Código da Vida



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Em pouco tempo, no dia 21 de abril de 1985, Tancredo morreu, depois de longo e doloroso martírio. Sarney não se sentiu seu sucessor, mas seu tes­tamenteiro político. Então chegou sua vez de passar por outra espécie de martírio: assegurar a democracia na tempestade das balbúrdias que sobrevieram com as liberdades mal utilizadas, mas ainda espreitadas com grande desconfiança por trás dos portões dos quartéis.

Um ano mais tarde, José Sarney convidou-me para ser seu Consultor Geral da República. Passaria Paulo Brossard, jurista e político de grandes pre­dicados, para o Ministério da Justiça e me queria ao seu lado para as batalhas jurídicas do Governo. Tentei resistir. Afinal, estava diante da única oportuni­dade de minha vida de continuar advogando em São Paulo e dizer que era amigo do Presidente da República. Situação nada desprezível. Ir para o Go­verno tornar-me-ia um servidor público, teria que deixar a advocacia, per­deria a chance de dar palpite do lado de fora, o que é uma delícia. Passaria a ser apenas mais um “deles”.

Sucumbi diante do argumento fulminante: o país teria uma Cons­tituinte, que ele convocara, e era preciso trabalhar muito durante o processo político de elaboração da lei mais importante para o Brasil na implantação do Estado de Direito, depois de vinte anos de ditadura. Não sei se estou certo, mas Tancredo talvez não tivesse convocado a Constituinte logo no início do mandato, que era de seis anos. Deixaria para o final, depois que o exercício político democrático estivesse mais consolidado.

Pelo menos essa também era a opinião de um dos maiores colabora­dores de Tancredo, José Hugo Castelo, figura formidável, com quem tive a ventura de conviver até seu doloroso fim. Mas Sarney, que já havia restabele­cido, sem condições, todas as liberdades públicas e políticas no país, tinha uma obsessão: cumprir tudo o que Tancredo prometera ao povo em eleições indiretas... Sentia-se com a obrigação de um testamenteiro. E queria que eu o ajudasse.

Aceitei. E, ao aceitar, não havia tomado uma única dose de uísque. Não sei, porém, se estava lúcido.



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Na Consultoria Geral da República, levei um susto: o Brasil não tinha advogados que defendessem a União nas milhares de ações que corriam na Justiça Federal pelo país afora. Simplesmente este fato fantástico: o Brasil, o meu país, não tinha advogados que o defendessem no Judiciário. O colosso pela própria natureza, terra dos bacharéis em Direito, não tinha advogados para si próprio. Também nisso era um indefeso!

Claro que eu já sabia, mesmo porque, antes, na minha vida profissio­nal, havia vencido muitas causas contra o Governo Federal. Para os advo­gados brasileiros, litigar contra a União era moleza. Meu susto consistiu em verificar que a União não tinha, na estruturação, nenhuma organização ou sistema de intercâmbio e de apoio que funcionasse na defesa do interesse pú­blico federal, trocando estudos, colecionando jurisprudência, debatendo questões, ajudando-se reciprocamente.

A atividade era estanque, isto é, cada ministério tinha seus assistentes jurídicos (e mal remunerados), que atendiam aos casos internos, proferindo pequenos pareceres sobre a matéria controvertida. Quando surgia uma ação judicial contra a União, ou quando a União tinha que propor uma ação ju­dicial contra alguém, o assunto era estudado isoladamente, no ministério que tivesse competência administrativa para tratar da matéria. Os outros não ficavam nem sabendo.

E o encarregado de propor a ação ou de defender a União era simples­mente um estranho: o Ministério Público Federal. Nos assuntos internos, quando havia divergência, os ministros mandavam o problema para a Pre­sidência da República, ouvia-se o Consultor Geral da República, que profe­ria parecer. Aprovado pelo Presidente, o parecer tornava-se norma obriga­tória para toda a administração pública federal. Pelo lado de dentro, o sistema funcionava razoavelmente. Mas, do lado de fora, era um desastre.

