Código da Vida



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28

Imperdoável era o “clube da chave”. Ou o fato de ensinar crianças a con­tarem coisas imorais, para produzir prova contra ex-marido. E por quê? O que levaria uma mulher, por mais depravada que fosse, a deixar de proteger a pureza de seus próprios filhos, ensinando-lhes não a prática dos atos hor­ríveis narrados, mas como descrevê-los, o que, na sensibilidade delas, deveria causar o mesmo e irreparável estrago pelo resto da vida?

Sempre supus que, na vida animal, em qualquer tipo, o instinto ma­terno era o mais sublime, a começar pela defesa incondicionada dos filhos, sob todos os aspectos e em todas as situações. A exceção que agora desmentia minhas convicções deveria ser única. Tinha que ser a única.

Aquela cliente que eu passara ao Paulo de Tarso levava uma vida censu­rável; mas, em sua casa, com seu filho, tinha conduta exemplar, circunstância que o advogado descobre usando testemunhas, assistentes sociais e outros re­cursos. Ela podia ser mulher doidivanas, mas amava o filho pequeno. Dentro de casa, o filho crescia respeitando a mãe. Isso é fundamental para o direito da criança. O direito da mãe é secundário. E o que ela tem não é direito; é dever e obrigação. Paulo ganhou a causa.

Todos nós temos exemplos comoventes de vivências lindas ao lado de mulheres fantásticas. Minha mãe foi uma delas. Fazendeiro pobre, meu pai teimava em cultivar café, esperando que a safra pagasse pelo menos o fi­nanciamento do banco. Nunca acertava. Ele inventou a eterna esperança no “ano que vem”.

Minha mãe costurava nossas calças e camisas com o tecido de sacos da farinha usada para fazer pão caseiro, ou com brim cáqui, quando dava para comprá-lo. Além disso, ela ia colher lenha no mato, para cozinhar no velho fogão feito de tijolo e barro, pintado de vermelho. Um dia, olhando para o céu, achei que as nuvens da minha terra tinham a marca de seus braços. Nunca reclamou de nada. Vivia alegre, e suas risadas gostosas são um dos melhores sons que guardo de minha infância, junto com o canto da passarada nas madrugadas rurais e azuis de Cravinhos. Isso me engasga e molha os olhos que, com o tempo, foram aprendendo a conter lágrimas para a gar­ganta engolir em seco. Para mim, hoje, a saudade é um soluço de lágrimas re­tidas. Sinto a umidade delas em minha alma.



29

Não satisfeito em ter prejuízo com sua fazenda de café na terra roxa de Cravinhos, meu pai comprou outra no norte do Paraná, no município de Jacarezinho, às margens do Rio Paranapanema, região que estava sendo des­bravada. Creio que passou a ter prejuízo em dobro. Adquiriu um caminhão F-5, fez-me tirar carta de motorista profissional e incumbiu-me de fazer transporte entre as duas fazendas. Momento de glória de minha juventude. Trabalhar! Minha primeira profissão foi, portanto, a de caminhoneiro. De Cravinhos para o Paraná, levava material de construção, e, na volta, trazia café já beneficiado. Muito depois entendi: para vender em Santos, o café com origem em Cravinhos conseguia preço melhor. Os provadores profissionais nem percebiam tratar-se de café paranaense.

Não era fácil trabalhar com caminhão naquela época. Estradas de terra, e, quando chovia, tudo virava lama e barro bravo. O jeito era colocar cor­rentes de ferro nas rodas do caminhão, para evitar atolar na estrada. Mas, algumas vezes, desliza daqui, escorrega dali, o volante golpeia à esquerda, desvira tudo à direita, rabeira para um lado, dianteira para o outro, vai rumo ao barranco, roda em falso e — merda! — o caminhão afunda no barro. Meu ajudante (caminhoneiro sempre tem um ajudante, mas que não dirige) chamava-se Cassiano. Era um crioulinho magnífico. Foi meu companheiro de muitas viagens pelos caminhos esburacados do nosso país.

