Código da Vida



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Li tudo e, a cada página, fui me emocionando. Os advogados da viúva, Dona Clarice, e de seus filhos eram amigos meus: Heleno Fragoso, Sérgio Bermudes, Marco Antônio Rodrigues Barbosa e Samuel Mac Dowell de Fi­gueiredo. O depoimento de Rodolfo Konder, torturado na sala ao lado de Herzog, era impressionante. Como isso pôde ter acontecido no Brasil?

Esses fatos estão assim registrados nos Grandes advogados, grandes jul­gamentos, de Pedro Paulo Filho, Depto. Editorial OAB-SP:

“Em 19 de abril de 1976, deu entrada na Justiça Federal de São Paulo, sendo distribuída para a 7a Vara Cível, uma ação declaratória intentada por Clarice Herzog e seus filhos Ivo e André, contra a União Federal, pleiteando que fosse declarada a responsabilidade da União pela prisão, torturas e morte do jornalista Vladimir Herzog, marido e pai dos autores.

A inicial relatou que Vladimir era brasileiro naturalizado, professor e jornalista da TV Cultura — Canal 2 e que na noite de 24 de outubro de 1975 compareceu às dependências do DOI/CODI do II Exército, por soli­citação de seus agentes, a fim de prestar esclarecimentos.

Fizeram-no apresentar-se no dia seguinte, à Rua Tomás Carvalhal, 1030, na capital paulista. No final da tarde do mesmo dia, o Comando do II Exército fez distribuir nota na qual comunicava a morte de Vladi­mir Herzog, e entre outras inverdades dizia que o jornalista ‘admitiu exercer atividades no PCB; que, por volta das 15 horas, deixado, sozinho, em uma sala, redigiu declaração dando conta de sua militância no Partido Comunista; que, aproximadamente, às 16 horas, ao ser procurado na sala onde ficara, foi encontrado morto, enforcado em uma tira de pano’.

A nota afirmava que, solicitada a perícia, pelos técnicos foi consta­tada a ocorrência de suicídio e que ‘o cadáver de Vladimir Herzog foi encontrado, junto à janela, em suspensão incompleta e sustido pelo pescoço, através de uma cinta de tecido verde’ e que ‘o traje que vestia o cadáver compunha-se de um macacão verde de tecido igual ao da refe­rida cinta’.

O fato provocou a maior repercussão em todo o país.

Em 30 de outubro de 1975, o general-comandante do II Exército ins­taurou inquérito policial para apurar as circunstâncias em que ocorreu o ‘suicídio’ do jornalista Vladimir Herzog, que concluiu, como era espe­rado, pela ocorrência de suicídio.

Ocorre que Rodolfo Konder compareceu, espontaneamente, no dia 7 de novembro de 1975, às 16 horas ao escritório de advocacia dos Drs. José Carlos Dias, Maria Luiza Flores da Cunha Bierrenbach, José Roberto Leal de Carvalho e Arnaldo Malheiros Filho, no centro de São Paulo, e ali, na presença dos referidos advogados e, mais ainda, do Dr. Prudente de Moraes, neto, do Prof. Gofredo da Silva Telles Jr., do Dr. Hélio Pereira Bicudo e do padre Olivo Caetano Zolin, prestou de­clarações que esclareceram a morte de Vladimir Herzog.

