Código da Vida



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Saí de lá matutando. Santo Deus, o que estou fazendo aqui, neste tu­multuado momento do meu país? Afinal, nasci em Brodowski, terra de Cân­dido Portinari, nosso conterrâneo mais importante. Podia ter ficado por lá. Eu era apenas um dos meninos de Brodowski, aquela linda pintura com que Candinho encantou o mundo. Eu não devia nunca ter saído do quadro do Candinho Portinari. Talvez hoje fosse o dono do armazém ou da farmácia e sentaria numa cadeira de palha trançada, conversando na calçada com o pessoal que saía do cinema, e passearia na rua, fazendo hora para dormir.

Poderia ter casado com a Zoé e criado uma penca de filhos, que estuda­riam em Ribeirão Preto, em boas escolas. Quando era moço, em pleno ro­mantismo, escrevi um poema, que acabou sendo musicado e tornou-se o hino oficial de Ribeirão. Até o Antônio Palocci, que foi duas vezes prefeito da cidade, sabe de cor o meu hino e acabou sendo Ministro da Fazenda, infernizado por um ex-auxiliar seu que o acusou de receber, para o PT, propina de uma empresa de lixo. Sem nada ter com isso, nem com o lixo, eu era uma glória literária da região, muito antes de Palocci. Isso me bastaria. Além de tudo, o homem mais famoso da região, nascido e criado em Brodowski, Cândido Portinari, o nosso Candinho, glória internacional das artes, havia pintado o retrato de meu avô e o meu. Ambos com dedicatória carinhosa e entusiasta. Estou lá, na galeria dos retratos pintados pelo gênio. Por que saí de minha terra?

Lembrei-me de Tolstói: escreva sobre sua aldeia e você pode tornar-se universal. Mas, em vez de escrever coisas de Brodowski, estava eu escrevendo teses de Direito e falando em Kelsen, que não era brodosquiano.

Por que me meti a ser advogado? Quanta encrenca o destino me arrumou! Sem dedicatória.

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Quando meu pai me mandou estudar em São Paulo, fui morar numa pensão, na Praça General Osório. Para que eu não passasse vergonha, o velho me deu um par de sapatos novos, na época o mais elegante, cromo alemão, se não me engano a marca era Scatamachia ou algo parecido. Substituiria o par de botinas. Na pensão, repartia com outro hóspede o quarto e o par de sa­patos. Tínhamos o pé do mesmo tamanho. Quando um de nós ia a alguma festa, o outro ficava em casa. Meu colega de quarto e de sapatos era investi­gador de polícia, mas falava que estudaria tudo o que pudesse. Chamava-se Edevaldo Alves da Silva. Hoje é dono da UniFMU. Formador de advogados. Perdi tantas coisas no meu passado. Coisas e outros destinos, não sei se me­lhores, mas com certeza diferentes. Não teria essa esfinge para decifrar no processo judicial de Fernando Collor.

O que o Ministro Pertence quis dizer? Para desvendar a mineirice, não tinha eu a suficiente, necessária e aguda perspicácia. Li tratados jurídicos fan­tásticos, de Kelsen a Pontes de Miranda, Vicente Ráo e Carnelutti, desvendei mistérios de complicadas ações judiciais, fiz proezas incríveis em processos difíceis; mas não conseguia entender o recado em código daquele mineiro meu amigo. Creio que o escritor Dan Brown, autor do Código Da Vinci, é descendente de mineiro.

Conformei-me e, por simples intuição, não ingressei com o agravo regi­mental contra a decisão do Ministro Gallotti.21 Esperei o novo julgamento. Os atos foram todos repetidos. Novas sustentações orais. Cláudio Lacombe lá es­tava de novo, numa quarta-feira, afastado de suas bebidas extraídas de uva. Mas o notei um pouco mais nervoso. Não é preciso perder tempo descre­vendo os debates. Tudo foi mais ou menos repetido, salvo os meus “desneces­sários” recursos de eloqüência.

