Código da Vida



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Sem tomar fôlego, Gervásio continuou:

O terrorismo, em conseqüência, aumentou, sobretudo depois da guerra do Iraque, com a utilização mais forte de homens suicidas, que carre­gam de explosivos carros e caminhões, ou se vestem de bombas, para explo­dir ônibus e centros de diversão popular, matar crianças, idosos, mulheres, gente inocente. E provocar respostas descomedidas, como o bombardeio de bairros inteiros, sob a justificativa de que abrigam terroristas. Hoje, qualquer assassinato, como faz Israel na Palestina, ou no Líbano, é plenamente justi­ficado moral, religiosa e juridicamente, se assim é feito como um direito de defesa exercido contra o terrorismo. Se você manda um míssil contra uma casa de palestinos, basta dizer que ali se abriga um terrorista. Não há repro­vação alguma. E pensar que isso se faz em nome dos judeus, que todos nós defendemos contra o nazismo, que fazia precisamente isso com eles! Tanto que um dos meus heróis nesse mundo é o Simon Wiesenthal, o caçador de nazistas. Até esse putão do Putin proibiu, na Rússia, eleição direta para go­vernadores de província, invocando o perigo do terrorismo.

Quis interromper para fazer um comentário, mas Gervásio virou sua bússola para o Oriente Médio e metralhou:

— O Oriente Médio está desorientado. Agora surgiu o Presidente do Irã, um tal de Mohamoud Ahmadinejad, um maluco, declarando que Israel deve ser varrido do mapa. Ou transferido para a Europa. E que o holocausto não existiu. Foi tudo mentira. Faltou dizer que Hitler desentendeu-se com os judeus apenas porque desejou ser Papa. Realmente está desorientado o Oriente Médio. Israel perdeu Ariel Sharon. Derrame cerebral. E os palestinos aderiram de vez ao terrorismo, elegendo, por maioria absoluta, os membros do Hamas16 para o parlamento deles. Derrame intestinal. Não tem mais con­versa. Israel de um lado e do outro o terrorismo, como governo formalmente constituído sob falsa coabitação para receber ajuda de países europeus. De­pois vem o Hezbollah, no Líbano, e declara guerra a Israel.

— Hizbollah.

— Não me importa se é “Hez” ou “Hiz”, mas são uns energúmenos, to­dos com z de zebra. E Israel, um Estado democrático, aceita a declaração de guerra daquele grupelho de bandidos fanáticos e passa a matar crianças no sul do Líbano. Tem razão o capitão Amir Fester, do exército israelense, que se recusou à convocação para combater no sul libanês: sinto que fui chamado para uma guerra idiota, onde estão morrendo civis e tudo poderia acabar com um simples cessar-fogo. Foi para a cadeia por insubordinação.

Parou de falar. Fixou os olhos num ponto invisível da sala como se qui­sesse enxergar através da parede. O assunto era árido por definição. Nosso mundo, o ocidental, não entende bem a civilização árabe. Sobretudo suas doutrinas religiosas. Um jornal da Dinamarca publicou uma caricatura do profeta Maomé, e as populações mulçumanas se revoltaram. Incendiaram embaixadas. Governos romperam relações com países da Europa. Na Arábia Saudita, um time de futebol, com jogadores brasileiros, hospedou-se num hotel em Meca para um jogo com o time local. A polícia religiosa descobriu. Expulsou os brasileiros de seus quartos e da cidade. Eram três horas da madrugada. Somente voltaram na hora do jogo. Tiveram que ficar na cidade vizinha. O jogo se realizou na hora marcada e terminou em 0x0. Mas o time teve seus diretores presos e foi rebaixado para a segunda divisão. Os ociden­tais não sabem disso: quem não é mulçumano não pode entrar em Meca, onde nasceu o profeta Maomé. E muito menos se hospedar em seus hotéis.

— Vivemos um período complicado da história humana. Sujo e burro — comentei.

— Detesto sujeira e não tolero burrice — arrematou Gervásio. — A humanidade deu uma demonstração maravilhosa de solidariedade para com o povo da Ásia, na tragédia do tsunami, o maremoto que matou quase 300 mil pessoas em vários países. O que está acontecendo? Há ladrões que rou­bam os donativos e descaradamente os vendem em mercados. E o Bush? Ofe­receu 35 milhões de dólares para ajudar. Depois, passou para 350 milhões. Você sabe quanto ele gasta no Iraque, para matar pessoas?