Quando o F-5 encalhava, o trabalho, em algumas ocasiões, era uma tra­gédia. Tirávamos toda a carga no muque. E a depositávamos sobre um ence­rado estendido no barranco da estrada. Com um enxadão, removíamos o máximo de barro diante das rodas e colocávamos pedras, folhas, troncos, qualquer coisa que ajudasse as rodas a não se afundar nem girar em falso. Concluídos os remendos na estrada, eu arrancava com o caminhão com toda a força do motor, para sair do buraco, e, quando saía, procurava, na frente, um trecho mais seco ou mais firme. E sempre se repetia a cena:

— Pára! Pára! — gritava o Cassiano. — Veja a lonjura em que está a carga. Nós vamos morrer para recarregar o caminhão.

Não morríamos. Éramos jovens. Carregávamos tudo nas costas e dando risada.

Na próxima cidade, escolhíamos uma pensão para tomar banho, trocar de roupa, beber uma cachacinha, jantar e dormir. Uma vez, Cassiano contou-me, na hora do aperitivo, que estava com tanta saudade da mãe dele, que che­gava a doer. E não havia lido nenhum poema de Drummond. Na segunda pinga, despejou os irmãos brincando na roça, mas dizendo que a mãe viúva chegou a passar fome para os filhos comerem.

— De que morreu seu pai? — perguntei.

— Meu pai morreu matado. — E não quis contar a história. Voltou a falar da mãe: — Ela servia para nós tudo o que tinha, e era pouco, dizendo que ia comer mais tarde. Mas eu via: lá dentro não tinha nada. Isso não foi nem uma, nem duas vezes. Foi durante muito tempo. Ela trabalhava na enxada. Depois, as coisas melhoraram. O que ajudou mesmo foi a derriça do café.

— Por que você não leva sua mãe para trabalhar na fazenda de meu pai? Assim, você fica com ela o tempo todo, enquanto não viajamos.

— Obrigado, mas não precisa. Agora, ela está muito feliz. Mora na cidade e, além de trabalhar em casa de gente boa, ajuda o padre na igreja, di­zendo que tem que rezar o resto da vida, por ter criado bem os filhos. E, gra­ças a Jesus, graças a Nossa Senhora, ela está levando a vida que pediu a Deus! Uma santa. Eu é que morro de saudades dela. Você me desculpe o desabafo.

Tomamos a saideira para ir jantar. Os olhos dele estavam lacrimejando. Ele falava, pois, de uma mulher de alma linda, igual à da minha mãe, igual à de tantas mulheres, milhares, pobres ou ricas, em nosso país, pois, afinal, elas iluminam a humanização das famílias brasileiras. Com sacrifício, privações, seja lá o que for ou faltar, somos um povo de mães, pais e filhos com valores fundados no amor e, a maioria esmagadora, na moralidade e na decência.

Que diabo podia ter baixado em uma mulher para negar tudo isso e degradar os próprios filhos, levando-os a gravar aquela sujeira toda contra o pai?

30

Chega de cogitações. Minha obrigação era estudar os próximos passos no processo judicial, aberto em minha mesa, ainda sem contestação, ao lado de outros quarenta e tantos ali amontoados, dentre os mais de duzentos que corriam em todo o escritório.

Era quase meio-dia. Resolvi fazer uma visita ao Gervásio. Entrei. Ele me ofereceu um drinque. Não quis. Apenas à noite. Não bebo na hora do almoço.

— Faz bem. Quer água?

— Aceito.

— Não foi você quem criou aquele órgão que vigia a ética na propa­ganda? Como se chama? Cornar, Colar, ou coisa parecida.

— Conar. Conselho Nacional de Auto-Regulamentação Publicitária.

— Como funciona essa coisa?

