Capitulo 3: religião como espetáculo de cultura


Descrição Etnografia da Festa do Bonfim



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Descrição Etnografia da Festa do Bonfim
A Lavagem do Bonfim integra o ciclo festivo religioso que homenageia o Senhor Bom Jesus do Bonfim, na cidade de Salvador. O ciclo compreende novenas, cânticos, ex-votos, missas, lavagem das escadarias e do adro da Igreja e atividades profanas. No calendário litúrgico da Igreja Católica, a festa do orago é comemorada no segundo domingo de janeiro, após a Epifania ou Festa dos Reis, tendo como locus de celebração a Igreja do Bonfim, situada no Monte Serrat. Na manhã da quinta-feira que antecede o domingo da festa, um grande cortejo parte do adro da Igreja de Nossa Senhora Conceição da Praia, localizada no centro da cidade baixa, em direção à colina Sagrada. Chegando o cortejo, as baianas iniciam à lavagem das escadarias da Igreja com a água de cheiro trazida em jarros com flores.

Nesse dia, diferente do que ocorre em outras celebrações católicas, o santo homenageado não participa da festa, nem se permite aos fiéis penetrar no interior da Igreja, cujas portas permanecem fechadas todo o dia. O espaço de celebração resume-se à rua e às regiões adjacentes ao templo – as portas, o adro e as escadarias. Ausentes os sacerdotes da Igreja Católica, que não reconhecem o sentido religioso da lavagem, o povo e as baianas fazem-se seus protagonistas. O fato de muitas baianas serem adeptas do candomblé leva o sentido religioso da lavagem a ser reafirmado pelo sincretismo baiano, que aproxima Nosso Senhor do Bonfim do Orixá Oxalá e, conseqüentemente, liga a lavagem das escadarias aos ritos lustrais que lhe são dedicados nos terreiros de candomblé.

A Cidade Baixa é o cenário da grande festa. O comércio e os bancos são fechados e uma imensa infra-estrutura é formada no circuito, com postos de serviço montados pelos órgãos e secretarias municipais e estaduais envolvidos na organização do evento: Secretaria da Saúde, de Segurança Pública, Corpo dos Bombeiros, Superintendência de Engenharia de Tráfego, Policia Militar, entre outros.

O grande trajeto percorrido pelo cortejo deu origem ao bordão mais conhecido da festa: Quem tem fé vai a pé. O ditado deixa entrever o anseio de afirmar a dimensão e a intensidade da fé dos baianos, reafirmando, por conseguinte, a religiosidade como sinal diacrítico da cidade. A extensão do trajeto não é precisa. A imprensa, durante muitos anos, divulgou que ele teria 8 km. Atualmente, fala-se em 6,5 km. O jogo com os números é parte do marketing, cujo objetivo é vender, no mercado turístico nacional e internacional, a imagem da lavagem do Bonfim como a maior festa popular da Bahia. A mesma preocupação estende-se para o número de participantes, estimado em torno de 1 a 1,5 milhão de pessoas. De uma maneira geral os jornais, em especial, expressam a magnitude da festa sempre em números, contribuindo para ratificar essa representação.

Em 2002, a saída do cortejo foi antecedida por um culto ecumênico em favor da paz, no adro da Igreja da Conceição da Praia. Participaram do evento representantes do candomblé, do espiritismo kardecista, dos luteranos, dos judeus e dos mulçumanos, sob a liderança da Igreja Católica. Às nove horas, os sinos anunciaram o início da celebração, prosseguindo com cantos e orações dirigidas, em especial, às vítimas do atentado de 11 de setembro nos Estados Unidos. Em deferência à paz, fez-se um minuto de silêncio. Os líderes religiosos que participaram do evento fizeram pronunciamentos a favor da paz. A celebração contou também com a participação do coral da igreja. Uma salva de fogos de artifício e uma revoada de pombos anunciaram o fim da cerimônia. A concentração dos grupos recreativos acontece nas imediações da Igreja da Conceição da Praia e na Avenida Contorno. A celebração do culto dá-se num contexto marcado pela agitação natural que antecede a saída do cortejo. O burburinho da multidão, o consumo de bebidas alcoólicas, a atuação dos vendedores ambulantes oferecendo diferentes produtos como refrigerantes, cervejas, chapéu de palha, óculos escuros etc., protestos políticos organizados por sindicados, o aquecimento do couro dos tambores dos grupos de percussão e outras tantas diligências que acontecem simultaneamente definem o tom da atmosfera local.