— Não.

— Cinco bilhões de dólares por mês! Cinco bilhões a cada trinta dias! E, para ajudar a Ásia, manda 350 milhões. Um homem desses é eleito pelo povo americano duas vezes. Agora, ele vai dizer que a reeleição aprovou todos os seus atos na política externa. Guerra, torturas, Abu Ghraib, Guantánamo. Aquela história das armas de destruição em massa no arsenal de Sadam, informada pelo serviço de espionagem do governo Bush, apresentada agora com “desculpe, foi engano!”, poderá agüentar uma investigação no fu­turo? O serviço secreto inglês cometendo o mesmo erro com os James Bonds da vida? Um dia, vão descobrir que o 11 de Setembro foi conluio entre Bush e Bin Laden. Basta perguntar a quem aproveitou o crime. O enforcamento de Sadam Hussein, depois de um simulacro de processo penal, foi, na verdade, uma queima de arquivo, pois Sadam, cria dos Estados Unidos, poderia abrir a boca se não o mandassem para a forca logo em seguida. O recurso de apela­ção nem tramitou.



— Você é contra a condenação de Sadam, ditador sanguinário, brutal, maluco?

— Ninguém seria contra a condenação se o julgamento fosse realizado dentro das leis internacionais. E ele condenado, talvez, à prisão perpétua, como se fez com os nazistas em Nuremberg. Com o passar dos anos, Sadam começaria a falar. Por isso Bush mandou enforcá-lo rapidinho.



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Depois afirmou que tudo no Governo Bush está direcionado para as em­presas de Dick Cheney, o vice, ganharem dinheiro, tanto na guerra do Iraque, como nos escombros de Nova Orleans. Mas acentuou que o vice-presidente dos Estados Unidos é sádico, incentiva e comanda a política de tortura, assessorado por um tarado: Stephen Cambone, bandido perigoso que integra o governo norte-americano. Tudo isso ficou muito claro nas revelações da general Janis Karpinsky, em seu livro One Woman’s Army,17 em que acusa a tortura de ino­centes, como se fosse legal torturar culpados. Fala com a autoridade de quem foi a comandante-em-chefe da prisão Abu Ghraib, em Bagdá, no Iraque.

Aliás, a imprensa tem sido condescendente com a roubalheira no Ira­que. Por que os Estados Unidos destinaram bilhões de dólares para a guerra e em seguida bilhões de dólares para a “reconstrução” do país? A verba desti­nada ao armamento é embolsada pelos espertos. Ninguém confere quantos tiros deu uma metralhadora. Em futuro próximo, vamos ver os casos cabe­ludos que serão revelados pelo SIGIR, um organismo criado pelo Congresso dos Estados Unidos para investigar as patifarias financeiras (as outras, todos conhecem).

Uma delas, dentre milhares, já foi descoberta. A construção da Aca­demia de Polícia em Bagdá, que custou 75 milhões de dólares, verba fácil, urgente, tudo em nome da segurança. No dia da inauguração foi interditada. Era tudo falso. Parede, encanamento, teto, piso. O dinheiro sumiu e dei­xaram lá um maquetão para fingir de obra acabada. Guerra também serve para isso.

Gervásio continuou:

— Esse sujeito, o Bush, é o mal em putrefação. Somente entende de ma­tar e de guerra. Veja a sua ineficácia para a paz, sua incompetência para salvar as vítimas do furacão Katrina, que destruiu Nova Orleans. O país mais pode­roso do mundo deixou centenas de pessoas morrendo ao desabrigo, feridos apodrecendo, famintos e sedentos saqueando uns aos outros. Um horror. O que fez Bush? Foi à televisão pedir contribuições, ajuda. Seu governo não tem recursos para socorrer gente em seu próprio território, porque gasta tudo . matando gente nos territórios estrangeiros. Os norte-americanos são uns cretinos. Reelegeram um homem desses, depois de admitirem sua eleição fraudada pelo Governador da Flórida, seu irmão.