Em juízo, quem ia representar a União e defendê-la era um promotor público, um Procurador da República, de especialidade criminal junto às varas federais, em processos penais. Assim, o representante do Ministério Público Federal com essa função — que hoje desenvolve com exclusividade — de atuar em ações penais e no máximo em ações civis públicas era chamado a agir em todos os processos de interesse da União, nos mais variados e complexos as­suntos jurídicos e para os quais não estava preparado. Nem podia estar, tama­nha a variedade e a complexidade de assuntos tão distintos uns dos outros.

Aí vinha o deus-nos-acuda, pois os processos eram complicados. O po­bre do promotor público federal, um criminalista acostumado a estudar Di­reito Penal e a lidar com o crime, tinha que enfrentar casos de contratos difí­ceis, que haviam sido descumpridos ou sofrido interpretações contraditórias nas respectivas execuções. Litígios sobre concessões públicas, licitações, obri­gações administrativas, Direito Público, sonegação fiscal, cobrança de tribu­tos, brigas nas exportações e nas importações, nas extrações de minérios, contratos cambiais. Uma infinidade de assuntos, em que enfrentava, do ou­tro lado, escritórios de advocacia poderosos, de grande cultura e altamente especializados.

E o deus-nos-acuda foi virando rotina. A defesa da União era feita ao deus-dará. Os prazos eram cumpridos na marra. Os promotores se viravam com instruções recebidas dos assistentes jurídicos dos ministérios. Nas audiên­cias, diante do juiz, em muitos casos, não todos, dava dó. O defensor da União não entendia do assunto, perdia-se diante da argumentação dos advogados privados, a tal ponto que o magistrado federal, em muitas ocasiões, passava ele próprio a defender a União, numa distorção da devida imparcialidade. Esse costume até hoje perdura em algumas jurisdições, mesmo depois de re­solvido o problema; mas continua, pois alguns juizes federais agem de olho na promoção e nas vagas de tribunais que dependem das autoridades admi­nistrativas e políticas da União.

Somente o Ministério da Fazenda, assoberbado com as questões tribu­tárias, possuía um corpo de advogados mais atuantes na Procuradoria-Geral. Mas tinham que alimentar o Ministério Público com informações e explica­ções didáticas, que nem sempre eram absorvidas a tempo e de forma a asse­gurar boa defesa do direito da União, quando houvesse. A despeito do título de Procurador da Fazenda, o profissional não podia oficiar no Judiciário. Era um procurador sem procuração.

É verdade que tal situação despertou, em muitos procuradores da Re­pública, a consciência profissional de que deviam estudar a fundo a matéria debatida nos processos, e neles a União teve defensores notáveis, mas poucos por este Brasil afora. Eram milagreiros. O problema agravava-se ao extremo pela falta de sistemática, falta de uma advocacia organizada e integrada, que tivesse profissionais exclusivamente encarregados de agir em juízo, na defesa de um cliente tão importante: o nosso país.

Como a Constituinte estava em andamento, consegui, com a ajuda da chamada bancada do Governo Sarney, a criação da Advocacia Geral da União, tirando do Ministério Público o antigo e penoso encargo que nada tinha a ver com sua verdadeira função e especialização constitucional. Depois de alguns entreveros amáveis com o Dr. Cid Heráclito Queiroz, Procurador-Geral da Fa­zenda Nacional, que puxava a sardinha para os advogados de seu ministério, por um pouco mais de poder, o que me era indiferente, concordamos na reda­ção final do texto, e a Constituinte criou a AGU — Advocacia Geral da União.

Afinal, o Brasil passou a ter advogados para defendê-lo perante o Judiciário.



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Mas antes, enquanto o “seu” lobo não vinha, e precisamente para servir de exemplo ao constituinte, consegui criar, por decreto executivo, graças à cumplicidade de José Sarney, a Advocacia Consultiva da União, integrando os serviços jurídicos da administração federal.

Todo mundo colaborava com todo mundo, acabando com aquela his­tória de que “isto não é conosco, é com outro ministério”, para implantar ao menos a mentalidade de advocacia profissional na administração pública. De quebra, consegui, a duras penas, um aumento de vencimentos para os assis­tentes jurídicos. Virei herói, não tanto pela sistematização e pelas sementes da Advocacia Geral, mas pela melhoria de suas vidas no fim do mês, pois ser advogado no serviço público federal era um sufoco sem tamanho. O dinhei­rinho mal dava para comprar comida e roupa decente, uma gravatinha, sem­pre a mesma. Livro de Direito? Brincadeira.