Nas ruas da Cidade Baixa, a multidão aglomera-se nas calçadas e nos largos a fim de ver o cortejo passar. Muitas pessoas assistem das janelas de suas casas, dos prédios comerciais, saudando-o com aplausos e chuva de papel picado. Nos principais pontos do circuito, a sua passagem é anunciada com foguetório. Muitas pessoas entusiasmam-se a ponto de acompanhá-lo, movidas pelo já mencionado ditado popular ‘Quem tem fé vai a pé’.

Desde motivação religiosa a interesse simplesmente lúdico, as razões para a participação das pessoas nessa celebração são variadas. Isso torna sua composição bastante heterogênea, com representantes de segmentos religiosos, civis e políticos. A festa abre espaço para diferentes expressões de fé, para reivindicações políticas, protestos populares, propaganda comercial, política e divulgação de mensagens educativas. Em 2002, segundo dados da Emtursa, divulgados nos jornais locais, o cortejo foi integrado por sessenta e seis entidades recreativas.

Os cavaleiros foram os primeiros a sair em direção à colina sagrada, meia hora antes da saída oficial do cortejo, seguidos de perto pela polícia montada. A antecedência reflete a preocupação dos organizadores da festa com a segurança dos participantes que cumprem o trajeto a pé. Logo em seguida, partiram os batedores da polícia militar e os ciclistas. Antes do cortejo, parte o grupo de apoio formado pelo carro abre-ala, responsável pela execução do Hino do Senhor do Bonfim ao longo de todo percurso; em seguida o carro da imprensa, responsável pelo transporte dos jornalistas credenciados e a banda de sopro da polícia militar. Às dez horas, uma queima de fogos anunciou a saída do cortejo. Todos os anos, o cortejo é liderado pelo grupo das baianas, seguidas pelo o Afoxé dos Filhos de Gandhy. Em 2002, isso não aconteceu. O cantor Carlinhos Brown e os integrantes da Timbalada trajados de árabes é que abriram o cortejo. Depois, seguem as carroças enfeitadas, grupos folclóricos, grupos de pagodes, bandas de percussão e os mais diferentes blocos que surgem a cada ano, vinculados a sindicatos, partidos políticos, associações, grupos de amigos etc. A seqüência desses grupos no cortejo obedece à ordem de chegada na concentração.

Essa composição heterogênea sugere que o cortejo seja visto não só em seu aspecto religioso, mas como um instrumento vivo e abrangente de comunicação social utilizado pelos diferentes grupos que dele participam para tornar público conteúdos, valores e símbolos. À medida que se desloca ao longo do percurso, o cortejo é capaz de impor seu “panorama móvel”, uma espécie de imagem pública, repleto de significados. Na lavagem, sua comunicação além de ser visual e sinestésica, é todo um corpo entrando em movimento, liberando as potencialidades lúdicas, expressivas e táteis (Canevacci, 1990).

Sob um calor de quase 40°, uma multidão aglomerada na praça e no adro da igreja já aguardava o início da lavagem. O acesso das baianas à igreja é assegurado por um cordão de isolamento formado pelo pelotão de choque da polícia militar, fato muito criticado pela população, que se sente excluída da cerimônia. Tradicionalmente, a ala das baianas é recepcionada com fogos de artifício e ovações entusiásticas da multidão. Em 2002 não foi diferente. Logo em seguida, o coral das crianças de Salvador executou o Hino de Nosso Senhor do Bonfim, acompanhadas pela multidão, que, voltada para a Basílica em posição de reverência, canta com as crianças formando um só coro. Na boca dos Baianos, o hino torna-se uma oração. Durante a execução do hino, ouve-se concomitantemente, gritos de louvor, agradecimentos e exclamações laudatórias.