Resultado do novo julgamento: 7 a 4, a meu favor, isto é, a favor do Se­nado e contra o impetrante Fernando Collor. Os três ministros do Superior Tribunal de Justiça proferiram votos de grande erudição e claros, todos em­penhados em demonstrar que não pertenciam a um tribunal inferior. José Dantas, aquele ministro que era um misto de jurista e de santo, concluiu seu magnífico voto com a expressão: “Deus guarde esta casa!”. Creio que sua bon­dade queria salvar a alma do Ministro Gallotti, que teve de proclamar o resul­tado: Segurança indeferida! O Brasil e eu respiramos aliviados.

Creio que a mineirice do Ministro Pertence consistiu no seguinte: ele deve ter conversado com o Ministro William Patterson e soube que a tendên­cia dos ministros do STJ era favorável ao indeferimento da segurança, isto é, que votariam contra Collor. Entre eles, em casos como aquele, há certa liber­dade para “troca de idéias”. Só pode ter sido isso. No mesmo dia de minha vi­sita ao STJ, quase na mesma hora, Pertence já sabia. Sabia apenas da visita? Sabia algo mais.

E, por isso, pediu-me que não recorresse da decisão do Ministro Gallotti, porque colocaria o tribunal em situação pra lá de delicada. O plenário teria que anular a decisão de seu presidente e declarar o indeferimento da segurança, ou inventar que se tratara de simples proclamação de resultado. Com a informação privilegiada obtida naquela manhã, Pertence quis evitar o constrangimento da Suprema Corte do Brasil e veio me fazer um pedido que, não fossem aquelas circunstâncias, seria até ofensivo para o meu dever de advogado: deixar de interpor o recurso a que meu cliente tinha direito. O que ele quis dizer com aquela conversa em curva foi que seria melhor ganhar nos votos do que criar um caso doloroso para o Supremo Tribunal e ganhar na “filigrana”. Você vai ga­nhar no plenário! Como você sabe disso? É minha intuição. Está no meu voto. Mineiro. Bagre ensaboado.

Depois do resultado, ficou muito claro; mas, até hoje, ele não admite isso. Diz que eu tenho tendência a interpretar os fatos sob forte dose de fic­ção. É desesperadoramente difícil enfrentar um mineiro inteligente.

Ao concluir essa conversa no arrastado jantar do Paddock, patrocinado por Gervásio, este, pouco afeito à indulgência, não se conteve:

— Entre os ministros que votaram a favor de Collor, estava aquele que você conseguiu a duras penas nomear para o Supremo, o Celso de Mello?

— Estava. Ele concedeu a segurança para Fernando Collor.

— E você acha que foi pelas razões doutrinárias de pena acessória e principal, aquele papo de não poder aplicar aquela sem aplicar esta?

— Na verdade, ele votou não a favor de Collor, mas contra mim. Em qualquer matéria, ele vota contra mim. Essa é, porém, uma outra história, que fica para outra vez.

— Eu queria ouvir isso de você, porque desconfiava que existia qual­quer coisa por trás, no voto daquele moço.

Já era tarde. Gervásio pagou a conta. Fomos todos embora. Naquele dia, não conversamos sobre o caso do Sr. Olavo Brás.

Ficamos no caso Collor, que me fez estudar todas as falcatruas prati­cadas por Paulo César Farias. Espantosas. Quando venci a causa, pensei co­migo: isso nunca mais vai acontecer no Brasil.

Pois aconteceu. E pior. Mais tarde, faço um resumo desses novos acon­tecidos no Governo Lula. Inclusive a tendência do ministro Celso de Mello em favorecer poderosos: concedeu mandado de segurança a José Dirceu22 e contra o Poder Legislativo. E Collor, o próprio Fernando Collor, foi eleito se­nador por Alagoas declarando-se favorável a Lula, que o recebeu no Planalto com abraços e elogios. Em política os iguais não se repelem. A vis é atrativa. Aqui, acabaram meu tempo e o capítulo.

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“Aracaju, 30. Chove pra caralho. O que devo fazer?”

Era o telegrama de um repórter de A Tribuna de Santos, enviado espe­cial para fazer uma cobertura da seca que assolava o Nordeste brasileiro há vários anos, em mais um dos seus ciclos. No auge da estiagem, com as conse­qüências de sempre — fome, migração em massa dos retirantes, discursos de políticos, invocações da venda das jóias da coroa no tempo do Império —, a tragédia era acompanhada por todos os jornais.

