Código da Vida



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Mas Sarney comprovou que realmente entendia dos dois assuntos: de Direito Constitucional e de política. Em uma semana, conseguiu mudar tudo Provocou a criação de uma poderosa bancada de constituintes, que passou a ser chamada de Centrão, acabou com os poderes da Comissão do Senador Fernando Henrique, e Bernardo Cabral foi defenestrado da relatoria da Constituinte. O novo relator passou a ser o engenheiro, geólogo e Deputado José Lins, do Ceará, que nunca me presenteou com um pão fresco.

Até hoje, Bernardo Cabral apresenta-se por aí, em festas e solenidades, com o título de “Relator da Constituinte”. Cara-de-pau. Destituído do cargo, não relatou coisa alguma. O Relator da Constituinte foi aquele deputado cea­rense que, por sinal, era geólogo. Entendia de Constituição tanto quanto Ca­bral, mas era modesto.

Um dos grandes equívocos da Constituinte, que marcou seus trabalhos, foi desviar a atenção da nação para a discussão do mandato de quatro anos do presidente da época e, com isso, baixar o alerta da população para as enor­midades e bobagens que saíram em nossa Constituição. Inclusive essa coisa ridícula, que se propagou em âmbito mundial, como marca constitucional da estupidez, os juros de 12% ao ano, ou aquela de garimpeiro e garimpo nos comandos gerais da ordem econômica, ou os dois tipos de empresas brasi­leiras, e até um tribunal em que se podia ser preso e ter direito a habeas corpus. Fernando Pessoa uma vez disse: “Tudo, menos o ridículo!”.

Na verdade, eu, que acompanhei de perto esse episódio, disse a Sarney que seu mandato era de seis anos, que ele não deveria aceitar nenhuma nego­ciação em torno dele. Se cometessem qualquer arbitrariedade, era simples: recorria ao Supremo Tribunal Federal, e evidentemente a decisão não pode­ria ser outra, senão aquela que assegurasse o direito institucional de seis anos, que lhe era conferido pela Constituição Federal, e que o Presidente jurou cumprir no ato de posse perante o Congresso Nacional.

Aí, Sarney cometeu o erro de achar que, propondo abdicar de um ano de seu mandato, acabaria com a discussão pelos quatro anos, que atormenta­va o país, imprensa, povo e políticos e causava discussão até nos botequins. O resultado foi desastroso, porque não somente ele aceitou reduzir um ano de seu mandato como estimulou seus adversários a prosseguir, agora com maior violência, na campanha pelos quatro anos. A imprensa, totalmente contrária ao Presidente, e, sobretudo, os líderes políticos, que estavam de olho na candidatura à Presidência, como o Dr. Ulysses, agarraram-se a essa tese, para minar a autoridade presidencial, já fazendo campanha sucessória. “Se abre mão de um ano, por que não de dois?”

Até hoje os jornalistas, num erro que não orgulha a imprensa de nosso país, insistem em dizer que o presidente de então lutou para obter um ano a mais, isto é, um mandato de cinco anos, quando, na realidade, ele abdicou de um ano de mandato, que era de seis.

Interessante é que, nessa época, o General Geisel ligou para Sarney, di­zendo quase a mesma coisa que eu havia dito:

— Sarney, não fale em duração de seu mandato. Não aceite discutir sobre isso. Você foi eleito para seis anos. Se a Constituinte diminuir o seu mandato, vá ao Supremo, e a decisão que o Tribunal decretar você cumpre. E não vejo como eles terão outra decisão a tomar, senão a de assegurar seu direito adquirido de guiar a nação por seis anos. Essa Constituinte é uma Constituinte derivada. Existe porque você a convocou por emenda constitucional e, portanto, não pode diminuir seu mandato.

Fiquei até impressionado, quando Sarney me informou, com os conhe­cimentos constitucionais do General Geisel, que estava certo política e juridicamente.

Uma ironia do destino contra a liderança da esquerda naquela época. Justamente um general, que havia sido um dos presidentes da ditadura, sus­tentou entendimento constitucional perfeito, inclusive aconselhando recurso ao Supremo Tribunal Federal. Realmente, os tempos haviam mudado. E só os políticos não perceberam.

