Código da Vida



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Sarney começara seu governo obstinado a dar ao país todas as liberdades democráticas. Liberou geral, até o partidão comunista que não havia conse­guido voltar mesmo na era Juscelino. E, ninguém se lembra, mas havia cen­sura no rádio e na incipiente televisão, tolerada pelos mais democráticos go­vernos anteriores ao golpe militar. Sarney acabou com ela.

No Governo Juscelino, a Lei de Imprensa (Lei nº 2.044) considerava cri-me a crítica às “autoridades constituídas”. Na ditadura, foi revogada por uma lei pior (Lei nº 5.250/67), que passou a considerar tudo como crime, e a res­ponsabilidade criminal podia ser transferida de uma pessoa para outra. Por exemplo: se alguém, no exterior, escrevesse um artigo contra o regime, pren­dia-se o chefe de redação que autorizasse a publicação. Tempos duros. Esse monstrengo dura até hoje, neste começo do século XXI.

Nós, porém, fizemos esse entulho jurídico cair em desuso. O Judiciário ajudou muito, menos em alguns setores que permitiram o surgimento da in­dústria das indenizações civis contra jornais e jornalistas. O problema, po­rém e naquela hora, não era lei alguma. Era uma nova renúncia.

Não seria no fim de seu governo que Sarney provocaria um impacto com a renúncia, ato que balançaria as instituições pelas quais tanto lutou desde o primeiro dia de sua posse. E ninguém, em sã consciência, poderia prever o resultado. Manteve os dois ministros.

Fui jantar com ele. Fazer-lhe companhia. O dia tinha sido emocional­mente massacrante. No Palácio da Alvorada, Dona Kyola, mãe de Sarney, es­tava em frente à televisão, assistindo a uma entrevista de Fernando Collor, que ainda falava mal do Presidente, ameaçando mundos e fundos, tal como fizera na campanha eleitoral:

— Esse moço vai acabar mal — disse Dona Kyola, quando chegamos perto.

Sarney agüentou, transmitiu o cargo a seu sucessor no mês de março, quando a inflação bateu em 84,32%, e isso em virtude das medidas anuncia­das pelo próprio Collor, pois, até dezembro anterior, o surto inflacionário es­tava sob controle. E o mais importante: a democracia era uma conquista irre­versível, e o desemprego (para inveja de muita gente) estava em 2,7%, muito abaixo dos 10% deixados pela ditadura. Era o que interessava a Sarney. O novo Presidente empossado confiscou a poupança do povo brasileiro e aca­bou posto para fora, não pelo confisco, mas pela imoralidade que atribuía aos outros. Dona Kyola vaticinou, e os anjos disseram amém.

Na última reunião do Ministério do primeiro Governo Civil depois da ditadura, uma semana antes da posse de Fernando Collor, Sarney fez um dis­curso demonstrando que, apesar das fantásticas dificuldades políticas e institu­cionais, muita coisa fora conquistada, entre elas o desemprego de apenas 2,7%, número que mata Lula de inveja, já que ele se proclama melhor em tudo.

Enumerou uma lista expressiva de melhorias. Franqueada a palavra aos ministros de Estado, fui o primeiro a falar. Dei-lhe mais um título: o de direito autoral da democracia. Claro que o regime democrático brasileiro foi con­quistado pelo esforço de muita gente, muito sofrimento, muito sacrifício. Pelas greves dos sindicalistas no Estado de São Paulo, inclusive Lula, apoiadas por lideranças expressivas, Franco Montoro, Eduardo Suplicy, Dalmo Dallari, José Carlos Dias, o destemido Tito Costa, que organizou plantão em praça pública para enfrentar a ditadura. Passaram por lá Mário Covas, Ulysses Guimarães, Teotônio Vilela, até Fernando Henrique Cardoso, em conduta absolutamente sincera e convicta, por incrível que pareça.

Mas a costura final da democracia em Estado de Direito o país deve à paciência e à habilidade de Sarney, quando assumiu a presidência da Repú­blica, sem nenhuma legitimidade, criticado e confrontado, que nos levou à Constituinte, assegurando as liberdades públicas e políticas. Segundo a lógica de Marilena Chauí, filósofa do PT, Sarney deve ser odiado por isso, posto que o PT, naquela época, apenas atrapalhava. Não tinha a menor vocação para elaborar as regras fundamentais das instituições democráticas, coisa da deca­dente burguesia.