Olao Rodrigues, secretário da redação daquele fantástico periódico santista, que tinha um formidável faro jornalístico em sintonia com a von­tade dos leitores, resolveu mandar para o Nordeste um repórter. E o rapaz chegou lá precisamente no dia em que a seca acabou com a chegada de uma frente (naquela região a frente nunca é fria) chamada de inverno, e desabou uma chuvarada salvadora, forte, abundante, por vários dias. Era água que Deus mandava!

Olao respondeu ao telegrama, instruindo o “enviado especial” a fazer reportagens sobre o fim da seca e os resultados da chuva, que, mesmo sendo água que Deus mandava, trazia estragos misturados com os benefícios. E era notícia, pô!

Na redação de A Tribuna ficou a piada. Quando chovia muito em San­tos, o que era normal, o pessoal costumava dizer:

— Está chovendo mais do que em Aracaju, no dia 30.

E foi sob uma chuva assim que a cidade sofreu uma tragédia: desaba­mento de morros e das favelas neles implantadas. Eu era repórter novo, meio foca, e fui escalado na equipe para fazer a cobertura do desastre. Na cena dos acontecimentos, o impacto foi tanto, que pensei em largar o jornalismo. Ca­dáveres cobertos de barro, crianças com metade do corpo para fora, braços, os bombeiros levantando os escombros, afastando gigantescas pedras des­pencadas e encontrando gente morta. Chegavam pessoas de todos os lados para os serviços de socorro aos feridos. Resultado: nós deixamos a repor­tagem para os fotógrafos, tiramos as roupas, ficamos somente de cuecas e sa­patos. E fomos ajudar. Havia os bombeiros, o pessoal da Santa Casa, os voluntários não sei de onde, todo mundo fazendo alguma coisa, conduzindo feridos para baixo e entregando-os às equipes médicas.

Os engenheiros da Prefeitura estavam todos lá e, é claro, além de ajudar no socorro, providenciavam medidas para evitar novos deslizamentos de ter­ra, retirando gente que ainda continuava nos barracos não atingidos, mas sob ameaça. Nessas horas, as cenas são terríveis, a confusão é total, as pessoas trabalham chorando, alguns sofrem crise de nervos, mas continuam. Deus do céu, que barbaridade!

Na equipe de engenheiros municipais, havia um jovem magrinho, que subia e descia no meio daquela lamaceira toda, ora com crianças no colo, ora ajudando os que podiam andar, ora gritando para que retirassem os sobrevi­ventes das casas não desabadas, mas que corriam o perigo iminente de rolar morro abaixo. Numa dessas idas e vindas, ele me viu ajudando um bombeiro e me pediu para levar uma criança. Peguei a criança e levei até embaixo. Quando subi novamente, lá estava ele mandando aos funcionários da Prefei­tura que cavassem, a outros que colocassem esteios em pedras penduradas em barrancos, a outros, ainda, que levantassem telhados caídos.

Fomos madrugada adentro. Ouvi os engenheiros da Prefeitura e os fun­cionários chamarem o magrinho de Zuza. Então passei a chamá-lo também Pelo apelido: “Zuza, o que posso fazer agora?” “Faça isto, faça aquilo!” Em certo momento, ele parou e me disse: “Obrigado por estar ajudando!” “Ué? Por que não ajudar?”, disse eu. Ele respondeu:

— Você é repórter, eu o reconheci de cara, quando o vi. Você sempre sai nas fotos de suas reportagens. Podia apenas estar observando e tomando notas. Mas a ajuda é muito bacana!

Então lhe mostrei os outros colegas meus, de calção, que haviam provi­denciado para não ficar de cuecas, todos ajudando. Ninguém ali era mais re­pórter. No dia seguinte, sim, teríamos capacidade de descrever com fidelida­de a tragédia, porque estivemos muitas horas dentro dela ou dentro das conseqüências que ela provocou.