Devo ressaltar que não me conformo e me irrito toda vez que vejo o ódio com que alguns jornalistas, ignorantes e passionais, comentam o assunto do mandato e o repetem numa dolosa inversão da verdade, tentando o im­possível: mudar a história do Brasil. E mais: mudar a história do nosso Direito Constitucional. É muito atrevimento. A antiga filosofia alertou para um ima­ginário erro de Deus: limitou a sabedoria dos homens, mas se esqueceu de li­mitar-lhes a ignorância. Além disso, o jornalista politicamente engajado tem fascínio pelo inverossímil. Goethe já advertia: “Não há nada mais terrível que a ignorância ativa”.50

A verdade é que a campanha pelos quatro anos foi um instrumento de luta política para desviar a atenção do país — como eu disse —, com a tra­mada intenção de encobrir o que se estava fazendo na Constituinte. E o que se estava fazendo lá? Uma Constituição que presumivelmente deveria durar séculos, assegurar os direitos públicos e privados dos brasileiros desta e das próximas gerações, organizar a vida institucional do país, de seus tribunais os sistemas tributários, os modelos de processos legislativos, as garantias in­dividuais, a configuração da autonomia dos estados e dos municípios, um mundão de coisas. Era o universo jurídico para uma nação nova, uma nova República. Que nada! A moçada queria saber de discutir um ano a mais ou a menos para o mandato do Presidente da República da época. O resto, mesmo sendo o universo, que se danasse! Raciocínio tão miúdo, que não pode ser medido sequer pela nanometria.

O Dr. Ulysses não acompanhava a parte principal da Constituinte, a elaboração de textos, a coerência de comandos, a tipificação dos conceitos ideológicos e a formulação dos princípios; ele apenas desejava conduzi-la e usufruí-la politicamente, saísse o que saísse daquela correria. Do Direito, dos cuidados com a redação, das disposições institucionais com redação clara e coerente, nem pensar. Era trabalho penoso. Um grande líder político, um descuidado jurista.

Lembro-me de que se preocupou, por exceção, com o direito de defesa. Ampla? Ótimo! Judicial e administrativa? Muito bom! No resto, deixou a moçada ir chutando bobagens, como se as instituições fossem o jogo de fute­bol em clube varzeano fechado ao bom senso. Tanto assim que, nos últimos meses, seu grande receio era que a Constituinte não se concluísse no prazo prometido, e então passou a colocar tudo em votação a toque de caixa, maté­rias complexas e não debatidas. No plenário, qualquer que fosse o assunto, não tomava posição e apenas insistia:

— Vamos votar! Vamos votar!

Foi nesse clima e nessa balbúrdia elaborada a Constituição atual, e de­ram um ano a menos ao mandato de Presidente da República. Tudo bem. Sarney concordou.

Chegaram a dizer que o mandato do Sarney foi prorrogado para cinco anos. Reagi, claro, pedindo que os matemáticos ou os professores de portu­guês me explicassem como se pode prorrogar de seis para cinco.

Publicaram insistentemente que, para obter esse resultado, Sarney foi obrigado a dar concessões de rádio e de televisão. Até hoje, vinte anos depois desses episódios, não apareceu ninguém para dizer que votou na Constituinte por receber uma concessão de rádio ou televisão. Ou que tenha sido apontado como beneficiário de tais concessões. Ninguém. Podem dizer que estou aqui advogando para um amigo meu. Claro que defenderia meus amigos todos, qualquer um deles, de qualquer injustiça. Neste caso, porém, estou defendendo o Direito Constitucional de meu país, para que se não diga, no futuro, que, em plena democracia, os brasileiros alteraram as instituições pela conve­niência política do momento. A defesa é da história do Direito Constitucional do nosso país.

Para que se tenha uma idéia do absurdo dessa acusação, Sarney deu concessões para setecentas rádios no país inteiro, mas para rádios locais, abrindo o mercado de rádio municipal, possibilitando a informação a muitos municípios que, isolados, não tinham senão o noticiário nacional. Fernando Henrique deu cinco mil rádios e uma centena de televisões. Ninguém disse que ele o tenha feito para comprar a reeleição. E as quantidades, quando com­paradas, são substancialmente diferentes. Fernando Henrique ganha longe.