O ritual da lavagem teve início ao meio dia e trinta minutos. Munidas de vassouras, as baianas derramaram sobre as escadarias da igreja a água de cheiro trazidas em suas jarras. Em seguida, começa o assédio do público ao redor. Todos querem ser molhados com a água de cheiro espargida de seus vasos de flores. Agora é a multidão que se torna a grande protagonista da festa. Muitos se prostram de joelhos à porta da igreja e pronunciam orações e agradecimentos fervorosos, outros acendem velas, amarram fitas no portão e fazem seus pedidos em atos de introspecção. Os turistas apressam-se em pousar para fotos ao lado das baianas, que ostentam incansavelmente um sorriso nos lábios como parte da sua performance. Todos parecem sorrir, desfrutar de um contentamento, de uma satisfação por estar ali - uma manifestação inequívoca do riso carnavalesco, referido por Baktin (1999) como marca das manifestações populares:

Ele não é uma reação individual diante de um ou outro fato “cômico” isolado. O riso carnavalesco é em primeiro lugar patrimônio do povo (...) todos riem, o riso é “geral”; em segundo lugar, é universal, atinge a todas as coisas e pessoas, o mundo inteiro parece cômico e é percebido e considerado no seu aspecto jocoso, no seu alegre relativismo; por último, esse riso é ambivalente: alegre cheio de alvoroço, mas ao mesmo tempo burlador e sarcástico, nega e afirma, amortalha e ressuscita simultaneamente. (p.10)


Para muitas pessoas a festa termina com a Lavagem, para outras ela tem continuidade nas barracas de comida e bebida armadas nas imediações do templo, ou nos circuitos alternativos localizados ao longo do percurso. É mister ressaltar que a prática de lavar as escadarias e o adro da igreja assume para os baianos um caráter religioso, variando os seus significados de acordo com as chaves de interpretação fornecidas pelos segmentos religiosos que participam da festa. Para o católico, a lavagem pode ser lida como uma tradição com origem nas práticas devocionais orientadas unicamente por princípios do cristianismo. Para os adeptos do candomblé, ela pode significar um rito lustral associado ao culto de Oxalá, cujos sentidos vão ser buscados na mitologia da religião dos orixás. Para muitos, a lavagem pode assumir ambos os sentidos, fundindo em uma única representação a figura do Senhor do Bonfim e a figura de Oxalá. Outros não reconhecem nesse tipo de prática nenhum tipo de significado religioso, identificando-a como folclore ou lazer. Cada segmento religioso e social que participa do evento elege seus símbolos, atribuindo-lhes diferentes significados.


A performance das Baianas
De acordo com Nina Rodrigues (1988, p.357), o qualificativo de baiana era utilizado para se referir às negras operárias da Bahia que adotaram e conservaram um vestuário de origem africana. Da Bahia, a expressão estendeu-se para todo o país originando a expressão popular: “uma mulher vestida à baiana ou uma baiana” 7. Muitas dessas mulheres eram mães-de-santo ou possuíam algum tipo de vínculo religioso com os terreiros de candomblé. Na lavagem, o traje da baiana é a referência simbólica mais forte ao universo dos terreiros, por ser similar à indumentária utilizada pelas filhas-de-santo nas cerimônias públicas e privadas. No entanto, sua exibição no espaço da festa tende a ser uma caricatura das referidas vestes. Tudo aparece superdimensionado: os adereços são exibidos em maior quantidade, em especial, os fios-de-conta, cuja variação de cores não encontra nenhuma correspondente no interior dos terreiros. Ademais, as anáguas são mais volumosas e armadas do que o comum. A maquiagem é forte, a performance junto aos turistas evidente. Tudo, enfim, contribui para atualizar a imagem folclorizada da baiana.

