológica. Para uma anáiise mais detalhada do tema, v. Amedeo Conte, Saggio sulla completezza degli ordinamentigiuridici, Torino Giappichelli, 1 962, p. 47-60; Bobbio, Teoria dellordinamento giuridico, Turim, Giappichelli, 1960, p. 158; Karl Larenz, op. cit., p. 363-373; Karl Engisch, op. cit, p. 275-361. Outrossim, Kelsen entende que ojuiz, ao proferir uma sentença, efetua uma escolha entre as possíveis significações da norma, como também apontadas pela ciência do direito, de sorte que não se há de falar em interpretação correta. Entretanto, editada a norma, a interpretação passa
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Mas se as categorias jurídicas não são tautológicas nem tam- pouco empíricas, estar-se-ia então diante do indizível, do inefável. Com efeito, se é certo que à ciência do direito mais não é dado senão apontar a ambigüidade e a vagueza dos conceitos jurídicos, a exemplo do abuso do direito, tem-se de concluir que o direito, assim como a ética, a estética, a poesia e a teologia, é utilizado não como descrição de relações necessárias ou mesmo descrição de fa- tos sensíveis, mas apenas para exprimir certos sentimentos e evocar reações, através de juízos aos quais não faz sentido atribuir validade objetiva.18 Ou seja, se os enunciados da ciência do direito mais
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a vincular, porque autêntica. À ciência do direito cabe apenas apontar esta pluralidade, porquanto não lhe é possível, quer do ponto de vista lógico quer do ponto de vista científico objetivo, estabelecer um significado unívoco. A tese da univocidade é uma ficção, que apresenta como verdade científica aquilo que é apenas um juízo de valor político. Neste ponto, Kelsen critica ajurisprudência dos conceitos, que no afã de con- solidar o ideal da segurançajurídica, desconsidera a plurissignificação da maioria das normas jurídicas (Hans Kelsen, op. cit., p. 469-473). Importante registrar que a unidade e coerência do ordenamento jurídico, na perspectiva de Kelsen, não resulta do fato de tratar-se de um sistema lógico. Neste ponto, Kelsen afasta-se de Ulrich Klug, defendendo a tese de que a coesão do direito sejustifica de um ponto de vista hierárquico. Uma coisa são as antinomias, que podem ser desfeitas com recursos que o próprio sistema oferece, e outra coisa a contradição, que ocorre quando há dois enunciados, com o mesmo sujeito e o mesmo objeto, um deles verdadeiro e outro falso (Kelsen, Teoria Pura do Direito, 4. ed., Coimbra, Arménio Amado, 1979, p. 277 a 289 e Normas jurídicas e análise lógica — correspondência trocada entre Hans Kelsen e Ulrich Klug, Rio de Janeiro, Forense, 1984, p. 68). A propósito da distinção entre conflitos normativos e contradição, em Kelsen, v. Juan- Ramon Capella, op. cit., p. 64 a 67.
(18) A. J. Ayer, Linguagem, Verdade e Lógica, Lisboa, Presença, 1991, p. 99. Schlick entende que a ética é uma ciência fática. Não pelo só fato de ser uma ciência normativa deixa de ter relação com o real. Para ele, as valorações são fatos que existem na realidade da consciência humana (Moritz Schlick, Quepretende la Etica? in A. J. Ayer, organizador, El Positivismo Lógico, México, Fondo de Cultura Económica, 1993, p. 262 e 263). Carnap sustenta que os enunciados éticos não são juízos de fato, mas imperativos disfarçados. A. J. Ayer (lntroducción del compilador in
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não podem senão descrever como as normas regulam, de maneira não fatual, a realidade concreta, claro está, do ponto de vista do positivismo lógico, que são destituídos de significado, tanto quanto a filosofia do direito. Assim, a verdade — seja ela epistemológica, lógica ou semântica — não é atributo do direito.
Por certo, o que os positivistas do Círculo de Viena, à diferença de Wittgenstein, não foram capazes de compreender é que as questões da ética, dos valores, enfim, do significado da vida, situando-se fora dos limites da linguagem descritiva— sem possibilidade, portanto, de demonstração — mostram situações que, a despeito de transcendentais, haveriam de ser de alguma forma consideradas. O que importa na vida humana, no dizer de Wittgenstein, é precisamente aquilo sobre o que se deve silenciar. Daí o lado místico do Tractatus, que o positivismo lógico fingiu ignorar.19 No mundo dos fatos, nada existe
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El Positivismo Lógico, México, Fondo de Cultura Económica, 1 993, p. 27 e 28) e William P. Alston (Filosofía del lenguaje, Madrid, Alianza Universidad, 1974, p. 1 1 1 e ss.) sustentam que essa teoria imperativa da ética é uma versão da chamada teoria emotiva, a qual, nos trabalhos de filósofos ingleses e americanos, viu-se muitas vezes associada ao positivismo lógico.