Na Consultoria, eu contava com a colaboração do secretário-geral, jo­vem promotor público de São Paulo, José Celso de Mello Filho, requisitado para prestar serviços à Presidência da República. Talento inegável.

Trabalhava como poucos, fazia pesquisas jurídicas com grande facili­dade e indiscutível qualidade. Memória invejável, inteligência, redação exce­lente, português escorreito.

Ajudou-me muito na Consultoria, ao lado de outros consultores igual­mente competentes e dedicados. Felicidade minha ter tido uma boa equipe, que, além do trabalho pertinente às funções, sacrificou-se em incontáveis horas extras durante os planos econômicos (Cruzado e Bresser) e durante a Constituinte, no assessoramento de deputados e senadores.

Eis que surgiu mais uma vaga de ministro no Supremo Tribunal Fede­ral. Sarney já havia nomeado três: Carlos Madeira, Sepúlveda Pertence e Paulo Brossard. Sugeri a Sarney que indicasse José Celso de Mello. Estáva­mos no último ano de governo, o moço não teria outra oportunidade, pois, como promotor em São Paulo, jamais conseguiria que alguém o levasse ao Supremo, se não fosse agora. E merecia. Havia trabalhado muito durante os dias e as noites difíceis da Constituinte, quando me ajudou a assessorar uma infinidade de congressistas. Nos planos econômicos: o Plano Cruzado, in­clusive o chamado Plano Cruzado Dois, um desastre, o Plano Bresser, menos o Plano Verão, do qual não participamos, por termos sido afastados pela equipe do Maílson da Nóbrega, que nos achava uns chatos, de tantas advertências sobre inconstitucionalidade daqui, ilegalidade dali. Juristas apenas atrapalhavam.

— Mas há um problema — disse Sarney.

— Qual?

— O Oscar Correia quer nomear o Ministro Carlos Velloso, do Supe­rior Tribunal de Justiça. Você tem que enfrentar a mineiridade. Não posso contrariar meu Ministro da Justiça. E o Pertence27 também acha que Velloso é muito bom.



Bom mesmo era aquele tempo, em que se discutia a qualidade do juris­ta a ser indicado unicamente pelo mérito, jamais pelo compadrio político, e não por ser deste ou daquele partido, ou por ser japonês, negro ou índio. O que se exigia era um vasto conhecimento do Direito e, acima de tudo, muito bom senso no trato com as leis. Ou, como diz a Constituição, de notável sa­ber jurídico e ilibada reputação.

— Espera aí — ponderei. — Nada contra a capacidade do Ministro Carlos Velloso. Ele tem talento e cultura para servir, e bem, no Supremo. Ocorre que o José Celso, que também ostenta as mesmas qualidades, além do serviço prestado ao nosso Governo, nunca mais terá oportunidade, se não for por seu intermédio. Velloso, por seu notório saber jurídico (é o texto da Constituição e a opinião que tinha dele, e mantenho), continuará no STJ, e o próximo Presidente da República certamente o escolherá para uma futura vaga no Supremo.

Sarney resolveu fazer uma reunião e convocou Oscar Dias Correia, Ministro da Justiça. A discussão foi amável. Oscar não arredava pé da indi­cação de Velloso, e eu finquei o pé na indicação do José Celso de Mello. Os argumentos foram mais ou menos os mesmos, mas houve um momento em que o Ministro da Justiça hesitou e lançou o que achava o fundamento fulminante:

— Concordo. O Celso de Mello é excelente, mas tem, em minha opi­nião, um defeito: é muito moço.

— Mas esse defeito o tempo corrige — observei de pronto.