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Vários ministros falaram, despedindo-se e declarando-se honrados de haverem servido sob a presidência de José Sarney. Dentre eles, Maílson da Nóbrega, que, naquele instante final, fez um discurso um tanto mea culpa e demonstrou grandeza de alma ao despedir-se do Governo, reconhecendo que as dificuldades econômicas não impediram a conquista maior: o fortale­cimento das instituições.

Depois, falou Roberto Cardoso Alves, Ministro da Indústria e Comér­cio, relatando sua gestão no ministério e fazendo um enorme elogio a Maíl­son da Nóbrega, que, inteligente como é, entendeu tratar-se de uma “enco­menda” de Sarney, amigo íntimo do Robertão, para um final feliz em suas relações, na despedida do poder.

Cardoso Alves encerrou sua fala comunicando que havia vendido por licitação pública as vacas leiteiras da Companhia Siderúrgica Nacional. É isto: a CSN criava vacas. E eram gordas.

Ronaldo Costa Couto saiu do governo e dedicou-se a escrever história contemporânea, o ótimo Matarazzo42 e, entre outros, o seu excelente livro Brasília Kubitschek de Oliveira, que inspirou a minissérie JK, de Adelaide Amaral, escondida pela Globo nas transmissões das madrugadas. Não sei se Costa Couto um dia irá lembrar-se de escrever sobre as vacas da Companhia Siderúrgica Nacional. Mas elas existiram.

83

Clotilde entrou em minha sala esbaforida, fechou a porta e disse, gaguejando:

— Chefe, aconteceu algo incrível. Hoje, na saída da escola das crianças, o motorista, como de costume, atrasou-se, e eu fiquei com elas para mais um papo, pois, além de conquistar a confiança, estou arrancando coisas aos pou­quinhos, gota a gota. E, hoje, elas me contaram algo fantástico: o juiz foi à casa delas.

— O quê?


— É isso aí. O juiz da causa foi à casa delas.

— Como elas sabem que era o juiz? O que ele fez? A mãe estava junto?

— Disseram que o juiz, acompanhado de outro homem, chegou sem avisar, hoje de manhã. A empregada deixou-os entrar e, sem falar com a mãe, levou-os diretamente às crianças. Elas disseram que ele é bonzinho.

— Ele disse às crianças que era juiz?

— Acho que não. Segundo elas, foi a empregada que falou tratar-se do juiz.

— Mas como você sabe que é o juiz da causa? Alguém se apresentou, falou ser o juiz e entrou? Pode ser um juiz de futebol, um juiz de paz, um ven­dedor de Bíblia anunciando o Juízo Final!

— Tenho certeza. Elas disseram que a mãe ficou muito nervosa. E ten­tou impedir a conversa. Elas ficaram com medo. Mas o outro homem cha­mou a mãe e a fez sentar. E o homem, que eu sei ser o juiz, ficou conversando com elas sobre o pai, sobre o que elas disseram, como haver dormido sem roupa com a namorada do pai. Aí eu perguntei: o que vocês responderam?

— Que estávamos com medo da mamãe; que a mamãe que mandou falar e agora mandou falar que ela não mandou.

Clotilde prosseguiu:

— Pelo que me contaram, as coisas ficaram confusas. Disseram, porém, que ele passou a mão na cabecinha delas, falou para terem paciência com a mãe e que um dia, muito breve, voltariam a receber a visita do pai, o que as deixou na maior felicidade. Daí minha conclusão bastante óbvia: era o juiz da causa.

Foi minha vez de gaguejar. Teria sido possível? Que fantástico esse jovem magistrado! A lei processual, isto é, o Código de Processo Civil, permite a ins­peção judicial, art. 440: “O juiz, de ofício ou a requerimento da parte, pode, em qualquer fase do processo, inspecionar pessoas ou coisas, a fim de se esclarecer sobre fato, que interesse à decisão da causa”. Mas, em meio século de advocacia, eu nunca tinha visto um juiz do cível usar desse permissivo legal, sobretudo sem observar os preceitos processuais que burocratizam a diligência.