— Nem todos — respondi. — Bush ganhou por uma diferença mí­nima: 2%.

— Mas ganhou! Logo, naquele país, a maioria é burra. Todo medroso é burro. Creio, porém, no Judiciário deles. Chegará o dia em que algum juiz ou tribunal haverá de declarar a inconstitucionalidade das prisões sem di­reito de defesa para os presos acusados de terrorismo. Tal como a Suprema Corte dos Estados Unidos declarou inconstitucional o julgamento pelos tri­bunais militares criados por George W. Bush, seguindo o voto magnífico do Juiz David Souter, que estraçalhou com a histeria policial da Casa Branca. Bush é catástrofe em tudo. A humanidade conseguiu celebrar o mais impor­tante acordo internacional de todos os tempos: o Protocolo de Kyoto. Re­ceita para salvar o planeta. Bush é contra, sob aplausos de muitos ameri­canos. Pode?

— É por isso que Vicente Ráo dizia: o americano é o português que deu certo. E você tem razão. Enquanto houver democracia, o Judiciário é a esperança.

— E não é de hoje que esses políticos se sustentam, explorando o medo dos idiotas de seus cidadãos. Você se lembra? A humanidade viveu, durante muito tempo, sob o medo das ogivas atômicas da União Soviética. No final, fizeram um aborto na montanha. Resultou em vários ratos, inclusive um bê­bado. Agora é o terrorismo, menos perigoso que as ogivas, e até um dos ratos abortados, o Putin, usa a nova moda para ter mais poderes. Você soube o que disse Philip Zimbardo, um dos maiores psicólogos norte-americanos e um dos autores da Teoria da Janela Quebrada?

— Não.

— Pois toma lá. Veja que análise perfeita: “O governo Bush manipula a ansiedade nacional causada pelo 11 de Setembro a serviço de suas próprias am­bições políticas. Essa administração só foi reeleita porque criou o que chamamos de ‘Síndrome do Estresse Pós-Traumático’. Não precisamos de um ataque terro­rista, estamos fazendo todo o trabalho para eles”.



Esperou um pouco, tomou fôlego e me perguntou se eu conhecia o dra­maturgo e poeta inglês Harold Pinter.

— Claro — disse eu. — Foi o ganhador do prêmio Nobel de Literatura em 2005. Mas não conheço a obra dele.

— É quase um Shakespeare do século passado. No seu discurso perante a Academia Sueca, na solenidade de entrega do prêmio Nobel, ele disse que a literatura é uma forma compulsiva de busca da verdade, ao contrário dos políticos, que buscam apenas o poder, e, para isso, o primeiro valor que matam é precisamente a verdade. Aproveitou para chamar Bush e Tony Blair de ban­didos, dizendo que deveriam ser julgados como criminosos de guerra.

— Deu uma enorme colher de chá para os árabes, pois no momento não há outras guerras além das do Iraque e do Afeganistão, além do mal-estar com o mundo islâmico. Ou Harold Pinter estava se referindo às guerras preventivas, aquelas que, na cabeça de Bush, permitem a invasão de qualquer país sob qualquer pretexto a título de defesa prévia?

— Referia-se aos árabes, sem dúvida alguma. E você acredita que os árabes, fanáticos tanto quanto Bush, podem tolerar charges e piadas dos ocidentais, quando seus líderes são acusados de bandidos por um prêmio Nobel?

— Espera lá, meu caro. Na Turquia, o prêmio Nobel de Literatura, Orhan Pamuk, fugiu de seu país porque foi ameaçado de morte. Idéias libe­rais e críticas em Istambul são motivos de assassinato. Depois de ver morto a tiros seu colega e amigo, jornalista e escritor, Hrant Dink, Pamuk se mandou, ou, como diz a juventude de hoje, vazou rapidinho. O dinheiro do Nobel pode ajudá-lo a manter-se por algum tempo fora da mira dos fanáticos de sua terra. Não é apenas Bush que assassina as liberdades.