Sarney gostou da resposta. Oscar Correia sorriu e, sentindo que o Presi­dente estava inclinado pela minha indicação,28 acabou concordando, mesmo porque era um homem gentil, além de mineiro. Voltei para a minha sala, ditei para a minha datilógrafa a indicação do José Celso. Chamei-o à minha sala, estendi-lhe o papel e pedi:

— Faça uma revisão cuidadosa neste documento, porque o Presidente quer assiná-lo ainda hoje.

Ele pegou o documento sem ler e saiu. Costumava andar depressa, tro­cando rápidos passos miúdos. Ali, ele tinha o apelido de “apressadinho”. Em alguns minutos, voltou lívido, andando devagar, aproximando-se de minha mesa lentamente. Deu a impressão de que ia desmaiar:

— Mas o Presidente está de acordo? — perguntou com voz embargada.

— Você está indicado, meu caro. Pode festejar. Hoje, beba um uísque.

Brincadeira. Ele nunca sorveu uma gota de bebida alguma, além de água e café. E como tomava café!

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Deixando minhas lembranças, volto ao caso da gravação das vozes das crianças, acusando o pai de atos obscenos. Não tinha eu ainda como encon­trar uma saída “psicologicamente adequada” para invalidar aquela fita e salvar meu cliente. Incinerado estava sendo meu cérebro. Pelo menos fervia, quando fui dormir. Sabia que dormiria mal.

Tenho inveja de quem consegue dormir sem se afetar com problemas. Logo no início de minha gestão na Consultoria Geral da República, fui desig­nado para representar o Presidente da República na XI Conferência Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, que se realizaria em Belém do Pará.

Senti um grande constrangimento diante da informação de meu chefe de gabinete. Na qualidade de Consultor Geral da República, teria eu as mes­mas regalias e prerrogativas de Ministro de Estado. Entre elas, a de ser acom­panhado por um secretário, quando viajasse. Um funcionário que carrega a mala ou a pasta, abre as portas, faz o check in no aeroporto, chama o táxi, rala com a recepção dos hotéis, pede o drinque e, depois de perguntar se Vossa Excelência deseja mais alguma coisa”, vai dormir e nos deixa em paz.

Nem quando viajava a serviço do meu escritório, levava assistente. E tí­nhamos verba para isso. Não me ajeito bem com essas coisas. Agora, a consciência ia doer mais, porque a viagem do ajudante seria custeada por verbas públicas. Gastaria o dinheiro da União para ter ao meu lado um cara me cha­teando. Nem pensar!

Eu mesmo arrumei minha mala, um carregador no aeroporto levou-a até o balcão da companhia aérea. Embarquei, abri um livro e fui lendo até o Pará. Ao meu lado, sentou-se um senhor mais ou menos gordo, mais para mais do que para menos. A todo instante, pedia desculpas por ter que se ajei­tar na poltrona, já que o ajeitamento transbordava para o meu lado.

— O senhor é de Belém ou de Brasília? —, perguntou ele com evidente vontade de bater papo.

— Moro em Brasília atualmente — respondi, sem tirar os olhos do li­vro, que era bom e estava num ponto de suspense.

— É comerciante ou trabalha no Governo?

— Estou de passagem por Brasília — resposta mais cretina.

— Tenho a impressão de que o conheço, não sei de onde.

São os noticiários da televisão. Durante o lançamento do Plano Cru­zado, todos os dias estive dando explicações à imprensa, e a televisão estava lá. Ainda sem tirar os olhos do livro, respondi:

— É possível. Eu viajo muito neste trecho Brasília-Belém. Talvez em outra viagem.

— Não sei — disse ele. E se entortou para o meu lado, desejando con­ferir meu rosto.

Interrompi a leitura, levantei bem o rosto para ele ver, olhei-o nos olhos, sorri, pedi licença e voltei a ler. Creio que desconfiou, ajeitou-se para o lado oposto ao meu e dormiu. Roncou sonoramente. Não podia deixar de invejá-lo. A aeromoça ofereceu lanche, ele acordou meio zonzo e recusou. Conti­nuou a dormir. Li em paz até Belém.

Desci do avião, fui esperar a mala, que veio na esteira giratória. Procu­rava um táxi, quando o gordão se ofereceu para me levar. Tinha um carro a sua espera. Era de um colega seu de Belém, advogado que o viera apanhar no aeroporto. Ambos participariam da Conferência da OAB.