— Coisa não, meu caro. É uma instituição privada da maior respeitabi­lidade e funciona muito bem.

— Sem lei, sem nada?

— É por isso que funciona bem. É um tribunal de ética. Foi a primeira grande organização não governamental do Brasil. Já completou 25 anos de funcionamento com pleno sucesso.

— Se alguém for condenado, quem obriga o faltoso a cumprir a con­denação?

— Primeiro, é preciso entender a composição do Conar. Todos os ope­radores da publicidade integram o Conselho. Anunciantes, agências de pu­blicidade, veículos, jornais, revistas, rádios e televisão. Até os que trabalham com outdoor e têm uma central, na época presidida por Carlos Alberto Nanô, signatário da ata de fundação daquele órgão. Se um simples anúncio ou qual­quer produção publicitária for considerado antiético depois de um processo completo no Conar, com direito a defesa plena, réplica e tréplica, os veículos suspendem a divulgação. Pronto. A condenação está cumprida.

— E ninguém dá um jeitinho de enrolar, de burlar e continuar anunciando?

— Não há hipótese, precisamente por não existir lei que regule o funcio­namento da instituição. Por norma, toma-se o Código de Auto-Regulamentação Publicitária, denominado normas-padrão, uma genial criação dos publi­citários brasileiros, fundada nos princípios gerais da moral e dos costumes. A instituição é de direito privado, e todos cumprem esses princípios. Mas eu não vim visitar você para falar sobre o Conar. Por que a preocupação?

— Eu vi um anúncio na TV e me lembrei de que você esteve envolvido nessa coisa de censurar publicidade.

— Parado lá, meu caro. Não se trata dessa coisa e muito menos de cen­surar. É uma conquista do mundo publicitário brasileiro e uma grande obra dos veículos de divulgação, dos anunciantes, das agências de propaganda. Hoje o Conar é citado como exemplo no exterior, nos países de maior desen­volvimento da publicidade, como a Inglaterra e os Estados Unidos.

— Você faz esse discurso porque foi seu fundador.

— Fui o coordenador da fundação. O mérito cabe aos líderes publicitá­rios e aos proprietários dos veículos que, na época, aceitaram a idéia e lhe de­ram vida. Para citar apenas alguns: Geraldo Alonso, Caio Domingues, Mauro Salles, Roberto Marinho, Dionísio Poli, Petrôneo Corrêa, José Maria Homem de Montes, Luiz Celso de Piratininga, Luiz Fernando Furquim e muitos outros. Lista respeitável. Aliás, em muitas reuniões, o Dr. Roberto Marinho foi representado por seu filho, João Roberto, mocinho e de uma perspicácia notável. Quando alguém sugeriu que devíamos procurar o Governo Federal para obter uma lei sobre a matéria — seria um decreto-lei, pois estávamos em pleno regime militar —, o jovem João Roberto advertiu:

— Se pusermos o Governo nisso, acabará editando lei para ele, e tere­mos censura em vez de liberdade de expressão com responsabilidade ética.

O garoto fez sucesso. Estava certo. Mesmo porque a ditadura, embora estivesse chegando ao fim, ou por isso mesmo, tramava editar normas de censura na propaganda. Na verdade, apressamos com o surgimento de uma solução de direito privado, e o fato consumado calou a boca dos que queriam calar a nossa.

— Por tê-los assessorado na constituição do órgão — expliquei pa­cientemente ao Gervásio —, na redação de seus estatutos e regimentos, com a colaboração do grande publicitário João Luiz Faria Neto, fizeram-me uma homenagem, elegendo-me o primeiro presidente do Conar. Homenagem e trabalho. Fui um primeiro presidente não muito primeiro e não muito presidente.

— Por quê?