Dormi pouco. Acordei cedo. As cenas que tinha visto iriam perturbar meu sono por muitos anos. Fui trabalhar para escrever sobre o desabamento. Tive a idéia de passar antes pela Prefeitura e colher detalhes, números e infor­mações que os engenheiros e o pessoal da emergência podiam ter. Perguntei pelo Zuza. Disseram que ele continuara no morro até parte da manhã, mas acabara de chegar. O funcionário disse a um outro: “Chama lá o Dr. Mário! Tem aqui um repórter de A Tribuna que quer falar com ele!”. Perguntei ao funcionário: “O Zuza chama-se Mário? Mário de quê?”.

— Mário Covas Júnior — respondeu ele.

E o engenheiro magrinho entrou pela porta dos fundos da sala, todo enlameado, com a expressão cansada, triste, abatida, mas firme:

— Meu caro jornalista, que noite!

Ficamos amigos para o resto da vida, mesmo porque nossa amizade co­meçara sob o impacto de muitas mortes, como se tivéssemos participado de uma sangrenta batalha.

Depois o Zuza se desentendeu com o Prefeito Antônio Feliciano, um homem estranho. Quando estava nervoso, mastigava lenço. Não quis tomar providências para evitar novos desabamentos nos morros. Custaria caro. As futuras mortes não eram incluídas no orçamento municipal. Mário Covas, apenas contratado, foi embora. Mudou-se para São Paulo, onde abriu uma pequena fábrica de material com cera e verniz para tratamento de assoalho. Não deu certo. Foi esmagado pela concorrência. Voltou para Santos. Fez con­curso para a Prefeitura e acabou, agora sim, nomeado engenheiro municipal de carreira. Visitou-me na redação de A Tribuna. Tomamos um café. Ofe­receu-me um cigarro, que aceitei. Naquele tempo, Zuza fumava um maço por dia. Depois, passou a fumar quatro.

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A vida de jornalista ensinou-me muito, sobretudo o texto curto, sinté­tico, claro, que me ajudou enormemente na advocacia. Trabalhava como doi­do, e, para ganhar um pouco mais, o jornal me permitiu escrever colunas com pagamento extra. Roberto Mário Santini era “filho do dono” do jornal, Giusfredo Santini, e neto do jornalista que tornou A Tribuna um grande veículo, Nascimento Jr. Roberto foi meu amigo de juventude e me apoiou no início da carreira. Ele, o pai e o avô, todos já viraram saudades. Não vou contar a histó­ria deles, porque este livro reúne os “meus acontecidos” e não os acontecidos das pessoas que engrandeceram aquele jornal. Bem que mereciam um livro exclusivo, igual ao que Pedro Bial escreveu sobre Roberto Marinho. Estou en­ganado. O livro do Bial é fraco, não está à altura do biografado. O pessoal de A Tribuna merecia um trabalho igual ao que foi escrito por Engel Paschoal: A trajetória de Octavio Frias de Oliveira,23 vibrante, forte, emocionante, como a extraordinária vida e obra de Octavio Frias.

Uma das colunas que lancei em A Tribuna, chamada “Semanascópio”, publicada aos domingos, caiu no gosto do público e chegou a aumentar con­sideravelmente a tiragem naquele dia da semana. Eu assinava simplesmente José. Era uma coluna de pequenos tópicos, cada qual com a informação e o comentário sobre um fato ocorrido nos últimos sete dias. Muito anos depois, fiquei sabendo que “Semanascópio” foi o precursor de colunas de tópicos como o “Informe JB” e o “Painel da Folha”. Mas aquele tal de José ficou fa­moso em Santos, e, como desferia muitas críticas a políticos, administrações públicas, federais, estaduais e municipais, o colunista caiçara passou a ser assediado por muita gente, parte porque queria ser noticiada e parte porque tinha medo de ser notícia naquela seção.

Nada disso importa para a minha vida, que acabou desaguando no Di­reito, e não no Jornalismo. Mas, precisamente aos domingos, quando minha coluna era publicada, eu aproveitava para sair de casa e tomar banho de mar nas praias do Guarujá. Lá pela hora do almoço, costumava ir ao posto de ga­solina do Viola, que tinha, ao lado, um barzinho. Ali se tomavam caipirinhas maravilhosas e sobretudo, como tira-gosto, o insuperável quibe feito pela mãe dele. Para mim, nos domingos de sol, a caipirinha e o quibe daquele bar tornaram-se obrigatórios.