Em geral, os meritíssimos sentam-se em suas cadeiras de magistrados e não tiram a bunda de lá, a não ser para ir embora. Em São Paulo, jamais aconteceu. Mais tarde, conversando com colegas meus de outros estados, eles até riram. Nunca sequer souberam de algo igual.

Mas o jovem juiz da minha causa, sem alarde, sem avisar as partes, quie­tinho, aplicou o art. 440 de um jeito muito especial e foi fazer a inédita inspe­ção judicial na casa das crianças, para ouvi-las, para sentir de perto o drama que viviam, para descobrir se era mentira ou verdade o que constava da bru­tal gravação anexada ao processo. E dispensou as formalidades do Código de Processo Civil, a começar pelo acompanhamento da diligência pelas partes. Se observada a regra, a confusão seria total. O juiz teve que decidir: ou obser­vava a regra ou observava as crianças. Pelo que Clotilde apurou junto às crianças, o magistrado não ficou sabendo de tudo com absoluta segurança. Mas verificou o pavor das crianças diante do assunto.

E o outro homem? Quem era o outro homem?



84

Já estava encerrado o expediente. Mas o escrivão trabalhava até tarde. Tentei o telefone. O dia era de sorte. Ele se encontrava no cartório:

— Hoje de manhã? Não estou sabendo de nada! — respondeu ele à minha pergunta ansiosa.

Insisti:


— O senhor tem certeza de que não sabe de nada? O juiz não foi à casa dos filhos do Sr. Olavo Brás, aquele do processo de visitas, da gravação, da ameaça do suicídio...

— O processo eu conheço, Dr. Saulo. Sei, sim, do que se trata. Mas pos­so assegurar-lhe que o juiz não fez qualquer diligência desse tipo. Eu saberia. O senhor está dizendo que foi hoje de manhã. Ora, o expediente aqui na vara é à tarde. O juiz iria fazer diligência fora do expediente? E sem levar ninguém com ele? Lembre-se, doutor, de que o art. 441 diz que o juiz, na inspeção di­reta, deve ser assistido por um ou mais peritos.

— Não, meu caro. A lei diz que o juiz poderá ser assistido e não que de­verá. O magistrado pode muito bem dispensar a assistência pericial quando a julgar desnecessária. Mas ele levou alguém consigo. Um senhor o acompa­nhava, segundo a empregada da casa.

— Impossível — retrucou o escrivão. — Eu saberia. Não convocou ne­nhum servidor para acompanhar a diligência. O senhor tem certeza de que foi ele?

— Tenho. Amanhã passarei por aí. Dê uma sondada em Sua Excelência. Estarei aí na primeira hora.

Naquela noite, dormi mal. Fiquei muito agitado com a notícia e, con­fesso, sem saber se era realmente uma notícia ou uma hipótese sonhada pela Clotilde. Mas, se as crianças falaram das perguntas sobre o pai, de detalhes sobre dormir com a namorada dele e disseram ter medo de contar que a mãe as proibiu de falar, era muita confusão para a cabeça delas e para a minha também. Só podia ser verdade.

Esse Olavo Brás ganhou na loteria. Seu caso estava nas mãos de um dos melhores juizes do país. Eu conhecia as qualidades do jovem magistrado, a inteligência, a cultura, a seriedade, a dedicação e o apostolado com que exer­cia a Magistratura. Mas não esperava tanto. Não esperava que fosse cumprir o máximo dever de um juiz em casos como esse: buscar ele próprio a ver­dade. Poucos fazem isso. Ou quase ninguém.

85

Na minha vida, conheci juizes formidáveis, dos quais guardo lembran­ças entusiastas e profundo respeito. Mas sofri também grandes desilusões. Algumas lamentáveis. Vou contar uma delas.

Terminado seu mandato na Presidência da República, Sarney resolveu candidatar-se a Senador. O PMDB — Partido do Movimento Democrático Brasileiro — negou-lhe a legenda no Maranhão. Candidatou-se pelo Amapá. Houve impugnações fundadas em questão de domicílio, e o caso acabou no Supremo Tribunal Federal.

Naquele momento, não sei por que, a Suprema Corte estava em meio recesso, e o Ministro Celso de Mello, meu ex-secretário na Consultoria Geral da República, me telefonou:

— O processo do Presidente será distribuído amanhã. Em Brasília, so­mente estão por aqui dois ministros: o Marco Aurélio de Mello e eu. Tenho receio de que caia com ele, primo do Presidente Collor. Não sei como vai considerar a questão.