— Porque, terminada a organização do tribunal de ética, houve a elei­ção para o presidente oficial, o de verdade, que foi Petrôneo Corrêa, o verda­deiro primeiro, ainda que tenha sido o segundo. Ele lutou muito pela implan­tação do órgão, contras as dúvidas levantadas no próprio meio publicitário e teve a sorte de contar com a colaboração de muita gente competente. Inclu­sive do Gilberto Leifert, que deixou a advocacia para dedicar-se unicamente à bela missão de organizar a liberdade de expressão publicitária exercida sob a responsabilidade de um código de ética maravilhoso.

— Mas isso funciona até hoje?

— Claro! O Conselho funciona há décadas, e, atualmente, você não vê um único litígio em torno de publicidade correndo pelo Judiciário brasileiro, se o assunto tratar de questão ética. Mais um pequeno detalhe: a própria lei da publicidade (Lei nº 4.680/65) e seu decreto regulamentar (Decreto nº 57.690/66) tiveram os textos redigidos por mim. Seu moço, o tempo passa!

— A troco de que você legislou sobre publicidade?

— Colaborei. Quem legislou foi o Congresso, e o Executivo baixou o regulamento.

— Mas redigido por você.

— Eu era consultor jurídico da ABAP — Associação Brasileira de Agên­cias de Propaganda (hoje ABP). E prestei também consultas à ABERT — Associação Brasileira de Rádio e Televisão. Acabei entendendo do assunto e, sobretudo, me empolgando com a convivência. Os publicitários, além da criatividade profissional, são, em geral, muito inteligentes, excelentes reda­tores, perspicazes, lutam pela conquista de mercados para o produto de seus clientes, mantendo a consciência de que lidam com um poderoso instru­mento de educação do povo.

— Mas você já reparou que a maioria das propagandas no Brasil, a de TV e de rádio principalmente, começa com “chegou!”? Chegou isso, chegou aquilo. Não haverá outro verbo no vocabulário desses excelentes redatores? — Gervásio gostava de contrariar meus entusiasmos.

— Prestei esse serviço a esta atividade essencial ao funcionamento civi­lizado de nosso país: a propaganda. Não deboche. É um mercado de impor­tância enorme e de infinitas possibilidades. E o Conar veio completar e coroar a organização dos publicitários e veículos com o exemplar tribunal de ética, que nenhum outro setor industrial ou comercial conseguiu conceber. É pre­ciso conferir a jurisprudência que os julgamentos desses anos todos colecio­naram para o setor. Verdadeiras aulas de comunicação decente e construtiva.

— Como advogado, você arrumou uma ótima saída para livrar a pu­blicidade do martírio, da morosidade, da insegurança, das falhas do Judiciá­rio. Não há como criticar a idéia, sobretudo porque está funcionando. Mas a OAB podia aplicar-lhe uma censura, já que você tirou muitas causas boas de seus colegas.

— Não fale bobagem. Os advogados podem funcionar, e funcionam, em todos os processos do Conar. E anote: para os juristas, o Conar tem uma importância histórica de alta relevância. Antes de sua fundação, solicitei um parecer do Professor Pontes de Miranda, que o proferiu com a sabedoria de sempre. Foi o último parecer jurídico do velho mestre. Logo depois, mor­reu. Os honorários que lhe devíamos foram pagos ao seu espólio.

— Não me diga! Isso é preciosidade. Mas as agências de publicidade da­quele tempo não faziam campanhas para políticos como fazem algumas hoje?

— Que mal há nisso?

— Se ficassem apenas nas campanhas, contabilizando os verdadeiros cus­tos de acordo com a lei eleitoral, tudo bem. Mas a intimidade, meu caro, a inti­midade com os candidatos acaba corrompendo a atividade profissional. Eleito, o cliente, pensando na próxima eleição, passa a favorecer seus marqueteiros com verbas públicas em propaganda duvidosa, de utilidade duvidosa, de preços duvidosos, de forma duvidosa nos pagamentos, inclusive no exterior. A ABP não devia reconhecer essa picaretagem como agência de propaganda. Pelo que você falou, se o Código Brasileiro de Auto-Regulamentação Publicitária fosse apli­cado à publicidade eleitoral não aconteceriam tantas baixarias!