‘Às seis horas da manhã do dia 24 de outubro do corrente, tocaram a campainha de minha casa, e, quando fui atender, vi que eram três agen­tes da Polícia, os quais me disseram que eu deveria acompanhá-los para prestar alguns esclarecimentos. Fui levado numa caminhonete até as dependências do DOI, na rua Tomás Carvalhal, 1.030, endereço este que vim a conhecer posteriormente. Na estrada, colocaram-me um capuz de pano preto na cabeça e me levaram para o interior do DOI. Lá dentro me fizeram tirar a roupa e me deram um macacão do Exército, e eu fi­quei sentado num banco com o macacão e o capuz. Fiquei cerca de uma hora esperando, tempo que eu não posso calcular com certeza por te­rem me tirado o relógio, e fui chamado para o interrogatório. Fui leva­do para o primeiro andar, pois estava no térreo, e alguém começou a me fazer perguntas sobre minhas atividades políticas. Esta pessoa eu não posso identificar porque eu estava com o capuz na cabeça. Ela co­meçou a se exasperar e me fazer ameaças, porque não estava satisfeita com as respostas que eu dava, e chamou umas duas pessoas para a sala de interrogatório, pediu a uma delas que trouxesse a ‘pimentinha’, que é uma máquina de choques elétricos e, a partir daí, eu comecei a ser tor­turado. Uma pessoa que mais tarde pela voz eu identifiquei como o chefe da equipe, e era forte, barrigudo, moreno, de cara rasgada. Este homem que batia com as mãos e gritava que ele era um anormal, o que eu achei muito estranho. Depois instalaram nas minhas mãos, amar­rando no polegar e no indicador as pontas de fios elétricos ligados a essa máquina; a ligação era nas duas mãos e também nos tornozelos. Obrigaram-me a tirar os sapatos para que os choques fossem mais vio­lentos. Enquanto o interrogador girava a manivela, o terceiro membro da equipe, com a ponta de um fio, me dava choques no rosto, por cima do capuz e, às vezes, na orelha, para isso levantando um pouco o capuz, para que o fio alcançasse a orelha. Para se ter uma idéia de como os choques eram violentos, vale a pena registrar o fato de que eu não pude me controlar e defequei, e, freqüentemente, perdia a respiração.

[...]


No sábado de manhã, percebi que Vladimir Herzog tinha chegado. Como o capuz é solto, por baixo dele, quando a vigilância não é severa, pode-se ver os pés das pessoas que estão perto. Ao meu lado estava sen­tado George Duque Estrada, de O Estado de S. Paulo, e eu comentei com ele que Vladimir Herzog estava ali presente, isto porque Vladimir Herzog era muito meu amigo e nós comprávamos sapatos juntos, e eu o re­conheci pelos sapatos. Algum tempo depois, Vladimir foi retirado da sala. Nós continuamos sentados lá no banco, até que veio um dos inter-rogadores, levou a mim e ao Duque Estrada a uma sala de interrogató­rio no andar térreo, junto à sala em que nós nos encontrávamos. Vladi­mir estava lá, sentado numa cadeira, com o capuz enfiado e já de macacão. Assim que entramos na sala, o interrogador mandou que ti­rássemos os capuzes, por isso que nós vimos que era Vladimir, e vimos também o interrogador, que era um homem de 33 a 35 anos, com mais ou menos 1,75 metro de altura, uns 65 quilos, magro, mas musculoso, cabelo castanho-claro, olhos castanhos apertados e uma tatuagem de uma âncora na parte interna do antebraço esquerdo, cobrindo pratica­mente todo o antebraço. Ele nos pediu que disséssemos ao Vladimir ‘que não adiantava sonegar informações’. Tanto eu como Duque Estrada, de fato, aconselhamos Vladimir a dizer o que sabia, inclusive porque as informações que os interrogadores desejavam ver confirmadas já ti­nham sido dadas por pessoas presas antes de nós. Vladimir disse que não sabia de nada, e nós dois fomos retirados da sala e levados de volta ao banco de madeira onde nos encontrávamos, na sala contígua. De lá, podíamos ouvir nitidamente os gritos, primeiro do interrogador e de­pois de Vladimir e ouvimos quando o interrogador pediu que lhe trou­xessem a ‘pimentinha’ e solicitou ajuda de uma equipe de torturadores. Alguém ligou o rádio, e os gritos de Vladimir se confundiam com o som do rádio. Lembro-me bem que durante esta fase o rádio dava a no­tícia de que Franco havia recebido a extrema-unção, e o fato me ficou gravado, pois naquele mesmo momento Vladimir estava sendo tortu­rado e gritava. A partir de determinado momento, a voz de Vladimir se modificou, como se tivessem introduzido alguma coisa em sua boca; sua voz ficou abafada, como se lhe tivessem posto uma mordaça. Mais tarde os ruídos cessaram. Depois do almoço, não sei exatamente a que horas, o mesmo interrogador veio me perguntar sobre uma reunião po­lítica na minha casa, realizada em 1972, com a presença de um homem de cabelos grisalhos. Eu não me lembrava dessa pessoa, embora me lembrasse de um único encontro realizado em minha casa naquele ano, com a presença de uma outra pessoa, esta de cabelos escuros. O interro­gador saiu novamente da sala e dali a pouco voltou para me apanhar pelo braço e me levar até a sala onde se encontrava Vladimir, permi­tindo mais uma vez que eu tirasse o capuz. Vladimir estava sentado na mesma cadeira, com o capuz enfiado na cabeça, mas agora me parecia particularmente nervoso, as mãos tremiam muito e a voz era débil.’