— O Presidente tem muita fé em Deus. Tudo vai sair bem, mesmo por­que a tese jurídica da defesa do Sarney está absolutamente correta.

Celso de Mello concordou plenamente com a observação, acrescen­tando ser indiscutível a matéria de fato, isto é, a transferência do domicílio eleitoral no prazo da lei.

O advogado de Sarney era o Dr. José Guilherme Vilela, ótimo profissio­nal. Fez excelente trabalho e demonstrou a simplicidade da questão: Sarney havia transferido seu domicílio eleitoral no prazo da lei. Simples. O que há para discutir? É público e notório que ele é do Maranhão! Ora, também era público e notório que ele morava em Brasília, onde exercera o cargo de Se­nador e, nos últimos cinco anos, o de Presidente da República. Desde a facul­dade de Direito, a gente aprende que não se pode confundir o domicílio civil com o domicílio eleitoral. E a Constituição de 88, ainda grande desconhecida (como até hoje), não estabelecia nenhum prazo para mudança de domicílio.

O sistema de sorteio do Supremo fez o processo cair com o Ministro Marco Aurélio, que, no mesmo dia, concedeu medida liminar, mantendo a candidatura de Sarney pelo Amapá.

Veio o dia do julgamento do mérito pelo plenário. Sarney ganhou, mas o último a votar foi o Ministro Celso de Mello, que votou pela cassação da candidatura do Sarney.

Deus do céu! O que deu no garoto? Estava preocupado com a distribui­ção do processo para a apreciação da liminar, afirmando que a concederia em favor da tese de Sarney, e, agora, no mérito, vota contra e fica vencido no ple­nário. O que aconteceu? Não teve sequer a gentileza, ou habilidade, de dar-se por impedido. Votou contra o Presidente que o nomeara, depois de ter demons­trado grande preocupação com a hipótese de Marco Aurélio ser o relator.

Apressou-se ele próprio a me telefonar, explicando:

— Doutor Saulo, o senhor deve ter estranhado o meu voto no caso do Presidente.

— Claro! O que deu em você?

— É que a Folha de S. Paulo, na véspera da votação, noticiou a afirmação de que o Presidente Sarney tinha os votos certos dos ministros que enumerou e citou meu nome como um deles. Quando chegou minha vez de votar, o Pre­sidente já estava vitorioso pelo número de votos a seu favor. Não precisava mais do meu. Votei contra para desmentir a Folha de S. Paulo. Mas fique tran­qüilo. Se meu voto fosse decisivo, eu teria votado a favor do Presidente.

Não acreditei no que estava ouvindo. Recusei-me a engolir e per­guntei:

— Espere um pouco. Deixe-me ver se compreendi bem. Você votou contra o Sarney porque a Folha de S. Paulo noticiou que você votaria a favor?

— Sim.


— E se o Sarney já não houvesse ganhado, quando chegou sua vez de votar, você, nesse caso, votaria a favor dele?

— Exatamente. O senhor entendeu?

— Entendi. Entendi que você é um juiz de merda! Bati o telefone e nunca mais falei com ele.

86

Daí para frente, Celso de Mello passou a sofrer um processo de distúr­bio psicológico com relação a mim, que deve torturá-lo muito.

Há pouco tempo, já passados quase quinze anos, o Supremo Tribunal julgou um caso muito interessante do ponto de vista jurídico. O Procurador-Geral da República pediu o arquivamento de um inquérito aberto contra o Senador Antônio Carlos Magalhães. Mudou o Governo, e o novo Procurador-Geral da República, no mesmo inquérito, ofereceu denúncia, sem que o pe­dido de arquivamento tivesse sido apreciado e sem qualquer fato novo. A questão processual penal transformou-se em matéria do mais alto interesse para os estudiosos. A imprensa a explorar o lado político e, por isso, confun­dindo tudo.