No Brasil, como se vê, as coisas não são fáceis. Se tudo pode ser compli­cado, para que simplificar? Dona Marly, mulher de Sarney, pediu-me um dia para deixar de encher a cabeça do José com idéias jurídicas sobre a duração do mandato. O melhor seria aproveitar os quatro anos que a Constituinte poderia fixar, fingir que estava juridicamente certo e ir embora. Ela estava so­frida demais com o massacre político sobre o marido. O tiroteio em torno da disputa de poder, naquele momento inaugural da democracia, era insuportá­vel. Ela tinha razão. Pelo menos para mim, uma das idéias mais sedutoras de Governo: ir embora. Que Deus tenha a alma do Jânio!

Nada fácil foi a redação final da nossa Constituição. Para fazer a revisão do texto, convocaram o professor de português Celso Cunha. Realizou exce­lente trabalho corrigindo a batelada de erros dos constituintes. E morreu.



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Para um descanso nesse longo desvio, volto ao caso do meu cliente quase-suicida. Rapidinho, rapidinho. Logo retorno a Brasília, para continuar com os casos da Constituinte, inclusive um ótimo, o dos juros de 12% ao ano. Acontece que Sinval me telefonou, dizendo que o laudo judicial fora en­tregue e que o juiz da causa já despachara o “digam”. E mandou especificar provas a serem produzidas em audiência, sem designar data. Juiz traquejado. Quer antes examinar as provas que venham a ser requeridas, para, somente depois, deferi-las ou não, e marcar a audiência. Caldo de galinha.

Minha petição não foi muito longa. Dei ênfase às pausas comprovadas na gravação após cada pergunta, explorando a observação dos peritos de que tal procedimento poderia indicar que as respostas das crianças foram ditadas pela mãe. Afirmei que os peritos foram muito gentis ao dizerem que “pode­riam indicar”. Escrevi quase gritando, com letras garrafais: as respostas foram ditadas pela mãe!

Depois de haver escrito bem claramente essa afirmativa na petição, reli, tornei a ler e cheguei à conclusão de que deveria mantê-la assim. Não gosto de fazer escândalos nos meus processos e muito menos de me valer de recur­sos gráficos para impressionar o juiz, único leitor, quanto ao argumento. Mas, dessa vez, deixei a frase bem destacada, letras maiúsculas e em negrito. Que­ria que o magistrado, ao lê-la, não a considerasse uma simples alegação, mas um grito, uma denúncia, um alerta de horror!

E levantei a hipótese de que ela tivera um cúmplice nas operações de pausa e play do gravador. Estavam muito perfeitas, sem nenhum indício de imperícia que comumente, nesse tipo de gravação, ocorre com os ama­dores. A distância das crianças era impecavelmente a mesma no momento de gravar as respostas. O detalhe poderia indicar estarem seguradas pela mãe, enquanto o cúmplice operava o gravador.

É verdade que, sobre esse detalhe, não tinha eu nenhuma indicação plausível; mas o arranquei da intuição e do velho costume de suspeitar da existência de cúmplice nos grandes crimes, quaisquer que sejam. E do palpite do Gervásio, meu paranormal preferido. No fundo, estava contando também com a intimidade entre a Clotilde e as crianças. Na audiência, ela poderia conseguir a informação. Era, pois, fundamental que as crianças fossem ou­vidas. Especifiquei as provas, depoimento pessoal da autora, ouvida de teste­munhas e das crianças, como vítimas da trama toda.

Nem sequer fui falar com o juiz. A petição foi recebida por um assis­tente no cartório. Carimbou a cópia. O processo corria em segredo de Justiça, e não se pode, nesses casos, incorrer no erro de protocolar petições, equívoco mais ou menos comum a muitos advogados sem experiência.

E esperei.



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Hoje, sem as paixões da época, é preciso reconhecer que Sarney manti­nha um firme compromisso histórico com as instituições democráticas ainda tênues. Os militares recolheram-se aos quartéis, mas a boca dos canhões con­tinuava morna. Aqui e ali, ouvia-se o tilintar de espadas, e alguns discursos de constituintes causavam mal-estar na tropa recolhida, que considerava tudo aquilo um tipo de revanchismo, sentimento que perdurava e vai perdu­rar por muitos anos. Naquela época, boa parte da tropa queria voltar à dita­dura por entender que o país demonstrava não estar preparado para a demo­cracia. Uma grande bobagem, mas continha uma séria ameaça.