— Bush é tão desastrado que, na América Latina, conseguiu ter como ini­migo Hugo Chávez, um imbecil, que passou a legislar por decretos através de uma tal lei habilitante. Bush é incompetente até para ter inimigos, pois, apesar de Chávez achincalhá-lo todos os dias, continua comprando petróleo da Vene­zuela, que, com esse dinheiro, compra armas e prestígio na região. Outra ques­tão que não consigo engolir: Lula pediu ao Bush para abolir a taxa que os Es­tados Unidos cobram na importação do nosso etanol. Resposta negativa. Mas sobre o petróleo importado da Venezuela não cobram taxa alguma.

— Ainda bem que o povo norte-americano reagiu impondo uma fragorosa derrota aos republicanos nas últimas eleições de seu Congresso e de seus governadores. A Câmara dos Representantes passou a ter maioria de demo­cratas, e Bush vai ter que dançar baião de dois se quiser ficar na Casa Branca até o fim de seu mandato, se não lhe arrumarem um impeachment. Enquanto isso, será divertido ver o antes todo-poderoso Bush apanhar de duas mulhe­res: Nancy Pelosi, na Câmara, e Hillary Clinton, no Senado.

Tive que encerrar a conversa com essas críticas a Bush. Gervásio sosse­gou. Ele não é propriamente um adepto do antiamericanismo, pois, para ser assim, teria que se igualar à idiotice de Hugo Chávez. Mas é um ferrenho anti-Bush. Os mais ferrenhos marxistas, quando se declaram antiamericanistas em geral, esquecem que Karl Marx admirava os Estados Unidos e afirmou isso em carta dirigida ao presidente Lincoln.18

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E Gervásio fala, fala. Foi assim sempre. Voltando ao passado para re­tomar o fio do novelo, lembro-me daquele dia em que fui visitá-lo, quando lhe contei, depois de ouvir o discurso sobre Kennedy, o caso do Sr. Olavo Brás. Contei-lhe tudo: gravações, perícias, vida da mulher, ameaça de suicídio do meu cliente. Gervásio ficou em silêncio por alguns instantes e perguntou:

— As vozes das crianças estão nítidas? Não há algum vestígio de que fa­lam de distâncias diferentes do gravador, tipo mais perto, mais longe?

— Não. O som é igual o tempo todo. E muito claro. Nada indica afas­tamento ou aproximação das crianças no momento em que suas respostas foram gravadas.

— Essa mulher tem um cúmplice! — sentenciou Gervásio.

— O que você quer dizer com isso? Um amante? Um namorado?

— Não. Um cúmplice na autoria das gravações.

— Por que você tirou essa conclusão?

— Simples. Primeiro, as mulheres não são exímias operadoras dessas maquininhas modernas de gravar. Segundo, a gravação com duas crianças é trabalhosa. Você disse uma de sete, a menina, e outro, o menino, de nove anos?

— Creio ser machismo seu achar que mulher não sabe operar grava­dores. As crianças têm sete e nove anos.

— Numa situação dessas, as crianças não se sentem à vontade. Falar mal do pai. Ficam constrangidas. Andam de um lado para outro, querem sair da sala, sentam, levantam, se atiram em sofá, se houver um por perto, pedem suco, sorvete, querem ir ao banheiro.

A imaginação de Gervásio não tinha fim.

— E a mãe — continuou ele — não poderia segurar o gravador, operar as teclas, fazer as perguntas e ditar as respostas, soltar o gravador depois de feitas as perguntas, sem segurar a criança da vez. Não teria êxito, se a criança estivesse solta. É impossível mantê-la na mesma posição, de forma que a voz seja gravada em igual distância o tempo todo. A mãe tem que segurá-la, ou pelo ombro, ou pelos braços, ou pela cintura, sem violência, mas tem que se­gurar. Criança nessa idade? Gravando essas coisas? Tem que segurar.

— E daí?


— Daí, foi o cúmplice quem executou as operações de grava-pausa-solta-grava, trabalhando no gravador. A mulher não podia fazer isso, tendo de segurar as crianças. Ela tem um cúmplice. Investigue. Você descobre.

Voltou a falar dos problemas do mundo. Despedi-me e fui para o escri­tório, agora com um problema a mais: o “cúmplice”, que o Gervásio enfiou na minha cabeça. Alguém disse uma vez, misturando cinismo com humor: Quando é grande demais a confusão, está-se bem próximo da solução. Acho que foi o Lair Ribeiro, um emérito otimista.



