Código da Vida



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Já advogado em São Paulo, conhecendo quase todo mundo, fui procu­rado por um diretor do Banco do Estado, que me disse:

— Seu pai está na lista dos devedores remissos. É preciso apagar isso. Se você quiser, dou um jeito.

Primeiro, não gostei de haver o diretor descoberto esse enorme segredo de família. Por que se meteu no assunto? E o sigilo bancário? Um pouco sem delicadeza, disse-lhe para não se incomodar. Meu pai já não tinha mais fa­zenda; era apenas diabético. Vivia tranqüilo em sua casa de Santos, longe das complicações das lavouras de café. Em Ribeirão Preto, nem café havia mais. Somente canaviais e usinas. E não havia mais a minha infância, que ficou remida (no sentido certo) com a dívida da safra insuficiente.

Tempos depois, no auge de minha carreira profissional, meu pai mor­reu, ainda “remisso” no cadastro do Banco do Estado. Por ironia, jamais um agricultor me procurou para discutir dívidas com aquele banco. Nesse aspec­to, os advogados do interior têm a indiscutível preferência. E são melhores. Vivem dentro do drama de seus clientes.

Mas, precisamente entre pessoas famosas, surgiu um executado pelo Banco do Estado de São Paulo, que me procurou para defendê-lo. Era Ed­mundo Monteiro, diretor dos Diários Associados, executado por haver avalizado enorme dívida cambiária da empresa para com o banco. Aquelas coisas de Assis Chateaubriand. Aceitei a causa, sem nada cobrar.

— Mas como?

— O banco vai pagar tudo.

— Mas, doutor, é aval, obrigação cambiária, não há como me livrar disso!

— O senhor me procurou para quê?

— Para ganhar tempo, fazer um acordo mais tarde, dificultar as coisas para o credor!

Sua intuição, já naquele tempo, estava certa. O Judiciário é o paraíso dos devedores. Ganha-se tempo, ganha-se a eternidade, e enlouquecem-se os cre­dores que, algumas vezes, celebram acordos lesivos aos seus créditos.

— Nada disso! — respondi eu e, com o máximo atrevimento, com­pletei: — Vamos ganhar a causa!

Incrédulo, assinou a procuração. Não sei o que ele disse para sua fa­mília àquela altura. Mas ganhei a causa. Aleguei ter sido o aval obtido sob coa­ção do banco e da empresa contra seu empregado, quando não estava em con­dições de levantar tão vultoso empréstimo, concedido por gestão temerária da diretoria da instituição financeira, tudo provado, com testemunhas, laudos, balanços. Bingo! Sentença linda, confirmada no tribunal. Transitou em julgado. E os honorários de sucumbência foram realmente polpudos. Em valores reais, recebi cem vezes mais do que meu pai devia ou devera ao banco. Recebi, portanto, mais de cem boas safras de café nunca produzidas pela Fazenda Santa Luzia.

Um diretor dos Diários Associados,56 naquilo que sobreviveu do enor­me grupo de comunicação, não se esqueceu da façanha. Até hoje, quando me encontra, fala no aval do Edmundo e me pede para contar o segredo.

Contei a história a meu filho Fernando Saulo, e ele pediu-me para com­prar-lhe um carro. Não comprei. Apliquei os honorários no tratamento mé­dico de minha mãe, que sofria de glaucoma. Com acompanhante, mandei-a para a Espanha, Paris, Roma, com farto suprimento de dólares, a conselho de um excelente oftalmologista de Ribeirão Preto, Dr. Guilherme Ortolan, que confiava nos avançados recursos europeus. Adiantou pouco. Depois de várias cirurgias, perdeu a visão de um olho. Mas ficou encantada por haver visitado a Espanha, terra do pai dela, meu avô, que morreu não acreditando em avião. “Se quisesse que o homem voasse”, dizia ele, “Deus lhe teria dado asas.” Não tinha jeito. Avião não existia.

Meu pai, porém, continua na lista dos inadimplentes do Banco do Es­tado de São Paulo, que hoje se chama Santander, comprado pelos espanhóis, conterrâneos do meu avô, que não acreditava em avião. Meu pai era agri­cultor, circunstância que o faz inadimplente, mesmo depois de morto.