(19) Neste sentido, as interpretações de Janik e Toulmin, op. cit, p. 232 e 249- 259; Pilar López de Santa María Delgado, op. cit., p. 27, 28 e 95, e Paul Strathern, op. cit., p. 44 e 45. Merece registro a tese de Carnap no senti- do de que o metafísico é um artista frustrado, com pretensões de trans- ferir para o campo teorético da ciência enunciados que mais não são do que atitudes emotivas diante da vida. Observa que um poeta não trata de invalidar o poema do outro, porque sabe que está no terreno da arte e não da teoria. Curiosamente, os metafísicos envolvern-se em disputas acerca de coisas das quais nada se pode afirmar. (Carnap, L superación de la metaflsica mediante el análisis lógico del lenguaje, in A. J. Ayer — organizador, Elpositivismo lógico, México, Fondo de Cultura Económica, 1 993, p. 84-87). Carnap não se apercebeu, entretanto, do misticismo e da poesia existentes no Tractatus, do que são mostra os aforismos (Janik eToulmin, op. Cit., p. 1 3, 1 94, 1 95, 23 1 , 232, e PilarLópezde SantaMaría Delgado, op. cit., p. 78 e 84-95). Não se deu conta de que o aforismo nunca postula a verdade. Talvez caibam também aqui as observações que Carnap faz em relação a Zarathustra: Nietzsche, nesta obra, não buscou a forma teorética, assumindo abertamente a forma da arte, do
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de valor; o sentido do mundo deve situar-se fora do mundo (Tractatus, 6.41). A linguagem pode apresentar a experiência, mas também pode impregnar a experiência de significado. Embora a poesia, os valores, não possam ser reduzidos a proposições — como sustentam os integrantes do Cfrculo de Viena — isto não quer dizer que se deva renunciar totalmente à tentativa de expressar o inefável.20
Vê-se assim que se abre,já no Wittgenstein do Tractatus, uma possibilidade para a compreensão do caráter cultural do Direito. Osj uízos de valor não podem ser relegados, como entendia Carnap, a simples condição de imperativos de forma gramatical desviada 21 ou “imperativos disfarçados”. 22 O que a linguagem mostra
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poema (Carnap, La superación de la metafísica mediante el análisis lógico del lenguaje, in A. J. Ayer — organizador, El positivismo lógico, México, Fondo de Cultura Económica, l 993, p. 87). Sobre a relação entre o poeta e o metaffsico ver também, no mesmo sentido, A. J. Ayer, Lin- guagem, verdade e lógica, Lisboa, Presença, 1991, p. 21-23.
(20) Allan Janik e Stephen Toulmin chamam a atenção para o fato de que Wittgenstein, a despeito do isomorfismo de suas concepções, foi capaz de voltar os olhos para os grandes problemas existenciais, numa atitude que os autores reconhecem como afaçanha ou aproeza ética do Trcctatus. Esta preocupação com o indizível, na interpretação de Janik e Toulmin, revela-se nas correspondências que o filósofo de Viena trocava com Waisman e Schlick. Ela está impregnada da própria experiência de vida de Wittgenstein, um homem inclinado às artes, que também se aproximou da religiosidade, sob influência, em ambos os campos, das obras de Tolstói, especialmente de seus Contos e da Breve explicação dos Evangelhos. Janik e Toulmin, procurando situar o pensamento de Wittgenstein naViena do inicio do século XX, entendem que uma coisa é a filosofia que o Tractatus contém (a teoria do mundo, a critica de Frege e Russell etc.) e outra, bem distinta, é a mundivisão (Weltanschauung), a crença na existência de coisas de natureza superior (Tractatus, 6.42), que somente podem ser mostradas, nunca ditas. Na ciência, queremos conhecer os fatos; nos problemas da vida, os fatos não são importantes. Na vida, a coisa importante é responder ao sofrimento de outrem (AlIan Janik e Stephen Toulmin, op. cit., p. 219-226).
(21) Carnap, Philosophy andLogicalSyntax, London, Routledge, 1954, p. 24, apud Juan-Ramon Capella, op. cit., p. 92.
(22) A. J. Ayer, lntroducción del compilador in A. J. Ayer (org.), Elpositi- vismo lógico, México, Fondo de Cultura Económica, 1993, p. 27.
