Centros Culturais da América Latina: Bahia, bahias



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A Cidade da Bahia, um espaço da América Latina situado entre a realidade e a ficção: o acervo literário de Jorge Amado

Prof.ª Dr.ª Elisabeth Baldwin



Universidade Federal da Bahia

Negação que sou para as línguas, a começar pelo português – escrevo em baianês, língua decente, afro-latina – só posso ler em francês e em espanhol, em italiano com dificuldade, dicionário à mão, e acabou-se o que era doce.


Jorge Amado, Navegação de cabotagem

1 Centros Culturais da América Latina: Bahia, bahias

Até meados do século XX, história e memória ainda caminhavam lado a lado. Rememorar eventos e datas, discursos construídos por uma visão eurocêntrica significava, na verdade, preservar e referendar uma memória colonizada do Novo Mundo.

Com o fortalecimento da abordagem dos arquivos e o novo valor conferido à pesquisa da memória dos povos, passou-se a desconfiar do estudo dos documentos como monumentos, que perpetuavam a herança dessa memória, disponibilizando-os nos museus, arquivos e bibliotecas, referendando sua monumentalidade.

A história nova nasceu em reação à história positivista do século XIX, com o intuito de pôr fim a essa noção autoritária e centralista. Para tanto, amplia o campo do documento histórico no que concerne à tipologia dos documentos como no que diz respeito ao seu próprio conceito. A história nova substitui a história fundada essencialmente no texto, no documento escrito, por uma história baseada em documentos variados, documentos orais, fotografias, filmes, depoimentos, fósseis, ferramentas, todos constituindo documentos de primeira ordem. Por outro lado, a história nova vê alongado seu sentido, concentrando-se não só sobre grandes homens e acontecimentos notáveis, mas também sobre todos os homens e seus cotidianos eventos.

Somam-se a tais fatos dois novos elementos que, ao descentralizarem a modificarem os conceitos tradicionais, vão mexer com a memória: os media, fabricando, quase ao acaso, a projeção de um mundo, pressionado por uma história imediata, povoada de memórias coletivas, e até, orientada para elas; segundo, o advento do computador que promove uma nova unidade de informação – em lugar do fato que conduz ao conhecimento e a uma história linear ou a uma memória progressiva, ele privilegia o dado que leva a uma série e à possibilidade de construção dessa nova história, não-progressiva, deslinearizada e descontínua. O novo documento, que é o dado, armazenado e manejado em banco de dados, transforma-se em realidade virtual e passa a integrar o material dos arquivos.

A geografia com os numerosos trânsitos culturais e a conseqüente mobilidade de fronteiras, ou seja, com o embaralhamento das balizas que constituíam suas referências, torna-se dado e, também, passa a ser vista como possibilidade de (re)construção de fronteiras.

Os idiomas, por sua vez, produtos histórico-geográficos de um discurso hegemônico de nação, são revistos por sujeitos situados na contemporaneidade multicultural, através do instrumental de conceitos e imagens disponíveis neste aqui-e-agora.

Dessa forma, sendo a memória elemento essencial do que se costuma chamar de identidade individual ou cultural, a reconstrução dessas memórias, beneficiando homens e acontecimentos comuns e novas áreas culturais e lingüísticas, passa a ser uma das atividades fundantes dos indivíduos e das sociedades atuais.

Assim, uma outra crítica filológica, literária ou uma outra crítica cultural vai se delineando. Direciona-se para, além dos acervos em língua escrita, também para os acervos de língua oral, encontrados em eventos cotidianos e, por isso mesmo, perpassados pela presença rizomática de múltiplas variantes lingüísticas e culturais.

Apontando para a construção de uma cartografia lingüístico-cultural da América Latina sob o ponto de vista dos latino-americanos, as recentes pesquisas dos estudos culturais têm enfatizado a realização de um novo desenho da latinidade mais abrangente e mais complexo – no qual se inscreveriam, além da hispano-américa, o Brasil, O Quebeque, a Guiana Francesa, o Caribe francófono, o Caribe espanhol, o inglês, o holandês, bem como a comunidade hispânica do Sul dos Estados Unidos e outras comunidades latino-americanas diaspóricas.

Eduardo Coutinho, pensador brasileiro, no artigo “Remapeando a América Latina: para uma nova cartografia literária no continente” (COUTINHO, 2004), propõe um conceito fundamental para a elaboração de qualquer história literária da América Latina, ou seja, a idéia de centros culturais, ultrapassando os conceitos de nação ou de idioma nacional. Para o pesquisador o centro cultural seria tanto o ponto de convergências e recepção de idéias, imagens e conceitos, acrescento, também, de línguas como o pólo de apropriação e difusão desses fenômenos.