Não tenho vagas para clientes novos. Meu escritório continua repleto de causas. E como tenho clientes! Todos absolutamente inocentes! Sei que me tornei advogado famoso, mas, no fundo, devo a meu pai inadimplente o cuidado com o qual estudo as questões dos injustiçados. Ele era um deles, quando “ajustou” o Dr. Guião. Que fim levou a Sinhá Junqueira? Como dói a saudade de Ribeirão Preto e de Cravinhos, saudade julgada e condenada à revelia, sem advogado que a defenda! Não há defesa para a melancolia de estar longe do ventre de minha infância. A saudade dói, mas não transita em julgado. Carlos Drummond apenas descobriu que ela doía.



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O caso do Sr. Olavo Brás, embora caminhando lentamente, como tudo no Judiciário, teve alguns avanços significativos. O requerimento para ouvir a médica da ex-esposa mereceu um substancioso parecer favorável do Cura­dor de Família, um dos mais dedicados e cultos membros do Ministério Pú­blico de São Paulo. Observou ser absolutamente imperiosa a necessidade de ouvir da especialista o diagnóstico do estado mental da mãe das crianças para avaliar a consistência ou a fantasia das acusações contra o ex-marido, além de colher elementos para o deslinde principal: qual destino dar à guarda das crianças. A semente da dúvida estava germinando naquele processo.

Além disso, o Curador ainda insistiu na conveniência de se obter, caso confirmada alguma doença mental grave, um prognóstico de seu desenvolvi­mento, pois estava em jogo o interesse da educação futura dos menores sob a guarda da mãe.

Fiquei tão alegre com o parecer do Ministério Público que tive de apla­car minha consciência. Eu achava realmente que a mulher era louca, por ter feito o que fez. Mas, claro, além de não a conhecer, não tinha a menor idéia sobre o tipo de doença mental que sofria. Que sofria alguma, sofria. Era, sem dúvida, uma psicótica. Ninguém contrata uma psiquiatra de fama apenas para falar mal da vizinha ou para contar as gracinhas de seu gato de estimação. Enfim, eu estava realmente torcendo para que a mulher fosse clinicamente louca. E torcendo mais ainda para a médica contar tudo isso em audiência

Não seria fruto de uma censurável parcialidade do advogado? Meu Deus, não é bem assim! O advogado, na defesa do cliente, tem que ser parcial não há outro jeito. Não apenas fazer tudo em favor do direito dele, como também bombardear, sem incorrer em nenhuma prática ilícita, as pretensões da parte contrária. Paciência! Era meu dever. Tomara que a mulher fosse louca. Melhor ainda se fosse louca varrida.

Afinal, chegou o dia da audiência na Vara de Família, marcada para ou­vir a psicanalista da ex-mulher do Sr. Olavo Brás. Quando entrei na sala do juiz, ele me contou uma curiosidade. Disse que, quando o oficial de justiça intimou a médica para depor, informando do que se tratava, a psiquiatra exclamou:

— O que será que ela aprontou desta vez?

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A doutora, psicanalista e psiquiatra, foi convidada a se sentar pelo pró­prio juiz, que, num gesto de gente educada, saiu de sua poltrona e puxou a cadeira, para que a senhora se acomodasse com maior facilidade. Podia ter mandado o escrevente fazer isso. E fez as apresentações:

— Aqui estão o Curador de Família, os advogados das partes, aquele se­nhor ali é o patrono do Dr. Olavo Brás, e esse doutor, ao seu lado, representa sua cliente.

— Ex-cliente — atalhou desembaraçadamente a médica.

— Agradeço à senhora por atender à intimação para vir depor. Sua obrigação legal já está cumprida. A senhora pode recusar-se a responder as perguntas que, a seu critério, contrariem seus deveres éticos de guardar sigilo sobre a intimidade de sua ex-cliente. Apenas gostaria de enfatizar que esta­mos tratando de um problema grave, no interesse de dois menores, filhos dela, procurando encontrar a melhor solução para as crianças. E nisso a se­nhora pode nos ajudar muito.

— No que puder, estou disposta a ajudar — respondeu a doutora.

— A sua ex-cliente fez tratamento com a senhora, segundo temos in­formações — começou o juiz, usando de sua costumeira habilidade, que se esmerava pela delicadeza e educação. — E gostaríamos de saber qual o tipo de doença diagnosticada pela senhora.

— A princípio, parecia tratar-se de paranóia simples, aquela doença psiquiátrica cuja característica central é um delírio bem organizado. As idéias falsas persistem no tempo e são contraditórias às evidências da realidade, mas não desorganizam completamente a personalidade e o funcionamento do indivíduo, como a esquizofrenia. Ela apresentava mania de perseguição, e o principal perseguidor era o marido, pois, na época, estava casada.