‘Que o declarante, da mesma forma que todos os outros presos que teve oportunidade de ver nas dependências do DOI, foi deixado apenas com o macacão, o capuz e os sapatos, sendo que das pessoas que usa­vam sapatos com cordão para amarrar os cordões eram retirados, não ficando nenhum instrumento que pudesse ser usado contra a vida.’

‘Que quando se iniciou a tortura de Vladimir, o declarante, estando na sala ao lado, chegou a ouvir sons de pancadas que lhe eram desferidas.’

Vladimir Herzog foi cruelmente torturado, e, depois disso, redigiu a declaração que o comprometia com agremiação política ilegal. O fato de haver rasgado o papel comprova que repudiou totalmente a suposta confissão, obtida mediante métodos violentos.

Ademais, não poderia ter se suicidado com o cinto do macacão, pois, segundo Rodolfo Osvaldo Konder, ‘o macacão que lhe deram para vestir nas dependências do DOI, a exemplo de todos os outros, não tinha cinto’.

Os advogados Heleno Cláudio Fragoso, Sérgio Bermudes, Marco Antônio Rodrigues Barbosa e Samuel Mac Dowell de Figueiredo sus­tentaram que o artigo 107 da Constituição Federal obriga as pessoas ju­rídicas de direito público a responder pelos danos que os seus funcio­nários causarem a terceiros.

Já o artigo 15 do Código Civil Brasileiro é expresso: ‘As pessoas jurí­dicas de direito público são civilmente responsáveis por atos dos seus representantes que, nessa qualidade, causem dano a terceiros, proce­dendo de modo contrário ao direito ou faltando a dever prescrito por lei, salvo o direito regressivo contra os causadores do dano’.

A prisão foi ilegal e arbitrária, pois efetuada com desatenção ao arti­go 153, parágrafo 12 da Carta Magna. Ao torturarem Vladimir Herzog, os agentes da União Federal desrespeitaram o parágrafo 14 do artigo 153 da Constituição Federal, que impõe a todas as autoridades o respei­to à integridade física e moral do detento e do presidiário, constituindo abuso de autoridade nos expressos termos dos artigos 3º e 4º de Lei Federal nº 4.898, de 9-12-65.

Na forma do artigo 4º do Código de Processo Civil, Clarice Herzog e seus filhos, ao invés de postularem a condenação da União Federal, pe­diram apenas que fosse declarada a sua obrigação de indenizá-los, em decorrência dos fatos que culminaram com a morte de seu marido e pai. Queriam uma reparação moral.

A União Federal, através do procurador da República, Tito Bruno Lopes, em 2 de julho de 1976, contestou a ação, alegando que os autores da ação eram carecedores por se basearem em fatos considerados ine­xistentes pela Justiça Militar. Aduziu que a responsabilidade civil é in­dependente da criminal e que, de conformidade com o artigo 1.525 do Código Civil, não se poderia questionar sobre o fato ou quem seja o seu autor, quando estas questões já tenham sido decididas no crime. Acres­centou ainda que a ação declaratória era inepta, porque escondia, subjacentemente, uma ação condenatória contra a União Federal.