Era um desses domingos. Ao entrar no bar, vi, apoiada no balcão, rodeada por algumas pessoas, empertigada e dominante, a figura mais curiosa de São Paulo: o Prefeito Jânio Quadros, tomando caipirinha, co­mendo quibe e lendo A Tribuna, aberta precisamente na página do “Semanascópio”. Naquele dia, eu havia dado uma nota sobre a possibilidade de sua candidatura a governador e, felizmente, tinha elogiado a figura como al­guém diferente e moderno na política brasileira. Assegurei, no texto, que ele não iria esquentar a cadeira de prefeito, eleito no ano anterior. Seria gover­nador. Ainda bem, porque o próprio estava lendo o que eu havia escrito.

Pedi meu aperitivo e o quibe. O Viola deixou o posto com seus frentistas e veio para o bar, julgando-se no dever de ser o anfitrião de um político e de um jornalista. Apresentou-nos e contou para o Jânio que eu era o José da co­luna que ele acabara de ler, inclusive mostrada pelo próprio Viola.

Jânio e eu ficamos interesseiramente interessados um no outro, ele em agradar ao jornalista, e eu em ter acesso à notícia, pois a figura não apenas me parecia uma fonte curiosa, mas era teatralmente a encarnação da notícia. É impossível ao jornalista errar nesse diagnóstico.

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A aproximação foi facílima. Durou umas oito caipirinhas e não sei quan­tos quibes. Então, fiquei sabendo que o pai dele, Dr. Gabriel Quadros, tinha casa no Guarujá. Ali, Jânio passava muitos fins de semana. Vinha ao bar do Viola aos sábados e, raramente, aos domingos. Festejou a inspiração de ter vindo naquele domingo e ter-me conhecido. Por mais demagogia que aquilo parecesse, co­mum em qualquer político diante de um profissional da imprensa, a figura transmitiu-me a impressão de ser muito inteligente. Falava, com o sotaque car­regado, um português perfeito. Expunha com clareza idéias sobre qualquer assunto. Disse saber inglês, mas de Londres, ressalvou, não a porcaria ianque.

E atribuiu a Bernard Shaw a observação de que os Estados Unidos do­minariam o mundo, se os americanos soubessem falar inglês.

— E você — perguntou ele — somente escreve esta coluna em A Tribuna?.

— Não, meu caro — a intimidade, pela caipirinha, era total. — Em jor­nal do interior, a gente faz de tudo: reportagem policial, cais do porto, greve, eventos sociais, e eu ainda tenho a incumbência de escrever sobre a política do café, pois o assunto interessa muito a Santos, o maior exportador do produto.

— Política do café? Isso existe? — perguntou.

— Claro. O Brasil exporta cerca de cinco bilhões de dólares, e três bi­lhões são produzidos pelo café. Têm, pois, a maior importância as medidas dos governos federal e estaduais, reguladoras de escoamento da safra, de maior ou menor aperto do confisco cambial, na taxa do câmbio fixada para a exportação do produto. Tudo isso é a política do café. Critérios malucos!

Conforme o produto exportado, a taxa de câmbio tinha valor diferente. Pelo dólar do café, pagava-se menos. Era o confisco cambial, uma desgraça para a lavoura cafeeira. Pior que geada, pior que a seca, pior do que qualquer desastre da natureza, pois era deliberada pelos economistas da época.

— E você entende de tudo isso?

— Eu escrevo sobre isso. Entender é outra coisa.

Conquistei a figura, que gostava de humor refinado. Mas ele também me conquistou, numa época em que era muito difícil deparar com políticos inteli­gentes e de razoável cultura, circunstância que parece agravar-se a cada dia.

O Prefeito de São Paulo estava, porém, fora da minha jurisdição de re­pórter. Era problema para a sucursal paulistana de A Tribuna.