31

— Gervásio, meu caro, eu vim falar com você sobre o caso do Olavo Brás e não sobre a ética na publicidade, nem sobre o Conar. Vim falar sobre o Olavo Brás. Tenho chance?

— Quem é esse cara?

— Aquele das crianças e da gravação acusando-o de atos imorais.

— Ah! É verdade. Não me lembrava do nome dele. Foi feita a perícia?

— Foi. E comprovou-se que, depois de todas as perguntas, foi apertada a tecla de pausa, o que confirma a suspeita de que as respostas tenham sido ditadas pela mãe.

— Ou alguém por ela.

— Não. Creio firmemente que o ditado só pode ter sido feito pela mãe. Criança naquela idade não repetiria as frases contra o pai se faladas por um estranho. Somente se vindas da mãe.

— Tem razão.

— Achei que você gostaria de saber o resultado que confirma nossas suspeitas.

— E a distância? A perícia indicou a distância entre as crianças, en­quanto falavam, e o gravador?

— Não desceu a esse detalhe.

— Detalhe? Você está maluco! A distância é essencial para demonstrar que a criança, enquanto falava, estava imóvel, e que a mãe a segurava de algu­ma forma. Isso vai levar a outra dedução: houve um cúmplice operando o gravador. Eu já lhe disse isso da outra vez! Passe o caso para outro advogado, porque, pelo jeito, você está ficando gagá.

Gervásio tinha razão. Saí de lá com raiva de mim, por não haver adver­tido o perito sobre o tal “detalhe”. Ainda bem que não se tratava da perícia judicial, a definitiva. Cheguei ao escritório, dirigindo-me imediatamente à minha secretária, Dona Dayse:

— Ligue para o Sinval. Urgente!

32

A lentidão do Judiciário brasileiro é antiga e crônica. Piorou muito com o tempo. Ou mudam as leis processuais e modernizam a infra-estrutura desse Poder ou vamos acabar tendo um apagão no sistema e no país todo. Controle externo não é uma bobagem total, mas com gente estranha infiltrada vai fun­cionar mal. Adianta nada, mas atrasa muito. Súmula vinculante pode ajudar um pouco.

Podem atirar pedras, mas a idéia de súmula vinculante foi minha, e li­mitada à questão constitucional, por um motivo muito simples. O Supremo Tribunal declara inconstitucional uma determinada lei. O juiz de primeiro grau, ou um tribunal qualquer, sob a presunçosa invocação do juiz natural, acha que o Supremo está errado e aplica a lei contra o direito do cidadão bra­sileiro. Se a vítima tem dinheiro para pagar advogado, pode recorrer e chegar até Brasília. A vitória está assegurada, porque o Supremo declarou inconsti­tucional a lei aplicada contra o recorrente. Aqui já se misturam dois tipos de recurso: o extraordinário e o mais extraordinário ainda, que é o recurso fi­nanceiro. Sem este, aquele não anda. Mas o pobre, que sofre lesão igual, não tem como se defender. Terá seu direito negado por falta de um recurso pro­cessual infraconstitucional. Nosso sistema permite, assim, que transite em julgado (proteção constitucional) a aplicação da lei declarada inconstitu­cional pela Suprema Corte. É coisa de maluco.

Resolvi lançar a idéia da súmula vinculante no Congresso da Magistra­tura em Fortaleza, Ceará. Antes de viajar, passei pela Barão de Limeira, visitei a Folha de S. Paulo e fui falar com o meu amigo de tantos anos, Octavio Frias de Oliveira, empresário, jornalista e homem íntegro, brasileiro convicto, espí­rito público, e que, além disso tudo, usufrui da sorte de ter filhos formidáveis, que continuarão sua obra. Pedi o apoio da Folha para a idéia que iria lançar no Nordeste. Frias entendeu imediatamente o significado da medida por mim sugerida. E apoiou. Foi um longo caminho. A súmula vinculante entrou na reforma do Judiciário e hoje mora no texto constitucional.