Ninguém pode acreditar que posições radicais ou movimentos políti­cos vividos pelo país se apagam do dia para a noite. Embora o mundo tenha mudado, sistemas de governo tenham sido ultrapassados, até hoje existem monarquistas, e ainda se vê o movimento de comunistas com foice e martelo. Seus adeptos não saem de cena, não aceitam ir para os arquivos, e os próprios arquivos incomodarão por muitos anos as gerações futuras, que nada têm a ver com o passado em que esses fantasmas viveram.

Há pouco tempo, um soldado, hoje com 87 anos, que foi segurança de Adolf Hitler, ajudou na produção de um filme sobre o ditador alemão e deu entrevista considerando-o um homem normal, afetivo, amável. Pode?

Pensadores marxistas: Kautsky, Bernstein, Rosa Luxemburgo, Hilferding, Bukharin, Lênin, diante de um mundo moderno entre o radicalismo de Bush e do islamismo fanático, transformaram-se em nada. Teóricos que a rea­lidade superveniente reduziu a pó. Há, ainda, os que sonham com o Estado socialista, como se o Estado fosse capaz de sobreviver sem cobrar impostos e, portanto, sem a existência de empresas capitalistas numa sociedade de mer­cados. A última grande potência comunista, a China, misturou socialismo com capitalismo, instalou bolsa de valores em Xangai e baixou uma lei de defesa da propriedade privada. Cresce 10% ao ano. Mas não perguntem so­bre a miséria de suas populações rurais.

A busca da justiça para as grandes massas tem um caminho conhecido: o consumo, que possibilita a vida das empresas, a venda de seus produtos e o pagamento de impostos para sustentar a burocracia de plantão. A justiça so­cial, com distribuição de renda e felicidade geral, somente virá com pleno emprego e bons salários. O homem empregado é um bom consumidor. Pode pagar um médico e independe do serviço de saúde pública. Esta é a realidade latino-americana.

Ou buscamos isso, ou ficamos com as multidões de cocaleiros da Bolí­via, a baderna do Equador, um socialismo caricato de um Hugo Chávez que legisla por decreto habilitante, uma democracia fisiológica de pagamentos a deputados, com empregos e cargos, ou mesadas, como acontece no Brasil há muito tempo e que somente vira escândalo em duas hipóteses: quando há briga entre os bandidos ou quando algum deles, por incompetência, deixa-se apanhar.

Com o PT, as duas hipóteses aconteceram. É verdade que os partidos de esquerda cultivam os ensinamentos de Lênin. Pratica-se a imoralidade bur­guesa tendo em vista a conquista do poder ou a manutenção e ampliação da­quilo que a “revolução” conquistou.

Lênin foi influenciado por um russo chamado Sergei Netchaiev que es­creveu o Catecismo Revolucionário, até hoje professado pelas esquerdas ex­tremistas. Pode-se assassinar pela causa, pode-se roubar dinheiro privado ou público, trocando o nome da expressão por “expropriar”. Tudo é forma de combater o patrimonialismo, como dizem, da burguesia. São anticapitalistas, mas adoram o capital, pois o catecismo de Netchaiev prega a necessidade de comprar apoios políticos por meio do velho recurso financeiro do odiado ca­pitalismo. Talvez seja por isso que o italiano chama a esquerda de sinistra, que também quer dizer mau agouro. O conhecimento dessas coisas ajuda o entendimento de muitas outras que acontecem em todos os tempos.

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Tudo isso é, porém, discurso inútil e divagação vagarosa. O problema que nos apavorava nos primeiros dias de liberdade em 1985 estava no sub­consciente de cada um: é verdade que estamos livres?

No Brasil, naquele início de democracia, era preciso ter cuidado. A im­prensa ainda falava em “urutus” os tanques de guerra recolhidos aos quartéis.