— A senhora disse “a princípio”. O que descobriu, além da paranóia simples? — perguntou o magistrado.

— Algo muito mais complicado: além do delírio paranóide, da certeza da perseguição, descobri, logo depois, em sessões continuadas, que cumulava igualmente a paranóia com delírio erotômano.

— A senhora pode nos explicar, todos somos leigos na matéria, o que é delírio erotômano?

— É, igualmente, mania de perseguição, mas por pessoas que, na sua fantasia, desejam ter um caso romântico com ela, viver uma aventura, fazer sexo. Esse aspecto é perigoso, porque o doente, às vezes, conhece uma pessoa na realidade, numa festa, numa reunião, é apenas apresentado e vai para casa com a sensação nítida de que recebeu um convite para a aventura. Torna-se tão real que, no dia seguinte, é capaz de telefonar para a pessoa, ou censu­rando o desrespeito, ou aceitando a proposta, o que deixa perplexo o alvo de seu desejo.

— Mas, por enquanto — observou o magistrado — estamos no ter­reno da paranóia. A senhora diagnosticou algum outro tipo de patologia psicótica?

— O pior deles, a esquizofrenia, que, talvez, tenha derivado da paranóia na juventude, mas é muito mais nociva e grave. Não se trata da doença que popularmente é considerada loucura, a esquizofrenia hebefrênica,57 que de­sorganiza completamente o cérebro do doente. No caso da minha então cliente, era evidente a esquizofrenia paranóica. Isso quer dizer que sofria to­das as fantasias da paranóia com capacidade de dissimulá-las, mas cultivava o ódio e o desejo de vingança, característicos da esquizofrenia. A perseguição para o esquizofrênico, é para destruí-lo, matá-lo, fazer mal físico, enquanto para o paranóico, é para bajulá-lo, adorá-lo como a um ídolo, que ele se sente ou porque entende haver despertado grande paixão em alguém. Quando es­sas duas doenças se manifestam juntas, o problema é grave, embora esse tipo de esquizofrenia encoraje melhor prognóstico, tem tratamento, e com bons resultados em muitos casos, regredindo para a esquizofrenia indiferenciada.

— Ela procurou a senhora espontaneamente para se tratar?

— Não. Esse tipo de doente nunca admite precisar de tratamento, mes­mo porque eles se consideram normais. Ela foi levada pelo marido, antes da separação do casal. E a ele expliquei que o apoio da família era fundamental. Depois do desquite, ela me avisou que não iria mais. Talvez quando mais pre­cisasse, pois a separação agrava a esquizofrenia.

O juiz franqueou-nos as perguntas. Começou pelo Curador de Famí­lia, membro do Ministério Público respeitado no meio judiciário, jurista de grande talento e estudioso. Formulou uma pergunta que até a mim espantou:

— Devo informar à senhora que os oficiais de justiça, no cumprimento de suas diligências, têm a obrigação de tudo observar e, quando se deparam com um fato de interesse da causa, relatam ao juiz ou fazem constar de um termo especial. No seu caso, o oficial de justiça informou-nos que, ao notifi­car a senhora, ouviu uma expressão sua de forte significado: “O que será que ela aprontou desta vez?”. A senhora pode nos dizer a que fato anterior, prati­cado por sua ex-cliente, estava se referindo?

— É verdade. Deixei escapar a exclamação. Mas peço desculpas e, con­forme me foi assegurado no início da audiência, gostaria de não responder, porque interfere no meu dever de segredo profissional.

Todos concordamos, mesmo porque não havia outro jeito.

O advogado da autora formulou uma única pergunta:

— A senhora acha que sua ex-cliente poderia agir por impulso contra alguém, em momento de crise ou de surto da doença, ou seria capaz de pla­nejar algo coerente para prejudicar o ex-marido?

— Ambas as hipóteses são plausíveis. O doente psicótico tem capaci­dade de planejar ou de explodir, comportando-se como um aldrabão.

Chegou minha vez de perguntar, creio que para alívio geral:

— A senhora me desculpe, mas o que quer dizer “aldrabão”?

— Pessoa que age com loucura e trapaceia para enganar os outros.

Confesso que não sabia, mas adorei a resposta. Mandei outra pergunta:

— Nas suas sessões de tratamento, a senhora verificou se a ex-cliente odiava o marido?