A leitura que Evelina Hoisel (HOISEL, 2004, In. BITTENCOURT, 2004) faz das reflexões de Coutinho sobre história literária vêm referendar o seu pensamento: “A historiografia literária, edificada no passado a partir de noções que pressupunham a linearidade, a continuidade e a progressão temporal, centrada ainda nos conceitos de nação e de idioma, rompe com esses pressupostos, tomando como base outros escopos teóricos. Aderindo às descontinuidades, às rupturas, aos saltos temporais e às simultaneidades, abalando os conceitos de nação e de idioma, por denunciarem os aprisionamentos políticos e econômicos nele embutidos, comprometidos etnocentricamente, a proposta de Eduardo Coutinho para remapear a cartografia da literatura na América Latina, do ponto de vista historiográfico, constrói-se a partir das noções de centros culturais, definidos como “ponto de articulação entre a geografia e a história, entre o espaço e o tempo, espécie de encruzilhada, de ponto de convergência de idéias, imagens e conceitos.”

Continuando, mais adiante, Evelina (HOISEL, 2004) afirma como conclusão de seu artigo: “De acordo com a perspectiva assumida por Eduardo Coutinho, remapear o continente literário da América Latina, desvencilhando-se das amarras eurocêntricas que fundamentaram a historiografia tradicional, implica cartografar esses trânsitos que se elaboram nos centros culturais (paradoxalmente o centro aponta para o difuso, para a diversidade de centro), enquanto lócus de transculturação, que envolve uma multiplicidade de signos culturais, que reconstroem dispersamente a história.”

Assim, Coutinho (COUTINHO, 2004) diz que espacialmente o centro cultural poderia se constituir em torno de uma cidade-eixo, uma cidade que tenha a função de pólo estratégico de influência simbólico-cultural; o nível temporal, histórico de cada centro-cultural poderia ser visto como um recorte baseado em um momento paradigmático de sua formação, no qual este lócus realmente atuou como uma espécie de pólo magnético, desencadeador de intercâmbios, como lugar de produção de imagens e representações. Além de se constituir como pólo de articulação entre geografia e história, conforme Coutinho, diria que poderia promover outros campos de saber, como por exemplo, aquele existente entre as múltiplas línguas que o habitaram ou que o habitam ainda atualmente. Os “centros culturais” constituiriam, portanto, os novos arquivos dessa latinidade que se desenha. E o estudioso, seja poeta, lingüista, filólogo ou artista, seria o novo leitor de arquivos.

Conseqüentemente, elegemos três espaços latino-americanos sem fronteiras geográficas, idiomáticas ou culturais, explicitando sua multiculturalidade e seu multilingüismo: o espaço ampliado das guianas (Guianas, Venezuela, Colômbia e parte do norte do Brasil); o espaço em construção do Mercosul (Brasil, Argentina, Uruguai e outros); o espaço Bahia, bahias.

2 O Acervo de Jorge Amado e o Centro Cultural Bahia, bahias

O Acervo de Jorge Amado constitui um dentre três (o Acervo Zélia Gattai e o Acervo da própria Fundação são os outros dois), reunidos na Divisão de Pesquisa e Documentação – DPDOC – da referida Fundação, e compõe-se de livros do escritor em edições brasileiras e portuguesas, e as traduções em 49 idiomas, publicações variadas, letras de música, trabalhos como tradutor e organizador. Engloba, ainda, documentos pessoais, correspondência, certificados, diplomas, condecorações, troféus, bem como teses e estudos sobre o autor, adaptações de sua obra para cinema, teatro e televisão, filmes, fitas de vídeo, cartazes, etc.

Entre essa variedade de material encontrado no Acervo Jorge Amado, chama a atenção, pelo volume, a série em que se encontram os seus 25 originais – os rascunhos, as anotações, por vezes, até as provas tipográficas, de seus diversos livros publicados, incluindo-se aí, todavia, dois ainda inéditos e praticamente desconhecidos dos leitores –, com numerosas intervenções feitas a mão pelo autor e catalogados pela Prof.a Dr.a Elizabeth Hazin.

A partir desse catálogo, e como matéria sobre A cidade da Bahia, dependendo do número de testemunhos existentes, os originais podem ser classificados, conforme a minha opinião, em três grupos:



  1. Grupo dos manuscritos com apenas um testemunho que reúne os originais de Mar Morto, Jubiabá, Capitães da areia, A morte e a morte de Quincas Berro D’água, A história de Dona Flor e seus dois maridos, que, de toda forma, deixam entrever indícios da preocupação com a reescrita pelo número e tipo de rasuras encontradas;

  2. Grupo dos manuscritos com dois ou três testemunhos que reúne, por sua vez, os originais de Os pastores da noite (dois testemunhos), Tenda dos milagres (três testemunhos), Tereza Batista cansada de guerra (três testemunhos) e O sumiço da santa (três testemunhos). Nesse grupo há, também, muitos fólios avulsos, que não chegaram a formar testemunhos de capítulo e que pertencem, na sua maioria, aos primeiros capítulos da obra e as páginas iniciais do romance como dedicatória, resumo, epígrafe etc, revelando um significativo investimento do escritor nesta fase da escrita.