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Li, contudo, nos jornais da capital, que havia uma grande disputa, na­quele ano, pela presidência da Comissão do IV Centenário de São Paulo, ins­tituída em 1951 pelo Governo do Estado e pela Prefeitura da Cidade, com Ciccillo Matarazzo no comando, seu primeiro presidente. A Comissão pres­tara, antes da data, muitos serviços à história paulista, sobretudo quanto ao projeto Ibirapuera, nos terrenos reservados por Washington Luís, quando prefeito, muito tempo antes, para o futuro parque. Mas a disputa, agora, era pelo cargo de presidente da Comissão no ano máximo das comemorações, 1954, o ano do IV Centenário. Segundo as informações, o Prefeito da cidade teria peso decisivo na escolha. Eram candidatos vários políticos ou protegidos de políticos. Fui para São Paulo, falei com um grande amigo meu e me dirigi ao gabinete do Prefeito.

— O senhor quer falar com o Prefeito? — perguntou-me um oficial de gabinete. — Sem marcar hora? Vou encaminhá-lo para Dona Kalime.

Dona Kalime Gadia não tinha a menor idéia de quem eu era. Na vida de Jânio, quem Dona Kalime não conhecesse podia considerar-se estranho e, no mínimo, intruso. Após os cumprimentos, disse-lhe:

— Fale que é o Saulo Ramos, de Santos.

— Saulo Ramos dos Santos?

— Não, minha senhora, Saulo Ramos, da cidade de Santos, jornalista.

Com uma expressão meio incrédula, ela disse que ia tentar e entrou no gabinete. Alguns segundos depois, a porta se abriu, e o próprio Jânio surgiu:

— Meu amigo, que surpresa! Ganhei o dia! — e mandou-me entrar. Dona Kalime ficou sem entender nada. Nem eu tinha tempo, nem seria ele­gante contar-lhe histórias de caipirinha no bar do Viola, no Guarujá.

— Presidência da Comissão do IV Centenário? Tem interesse nisso? Você é de Santos, quer promover os Andradas ou homenagear o Padre Anchieta?

— Nada disso. Primeiro, eu sou de Brodowski, e não de Santos.

— Então quer indicar o Portinari — ironizou.

— Não. Quero fazer uma sugestão ainda melhor. Em vez de colocar um político, nomeie o Guilherme de Almeida, o poeta de São Paulo e Príncipe dos Poetas Brasileiros.

Ficou quieto. Pensou. Seus olhos se iluminaram:

— Você acaba de me prestar um grande favor. É a solução. Que grande idéia! Será que ele aceita?

— Não sei. Convoque-o e proponha. A iniciativa deve partir de você.

— Farei o possível. Tenho que falar com o governador. A escolha será de comum acordo. Creio, porém, que o nome do Guilherme é irrecusável.

Despedi-me e, quando eu estava saindo, ele concluiu:

— Saulo, meu bem. Quando tiver novas idéias a me sugerir, venha. Não se iniba.

Guilherme aceitou. Eu já sabia, mesmo porque, antes de ir falar com Jâ­nio, havia sondado o poeta, que se entusiasmou com a hipótese, mas, bem a seu feitio, desanimou, dizendo que a pressão dos políticos era imbatível. E que ele não mexeria uma palha para conseguir o cargo. Achava o Jânio meio ma­luco e não gostava do governador. Guilherme era especialista em complicar as coisas. Imaginação fértil demais. Atalhei: se você for convidado, aceita?

— Aceito.

Assim se fez.



49

A maneira pela qual o destino me fez conhecer Guilherme de Almeida foi surpreendente peripécia, que me levou a mais peripécias, umas derivadas das outras. Morando em Cravinhos, na fazenda de meu pai, telefone 45, havia escrito muitos poemas sobre o café, lavoura, plantio, geada, floradas, colheita, vida simples da roça, enxadeiros. Alberto Wately, líder rural e da cafeicultura, amigo de meu pai, pediu cópia das poesias, para submetê-las à apreciação do poeta Guilherme de Almeida.