— Claro! Odiava e muito. Na sua obsessão, o marido era o perseguidor que lhe faria mal. Chegou a ter medo de dormir com ele.

— A senhora soube o motivo?

— Doutor, esse tipo de doença não tem motivo concreto algum na si­tuação presente. O doente cisma, e pronto. O que é preciso saber é a origem da cisma, a causa remota do mal. No caso dela, o próprio marido se preocupou e a trouxe ao meu consultório. E foi várias vezes falar comigo, para saber como ia o tratamento, mostrando-se preocupado por não ver resultados imediatos.

— Agora me diga, doutora — perguntei, olhando fundo nos olhos dela. — No processo judicial de que estamos tratando aqui, existe uma fita gravada pela sua ex-cliente, em que ela faz perguntas específicas sobre atos obscenos praticados pelo pai com os filhos, e as crianças respondem confirmando. A senhora acha que o ódio dessa mulher forçaria seus próprios filhos a confir­marem tais atos do pai, ainda que não sejam verdadeiros?

— A característica do seu tipo de esquizofrenia paranóica é vingar-se das pessoas que julga suas perseguidoras. Seria bem possível que fizesse isso para vingar-se do ex-marido, mesmo sem ter motivo ou causa para isso. Mas poderia estar transferindo ao marido o ódio e desejo de vingança que tivesse nutrido contra outra pessoa no passado.

— Em hipótese, quais as pessoas que poderiam ter causado essa patoló­gica conduta?

— Em geral, essas situações traumáticas, os pacientes as sofrem na in­fância, quando submetidos a abusos, violência ou atos sexuais. Podem ser culpa dos pais, de parentes próximos, de vizinhos. É preciso investigar.

— A senhora não conseguiu desenterrar de sua cliente a lembrança de uma situação que pudesse ter em tese dado causa à sua atual situação mental?

— Não consegui. Toda a vez que chegávamos a esse ponto, perguntas sobre sua infância, sua mãe, seu pai, ela encerrava a conversa. Levantava-se e ia embora. Claro que minha experiência na matéria deu-me a convicção de que a causa de tudo era algo em sua infância, relacionado com a mãe ou com o pai. Com o tratamento interrompido, não tive oportunidade de tentar obter dela um regresso ao passado que revelasse essas causas e que, talvez, pu­desse aliviá-la de algum pesadelo que a atormentasse desde pequena.

Declarei-me satisfeito e não fiz mais perguntas.

O juiz reduziu tudo a termo (mandou o escrevente datilografar), todos assinaram, e a audiência foi encerrada.

Levantamos, e o advogado da mulher perguntou-me:

— O senhor acredita realmente nessa sua tese?

— Tenho certeza! E o senhor tome cuidado, porque essa mulher ainda vai dizer que foi coisa sua propor a ação de cassação do direito de visitas.

Ele não gostou muito, mas saiu assustado, pensativo, com fortes vincos na testa. Não deu para disfarçar. Fui despedir-me do juiz e dele ouvi:

— Parece que o senhor está virando o jogo. O depoimento da médica foi muito favorável ao seu cliente.

— Favorável às crianças, meu respeitável doutor — devolvi a observa­ção que ele não se cansava de fazer. — Mas há algo ainda que preciso obter neste processo: ouvir as crianças.

Ao lado, estava o Curador, que deixou escapar:

— É fundamental essa providência. Temos que ouvir essas crianças outra vez.

— Outra vez? — perguntei com ares de absoluto espanto.

Os dois se entreolharam. Percebi um sorriso enigmático do juiz, meio de Mona Lisa, e o Curador corrigiu:

— Outra vez a que me refiro é uma nova audiência, como essa que tive­mos hoje. Ouvir as crianças em uma outra vez.

Os dois estavam me enrolando gentilmente, mas senti que caminhava seguro para ganhar a causa. E ouvir as crianças era meu grande trunfo. O definitivo.

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Em geral, tenho sorte em audiências. Consigo demonstrar mentiras nas testemunhas e, muitas vezes, virar o jogo. Uma vez aconteceu isso na CPI do Café, instaurada na Câmara dos Deputados, para investigar o que chamavam de negociata praticada pelo Instituto Brasileiro do Café (IBC) e pela Comal, empresa de um cliente nosso, Mário Simonsen, um sonhador e idealista que, no Governo Juscelino Kubitschek, montou um sistema para vender produtos brasileiros no exterior.