Agradeci e, já na fila de passageiros, chegara minha vez de pegar o táxi.

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O motorista do táxi, depois que lhe disse o nome do hotel e antes de arrancar, virou-se para mim e me consultou:

— O senhor me diga: para irmos ao hotel, temos que passar defronte ao aeroporto. Mas lá há uma imensa confusão neste momento, trânsito engarra­fado, polícia para todo o lado, porque está aí o Governador do Estado, que veio esperar um figurão. Será melhor sairmos pelo lado oposto: andamos um pouco mais e fugimos dessa bagunça.

Concordei, e lá se foi ele pelo caminho dito mais fácil, sem que eu tivesse a menor noção se era ou não verdade. Estava ansioso por chegar ao hotel e tomar um banho. O calor de Belém, em alguns minutos, fez-me entender que o meu problema não era o Governador, nem o figurão que ia chegar: era uma chuveirada.

No hotel, assinei as fichas na recepção e subi para o quarto já reservado pelo meu pessoal. Tirei a roupa e ia para o chuveiro. O telefone tocou. Era da portaria:

— Senhor Ramos, o Governador do Estado vai falar com o senhor — e passou o telefone.

— Senhor Consultor, boa tarde, sou o Governador Jader Barbalho. Fui esperá-lo no aeroporto, e o senhor não compareceu à sala vip. Desencontramos. Gostaria de lhe dar as boas-vindas em nome do povo do Pará. Posso subir?

Meu Deus! O figurão era eu. No que respondi “pode, é claro”, voltei a vestir-me num segundo, e tocou o blim-blom da porta. Abri. Entrou o Go­vernador acompanhado de uma porção de gente, e as apresentações foram feitas uma atrás da outra. Secretário do Governo, Secretário da Justiça, Secre­tário da Segurança, Delegado da Polícia Federal, mais não sei quem e muitos outros não sei quem mais. A saleta era pequena para tanta gente ilustre. Pedi desculpas, levei a mala para o quarto e voltei. E vi um chinelo no chão, perto da poltrona onde o Governador se sentara. Pedi desculpas, apanhei o chinelo, levei-o para o quarto e tornei a voltar.

Conversamos sobre os problemas da República, do Estado e sobre a Conferência Nacional de logo mais da OAB.

— Deixarei um carro à sua disposição com um ajudante-de-ordens. Encontrar-nos-emos na Conferência — disse o Governador, ao retirar-se com o séquito. Vários apertos de mão, “muito prazer, muito prazer, nos vere­mos logo mais”. Fechei a porta e, afinal, ia tomar meu banho.

Jader Barbalho, muito moço, cabelos negros, era extremamente sim­pático. Deixou-me à vontade naquele primeiro encontro, pois deve ter per­cebido meu enorme constrangimento, por haver causado tanta confusão pelo simples fato de haver entrado na fila de passageiros e haver apanhado um táxi.

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No congresso dos advogados, chamaram as pessoas que comporiam a mesa diretora dos trabalhos: o Governador do Estado, o Consultor Geral da República, representando o Presidente José Sarney, e outras autoridades. O Presidente da OAB era o Dr. Hermann Assis Baeta, advogado calmo, inteli­gente, sossegadão.

Ao abrir os trabalhos, Baeta falou bonito sobre a advocacia, os planos da entidade, fez alguns elogios ao Governador e a mim. Declarou que o obje­tivo da Conferência era debater a próxima Constituição e os trabalhos da fu­tura Constituinte. Prometeu abrir escritório da Ordem em Brasília, para acompanhar os trabalhos constituintes, o que acabou fazendo com que a própria OAB se transferisse para a Capital Federal. Finalizou, lamentando o uso de decretos-leis pelo Governo, usurpação da função legislativa do Congresso Nacional, pois naquele tempo não havia nenhum Severino em evidência.