Claro que o Judiciário continua vagaroso e, processualmente, um trambolho. O que resolveria e seria fundamental para agilizar as deficiências desse Poder é... bem, deixa pra lá! Não vou me meter nisso agora e aqui. Prefiro que o Walter Ceneviva, que tem paciência para tudo, cuide da matéria em seus excelentes artigos de jornal.

Meu cliente, Olavo Brás, também precisaria ter paciência, se possível chinesa, pois não voltaria tão cedo a ver seus filhos. Mas, desistindo da idéia de suicídio, já me deixava tranqüilo, a menos que sofresse uma recaída em ra­zão da demora do Judiciário. Contestei a ação. Defesa resumida, limitada a afirmar que, na inicial, nada era verdade, que a autora da ação era de morali­dade duvidosa e seu ilustre advogado fora cruelmente enganado. Requeri a perícia na fita cassete e indiquei o Sinval como assistente. Depois de um de­bate formal sobre o cabimento e a utilidade do exame técnico, o juiz deferiu a prova. A parte contrária indicou seu assistente, e o nobre magistrado no­meou o perito judicial. Sinval me assegurou que o laudo seria unânime, ao menos lutaria por isso, porque não havia dúvida sobre as pausas entre as perguntas da mãe e as respostas das crianças. Já estava advertido sobre a distân­cia do gravador e a fonte das vozes. Constava dos quesitos. Deu tempo.

— Quando você imagina entregar o laudo?

— Isso eu não sei. Depende do perito do juiz, que está sobrecarregado. Vamos ver se podemos agilizar.

Agilizar, em linguagem forense, significa meses e meses. Enquanto isso, meu cliente continuava sem o direito de visita, mas a crise de autodestruição estava amainada. Vez por outra, eu o chamava para um papo descontraído e, na verdade, bancava o psiquiatra. Tomava cuidado para não falar na investi­gação do Nerval sobre o comportamento da ex-mulher durante o casamento. O homem já estava arrasado diante de mim. Seria imprudência ou malva­deza falar no adultério da ex-mulher e perguntar como foi, se era verdade seu perdão, quais as razões.

Refletidamente, não recorri da liminar que lhe suspendeu o direito de visitas. Seria apenas uma medida para cumprir o dever de advogado, mas po­deria envenenar o tribunal, que ouviria a gravação, e o recurso não seria defe­rido. Restaria apenas o veneno.



33

Às vezes, o advogado confronta-se com dilemas complicados para es­colher o melhor caminho de defesa de seu cliente. Em muitas ocasiões, isso me aconteceu. Em uma delas, foi terrível. O caso do impeachment19 do ex-presidente Fernando Collor, que, espertamente e para fugir à pena de inabilitação por oito anos para o exercício de cargo público, renunciou ao mandato antes da conclusão do processo no Senado Federal. O impeachment tratava-se de favas contadas. Nenhuma dúvida havia. O moço seria posto na rua.

Mas o Senado, reunido em tribunal especial para o julgamento do cri­me político do Presidente da República, sob a presidência do Ministro Sydney Sanches, do Supremo Tribunal Federal, considerou prejudicada a acusação para alijá-lo do cargo, em virtude da renúncia, e lhe aplicou a pena de inabilitação do parágrafo único do artigo 52 da Constituição. Não poderia mais exercer qualquer função pública por oito anos. Collor mudou-se para Miami, nos Estados Unidos. Instalou-se numa casa na ilha Bal Harbour e foi des­frutar de um rico descanso, longe de Paulo César Farias, mais tarde assassi­nado em circunstâncias até hoje misteriosas. Um arquivo bem apagado.