No mérito, confirmou a existência de suicídio, conforme os laudos dos legistas Arildo de T. Viana e Harry Shibata, que concluíram pela inexistência de sinais de violência ou tortura, acrescentando não ter havido culpa dos funcionários, que agiram no estrito cumprimento do dever legal.”

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Diante de tudo isso e de outras provas, a ajuda que resolvi dar a João Gomes Martins foi minutar a própria sentença com os subsídios possíveis. O laudo pericial era falso. Assinado por dois energúmenos, capachos da dita­dura, concluía pelo suicídio sem culpabilidade dos funcionários que agiram em estrito cumprimento do dever legal. Agiram? Os funcionários agiram? Qual a ação praticada no estrito cumprimento do dever legal? Suicidaram o Herzog!

Em Direito, há uma regra respeitada por todos os juristas: nada pode ser considerado fora dos autos. Somente o que nos autos existe é lícito ser analisado e tomado como elemento de convicção. Mas num processo judicial da ditadura, mesmo proposto pela família da vítima, não poderia constar toda a verdade.

Resolvi procurar algumas pessoas que conheciam bem os fatos no mo­mento em que se deram. Falei com Audálio Dantas, presidente do Sindicato dos Jornalistas à época. Contou-me coisas estarrecedoras. Depois conversei com Hélio Damante, jornalista de enorme inteligência e muito bem infor­mado. Deu-me elementos preciosos. Hélio, além de tudo, teve a idéia de or­ganizar o ato ecumênico realizado na Catedral da Sé, em São Paulo, em ho­menagem à memória de Herzog. Precisamente esse ato, a que compareceram umas dez mil pessoas sem medo das forças policiais e militares, marcou o iní­cio do fim da ditadura.

Ouvi pessoas que conversaram com o Coronel Audir Santos Maciel, que comandava o DOI-CODI53 quando mataram Herzog. O coronel, deson­rando as mais sérias tradições do Exército brasileiro, mente até hoje. Jura que Herzog se suicidou, mesmo diante da esmagadora prova em contrário. Pode­ria ingressar no PT e participar da degradante farsa das mentiras orquestra­das para proteger bandidos que conseguem chegar ao governo e de lá não querem sair, ou, quando saírem, desejam estar cobertos pela túnica da impunidade.

Entreguei ao Dr. João Gomes o rascunho da sentença para que ele a corrigisse e alterasse como quisesse.

Ele voltou pessoalmente à Chácara Flora para buscar o processo e levou a minuta, já com as modificações que entendeu fazer, mesmo porque sabia escrever muito bem. Mas cometeu uma ingenuidade: mandou datilografar a sentença no próprio cartório. Resultado: o escrevente dedou para o promo­tor, em tempos de muitas delações, premiadas ou simplesmente safadas. E a Procuradoria da República ingressou no Tribunal Federal de Recursos com um mandado de segurança contra João Gomes Martins, que havia marcado dia e hora para a leitura da sentença. O promotor pediu que fosse suspensa a prolação da sentença. A que ponto chegou-se!

Qual o direito invocado pelo impetrante daquele mandado de segu­rança? Um nada absoluto. A leitura da sentença era uma ameaça à ordem pú­blica. Pastelão, palhaçada a serviço da ditadura. Da mesma forma que o ilustre representante do Ministério Público havia dado parecer afirmando cinicamente que Herzog se suicidara. Pois, creiam-me: no Tribunal Federal de Re­cursos, foi concedida a liminar, e o juiz federal foi impedido de ler a sentença! O ministro que concedeu a liminar, Jarbas Nobre, tempos depois me confes­sou: a liminar ou a cassação de sua investidura. Que tristeza!