Ministro da Justiça, Paulo Brossard, sob o maior segredo, convocou uma reunião das lideranças políticas do Congresso, que representavam cerca de 80% dos constituintes. E transmitiu-lhes a preocupação com a fixação do mandato em quatro anos, dizendo que Sarney somente teria dois caminhos: considerar que seu próprio mandato seria atingido e, nesse caso, preferia renunciar; ou re­correr ao Supremo Tribunal, para fazer valer o comando da Constituição vigen­te. Ambas as soluções seriam traumáticas e inspiravam cuidado.

Na mesma época em que o Ministro da Justiça tomou essas providên­cias, eu convidei todos os ministros do Supremo para um jantar em minha casa, inclusive o Procurador-Geral da República, o hoje Ministro Sepúlveda Pertence. Reunião plenária, mas descontraída. Claro que rolaram todos os assuntos relevantes da Constituinte, debatidos por interlocutores competen­tes e mestres em Direito Constitucional. Com aqueles cuidados clássicos de que juiz não opina sobre casos que possivelmente venha a julgar, os assuntos institucionais, de interesse do país, mais relevantes, quebram as reservas pes­soais. No cafezinho, depois da sobremesa, tive a certeza inabalável: submeti­dos ao Supremo os dois assuntos, mandato do Presidente da República e sis­tema de governo, os julgamentos seriam unânimes: a Constituinte derivada não podia alterar nem um nem outro.

Pedi a Roberto Cardoso Alves que comentasse com as lideranças convo­cadas por Brossard o cardápio do meu jantar e a opinião dos convidados. Mas nada falei ao Ministro da Justiça, porque Paulo Brossard era parlamen­tarista ferrenho, discípulo antigo e fiel de Raúl Pila. Declarou-se de acordo com a implantação do parlamentarismo para o futuro governo, preservando-se o sistema presidencialista enquanto durasse o mandato de Sarney. Com ele, era difícil discutir. Não tanto por seus inteligentes argumentos, e mais por sua cativante simpatia. Falava devagar, debulhando sílaba por sílaba, so­taque gaúcho. Expunha suas idéias educadamente e com uma força quase hipnótica. Plebiscito de 1963? Convenhamos que, depois do golpe de 1964, houve ruptura. Tivemos 21 anos de rompimento constitucional e, a tal ponto, que a Constituinte pode ser considerada inaugural. Seduzia, mas não estava certo. Caía em algumas contradições ao defender a idéia de se retornar pura e simplesmente à Constituição de 1946, esquecendo-se de que aquela carta adotara o presidencialismo. Mas defendia, lembrando as posições de Raúl Pila, a adoção do parlamentarismo para o próximo período de governo. Pura paixão, sem nada de jurídico-institucional.

Era preciso enfrentar esse poderoso raciocínio, mais substancioso do que as bobagens de Bernardo Cabral. Brossard tinha prestígio político, além de autoridade jurídica, e estava no Governo, era o Ministro da Justiça. Fui devagar. Não é bem assim. Houve ruptura política em 1964, mas a própria dita­dura se instalou sob a declaração solene e cínica: “fica mantida a Constituição de 1946, com as seguintes alterações”. E lá vieram as cacetadas em cima das li­berdades civis, embora inicialmente aplaudidas por boa parte do povo, que, depois, foi se cansando do engodo. O próprio Brossard disse um dia: “a revo­lução divorciou-se da honra”. Nunca fui adepto de designar o movimento militar como “revolução”, porquanto, na essência, foi um golpe bem à ma­neira dos militares brasileiros: golpe “legal”, segundo seus curiosos hermeneutas. Quebra-se a legalidade dentro da lei. Jabuticaba. Só dá no Brasil ou, talvez, no Havaí, como susto encaroçado.

De qualquer forma, mantiveram a Constituição, com o estrago das emendas dos atos institucionais, até que o povo, em campanha maravilhosa, começou a lutar por liberdade, pedindo o quê? Eleições diretas para Presidente da República. Isso significava alteração da Constituição por emenda (a primei­ra foi rejeitada) e sistema presidencialista de governo, pois, no parlamentaris­mo, a eleição do Presidente da República é indireta, tal como constou da emen­da proposta por Bernardo Cabral e da mais antiga, proposta por Raúl Pila.