Ah! O patético Severino Cavalcanti, um pernambucano apaideguado, nepotista assumido, eleito presidente da Câmara dos Deputados, virou pre­gador de perdão a políticos ladrões, entre os quais ele se encontra em peque­nas quantias na medida de sua insignificância que contrasta com a enorme mediocridade. Receber propinas de restaurante! Que coisa mais indigesta! Até que um dia Fernando Gabeira gritou: “Vossa Excelência na Presidência da Câmara dos Deputados é uma vergonha para o Brasil”.29

O Brasil é de surpresas: foi sob a presidência de um Severino Cavalcanti que a Câmara dos Deputados chegou ao século XXI e aprovou experiência científica com células embrionárias, contrariando os sobreviventes da idade das cavernas e a parte da Igreja Católica que ainda combate Galileu.30

Nosso país é cheio de altos e baixos. Os baixos, nas eleições de muitos Severinos, e os altos, em trabalhos como o do Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto, onde médicos liderados pelo Dr. Júlio César Voltarelli estão traba­lhando com células-tronco adultas para curar diabéticos. E curam.

Nos baixos ficou o Congresso Nacional. Geração espantosa essa nova leva de congressistas incompetentes e preguiçosos, preocupados apenas com infinitas reeleições. Mais nada.

Em 2005, nossos legisladores aprovaram apenas 75 projetos, a maioria sobre nome de ruas, monumentos, ou como aquele que incluiu o almirante Barroso no Livro dos Heróis da Pátria. Mas Severino nem sabe ainda o que aconteceu com ele. Meio abestado, disse que não conhecia a palavra renún­cia. E renunciou, acusando as elitizinhas, juradas em sua perdição, de terem tramado a cuja. E quase foi reeleito nas eleições de 2006. Ganhou uma suplência.

Volto ao passado, porque esse desvio para o presente me assusta.

No plenário da Conferência da OAB, Jader Barbalho defendeu o Go­verno e o uso do processo legislativo de urgência. Chegou minha vez. Enal­teci a advocacia, afinal minha profissão fervorosa. Os advogados exercem verdadeiro apostolado em defesa de clientes, causas e ideais. Aquelas coisas que se dizem nesses eventos. E que quase sempre são reais.

É verdade também que muitos juristas descambaram na nossa história. Deram fundamentos jurídicos — que de jurídicos nada tinham, salvo a for­ma — a atos arbitrários do passado, tanto no longínquo, como no recente, atendendo à eterna mania que nossos militares tinham de dar golpe legal. Chico Campos ajudou a redigir a polaca, Constituição de 1937, e o Ato Insti­tucional nº 1 do golpe de 1964. Gama e Silva redigiu o Ato Institucional nº 5, estatuto estulto e permissivo das mais violentas agressões às liberdades. Muitos outros colaboraram com o arbítrio. O Ministério Público Militar e o Federal serviam à ditadura como instituições. Poucas exceções individuais. O Ministério Público Estadual (conheci bem o de São Paulo) foi igualmente colaboracionista. Fez misérias. Não adianta negar. A CGI — Comissão Geral de Investigações —, que os militares centralizaram em São Paulo, em Cumbica, era chefiada por um Procurador de Justiça do Estado, que chegou à perfeição — além das práticas ilegais nos inquéritos — de esbofetear os vereadores do interior por ele interrogados.

A OAB sempre resistiu à ditadura. E com habilidade. Os milhares de ad­vogados anônimos tinham a coragem de aceitar e defender as causas dos per­seguidos políticos. A entidade imediatamente socorria os profissionais que se atritavam com os executores da arbitrariedade e que acabavam presos. Foi um tempo de trevas. Se a Academia da Suécia resolvesse premiar entes cole­tivos, a OAB do Brasil mereceria um Prêmio Nobel. Mas poderia sofrer um recall pelo projeto de reforma política que elaborou ultimamente. Os altos e os baixos.

Aproveitei o fato de estar sendo realizada a Conferência em Belém, para advertir sobre o desmatamento da Amazônia, recordando que a ditadura mandara abrir estradas na floresta sem planejamento racional para a conse­qüente povoação. Lembrei que tais estradas serviam mais ao desmatamento e ao incentivo de extração de madeira do que à defesa da Amazônia. Senti que não deram muita bola à observação. O clima estava mais para os direitos da nova Constituição, defesa da democracia, função social da propriedade, uni­versalização do ensino público, democratização da Justiça. É verdade que a reforma agrária dava algum Ibope. Mas a derrubada desordenada da floresta amazônica não seduzia muito a ilustre platéia naquela época.