Cheguei a sugerir ao Dr. João Gomes Martins que desistisse da leitura e mandasse a sentença, mesmo diante da liminar, para o Diário Oficial. Afinal a liminar fora concedida para impedir a leitura da decisão no dia marcado. E não se falou em Diário Oficial. E fosse o que Deus quisesse. Ele, porém, levava muito a sério o Poder a que pertencia. Por mais absurda e arbitrária que ti­vesse sido a liminar, iria cumpri-la. Outro detalhe típico da época: a liminar durou até o mês seguinte, quando João Gomes Martins completou setenta anos de idade e teve que se aposentar compulsoriamente. Uma vez aposen­tado, a liminar foi revogada, e o relator no tribunal, Ministro Jarbas Nobre, indeferiu a segurança, por incabível. Vejam com que detalhes a ditadura tra­mava dentro do Poder Judiciário, auxiliado fielmente pelo Ministério Público de então.

Mas levou ferro (desculpem!). O juiz substituto da Sétima Vara Federal, Dr. Márcio José de Moraes, julgou o processo e declarou procedente a ação. Uma sentença diferente daquela prolatada por João Gomes, mas igualmente corajosa, e duplamente, pois enfrentou a ditadura e o próprio Tribunal, que pensava haver intimidado, com a liminar contra o juiz titular, o magistrado que o substituiria. Em homenagem a ambos, transcrevo a carta que João Go­mes Martins, aposentado, escreveu ao seu sucessor depois de prolatada a nova sentença:

“Chegamos, por palavras diferentes, à mesma conclusão... Senti uma tristeza imensa ao verificar até que ponto podia chegar a tentativa de sufocar uma manifestação do Poder Judiciário... Não poderia descon­fiar de um golpe dessa natureza e tanto é assim que havia marcado com antecedência o dia e hora para a prolação da sentença.

Veio o telex, anunciando a proibição da leitura e requerendo tam­bém informações sobre o processo no mandado de segurança impe­trado pelo procurador, que se considera o detentor único da verdade e o cavaleiro andante da honra e do renome nacional. Alegava que a sen­tença poria em risco a segurança do Estado, e que, por isso, deveria ser impedida, como se a declaração de responsabilidade pela tortura e morte de um homem pudesse constituir-se em perigo para a honra e a segurança das instituições.

Ninguém sabia o teor da sentença, a não ser eu.

O Brasil inteiro ficou sabendo por esse telex qual seria o seu teor, pois ele já confessava a culpa publicamente. Ninguém mais duvidava daí em diante das conclusões do juiz... Lançou-se sobre o Poder Judiciá­rio a dúvida a respeito da dignidade, da coragem e da honradez do juiz que me substituísse. Supôs-se que, com o afastamento de um, a lição permaneceria com o outro e que talvez a verdade não aflorasse com a veemência que se deduzia da ação.

Enganaram-se os que assim pensaram porque, talvez mais forte, mais elegante e mais alta, se elevou a voz de um jovem magistrado para dei­xar bem claro que ainda há juizes no Brasil...”

A essa carta, somente faço um reparo à frase um tanto ingênua: Nin­guém sabia o teor da sentença, a não ser eu. Não foi bem assim: o escrevente, que a datilografou, sabia,54 e o Procurador da República também. Daí o man­dado de segurança contra a leitura da decisão judicial prolatada sob segredo de pôr chinelo para Papai Noel.



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Minha secretária avisou-me que o juiz da Quarta Vara Cível estava ao telefone e queria falar comigo. Atendi:

— Meu caro magistrado, a que devo a honra deste chamado?

— Se você estiver de pé, sente-se. Tenho aqui na minha frente um fato fantástico: vocês propuseram uma ação, que caiu na minha vara, e, hoje, vo­cês mesmos entraram com a contestação defendendo o réu. Estão advogando dos dois lados.

— Meu Deus! Não é possível! Aqui é tudo controlado. Como pode ter acontecido uma barbaridade dessas? Quem assinou a inicial e quem assinou a contestação?

— O Professor Frederico Marques. Assinou ambas as peças: a inicial e a contestação.