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(sentimentos, emoções, valores) é muito superior àquilo que ela diz (Tractatus, 6.42). Assim como o andaime lógico do mundo é apriori, também a ética, como condição do mundo, é transcendental. Entretanto, os valores não estão no campo da razão, mas sim na esfera da poética. Por isso, ética e estética são uma coisa só (Tractatus, 6.42 1). O poeta, o artista, quando insiste em dizer o indizível, atinge o homem na sua subjetividade, permitindo-lhe entrar em contato com a fantasia, que é o manancial do valor. Para o homem bom, a ética é um modo de vida, não um sistema de proposições. Só a arte pode expressar a verdade moral e só o artista pode ensinar as coisas que mais interessam na vida.23
Nesta perspectiva reaberta porWittgenstein, que remete a Kant, é necessário transpor os limites que a linguagem objeto e a metalinguagem da ciência impõem ao conhecimento do homem. E esta necessidade de ir mais além, de ultrapassar a barreira daquilo que pode ser dito, revela precisamente a atitude ética que aproxima o direito da poesia, da retórica, fazendo lembrar o ars boni et aequi dos romanos, a doxa da democracia ateniense, em contraste com a episteme, com o conhecimento racional e especulativo. E a capacidade de imaginar que permite ao homem a elaboração de modelos para conhecer aquilo que não é sensório. É através da imaginação que o homem pode projetar-se para além do presente, desenvolvendo técnicas que lhe permitam interferir na trajetória
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(23) Janik e Toulmin, op. cit., p. 226 e 228. A importância que Wittgenstein atribuia às fábulas, ao imaginário, como expressão do sentido da vida, pode ser exemplificada — de acordo com o registro de Paul Engelmann — na forma como os filmes defar-west impressionaram o espírito do filósofo, que os considerava alegorias de fundo moral (Lettersfrom Ludwig Wittgenstein, With a Memoir B.F. Mc Guinness, Oxford, Basil Blackweli, l 967, p.92 e 93, apudJanikeToulmin, op. cit., p. 226). Conta- se também que os filmes de Carmem Miranda exerceram grande fascínio sobre Wittgenstein (Caetano Veloso, Verdade Tropical, São Paulo, Companhia das Letras, 1 997, p. 268). Acerca da disposição criativa que se revela nos diversos jogos de linguagem, os quais contrapõem o pensamento ambíguo e o pensamento lógico, ver Alaôr Caffé Alves, op. cit., p. 348-351.
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da humanidade.24 Mas é importante dizer que enquanto a arte, na poesis aristotélica, é concebida como técnica voltada para a ação, para o resultado, a ética tractariana é vista por alguns como atitude de simples contemplação daquele que reconhece os limites da linguagem e, portanto, do mundo.
Se é certo, de um Iado, que expressões retóricas, a exemplo de abuso do direito, acabam atingindo um certo grau de emancipação à luz do Tractatus, não menos certo é também que tal qual ocorre com as próprias elaborações desenvolvidas porwittgenstein (as quais estão no campo do indizível, diante do reducionismo descritivo de sua teoria), aquele que as compreende, após ter escalado através delas, haverá de jogar fora a escada (Tractatus, 6.54). Com efeito, só se pode falar acerca daquilo que está fora do mundo de uma perspectiva ex- terna. Cabe à Filosofia, demarcando o território da ciência, limitaro impensável de dentro, através do pensável. Os limites da minha linguagem significam os limites do meu mundo. O que estiver além destes limites é impensável e indizível (Tractatus, 4.113, 4.114, 5.6, 5.6 1). Bem por isso, o abuso dos direitos processuais surge, na perspectiva de Wittgenstein, vale dizer, na ótica de um sujeito metafísico absoluto, como alguma coisa desprovida de sentido. Esta abordagem tem desdobramentos de suma importância para o desenvolvimento das idéias que seguirão nas próximas seções. Cabe apenas fazer uma breve referência às implicações do reducionismo wittgensteiniano.