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O laudo da perícia do Sinval era claro: a cada pergunta formulada pela mãe, havia um clique sobre o botão de pausa no gravador, ou, mais prova­velmente, sobre o stop, porque a interrupção das ondas gráficas, no leitor de áudio, era abrupta. Os desenhos sonoros cessavam completamente e, em seguida, retornavam no osciloscópio com a resposta da criança. Sinval ilustrou com fotos todos os trechos em que isso ocorria, numa época em que não era fácil obter esse tipo de reprodução.

Não havia dúvida: entre a pergunta e a resposta, o gravador era travado. Daí a certeza de que as frases das crianças foram ditadas pela mãe. Intuitiva­mente, meu cliente acertara. O grande mal, a tragédia irreparável, não era a acusação contra ele, mas o fato de seus filhos terem sido levados a descrever atos obscenos que seguramente desconheciam e dos quais, por essa diabólica forma, tomaram conhecimento.

Sobre a vida da mulher, as informações foram chegando aos poucos. Nerval, Casé e meus demais assistentes transformaram-se em agentes poli­ciais, o que sempre ocorria quando precisávamos colher provas difíceis. Vas­culharam tudo. Ela freqüentava a praia do Guarujá e, por várias vezes, fora vista no “clube da chave”. Ali se reuniam casais devassos, que se divertiam misturando as chaves dos respectivos quartos, e cada um dos homens, de olhos fechados, pegava uma delas para ir dormir com a mulher do outro, que estivesse ocupando o quarto da chave sorteada. Era invalidada a escolha quando coincidia de pegar a chave do próprio quarto. Gente maluca,

A mulher era desquitada, mas freqüentava o clube com um namorado. Gostava, portanto, desse tipo asqueroso de aventura. Claro que não seria fá­cil provar o fato, mesmo porque os demais freqüentadores jamais admiti­riam praticar esse jogo deprimente. Mas já era alguma coisa. O “clube da chave”, no Guarujá, de alguma forma, sofria um zunzum sobre essa ativi­dade. Se o zunzum se espalhou, ainda que discretamente, haveria alguém que ouviu dizer. Talvez um garçom que serviu bebidas, ou algum entregador de pizza.

Eu teria, primeiro, que demonstrar o que era o “clube da chave”, achar alguém que prestasse depoimento sobre o que se dizia do clube e de seus fre­qüentadores. E, depois, uma outra testemunha que tivesse visto a mulher en­trando ou saindo do local, onde se supunha que o clube funcionasse.

Mas o que isso teria a ver com o fulcro do processo de guarda das crian­ças e o direito de visita do pai? Não sei se o juiz aceitaria a prova, pois, mesmo se eu a conseguisse, o fato demonstraria que a mulher era uma devassa, talvez indigna de ter a guarda de filhos menores, mas não ilidiria a acusação contra o meu cliente, materializada na gravação da fita cassete. Eu provocaria gran­de confusão nos autos e na cabeça de todos. Poderia conseguir a transferên­cia da guarda das crianças para os avós, que estavam vivos; mas não devolve­ria ao meu cliente o direito de visita e não o livraria das conseqüências penais decorrentes de atos obscenos praticados com menores, sob o agravante de tê-lo feito com os próprios filhos.

Mas a mulher é uma grande sem-vergonha. Deixei meus assistentes continuarem buscando todas as provas. Não seria demais. Um dia poderia surgir algo que virasse tudo.



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Certa vez, tive um processo em que duas partes disputavam a proprie­dade de umas terras no litoral de Santos. Provas de todos os jeitos. Testemu­nhas idosas atestando que cada um deles não somente tinha a posse, mas também o título de domínio mais legítimo. A disputa visava ao registro no cartório de imóveis.

A parte contrária apresentou seu título de propriedade, papel antigo, escrito à mão, emitido pelo fabriqueiro da região no tempo do Império. Dizia-se “fábrica” o conselho constituído de clérigos e leigos, sujeito à apro­vação do bispo, e cujas funções se restringiam à administração dos bens de uma paróquia, funções que abrangiam emitir títulos de propriedade ou de venda e compra entre os paroquianos.