A aproximação simbólica entre a lavagem do Bonfim e os ritos lustrais nos terreiros durante a festa de Oxalá transformou a baiana em um dos principais ícones da lavagem. A edição da festa pelos jornais escritos e televisivos folcloriza sua figura. Cantada em prosa pelos poetas, tendo a beleza exaltada pelos compositores musicais, a figura da baiana tornou-se a imagem-símbolo da cultura baiana, divulgada em propagandas turísticas e políticas, em cartões postais e nas artes plásticas em geral. No Brasil, quando se pensa na Bahia, pensa-se a partir de suas imagens, e não a partir de impressões reais – o berimbau, os capoeiristas negros, os orixás, o acarajé, a baiana que, não sem razão, aparece sempre sorrindo. A maior parte das imagens divulgadas pela propaganda turística em material audiovisual ou impresso está associada ao universo religioso do candomblé, tendo na figura dos orixás e das baianas seus principais ícones. Destaco algumas manchetes jornalísticas que evidenciam a baiana como personagem emblemático da festa:


O secular ritual de lavagem das escadarias da Igreja do Senhor do Bonfim pelas negras baianas do candomblé acontece mais uma vez hoje e contabiliza mais de 200 anos. (Correio da Bahia. 16/01/2003. Aqui Salvador - 1).

Roupa branca engomada e toda rodada, pesando em média 10 quilos. Pescoço coberto de guias e um torço amarrado na cabeça. Além destes tradicionais apetrechos, outros acessórios costumam fazer parte do visual das baianas. Peça chave do cortejo da Lavagem do Bonfim, elas desfilam 8,5 quilômetros carregando potes de água de cheiro e flores para a lavagem da escadaria da Igreja do Bonfim. O ritual é o ponto mais alto da festa profana. (Tribuna da Bahia, 15/01/2003)

As baianas que possuem vínculos religiosos com o candomblé, quando chegam à colina, lançam-se ao chão para fazer saudações rituais à Oxalá, o dobalê e o iká8. Durante o trabalho, presenciei nas proximidades das escadarias e em outros pontos do circuito da festa, algumas dessas mulheres entrarem em transe..Em meio às saudações dirigidas ao orago da colina, ouve-se, também, a saudação dirigida pelo povo de santo a Oxalá: Epa Babá! Oh, meu pai Oxalá. O crescimento da Lavagem e sua transformação em evento turístico e midiático resultou na saída de alguns terreiros da capital do evento, em especial os que se opõem ao sincretismo. Em contrapartida, a imprensa local faz questão de divulgar a presença de filhos-de-santo dos municípios baianos e de outros estados brasileiros que organizam caravanas e dirigem-se a Salvador para participar da festa. Mesmo com a ausência de alguns terreiros, a presença e a performance do povo-de-santo é ainda bastante significativa na festa, o que não implica que todos reconheçam o sentido religioso da Lavagem. Os filhos-de-santo contrários às posturas sincréticas limitam-se a participar do circuito profano da festa.

Para garantir a presença das baianas nas festas de largo de Salvador, a Emtursa criou a “baiana de evento”, categoria usada para se referir a mulheres negras e mulatas contratadas para se caracterizarem com o traje de baiana e atuarem em eventos e espaços públicos. Na festa do Bonfim, podemos encontrá-las integrando o cortejo das baianas, realizando a lavagem das escadarias ou pousando para fotografias ao lado dos turistas (principalmente os estrangeiros). Sua atuação estende-se a outros espaços, como recepções de hotéis, ruas do centro histórico e nos saguões dos aeroportos. Filhas-de-santo e baianas-de-acarajé são arregimentadas também para atuarem como “baianas de evento”. A maneira como essas mulheres representam seus papéis no cotidiano da cidade ecoa a noção de ator sincero, elaborado por Goffman (1985, p.25). Para este autor no processo de interação que se dá na vida cotidiana, os atores sociais representam papéis de maneira a garantir aos seus observadores uma impressão de realidade. O ator sincero é aquele que tanto se empenha na atuação de seu papel, que acaba convencido de que a impressão de realidade que encena é a verdadeira realidade9.