Depois de falar até demais, concluí com explicações sobre os decretos-leis editados pelo governo. De repente, lá do fundo, uma voz gritou:

— Não somos contra o uso do decreto-lei, mas contra o abuso. O Go­verno está abusando desse instrumento dos militares.

Olhei para a direção de onde veio o aparte, isto é, o protesto. E em pé, com um jeito vitorioso, à espera da resposta, lá estava o gordão dorminhoco, que viajara ao meu lado no vôo Brasília-Belém. Foi barulhentamente aplau­dido, mas eu tive uma quase incontida vontade de rir.

Respondi, é claro, dizendo que o decreto-lei não era um instrumento dos militares, mas uma ferramenta da Constituição, que fora usada pelos mi­litares, porém mal usada. Demonstrei que o novo Governo se utilizava dessa medida legislativa porque o Brasil tinha muita coisa a ser consertada com urgência, tantos e tamanhos os estragos feitos pela ditadura, sobretudo na legislação. Recebi aplausos com o mesmo barulho. Confiava na Constituinte convocada. Haveria de encontrar uma saída institucional para a legislação de emergência, que evitasse abusos. Também tenho minha dose de inocência.

E ficou tudo por isso mesmo. Congresso de advogados, apesar de tratar de assuntos sérios e pertinentes, sempre desperta nos congressistas o espírito dos antigos estudantes. Acaba em alegria, irreverência e confraternização. Mas a Carta de Belém, aprovada pela Conferência da OAB, teve lampejos bonitos:

Segundo a Declaração de Belém, “malgrado todas as investidas dos in­teresses poderosos comprometidos com a ordem de privilégios existente, os advogados confiam que o povo brasileiro saberá encontrar reservas de dis­cernimento e sabedoria para firmar, no novo texto constitucional, os anseios, aspirações e esperanças dos despossuídos, como condição e objetivo de uma nova ordem social, libertada de toda a sorte de exclusivismos, e de todas as formas de opressão”.

Era um tanto declamatório e poético, mas bonito. Entre os advogados presentes, estava o meu colega de São Paulo e querido amigo, Márcio Thomaz Bastos, já em campanha para a presidência da OAB. Foi eleito no ano seguinte. Muito mais tarde, Márcio foi Ministro da Justiça de Lula, um bom ministro, sobretudo quanto à Polícia Federal, que limpou e tornou mais efi­ciente. Talvez tenha ele juntado material para escrever um livro mais extenso do que este, com o martírio que viveu para assessorar o Governo no lamaçal que o PT — Partido dos Trabalhadores — esparramou no país. Márcio é um homem honrado. Nada teve com a lambança do governo Lula. Pode ter sido criticado por algumas condutas prudentes inevitáveis a todo advogado de defesa.

Na saída da solenidade de abertura, cumprimentos, apertos de mão, troca de cartões de visita, surge o gordão:

— Eu não disse que o conhecia? Era isso! Consultor Geral da República viaja ao meu lado, recusa uma carona no aeroporto, fica na moita, não diz nada para ninguém! Por quê? É medo de ser identificado como membro do Governo?

Verifiquei que ele gostava de bagunçar os espaços. Mas me lembrei de que era educado. Pedia desculpas.

— Não, meu caro colega — respondi, percebendo que todos em volta Prestavam atenção. — Sou absolutamente discreto. Aprendi com nossa profissão de advogado, de tanto exercitar o segredo profissional. Acabei absor­vendo a discrição como postura pessoal. Não fosse assim, à sua pergunta de agora há pouco na sessão plenária, eu teria respondido que o Governo atual não transborda do seu espaço sobre a poltrona do Legislativo, não dorme e não ronca.

Os gordos, em geral, são muito simpáticos e afáveis. Deu-me um gran­de abraço. Levantou o polegar e exclamou:

— Valeu!


Foi a primeira vez que ouvi essa expressão.

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