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(24) A respeito da concepção científica, técnica e filosófica de Aristóteles, v. a seção 3. ¡ do presente trabalho. A propósito da importância da imaginação na formulação dos modelos científicos, v. Rubem Alves, Filo- sofia da Ciência — introdução aojogo e suas regras, 17. ed., São Paulo, Brasiliense, p. 120, 136 e 144-163. Sobre a importância da chamada ficção científica para as reflexões acerca do princípio da causalidade v. CarI Sagan, O romance da ciência, 4. ed., São Paulo, Francisco Alves, 1985, p. 153-162. A respeito do poder da imaginaço no campo do direito, v. Jesús lgnacio Martínez Garcia, La imaginaciónjurídica, Madrid, Dykinson, 1999, p. 71-91. A propósito da relação entre direito e arte, ver Tercio Sampaio Ferraz Jr., Notas sobre o Direito e a Arte, o Senso de Justiça e o Gosto Artístico, in Revista da Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, volume 2, Porto Alegre, Síntese (Coleção Acadêmica de Direito, v. 20), p. 35-45.
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É inegável que a elaboração abstrata da doutrina jurídica, assim como a norma, só ganha sentido na aplicação ao caso concreto. Antes disto, o que existe é a idealidade, a letra fria da lei, uma previsão hipotética ou — para usar expressão amplamente empregada na filosofia analítica — umafunção proposicional. Todavia, no momen- to em que o direito se materializa, no momento em que se revela na existência humana, há um significado que, é certo, não se identifica com o fato empírico. Vista sob o prisma do reducionismo descritivo do Tractatus, a apreciação do abuso do direito processual poderia ser identificada com a realidade concreta, à moda de um realis- mo jurídico ingênuo. Ocorre que a teoria do abuso, como com- plexo argumentativo, tem compromisso com a ação e, portanto, com critérios de razoabilidade, conveniência, utilidade, não se prestando à aplicação da díade verdadeiro-falso, própria do critério de verificação.25
Mas a obra de Wittgenstein é polêmica. Há quem sustente que o paradoxo foi mal compreendido. O indizível (que não tem sen- tido porque não tem referente), apesar de absurdo, porque se aplica à própria lógica e à filosofia, é mesmo assim mais importante que tudo aquilo que pode ser dito. Não se pode postular, na com- preensão do Tractatus, a clássica distinção entre linguagem objeto e metalinguagem, feita pela filosofia analítica, sobre a qual o próprio Wittgenstein discorre. As proposições do Tractatus não são enunciados científicos. A filosofia nele contida, outrossim, é precisamente uma crítica à espécie de racionalismo que aprisiona o espírito humano, impedindo que se distinga as duas esferas da totalidade do mundo, quais sejam, a esfera dos fatos e a esfera dos valores. O metafísico surge assim como um território proibido mas ao mesmo tempo inevitável. Os valores não são algo passível de
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(25) A propósito do critério de verificação no campo do Direito, v. Ernesto Grün e Martín Diogo Farrel, Problemas de verificación en el derecho, in Derecho, Filosofia y lenguaje — homenaje a Ambrosio L. Gioja, Buenos Aires, Astrea, 1976 (Colección Filosofia y Derecho, 3), p. 55- 73; Martín Diogo Farrel, Hacia un criterio empírico de validez, Buenos Ames, Astrea, (Colección Ensayosjurídicos, 9), 1972.
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debate, mas de ação.26 Não existem proposições éticas mas apenas ações éticas.27
Aparentemente, Wittgenstein parecia ter renegado a filosofia, ao atingir os confins da linguagem e do mundo. Mas ao fechar-se em longo silêncio, trabalhando alguns anos como professor primário, arquiteto e jardineiro, convenceu-se de que talvez não fosse preciso jogar fora a escada; bastava construir outra. Foram precisamente a sua atividade na escola fundamental e as conversações com Ramsey e Sraffa que o levaram a entender como a linguagem está pragmaticamente relacionada a contextos extralingüísticos de comportamento. Esta segunda fase do pensamento de Wittgenstein terá importantes repercussões para a compreensão da assim chamada teoria do abuso dos direitos processuais.
4.2 A superação da teoria representativa
Na concepção tractariana, os problemas filosóficos e o sem sentido surgem da transgressão dos limites da linguagem, que cum- pre um papel exclusivamente descritivo. Conta-se que em uma de suas conversas com o italiano Piero Sraffa, professor de Economia em Cambridge, Wittgenstein discorria sobre a identidade da forma lógica entre a proposição e o fato descrito, quando seu interlocutor, discordando desta que era a tese central do Tractatus, fez um gesto trivial, muito ao gosto dos italianos, para demonstrar sua insatisfação, ao mesmo tempo em que perguntava: qual
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(26) A interpretação segundo a qual a ética, em Wittgenstein, é simples con- templação, sem compromisso com a ação, pode ser encontrada na obra de Pilar López de Santa María Delgado (op. cit, p. 82 e 83). Outra interpretação é proposta por Allan Janik e Stephen Toulmin, na base sobretudo da influência que a crítica da Iinguagem, desenvolvida pelo escritor KarI Kraus, exerceu sobre o espírito de Wittgenstein. Na leitura feita por aqueles autores, o Tractatus procurou proteger as fantasias das incursões da razão, impedindo que o sentimento espontâneo fosse su- focado pela racionalização (op. cit., p. 220-223, 228, 229 e 231).