Submetido à perícia, o título da parte contrária prevaleceu, pois da­tava do tempo do Império, e o do meu cliente, embora formalmente consti­tuído de acordo com o Código Civil de 1916, perdeu no confronto. Sentença contra.

Durante o prazo da apelação, um colega meu, o Dr. Carlos Cherto, le­vou os autos para casa, a fim de estudá-los minudentemente, como sempre fez. Retirou dos autos o velho título e o olhou contra a luz. Na linha-d’água do papel, quase imperceptíveis, estavam as armas da República. O título era “fabricado” e não emitido pela fábrica da paróquia. Bendito o patriotismo republicano do fabricante do papel!

O Dr. Ariosto Guimarães costumava contar que um caiçara uma vez o procurou, para oferecer seus serviços ao ilustre advogado de Santos, especia­lizado em demandas de terras. E com a maior tranqüilidade lhe disse:

— Doutor, eu posso arrumar para o senhor qualquer tipo de docu­mento, pois, nessas brigas de terra, sem documento o senhor não ganha a questão.

Talvez tenha sido esse caiçara que ludibriou a nós e aos peritos, que não viram naquele título nenhum indício de falsidade. Não se pode desistir.

Para mim, no caso do meu cliente que queria suicidar-se, o “docu­mento” era o laudo do Sinval. Prova segura da materialidade do embuste, mas restrita às pausas do gravador.

Tive impulso de ir falar com o juiz da causa, magistrado competente, usando desses pequenos truques de “Vim dizer boa tarde, porque estava passando por aqui”. E aproveitar para comentar sobre o laudo particular, re­velando os detalhes das pausas na gravação. Contive-me. Era melhor reque­rer e esperar a perícia oficial.



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Em advocacia, é preciso pensar, planejar e ter muita calma, refletir sempre. Aprendi isso logo cedo, com um excelente advogado criminalista de Santos, José Gomes da Silva. Recém-formado, fui fazer estágio em seu escritório. Encarre­gado de defender um rapaz acusado de sedução, enfrentei meu primeiro pro­cesso com grande esmero. Aberto o inquérito por advogado com procuração para dar a “queixa”, ouvidas as partes, relatado pelo delegado, o Ministério Público ofereceu denúncia, porque o caso é de ação pública. A mim caberia levar o réu para ser interrogado, fazer a defesa prévia e requerer provas. Mas veri­fiquei que, nos autos, não havia a necessária representação dos pais da menor, o que acarreta a nulidade absoluta do processo penal nesse caso.

Entusiasmado, comuniquei o fato ao Dr. Gomes da Silva e lhe disse que liquidaríamos a causa já na defesa prévia.

— Não senhor — disse ele —. primeiro faça as contas. A lei processual penal fixa em seis meses o prazo para a representação. Desde a abertura do inquérito, quase contemporâneo à sedução alegada, não se passaram seis meses. Temos que deixar correr o prazo da lei, que é de decadência e não pode ser interrompido para contar de novo, como acontece com a prescrição. Além do mais, teremos um dia seguro para o começo da contagem, pois, em matéria de sedução, sempre há muita controvérsia relativa a quando se deve contar o prazo para a representação.

Aprendi mais essa. Deixei correr os meses e, depois, com a expressão angélica de advogado moço, aleguei a nulidade. E o processo foi arquivado. Aprendi a conviver com minha consciência. Uma solução técnica de ordem processual poderia ter sido razão da impunidade de um culpado? Se aceitou a causa, o advogado não deve amargurar-se com essas perguntas. O objetivo é defender seu cliente, sem abdicar dos valores morais. Foi nosso juramento, ao receber o diploma e ao entrar na OAB. Não pode, porém, ser rigoroso con­sigo, invocando valores morais em mutação na sociedade em que vive e exer­ce sua profissão. Foi um gênio aquele que descobriu o mais óbvio dos lugares-comuns: cada caso é um caso.

A moça seduzida poderia ter seduzido mais do que o rapaz acusado de sedutor. Nesses encontros e desencontros românticos e amorosos da juven­tude, não há muito valor moral a ser censurado, sobretudo sob enfoque do Direito Penal. Creio que estava certo, porque esse tipo de crime saiu de moda e foi revogado no Código Penal.



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