— Meu juiz, pelo amor de Deus, não faça nada. Estou indo para aí imediatamente.

Verifiquei com os meus próprios olhos. Era verdade. A ação proposta no papel timbrado do escritório e a contestação também. Ambas assinadas pelo Frederico, com as respectivas procurações outorgadas a todos nós, advo­gados integrantes do escritório. Implorei ao juiz para desentranhar a contes­tação e os documentos que a acompanhavam. Com ironia, ele observou:

— Sou juiz do cível, mas ainda me lembro do artigo 355 do Código Pe­nal: patrocínio infiel.

— E seu parágrafo único — acrescentei —, que manda aplicar a mesma pena ao advogado que defende, na mesma causa, simultânea ou sucessiva­mente, partes contrárias.

— Creio, porém, que não houve dolo. É pura desorganização. Você leva a contestação e me traga imediatamente outra, assinada por advogado de fora do escritório. Despacharei com a data de hoje, para que o réu não seja prejudicado com perda de prazo.

Agradeci mil vezes e levei o maldito documento. No trajeto, fui pen­sando no rigor ético do escritório. Não podíamos advogar contra clientes em causa alguma, por mais diferente que fosse. Nem pensar. Se defendêssemos um empresário qualquer em seus litígios de negócio, não podíamos aceitar nada contra ele, nem pedido de desquite da mulher. Quando cheguei ao es­critório, muito nervoso, fui diretamente à sala do Professor Frederico e, sem bater, abri a porta. Ninguém.

— Onde está o nosso gênio do Direito Processual? — perguntei em voz alta.

— Está viajando — respondeu-me Dona Daisy.

— E a secretária dele?

— Tirou folga.



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José Frederico Marques era um dos maiores processualistas brasileiros, orgulho do nosso escritório. Companheiro fantástico e simples. Desembargador aposentado, amaldiçoava os processos, quando começou a trabalhar em advocacia, porque vinham com o pedido inicial sem a contestação, quan­do defendíamos o réu. E, quando éramos advogados do autor, começava-se do nada.

Costumava dizer, bem-humorado, que a vida de juiz era muito mais fá­cil. Tinha tudo mastigado nos autos pelos patronos das partes. Apenas lia os argumentos dos dois lados e decidia. O advogado, ao contrário, precisava criar. Trabalho em excesso!

A despeito disso, trabalhava muito, mas era profundamente distraído e desorganizado. Tivemos que escalar, depois do deplorável evento, um arqui­vista somente para ele e, sem computador, que não existia, providenciar um fichário dinâmico e completo para as causas a ele entregues.

Aceitou propor uma causa cível contra uma determinada pessoa. Escreveu uma longa inicial, com argumentos bem articulados, tudo inteli­gente, como sempre fazia. Mas não mandou arquivar sequer a cópia, nem in­formou à administração do escritório a propositura da ação para o devido acompanhamento.

Passados alguns meses, foi procurado pelo réu da ação, que o contratou como advogado para a defesa. Naquele tempo, a contrafé (documento que o oficial de justiça deixa com o réu no momento da citação) era datilografada, e a inicial da ação proposta copiada à máquina pelo cartório; mas a cópia era resumida apenas ao texto. Nem sempre constava o nome do advogado que assinava, nem, claro, os documentos juntados, que deviam ser examinados em cartório.

Frederico, porém, contestou a ação, proposta por ele próprio, sem man­dar ninguém ao cartório da vara cível. Contestou de bate-pronto, servindo-se somente da leitura da cópia deixada pelo cliente. E mais: argüiu umas cin­co preliminares de inépcia da inicial.

Pedi a um advogado amigo meu a gentileza de contestar a ação. Chamei o cliente, expliquei; ficou de olho arregalado, mas entendeu. Passou procura­ção para o novo advogado, que copiou a contestação do Frederico e assinou. Foi pessoalmente despachar com o juiz. Fui junto. Alívio geral.