Porém, antes, Fernando Collor ingressou com mandado de segurança no Supremo Tribunal Federal contra o Senado Federal. Seu advogado, Cláu­dio Lacombe, profissional de alta competência, fundamentou sua tese numa premissa simples: se a pena principal não foi aplicada, é inconstitucional a aplicação da pena acessória. Armou-se o circo.



34

Fui convocado para defender o Senado Federal, autoridade impetrada no mandado de segurança. Caprichei na defesa por escrito. Usei de todas aquelas complicações jurídicas de citações em alemão, italiano, inglês e latim e clamei por justiça perante o mundo, como diziam os antigos romanos: Fiat justitia, pereat mundus.

Na nossa realidade, citei uma lei do Congresso Nacional (Lei nº 7.106/83), portanto votada pelo Senado, que dispunha sobre a prescrição de dois anos para aplicação da pena de suspensão daqueles direitos contra autoridades que deixassem o cargo, quer voluntariamente, quer por impeachment.

Era uma lei editada especialmente para o Distrito Federal. Sabe lá Deus o que a inspirou nesses eternos casuísmos dos jogos políticos do Brasil. De qualquer forma, a conclusão seria única: o Senado, como órgão legislativo, considerou a aplicação da pena de suspensão independente da outra cha­mada de principal. Pena autônoma, mesmo porque, pela lei por ele votada, poderia ser aplicada a inabilitação até dois anos depois de a autoridade pú­blica haver deixado o cargo. Não se podia pedir ao Senado que, como tribu­nal constitucional, agisse de forma contrária a seu entendimento como órgão legislativo.

É fácil imaginar quantas matérias de direito foram debatidas naquela ocasião. Os especialistas e historiadores que queiram os detalhes ou a íntegra dos trabalhos encontrarão tudo nos arquivos da época. Eu mesmo, antes do processo, proferi três pareceres sobre a matéria, respondendo a consultas de altas autoridades dos Poderes Executivo e Legislativo. Outros juristas fizeram a mesma coisa. Se transcrevesse neste livro aqueles trabalhos, estaria recor­rendo a um inegável enchimento de lingüiça, sem qualquer utilidade aos lei­tores que tiveram a paciência de chegar até este ponto

Desculpem-me, mas não tenho a menor vontade de reproduzi-los aqui. Minha história é outra, fora dos autos, mas não fora do mundo. Versa sobre aquele dilema que atormenta o advogado na escolha do melhor caminho para a defesa do cliente. Nessa causa, o meu cliente era o Senado Federal e, por trás dele, o povo brasileiro.

Cláudio Lacombe, defensor de Fernando Collor, costumava, uma vez por semana, ir a um restaurante em Brasília e passar o dia bebendo apenas bebida extraída de uva. Começava com vinho branco, dos melhores, conti­nuava com grandes vinhos tintos durante o almoço e, depois, como diges­tivo, conhaque. Simpático e de bom papo, conversava com todos no restau­rante, até que, vencido pela enolatria, era retirado por seu motorista e levado para casa. Perguntado por que não escolhia, para esse processo de distensão, o sábado ou o domingo, respondia que o fim de semana era da família.

O julgamento no plenário do Supremo Tribunal Federal foi numa quarta-feira. Tribunal lotado. Gente que não acabava mais. As televisões dando trombadas, com câmeras em todos os ângulos. Cenário de pressão so­bre todos nós, os atores daquele momento histórico, que o Brasil ia viver na­quela sala.

Os advogados que participam do julgamento sentam-se na primeira fila, vestidos com túnicas pretas chamadas de becas. Acomodei-me ao lado do Cláudio Lacombe, que iria falar em primeiro lugar, por ser o advogado do im­petrante Fernando Collor, autor do mandado de segurança. Evitamos que nossas becas se entrelaçassem, cada qual puxando para seu lado sua saia quase rodada, como fazem as mulheres com vestidos longos.