Nas últimas edições da festa, a arregimentação das baianas que participam do cortejo tem sido feita pela Associação das Baianas de Acarajé (ABA), em parceria com a Emtursa. As baianas e as mulheres dispostas a desempenhar esse papel recebem uma diária de R$ 25,00. Segundo a ABA, o dinheiro é repassado com objetivo de ajudar nos gastos com lavagem, engomação das roupas e na preparação da água de cheiro. Apesar de todo glamour que as cercam, as baianas, em sua grande maioria, são mulheres simples, pertencentes aos segmentos de baixa renda da população local. Porém muitas delas participam do cortejo voluntariamente, como ato de devoção a Oxalá ou a Senhor do Bonfim.

A condição da baiana, de ícone da cultura local, é explorada pelos políticos que participam da festa. O marketing político visa estabelecer, através da imagem, uma relação virtual entre os políticos e os segmentos mais populares. A edição de 17 de janeiro de 2003, do Jornal “Correio da Bahia” abre a matéria sobre a Lavagem do Bonfim com a fotografia do senador Antônio Carlos Magalhães, do prefeito Antônio Imbassahy e do governador Paulo Souto, rodeados de baianas, com a seguinte Legenda: “Na escadaria da Conceição da Praia ACM é rodeado pelas filhas-de-santo, abrindo o cortejo da Lavagem do Bonfim”. O teatro é a marca por excelência da festa. Logo, a dramatização que a política desencadeia através de estratégias particulares de comunicação configura-se como espetáculo. Os candidatos sabem beneficiar-se da visibilidade que a mídia dá a esta festa; sabem fazer-se notícia, seja associando-se estrategicamente aos eventos populares ou misturando-se à linguagem da festa de maneira oportunista10.


O simbolismo da cor branca
O branco tornou-se a cor emblemática do candomblé, participando da construção da identidade religiosa dos seus adeptos no espaço público. No imaginário popular, o branco simboliza paz, espiritualidade, beleza, pureza, valores que se contrapõem aos estereótipos atribuídos aos negros. Em termos de visibilidade pública, o branco é associado aos aspectos religiosos do candomblé enquanto o vermelho é associado aos aspectos mágicos. Nesse caso, a estética do branco contrapõe-se, em muitos casos, à estética dos despachos e dos ebós, principalmente quando esses exibem o vermelho do sangue dos animais sacrificados.

Os filhos de Oxalá costumam vestir-se de branco, em obediência ao preceito que manda guardar o dia da semana consagrado ao seu orixá. A força desse simbolismo leva as pessoas que se vestem de branco às sextas-feiras a serem identificadas como adeptos do candomblé ou de outros cultos afro-brasileiros, mesmo que o seu hábito não guarde qualquer nexo com o costume religioso.

O sincretismo entre Oxalá e Nosso Senhor do Bonfim reflete-se, entre outros aspectos, na escolha do branco como cor-símbolo da festa. Em termos de simbolismo religioso e de estética, a ala das baianas e o afoxé dos Filhos de Gandhy aparecem, respectivamente, como os dois maiores representantes do branco. Ambos possuem ligações com o universo das religiões afro-brasileiras. Os Filhos de Gandhy, especificamente, com muitos dos seus integrantes vinculados ao candomblé, detém grande parte do reconhecimento público graças à apropriação que o grupo faz dos símbolos e das práticas dessa religião. Este vínculo é afirmado, sobretudo, no momento da saída do Afoxé, com os rituais propiciatórios, de que são exemplos as oferendas direcionadas a Exu e a Oxalá no dia da Lavagem, uma das imagens mais espetaculares da Festa.
O branco toma conta da Colina Sagrada. Hoje é dia de louvar Nosso Senhor do Bonfim, o pai Oxalá para os devotos do candomblé. Da roupa à oração, tudo clama pela paz. Do ato ecumênico às 9 horas, no adro da Igreja de Nossa Senhora da Conceição da Praia, ao culto afro dos Filhos de Gandhy. Antes de deixar sua sede, os afoxés fazem oferenda pedindo a Exu que abra os caminhos e os levem com paz ao pai. A mais importante das manifestações culturais da Bahia e uma das mais famosa do Brasil, a Lavagem do Bonfim leva hoje milhares de devotos e turistas à Colina Sagrada. (Tribuna da Bahia. 16/01/2003, p.6)(grifos meus).
Um tapete branco formado pelas baianas, as “donas da festa” já descia pela avenida Miguel Calmon rumo à colina sagrada do Bonfim. Mais de um milhão de pessoas participaram da festa. (Tribuna da Bahia, 14/01/2000) (grifos meus).