(27) PauI Engelmann, Überden tractatus Logico-Philosophicus von Ludwig Wittgenstein, in Bei der Lampe, p. 1 5, apud, Janik e Toulmin, op. cit., p.
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a forma lógica disto?.28 Embora esta passagem encontre versões diferentes, nas próprias narrativas que Wittgenstein teria feito a pessoas mais próximas, entre as quais von Wright, ela não deixa de ser significativa, porque aponta os novos caminhos que o levaram às Investigações Filosóficas, isto depois de uma fase de transição, na qual Wittgenstein procurou conciliar aquela tese referencial com uma nova perspectiva filosófica.29
Mantém-se, no segundo Wittgenstein, a preocupação com os limites da linguagem, mas de uma perspectiva diversa, que incumbe à filosofia descrever. E esta descrição, ainda que não tenha referência à realidade empírica, é dotada de sentido. Em outras palavras, sentido e referência deixam de ser mutuamente dependentes. Às proposições filosóficas, assim como às expressões elaboradas no modo imperativo, não se aplica o princípio da verificação, segundo o qual compreender o sentido de uma proposição equivale a conhecer suas condições de verdade (Investigações, § 117, 136, 137, 531- 533). Nas Investigações Filosóficas, Wittgenstein está inclinado a considerar que os problemas filosóficos têm origem na falta de re- conhecimento dos problemas da linguagem (Investigações, § 1 19, 123, 132 e 133). Aqui, tal qual lhe ocorrera anteriormente, a filosofia é uma crítica da linguagem (Tractatus, 4.0031). Todavia, nesta segunda fase de suas elaborações teóricas, por força de um novo reconhecimento das fronteiras da linguagem, Wittgenstein é levado a incorporar o indizível. Não existe mais uma cidadela do místico, do inefável. Agora, aquilo que Wittgenstein considerava ser o
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(28) Pilar López de Santa María Delgado, op. cit., p. 100.
(29) Exemplo destas obras de transição, segundo Pilar López de Santa María Delgado (op. cit, p. 101 e 102), são as Philosophische Bemerkungen e a Philosophische Grammatik. Servirão para a compreensão desse assim chamado segundo Wittgenstein, as suas Philosophische Untersuchungen (Ludwig Wittgenstein, Investigações Filosóficas 2. ed., Petrópolis, Vozes, 1 996 — Coleção Pensamento Humano, vol. 1 5). Tal como foi feito na seção anterior, onde as referências ao Tractatus aparecem no próprio corpo do texto, com o número do aforismo, as citações ora serão feitas com remissão aos parágrafos que dividem a Parte I das Investigações Filosóficas.
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mais importante, a exemplo da filosofia, da ética, da poesia, passa a integrar o campo da linguagem. As palavras são ações e como tais inscrevem-se nasformas de vida (Investigações, § 7 e 23).
Asformas lógicas, o isomorfismo entre linguagem e mundo — que, na concepção do Tractatus, autorizam a aplicação das tabelas de verdade — dão lugar, no segundo Wittgenstein, às formas de vida. A linguagem deixa de ser um instrumento secundário, uma maneira de descrever a estrutura ontológica do real, conhecida através da razão, para transformar-se em condição de possibilidade do próprio conhecimento (Investigações, § 100, 101-104, 379, 380, 584 e 737), de modo que não se cogita mais da existência de uma consciência sem a linguagem (Investigações, § 32, 330, 342, 416-432). As palavras, por sua vez, não têm função exclusivamente designativa, como reconhecida 110 Tractatus por força de um reducionismo descritivo (Investigações, § 27, 40, 49, 57-59). Assim como é certo que as proposições possuem outros modos verbais, além do indicativo, certo também é que as palavras comportam usos diversos. Quem diz Não está esplêndido o dia hoje?, muitas vezes faz uma afirmação e não uma pergunta. Quem dá uma ordem, muitas vezes pode fazê-lo na forma interrogativa: Você gostaria de fazer isto?. Trata-se de formas retóricas e nem sempre se pode reconhecer a asserção, a pergunta e a ordem em uma gramática superflcial (In- vestigações, § 21-26).30 Wittgenstein sugere expressões tais como
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