Sarney, com sua eterna alma de conciliador, pediu-me que solicitasse a Celso de Mello estudar o assunto, considerando que já havia pedido de arqui­vamento do inquérito pelo procurador anterior. O novo não podia modificá-lo. Lembrei-lhe que não tinha condições de falar com o ilustre ministro de Tatuí, pois havíamos tido aquele entrevero no caso de sua candidatura pelo Amapá. Sarney ponderou que o incidente estava prescrito. Passaram-se quinze anos. Passei a desconfiar: Sarney desejava realmente o voto do Celso de Mello ou queria que eu fizesse as pazes com ele?

A nova questão legal era clara: o pedido de arquivamento pelo Procurador-Geral não permitia a denúncia pelo novo chefe do Ministério Público Federal. Não me senti em condições de falar coisa alguma, mas, como pedido do Sarney me toca no coração, solicitei a um amigo comum, do Celso de Mello e meu, para falar com ele, inclusive lembrando votos dele no sentido da tese defendida pelo advogado de ACM.

Recebeu o amigo comum, que havia sido seu colega no Ministério Pú­blico de São Paulo, homem honrado, culto, excelente advogado, de uma ho­nestidade e boa-fé a toda prova. Mas este cometeu o pecado de dizer que eu tinha interesse na tese, embora não advogasse e nada tivesse a ver com o réu. O que faz o ilustre Ministro do Supremo? Afirma ao amigo comum que a tese está correta e manda-lhe mais três ou quatro votos seus, estudos e outros tra­balhos, demonstrando que não se pode oferecer denúncia em inquérito com pedido de arquivamento.

Meu amigo exultou com a missão cumprida, enviou-me os votos, e eu os enviei ao advogado do ACM, que os usou em memorial.

Dia do julgamento. O Tribunal pleno rejeita a denúncia contra apenas dois isolados votos. Um deles era o do Ministro Celso de Mello. O outro era da relatora, que votou em primeiro lugar. Se não fosse relatora, teria votado diferente, depois de ouvir a quase unanimidade dos votos de seus colegas.

Celso de Mello votou contra o ACM, contrariando suas próprias convic­ções jurídicas? Aqui surge outra curiosidade intrigante: José Celso de Mello foi Presidente do Supremo Tribunal na mesma época em que Antônio Carlos Magalhães era Presidente do Senado Federal. Os dois, como chefes de poderes, estabeleceram forte ligação pessoal. E ACM resolveu fazer, no Senado Federal, uma bobagem fantástica: a CPI do Judiciário. E teve o apoio do Celso de Mello. Vou analisar o melado.

87

O país pegou fogo. Como poderia um Poder investigar o outro? O co­mando constitucional da separação dos poderes e da harmonia entre eles ti­nha ido para a cucuia. Nas discussões que se seguiram, tomei o lado do Judi­ciário, que estava sendo acusado de lutar por privilégios. Escrevi artigos de jornal e fiz conferências, demonstrando que não se tratava de privilégios, mas de prerrogativas constitucionais, que não podiam ser alteradas ou violen­tadas contra a Magistratura, por intermédio de um órgão político de outro Poder. Ameaçavam as regras de aposentadoria dos juizes e outras proteções instituídas em âmbito constitucional.

Pois Celso de Mello, Presidente do Supremo Tribunal Federal, isto é, chefe máximo do Judiciário, postou-se contra o Poder que chefiava. Mesmo se, no fundo de suas convicções, nutrisse alguma censura ao Judiciário, devia ser, ao menos, discreto, invocar a necessidade de maior reflexão, de maiores debates pelo Congresso, e não em uma CPI, cuidados simples para não expor à execração pública o Poder que comandava. “Os juizes estão lutando por pri­vilégios”, sustentava ele do alto da Presidência do Supremo Tribunal Federal. Que desastre!

Aquilo que eu dissera a Oscar Correia, isto é, que o tempo corrigiria o único defeito dele, que era ser muito jovem, não aconteceu. O tempo não corrigiu coisa alguma.

Muitos advogados sabiam que Celso de Mello havia sido meu secretário na Consultoria da República e nomeado Ministro do Supremo por empenho meu. Mas não estavam informados do rompimento. Assim, alguns, quando Celso de Mello era relator de processo de interesse deles, vinham me pedir para solicitar o apressamento, dar especial atenção, aquelas conversas sempre expressas na costumeira frase:

— Peço-lhe o favor de dar uma palavrinha ao ministro.

— Meu querido colega, com esse ministro não posso dar palavrinha al­guma, porque rompi com ele, precisamente por lhe haver dito um palavrão.