Meu pai chegou em casa com a novidade e com uma pequena máquina de escrever, que comprara em Ribeirão Preto. Eu deveria esforçar-me, aprender datilografia e mandar os poemas datilografados. Não sei se ganhei muita coisa com a poesia, mas aprendi a escrever à máquina, o que foi fundamental para a minha vida de jornalista, de advogado e, mais tarde, muito mais tarde, para dominar o computador. É isso mesmo: dominar o computador. Sei quase tudo sobre essa máquina fantástica, numa relação interminável de amor e ódio. Na minha idade, trata-se de proeza incrível saber a diferença entre um arquivo “sys” e um “dll”. Claro, cultivo e uso o utilitário e seus periféricos, tendo em mente aquilo que foi dito por um francês: “L’ordinateur a de mémoire, mais n’a aucun souvenir”, “o computador tem memória, mas nenhuma lembrança”.

Voltemos à minha primeira máquina de escrever, como se dizia então. Datilografei meus poemas. Claro que fiquei extremamente nervoso, quando minhas poesias, enfiadas num envelope pardo, foram levadas pelo meu pai e tinham como destinatário o maior poeta brasileiro vivo. Enfim, eu era um jovem caipira, que vivia em fazenda e conhecia apenas a estrada entre Cravi­nhos e o norte do Paraná, enquanto trabalhei como caminhoneiro. E fiquei quase em pânico, ao saber que meus versos seriam lidos pelo poeta de quem todo mundo falava, a professora rural, os intelectuais de Ribeirão Preto, e que publicava diariamente uma crônica no jornal que meu pai assinava.

Passou-se o tempo, e Guilherme chamou-me. Disse que estava lendo e, por enquanto, queria apenas me conhecer. Conversamos. No final, ele me disse que era candidato a deputado estadual. Trabalhei por ele em Cravinhos. Teve onze votos. Escreveu-me uma carta dizendo que os onze votos valiam tanto quanto as onze mil virgens do paraíso. Não foi eleito e silenciou. Ne­nhuma notícia. Desisti de esperar. Tirei da cabeça. Meu pai vendeu a fazenda em Cravinhos, e mudamos para Santos. E lá recebemos a notícia de Alberto Wately: Guilherme queria me ver.

Fui encontrar-me com ele em seu escritório, na Rua Barão de Itapetininga. Recebeu-me com um abraço, chamando-me de poeta, e comunicou que minhas poesias seriam publicadas em livro e que ele já havia redigido o prefácio, o qual me estendeu para ler. Ele mesmo percebeu que eu havia ficado pálido. Era fim de tarde. Acalmou-me e convidou-me para tomar um uísque num bar ao lado do seu escritório, num edifício que ostentava um grande letreiro: PRINTAL.

A porta de entrada era exatamente embaixo do N, e o bar era no pri­meiro andar, Confeitaria Vienense. Entramos. No bar, ele era celebridade também como freguês. Em Cravinhos, não me lembro de ter tomado uísque. Creio que uma vez meu pai me ofereceu uma dose com soda, gasosa, enjoa­tiva. Meu forte era cachaça, porque vivia misturado com a caipirada. Mistu­rado é força de expressão. Sempre fui um deles. Em Santos, não havia sido iniciado na bebida escocesa. Continuava com pinga, limão e gelo moído. Fase de praia. Caipira se dá bem com caipirinha e refuga scotch.

Mas o Guilherme tomava uísque com gelo e um pouquinho de água pura, sem gás. Aderi, pois, afinal, ele era meu mestre. Foi o primeiro uísque de algu­mas dezenas de litros que tomamos juntos no correr da vida, a maior parte em sua casa, na Rua Macapá, pois eu não tinha dinheiro para bancar o gosto pela bebida escocesa. Varávamos a noite discutindo poesia, forma, versos livres, metrificação variada, harmonia e ritmo. Ele ficava um pouco enciumado, quando se mencionava Fernando Pessoa. Quanto ao resto, não ligava muito.

No lançamento do meu livro, que se chamou Café: a poesia da terra e das enxadas, aconteceram aquelas situações de sempre. Poeta novo na praça, apresentado pelo poeta mais consagrado de São Paulo, badalação, noticiário, até que um dia, em sua coluna do Diário de São Paulo, escreveu uma crônica, publicada no dia 1º de outubro de 1953, comemorando o surgimento do “poeta do café”, tecendo elogios para a poesia e, de repente, enfiou no texto a seguinte frase:

“... agora se há dois amigos entre os homens somos nós: Saulo e eu...”



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