Logo, a idéia de parlamentarismo para depois do mandato do atual Presidente era, igualmente, uma grande tapeação institucional. Não se tratava do mandato do Sarney, nem ele estava interessado nisso, mas, sim, do sistema de governo para o resto dos tempos. Além do plebiscito de 1963, e de ser a Constituinte derivada da Constituição em vigor — razões muito sérias —, o povo rompera com a ditadura, pedindo “diretas já”. Diretas para quê? Para eleição de Presidente da República, logo, para o presidencialismo. Tancredo e Sarney foram eleitos pela Constituição então vigente. Assumindo o governo, pelo trágico e até hoje sofrido drama de Tancredo, Sarney convocou a Cons­tituinte por emenda constitucional. Emenda do quê? Emenda da Constituição em vigor.

Sem qualquer tipo de paixão política, o jurista isento teria que reconhe­cer uma inafastável verdade institucional: o povo foi pressionando Executivo e Congresso e, aos poucos, obtendo as reformas na então vigente Carta da República, até chegar à convocação da Constituinte, a qual, portanto, era de­rivada daquela emenda e tinha poderes de reforma, sem a menor legitimi­dade para alterar o sistema de governo. Eu estava certo, tanto que, em novo plebiscito, o povo pronunciou-se mais uma vez em favor do presidencialis­mo. A solução contrária teria violentado a vontade popular e o Estado de Di­reito. Seria um papelão, além de comprometer nossa seriedade perante o mundo, dando razão à frase atribuída a De Gaulle.51

Insisto nessa observação, para deixar meu testemunho de um dos mais importantes momentos da História do Brasil moderno, isto é, da época em que foi elaborada a Constituição que nos rege hoje. Os parlamentaristas bra­sileiros, com Fernando Henrique Cardoso à frente, tentaram um golpe parla­mentar de Estado, evitado pelo bom senso de Sarney. Esse é o verdadeiro mo­tivo do ódio contra o maranhense. O parlamentarismo foi banido do projeto de Constituição. O golpe foi abortado. Imaginem a desgraça para o país se fosse adotado o parlamentarismo, com a qualidade dos parlamentares que temos hoje. Já pensaram em um Severino Cavalcanti como Primeiro-Ministro e Chefe do Governo?

Frustrada a tentativa de golpe, ficaram, depois, discutindo a bobagem dos quatro anos de mandato. A mentira não é odiosa em si mesma, mas por­que se acaba por acreditar nela.52 Sempre entendi que a mentira dolosa é uma falsificação da alma.

Itamar Bopp, ilustre genealogista e historiador, deixou-nos a lição: “A História poderá ser esquecida durante algum tempo, porém nunca será apagada”.

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Não foi possível, porém, melhorar o texto todo do projeto da Cons­tituição. Uma Constituinte sempre se transforma numa panela de tensões, e os políticos brasileiros, quando redigem texto de lei constitucional, têm a mania de elaborar coisas parecidas com estatutos de clube recreativo. Incluem detalhes, miudezas, competências de diretor artístico, de diretor esportivo, de tesoureiro, acabam embaralhando regras que se entrelaçam e se contradizem, algumas ridículas, outras ousadas, mas quase todas frutos de irrefletidos em­bates ideológicos mal digeridos. Essas extravagâncias alucinam o legislador ordinário, para não dizer do enlouquecimento que provocam nos intérpretes e nos hermeneutas.

Conseguiu-se, contudo, eliminar a gestação da igualdade de direito en­tre homens e mulheres, melhorar as garantias fundamentais, o capítulo do meio ambiente, o da família. Criou-se a Advocacia da União, a proteção ao deficiente físico. Acabou-se com a discriminação entre os filhos. Mas a ordem econômica ficou com aquelas trapalhadas de empresa nacional e empresa brasileira, mantido o direito de garimpeiro nos comandos que deveriam ser apenas gerais para o futuro legislador comum. Permaneceu até o artigo admi­tindo que tribunal pudesse ser paciente em habeas corpus e, portanto, réu e preso. Alguns até que mereciam.

E restou o pior. Os constituintes, quando não se entendiam ou não en­tendiam bem o assunto que debatiam, pegaram a mania de mandar a maté­ria para lei complementar ou lei ordinária. A Constituição foi promulgada, mas para funcionar inteiramente dependia de 41 leis complementares e 285 leis ordinárias a serem editadas pelo Congresso.

Até hoje não foram elaboradas todas.


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