Devo, porém, uma explicação a todos os juizes do Brasil: aquele desaviso de Celso de Mello contra a Magistratura não era contra a Magistratura; estava apenas tomando posição contrária à minha.

Para não aborrecer os eventuais leitores deste livro, evito transcrever aqui trabalhos meus, salvo alguns indispensáveis. O artigo de jornal que na época publiquei na Folha de S. Paulo merece ser transcrito, para que se avalie o clima da briga que travamos naquele tempo:

“ASSASSINATO DAS INSTITUIÇÕES

O nobre Senador Paulo Souto, relator da CPI do Judiciário, declarou que todas as denúncias, que já chegaram, estão chegando e por chega­rem, serão apuradas. Logo, não há, como exige a Constituição, fato pre­viamente determinado. Somente existe o fato determinante: intimidar a Justiça. O relator confessa publicamente o que estava óbvio no próprio requerimento: a inconstitucionalidade da comissão. Não há dúvida: é devassa nascida da devassidão, da licenciosidade constitucional, ou, como declarou seu criador, veio para provar que o juiz não é intocável. É, portanto, tocável.

Conheço muitos casos graves ocorridos no Judiciário. Mas não os delatarei a nenhum tribunal de exceção. A independência das institui­ções deve prevalecer sobre o humano desejo de ver os corruptos puni­dos, pois o direito maior, isto é, o direito constitucional, declara caber ao Judiciário a competência exclusiva para investigar magistrados e puni-los. A obediência ao Estado de Direito está acima de qualquer his­teria punitiva, de qualquer aparato de caça às bruxas sem contemplação na ordem jurídica, ainda que sob aplausos da opinião pública condu­zida pela opinião publicada.

Nos casos em que atuei como advogado, desci bordoadas nos juizes de duvidosa moralidade. O bom debate assegura a moralidade das decisões finais, pois quase sempre o direito e a justiça acabam preva­lecendo no Judiciário brasileiro. Isto tem que ser preservado, a qualquer custo, até mesmo ao preço de conter-se o desabafo íntimo e pessoal contra muitos magistrados indignos da função, cujos nomes deleto do meu respeito, mas não os delato ao linchamento.

No regimento interno do Senado, em obediência à Constituição, o art. 146 diz: ‘Não se admitirá comissão parlamentar de inquérito sobre matérias pertinentes à Câmara dos Deputados, às atribuições do Poder Judiciário, aos Estados’. Quanto ao Judiciário, a proibição está sendo atropelada com base em pesquisa de opinião pública. E quanto aos Estados? O Estado, com­posto de três poderes tutelados pela autonomia constitucional, não pode ter um deles submetido à investigação de órgão da União. Logo, os fatos imputados aos judiciários estaduais, se averiguados pelo Senado, resulta­rão em descarada intervenção na unidade federativa da República.

Falho é, sem dúvida, o sistema constitucional de punição dos juizes Mas a Constituição foi elaborada pelo Congresso, sob a liderança de muitos dos políticos que hoje acusam o Judiciário. A regra do art. 93 VIII, que admite punir-se o juiz com a disponibilidade imposta pelo tri­bunal “respectivo”, por dois terços dos votos, é ridícula. Primeiro, por­que se exige um número de votos difícil de atingir-se em muitos casos; segundo porque, e por isto mesmo, o processo corre em segredo, pois, na hipótese de condenação até por maioria absoluta, o juiz é conside­rado absolvido e volta a judicar. Este insuficiente critério constitucional reclama reforma. É preciso um órgão disciplinar de competência nacio­nal, com decisões tomadas por maioria simples. Ao Legislativo cumpre, pois e urgentemente, fazer a lei, não inquérito.

Esta CPI do Senado nada disto fará. Nem pode, porque sua limitação em apurar fato determinado não lhe permite girar a metralhadora, para devassas gerais, como anuncia seu relator ao admitir denúncias que vão chegando. Será apenas um palco iluminado para maledicências, dela­ções, deduragem, acusações de desafetos, um carnaval de trios elétricos de alta tensão. Nenhuma utilidade terá esta comissão para a única pro­vidência séria: a reforma constitucional do Judiciário. E a CPI, se perdu­rar, o que pode fazer? A Constituição (art. 58, § 3º) manda encaminhar suas conclusões ao Ministério Público para que tome providências junto a quem? Ao Judiciário. Logo, a CPI vai chafurdar na inconstitucionalidade para, no final, chover no molhado ao dizer à Justiça: puna-se a si própria, o que já está dito na Constituição.