Chegou a ter escritórios em quase cinqüenta países do mundo, numa época em que a caipirada daqui somente sabia vender FOB, isto é, nos portos. Ninguém se aventurava a atravessar os mares e vender lá fora, onde seria pos­sível obter melhores preços pelos produtos brasileiros e maior receita de divi­sas para o Brasil.

Mário Simonsen partiu por esse mundo afora, para conquistar merca­dos. Vendia tudo: café, açúcar, tecidos, cachaça, tudo o que o país produzisse. Em sociedade com Celso Rocha Miranda, comprou a Panair do Brasil, para contar com o transporte aéreo e, sobretudo, com as empresas de retifica de motores de avião e uma especial, avançadíssima, com sistema de antenas pre­cursoras dos radares, que orientava todos os vôos que se aproximavam da América do Sul. Quando começou a sofrer campanha difamatória por sua ousadia, fundou a Televisão Excelsior, que foi um sucesso, quebrando a hege­monia de Chateaubriand, que monopolizava o mercado com a TV Tupi.

Veio o golpe militar. Acusaram Simonsen de negociata, porque havia feito para o Governo a intervenção de compra da safra cafeeira no Estado do Paraná. A razão dessa medida intervencionista era a seguinte: a produção de café era muito grande naquele ano, acima de nossa capacidade de exporta­ção. O excesso de oferta faria baixar o preço nos mercados internacionais. Aí, o Governo Juscelino Kubitschek bolou um plano: o IBC compraria, como comprou, a safra toda, pagando bom preço aos cafeicultores e, depois, expor­taria aos poucos, sem depreciar as cotações nos mercados externos. O exce­dente seria estocado à custa do governo. O café rendia mais de três bilhões de dólares num total de exportação que não chegava a cinco bilhões. Era o nosso ouro.

Tinha que ser defendido, insistiam os economistas da época. Outras empresas ficaram com as compras nos estados de São Paulo e Minas Gerais. Simonsen ficou com as do Paraná. Mas somente a empresa de Simonsen sofreu forte campanha difamatória depois que se instaurou o governo militar, cujos líderes cismaram com o empresário, porque, depois da renúncia de Jâ­nio, ele prestigiou a posse de Jango, que estava na China e fez um longo per­curso para voltar ao Brasil. Uma das escalas foi em Paris, onde Simonsen deu apoio logístico a João Goulart e pagou sua hospedagem no Hotel Prince de Galles, na Avenida George V.

As demais empresas eram inofensivas. Compravam o café, armazena­vam, entregavam para o IBC, recebiam o dinheirinho delas e... até a próxima! Quando precisar, me chame! Simonsen era diferente. Ele próprio se encarregava de exportar para empresas suas no exterior e concorrer com as grandes companhias que dominavam o mercado internacional de grãos. Loucura! Naquela época, o empresário latino-americano que fizesse concorrência aos grandes do mundo estava frito.

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Mário Simonsen, como empresário, cultivava idéias muito avançadas para o seu tempo. Sonhava com a globalização e achava que os brasileiros tinham que ir para o exterior, levar seus produtos, e não se limitar à rotina da exportação, isto é, esperar que os estrangeiros viessem aqui para comprar, ou que as nossas vendas se processassem por meio de ofertas pelo correio. Dizia que o empresário brasileiro tinha que abrir empresas no exterior e, em alguns países, abrir no mínimo escritórios de vendas e intermediação, para forçar a oferta de produtos nossos. Em outros países, associar-se a empreendedores.

A partir dessas idéias, quis dar o exemplo, abrindo sua principal em­presa lá fora, a Wasin, que teve escritórios em vários países: Estados Unidos, Inglaterra, França, Suíça, Itália e muitos outros.

A Wasin vendia no exterior o café que, no Brasil, era comprado, proces­sado e selecionado pela Comal, a firma dele, especializada em comerciali­zação cafeeira.

Panair e TV Excelsior foram empresas sem importância econômica para ele. Serviam de meios para implementação de suas idéias, a primeira para trans­porte internacional e a segunda para divulgação no Brasil do que ele enten­dia correto e necessário na orientação ou, pelo menos, no debate do comer­cio e da política econômica. As empresas de comunicação daquele tempo eram todas subservientes ao governo, sobretudo o grupo mais poderoso, os Associados. O preço que Chateaubriand cobrava para uma campanha era mais alto que comprar uma emissora de TV.