Depois da ala das baianas, o Afoxé dos Filhos de Gandhy é o cortejo de maior impacto visual e estético da festa, devido ao simbolismo da cor branca e a expressiva representação numérica. Com cerca de 5.000 integrantes em cortejo, durante a sua passagem forma-se um imenso tapete branco que cobre as principais avenidas do percurso. Oxalá, o mais importante orixá fun-fun do panteão nagô, é também patrono dos filhos de Gandhy. Nesta edição da festa, duas crianças caracterizadas com a roupa dos filhos de Gandhy desfilaram sobre os principais emblemas da Associação, o elefante e o camelo. O primeiro representando Oxalá e o segundo, Mahatma Gandhy. Ao passar pelas ruas da Cidade Baixa, leva crianças, jovens e adultos a procurarem o melhor ângulo, a disputarem por um espaço em meio à multidão a fim de ver o Afoxé dos Filhos de Gandhy desfilar. Ao som do afoxé, seus componentes clamam pela paz dançando e cantando em direção à colina sagrada. Há mais de vinte anos, os filhos de Gandhy participam da lavagem, é considerado um dos afoxés mais antigos da Bahia desfrutando de popularidade e prestígio.


Performances Culturais
Ao longo dos seis quilômetros e meio do percurso para as escadarias da Igreja do Bonfim, foi possível identificar diferentes performances ligadas ao núcleo mais profano da festa. Em 2002, acompanhei a performance do grupo Zárabe, formado pelos integrantes da Timbalada (todos do sexo masculino), que participam do cortejo travestidos de árabes. Sob a liderança do músico e compositor Carlinhos Brown, cada componente realiza, ao longo do percurso, individualmente ou em grupo, coreografias com o timbal, outros instrumentos de percussão e de sopro. A saída do grupo é um espetáculo à parte e segue um modelo muito próximo dos rituais realizados no espaço público, durante o carnaval, pelos participantes dos blocos afros Ilê Aiyê e Filhos de Gandhy. As religiões afro-brasileiras são matrizes dessas manifestações, que ganham contornos muito próprios com as reproduções e leituras particulares efetuadas por esses grupos, das práticas ritualísticas realizadas nos terreiros de umbanda e candomblé. O ritual de saída do grupo consiste em queima de pólvora e de incenso com o objetivo de proteger objetivando a protençeima seus integrantes durante o cortejo.Ainda no mesmo ano, o Show Folclórico do SESC/BA apresentou uma ala com dançarinas caracterizadas de baianas, que exibiram coreografias ao longo do percurso com os vasos de flores que carregavam nas mãos. Ao lado da música e da dança, eclode uma pluralidade de manifestações estéticas que criam novas formas, combinam cores e estilos. Em meio ao cortejo, chama à atenção a presença irreverente e alegre dos vendedores de cafezinho do centro de Salvador. Por ocasião da lavagem, eles operam uma verdadeira transformação estética sobre o seu principal instrumento de trabalho no cotidiano – carrinhos de madeira utilizados para transportar garrafas térmicas e materiais (açúcar, guardanapos, copos descartáveis) utilizados na comercialização de café, chá e leite nas ruas de Salvador. Organizados em bloco, eles exibem seus carrinhos de café totalmente adornados e aparelhados com som, transformados, no contexto da Lavagem, em minitrios. Flores, fitas, fotografias de familiares, brinquedos, espelhos e outros elementos são combinados na construção do novo visual, que os distancia do mundo do trabalho e convertendo-os em expressões vivas de criatividade.