Mas o choque entre os poderes, por motivos de divergentes concep­ções dos valores institucionais, causará feridas e ressentimentos. A ne­cessária reforma constitucional não deve, e não pode, ser debatida e votada em clima de rancor ou sob um torneio de frases de efeito.

Cabe ao Supremo Tribunal trancar este mostrengo, com fundamen­to na separação dos poderes. Será maior o desastre, se reconhecida ape­nas a incompetência parcial do Senado quanto aos estados: qualquer Assembléia Legislativa vai abrir CPI contra o Judiciário estadual, não só para miúdas vinganças, mas e também para o processo de intimidação de um poder contra o outro, nesta teratológica solução contrária aos fundamentos da democracia, que concebeu a justiça independente para a defesa dos cidadãos lesados pelo Legislativo nas leis inconstitucionais, e pelo Executivo no abuso dos atos arbitrários e ilegais. Nos estados, onde o poder político ainda impera desafiando a modernização das instituições, o retrocesso será fatal.

De nada vale dizer que se vai agir com moderação, como sustentou a ingenuidade de Michel Temer. Não se atenua o defeito do ato ilícito apenas porque praticado moderadamente. Matar com moderação, assaltar com moderação. O próprio presidente do Supremo, chefe do Poder Judiciário, disse ser legítima a CPI em nome da transparência. Aí está um exemplo de desastre praticado com moderação, mas não deixa de ser desastre. Se gosta de transparência, é melhor que Sua Excelência fale, não sobre o fundamento das instituições, mas invoque a lingerie da Tiazinha, que, inclusive, usa chicote, e, ao menos, sacode sua transpa­rência, escondendo o rosto sob uma máscara de zorra. Não se reco­mende, porém, a mesma conduta para o Judiciário, acusando-o de ‘poder que se oculta’.

O Judiciário tem, por definição, profundas diferenças no exercício de suas funções institucionais. O juiz não é apenas um servidor público, mas é o próprio poder, exercido individualmente. Não é possível fazer-se o poder sentar no banco dos réus, submetido a interrogatório, a não ser pelos seus pares, jamais pelos seus ímpares. Esta condição não o transforma em poder absoluto, mas não justifica tampouco sua sub­missão ao obsoleto processo de intimidação política e parlamentar, pois, no sistema constitucional brasileiro, o Legislativo tem compe­tência apenas para investigar o Executivo, competência ultimamente atrofiada por falta de uso ou por excesso de cumplicidade.

A sugestão, que condiciona a legitimidade do Judiciário aos juizes se despirem diante de inquisidores políticos, é um atentado ao poder e ao pudor. O juiz passa a ser tocável como gado para o matadouro. A CPI do Senado inaugura, pelo desrespeito ao fundamental princípio democrá­tico da independência da magistratura, uma temporada de caça e de­vassa como em qualquer ditadura. Atenta-se, é claro, contra os direitos e garantias constitucionais do povo, por atingir e intimidar o sistema que os defende e aplica. Rui Barbosa, baiano ilustre (na minha opinião, o mais ilustre de todos, sem ofensa ao meu querido Jorge Amado), já deixou advertido: ‘Creio que a Federação perecerá, se continuarmos a desacatar a Justiça’. Por essa e outras razões, a história registrará a CPI do Judiciário, não apenas como desmoralizante devassa, mas como la­mentável devassidão, ainda que, pela idade dos participantes, praticada moderadamente. Ao lado dos assaltos e violência nas ruas, estamos assistindo ao assassinato das instituições e, como disse Rui, da própria Fede­ração. Não temos mais segurança, nem pública, nem institucional.”

Se eu tivesse apoiado a bobagem do ACM, certamente Celso de Mello te­ria defendido o Judiciário. O erro foi meu.

É preciso que o Judiciário saiba disso. E o perdoe. No fundo, no fundo, ele é um bom sujeito. E como já não estou mais advogando perante o Su­premo Tribunal Federal, Celso de Mello será um bom juiz até sua aposenta­doria em 2015.


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