Mas, ao comprar uma emissora de televisão, Mário Simonsen acirrou os ânimos dos concorrentes, temerosos com a possibilidade do possível su­cesso. Começou com programas modernos e com grande audiência. Con­tratou profissionais capacitados, como Álvaro Moya, Manuel Carlos, Bibi Ferreira, Boni (José Bonifácio Sobrinho), Cláudio Abramo (jornalismo) e outros. Cheguei a trabalhar com eles na Televisão Excelsior. Eram fantásticos. Manoel Carlos, antes de escrever novelas, fazia críticas aos políticos e contava anedotas no Gigetto, restaurante obrigatório de nossos jantares, mesmo porque era uma espécie de filial do velho restaurante Carlino, da Vieira de Carvalho, ambos ingredientes da saudade do centrão de São Paulo.

A TV Excelsior nada interferiu na derrocada do Grupo Simonsen. O que provocou a guerra contra ele foi sua capacidade de concorrer no exterior com as empresas norte-americanas, que até então mantinham o monopólio dessa comercialização por meio de um cartel muito conhecido naqueles ve­lhos tempos: o ABCD (André & Cia., Bunge & Born, Continental e Dreyfus).58 Tais empresas monopolizavam a comercialização de grãos. Até hoje isso acon­tece, incluindo a banana e o chá, agora por intermédio de várias multina­cionais que engoliram as empresas regionais. Segundo denúncias da Action Aid, publicada no jornal inglês The Guardian, a tarefa de monopolizar o co­mércio desses produtos está sendo exercida na atualidade pelas respeitáveis Nestlé, Monsanto, Unilever, Tesco, Wal-Mart, Bayer, Cargill e outras, embora tenha eu alguma reserva contra a imprensa inglesa — fica o registro.

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Naquela época, porém, o comércio de grãos era monopólio do cartel ABCD. A Wasin passou a vender café agressivamente na Alemanha, no leste europeu, na Itália e (ato suicida) em Nova York, no mercado green coffee (café verde), com alguma iniciativa para ingressar no mercado de café torrado e moído. Crime explícito, porque, afinal, um país tradicionalmente co­lônia não podia desejar mais do que vender matéria-prima em seu próprio território.

Informação útil: uma saca de café de 60 quilos valia no Brasil (FOB) cer­ca de cinqüenta dólares. Vendida em xícaras no exterior, a mesma saca pro­duzia US$1200,00. É fácil imaginar a margem de negócios que havia entre os US$50 e os US$1200,00. Mário queria que o Brasil e ele próprio abocanhas­sem os dólares que se acresciam nesse espaço.

Mas as firmas estrangeiras concorrentes estrilaram, não tanto porque Wasin fosse uma ameaça, mas pelo exemplo e precedente, que poderia alastrar-se para outros países, como a Colômbia, os da América Central e alguns africanos. Bem, isso já é dedução elementar, porque a reação foi realmente organizada, inclusive com a contratação de marqueteiros para a campanha publicitária.

Algumas dessas firmas eram ligadas ao Bank of America e aqui con­tavam com um aliado eficiente, o Deputado Herbert Levy, dono do Banco América, que se aproveitou do cargo de parlamentar e fez uma campanha mortal contra Mário Simonsen. Começou pela CPI do Café, onde deu longos shows de acusação durante meses, com a cobertura entusiasta da TV Tupi em todo o Brasil.

Uma das providências políticas do Governo foi cassar a Panair, conces­sionária de transportes aéreos, para felicidade do Rubem Berta. A Varig se apoderou de todos os bens da Panair aqui e no exterior, de prédios na Euro­pa, com a conivência do interventor nomeado pelo Governo. Até hoje, não houve prestação de contas sobre o destino daqueles bens, que pertenceriam à massa falida daquela empresa e a seus funcionários.

As denúncias, às centenas, tiveram uma orquestração bem de acordo com a moda: órgão de imprensa para o devido escândalo e, na Câmara dos De­putados, Comissão Parlamentar de Inquérito para rigorosa apuração dos fatos denunciados. Tudo começou naqueles tempos. Não é de hoje, portanto. O ambiente do governo militar era fértil para a acusação de corrupção. Cons­tituía a moda. Quando não era subversão, era corrupção. A ditadura pro­meteu acabar com o binômio. Acabou apenas com o primeiro. O segundo “nômio” continua até hoje.


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