— Hoje é quarta-feira. O que você está fazendo aqui? Não é seu dia de deliciar-se com vinhos?

— Estou cumprindo o meu dever.

— Não vai ter crise de abstinência?

Não consegui perturbá-lo. A sessão foi aberta, e o processo foi anun­ciado pelo Presidente do Supremo, Ministro Luiz Octávio Gallotti. Três mi­nistros deram-se por impedidos: Sydney Sanches, porque havia presidido a sessão do Senado impugnada pelo pedido de segurança; Marco Aurélio, por­que era parente do impetrante Fernando Collor; e Francisco Rezek, porque se aposentara do Supremo, fora ser Ministro do Exterior do Governo Collor e, por essas mágicas da política brasileira, voltara a ser Ministro do Supremo. Mas, ao menos, era competente. Acabou sendo Ministro da Corte Interna­cional de Haia e, quando voltou, foi ser sócio do escritório de Ives Gandra Martins, circunstância que, tanto quanto Haia, atesta seu talento jurídico.

Assim, a sessão prosseguiu com o quorum de oito ministros, suficiente para o julgamento pelo plenário da nossa suprema corte, composta por onze membros. Quando o Relator, Ministro Carlos Velloso, concluiu a exposição dos fatos e as razões do processo, Lacombe pediu a palavra e começou sua sustentação oral com absoluta calma:

— Não estamos aqui julgando o Governo Collor, mas somente a pena, aplicada pelo Senado, de suspensão de direitos de um cidadão comum, quan­do não era mais Presidente da República e contra o qual não podia ser apli­cada, e por isso não foi, a pena principal. Sem essa pena, a principal, a aplica­ção da acessória é uma rematada violência contra direito líquido e certo do impetrante.

E prosseguiu, em sua sustentação, com muita habilidade. Chegou mi­nha vez. Subi à tribuna e sapequei:

— Meu colega tem razão. Não estamos julgando o Governo Collor, pois, se o estivéssemos, nosso debate não se limitaria a uma pena de interdi­ção de direitos por oito anos; estaríamos aqui discutindo a possibilidade de aplicar pena perpétua ao impetrante, tantos foram os males que causou ao nosso país.

Risadas e um alto murmurejo tomaram conta do ambiente. Gallotti tocou a campainha, pediu silêncio e solicitou-me, com ar de censura, que evitasse “desnecessários” recursos de eloqüência. Concluí a sustentação e sentei-me.

Ao meu lado, Lacombe desferiu um palavrão no meu ouvido, baixinho. Fingi que não era comigo. O julgamento foi concluído com quatro votos fa­voráveis a Collor, concedendo a segurança, e quatro votos contrários, ne­gando o pedido. Empate.

No processo de habeas corpus, quando existe empate, considera-se con­cedida a ordem, pelo princípio do in dubio pro reo. Mas, no mandado de se­gurança, o empate significa que a ordem não foi concedida. Fiquei eufórico. Havia vencido. O regimento interno do Supremo tem disposição expressa (art. 205, parágrafo único) dizendo que, no caso de empate, prevalece o ato impugnado pelo mandado de segurança. Certo que se refere a ato do Presi­dente do Tribunal, mas aplicável, por analogia, a casos iguais. Além disso, na hipótese do impeachment de Collor, nem a aplicação analógica seria necessá­ria, porque o ato impugnado era igualmente atribuído ao então Presidente do Tribunal, Ministro Sydney Sanches, na qualidade de Presidente do Senado para o processo de impeachment. Nessa mesma qualidade, prestou informa­ções. Por isso, declarou-se impedido de participar do julgamento em que fi­gurava como autoridade coatora. Preparei-me intimamente para comemorar a vitória diante do empate. A segurança não fora concedida.

Aí apreendi a lição de Alain Touraine, sociólogo francês, que disse um dia:

“Aqueles que pensam que sabem o que vai acontecer no Brasil devem estar muito mal informados.”



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