Quando Frederico voltou da viagem, caímos todos em cima dele e mos­tramos a contestação por ele assinada. Pediu mil desculpas. Prometeu sub­meter-se à administração do escritório. E, no final, reclamou de nós:

— Mas vocês fizeram uma grande sacanagem comigo!

— Poxa! Salvamos a reputação do escritório e tiramos você do pará­grafo único do artigo 355 do Código Penal. Isso é sacanagem?

— Claro que é. Vocês mandaram o outro advogado assinar o que eu es­crevi e não cortaram as preliminares de inépcia. Agora, o inepto sou eu, que assinei a inicial.

Não dava para discutir com ele. Somente se organizou depois que a Doutora Helena de Mingo passou a trabalhar ao seu lado.

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O Professor Vicente Ráo aceitou um caso complexo: defender a Mannesmann AG, da Alemanha, cujo conceito estava sendo atingido pelo estouro no mercado de capitais, causado por títulos emitidos pela filial brasileira, que tinha o mesmo nome.

A causa era do Escritório Gabaglia, Barros e Velloso, do Rio de Janeiro, que cuidava dos interesses da companhia alemã e se associou conosco para enfrentar a explosão. Trabalhei muito naquele escritório carioca. Ficava na Rua Correia Dutra, no Flamengo. Colegas excelentes.

O professor José Frederico Marques e eu fomos encarregados pelo Pro­fessor Vicente Ráo de cuidar do caso, isto é, da pauleira. E pauleira das bravas.

Naquele tempo, a lei do mercado financeiro permitia a emissão de le­tras de câmbio, para que as companhias levantassem recursos junto ao pú­blico, por meio de corretoras credenciadas. A Mannesmann tinha conceito. Vendeu muitos títulos. De repente, o estouro: milhões e milhões foram recu­sados pela empresa por falsidade e, obviamente, o dinheiro arrecadado com a venda dos títulos não entrou para os cofres da companhia.

Por quê? Coisa que somente acontece no Brasil: parte das letras vendi­das era legítima. Outra parte era “meio” legítima. E grande volume era falso. Deu um bolo federal!

Explico: as legítimas tinham a assinatura de dois diretores. As “meio” le­gítimas tinham a assinatura verdadeira de um diretor e falsificada a do outro diretor. O diretor responsável por essa brincadeira, um grande estelionatário, que participou da emissão legítima, isto é, com a assinatura de dois diretores, resolveu fazer uma emissão somente para si e chamou um falsário para imi­tar a assinatura do colega de diretoria. Disse ao meliante que não se tratava de um golpe, mas era necessidade premente da empresa, porque o outro di­retor estava doente.

O falsário fingiu que acreditou e assinou o nome do outro diretor em todas as letras emitidas. E, claro, aproveitou a idéia e lançou um grande lote de letras na praça, falsificando as duas assinaturas. Daí o estouro com a varie­dade de emissões.

Os portadores das letras se reuniram e resolveram entrar na Justiça para cobrar da Mannesmann todas as letras, sem distinção, num monstruoso litis-consórcio ativo, isto é, todos juntos numa única ação judicial. Assim, mis­turavam as legítimas com as falsas e esperavam que a empresa devedora pa­gasse todas.

Pela lei, os títulos legítimos, isto é, com as duas assinaturas verdadeiras, podem ser cobrados por meio de ação de execução, começando com penhora de dinheiro preferencialmente. A Mannesmann não se recusava a pagá-las, mas queria saber, e tinha esse direito, quais eram as verdadeiras. Por aquelas outras, que tinham uma assinatura verdadeira e outra falsa, a Mannesmann também era obrigada a responder, mas por via de ação ordinária, porque a condenação seria em razão da responsabilidade civil decorrente do ato ilí­cito de seu preposto, um diretor. Tinha a Mannesmann o direito de saber quanto somavam, para cobrar, depois, o prejuízo do diretor malandro em ação regressiva.

E, quanto às demais, inteiramente falsas, a companhia não tinha qual­quer responsabilidade.


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