Existem espaços para performances individuais, a exemplo da performance de Samuel Souza, mais conhecido como Pelé do Tonel, que se tornou um dos personagens mais conhecidos da Lavagem do Bonfim. Samuel participa do cortejo efetuando performances malabarísticas com um tonel de lixo ao longo do percurso. Sua participação é destacada nas matérias jornalísticas relativas à festa:

Samuel Souza decidiu que participaria da Lavagem do Bonfim levando a todos sua arte e, de quebra, agradecendo ao seu Deus – para ele, Senhor do Bonfim é o maior de todos. Pelé do tonel, nome artístico de Samuel, além de paletar os 6,9 quilômetros, ainda teve fôlego para executar performances “malabarísticas” defronte à Igreja do Bonfim. (A Tarde, local, 16/01/2004)

Com a saída dos trios elétricos da lavagem em 1998, os grupos de percussão ganharam mais espaço e visibilidade. O som das guitarras elétricas foi substituído pelo som dos tambores, dos instrumentos de percussão e bandas de sopro. Os grupos de samba, de pagodes e os blocos afros aproveitam para reafirmar no espaço público suas tradições de performances. Se de um lado os órgãos de turismo sabem utilizar a riqueza e densidade dessas manifestações para fins turísticos, por outro, esses grupos conseguem valer-se desse espaço festivo para encenação de suas identidades:


Na performance pública, a identidade é diretamente posta à prova da representação, forma-se e transforma-se sob o olhar do outro. Ela não é mais, naquele momento uma identidade que se afirma, que se define ou que é protegida, como se fosse uma realidade em si, um objeto sem sujeitos. Assumir o risco de exibir, de encenar os atributos culturais que pensamos como próprios, específicos de uma identidade ante os outros, é tornar essa identidade mais aberta, mais dinâmica e finalmente mais real por ser melhor apropriada na comunicação da performance. (AGIER, 2003, p.60)

Devem-se mencionar também os diferentes personagens criados por indivíduos anônimos que se destacam da multidão através de pinturas no corpo, máscaras, vestuários ou aparatos exóticos. Entre os mais conhecidos do público baiano, encontra-se Severiano José Vicente Neto, morador do bairro Mussurunga. Para acompanhar o cortejo ele se fantasia de Papai Noel - pagamento de uma promessa feita a Senhor do Bonfim em 1997. A roupa que usa é uma lembrança do período em que, durante o natal, trabalhava no comércio representando esse personagem. Os principais jornais da cidade registram outras participações, sempre associando-as a criatividade do povo baiano, elemento que chama atenção e encanta os turistas, além de ser destacado como um dos ingredientes responsáveis pelo sucesso das festas produzidas na Bahia:


Totalmente pintado de preto, com peruca, minivestido preto e meia calça, o pedreiro Luiz Carlos Sacramento incorporou ontem na Lavagem do Bonfim a exótica negra maluca. O personagem chamou a atenção de jovens, adultos e crianças, que não hesitavam fazer brincadeiras. (Correio da Bahia, 17/01/2003)

Rosa Maria Dias, 51 anos, exibiu uma exuberante fantasia de Carmem Miranda, com direito a saia rodada e frutas plásticas penduradas na cabeça. No corpo, uma faixa com a mensagem Recife saúda a Bahia. (Correio da Bahia, 17/01/2003)

O deslocamento do cortejo, além de promover a intercomunicação, evoca uma dramaturgia que põe em cena diversos personagens. Os personagens criados ou representados – Papai Noel, Nega Maluca, Carmem Miranda – dão visibilidade a pessoas que, no cotidiano, são socialmente invisíveis. “Os personagens, disfarçados das cerimônias ou das festas, representam uma oportunidade, uma eventualidade de mudança da ordem das coisas ou do mundo, recordam a realidade do virtual ou do possível em uma ordem estabelecida que parece ignorá-los” (Duvignaud, 1983, p.90). No espaço da festa, cresce em força e importância o poder das comunicações não verbais, verificando-se nele o exercício de outros papéis que extrapolam os que se processam cotidianamente na esfera do trabalho, da família, da escola etc.


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