  3. Grupo de manuscritos especiais que agrega o material de dois originais: o de Boris, o vermelho e o de Bahia de Todos os Santos: guia de ruas e mistérios. O manuscrito de Boris, o vermelho é caso especialíssimo. Reúne apenas nove fólios (três testemunhos, cada testemunho com três fólios) do incipit do romance. Iniciado em 1982, o romance é abandonado várias vezes, para escrever Tocaia grande, O sumiço da santa, Navegação de cabotagem, mas sempre anunciado para breve pelo próprio escritor. Após de ter sido publicado na Revista Playboy, n. 85, sob a forma de conto, com enredo completamente diferente daquele que consta nos manuscritos sob o nome de O Episódio do Siroca, restou no arquivo apenas esses nove fólios de um incipit inédito, mas que esclarece sobremaneira o processo de um narrador no exato momento que registra as primeiras idéias. O original de Bahia de todos os santos: guia de ruas e mistérios reúne documentos que trazem acréscimos a quatro edições da obra (17ª, 27a, 28a, 34a) e a outras edições que não foram identificadas. Constitui um caso interessante para estudo mais aprofundado. Em se tratando do único livro de Jorge Amado revisto e ampliado pelo próprio autor, os manuscritos desse dossiê apresentam uma peculiaridade: a de constituírem conjuntos delimitados, pertencentes a momentos diversos.

O sumiço da santa, uma história de feitiçaria, manuscrito que nos interessa nesta pesquisa, possui um dossiê com quase dois mil fólios, dois originais incompletos da obra [Testemunho A – datiloscrito em preto, incompleto – 178 fólios, numeração seqüenciada à máquina no canto superior direito, dois tipos de papel de gramaturas diferentes], [Testemunho B – datiloscrito em preto, incompleto – 424 fólios, numeração seqüenciada no canto superior direito, à máquina ou à mão, montagem de vários dossiês, em papéis de gramaturas diversas e em máquinas diferenciadas], [Testemunho C, fotocópia de datiloscritos, 441 fólios, com numeração no canto superior direito, à máquina ou à mão, única, dupla ou tripla, montagem de fotocópias de vários testemunhos, datilografados em tipos diversos de máquinas; o papel é igual ao Testemunho B, sem marca d’água]. No total são 1043 fólios, mais os conjuntos: Diversos (manuscritos esparsos, autógrafos ou não), Varia (pequenos papéis, idéias e anotações sobre a obra) e os conjuntos de testemunhos, que se acumulam capítulo por capítulo, que não foram incluídos nos três testemunhos classificados como A, B e C1.

Com 432 páginas, o trigésimo segundo livro do escritor, O Sumiço da Santa: uma história de feitiçaria, tem hoje três edições, todas da Record, respectivamente em 1988, 1993, 1999. Essa última edição, mais cuidadosa, foi preparada por Paloma Amado e Pedro Costa sob a orientação do escritor e comparando os originais da primeira e da segunda edições. As três edições contam com ilustrações de Carybé. A obra foi traduzida para o alemão, esloveno, espanhol, francês, italiano e russo, e não teve repercussão positiva da crítica.

A primeira notícia que se tem da história de O Sumiço da Santa: uma história de feitiçaria foi sinalizada pelo próprio escritor em entrevista concedida a Mauritônio Meira para o Jornal do Brasil, na década de 50, citada na obra de Miécio Táti. Era 1958, Amado acabava de publicá-lo e falava de seus próximos planos literários:

A Guerra de Santo começou quando morreu a mãe-de-santo Aninha. Três filhas-de-santo começaram a disputar o lugar da falecida. A luta se desenvolve entre os santos, dura oito anos, com muita morte, tendo como elemento exterminador os “despachos”. Por fim, sai vitoriosa a mais famosa mãe-de-santo da Bahia de nossos dias – Bibiana da Conceição, conhecida por Senhora. – Estou muito tentado por êste assunto. Mas se trata de um romance que vai requerer um esfôrço tremendo: vou ter de me aprofundar muito na terminologia do terreiro; e ter de dar à obra um sentido de mistério e de fantasia, colocando-a num plano onde será difícil distinguir as fronteiras da realidade e da imaginação.

Vinte e quatro anos passados, em 1984, Amado começa a escrever A Guerra dos Santos, após concluir Tocaia Grande e, à primeira vista ter abandonado a escrita de Bóris, o Vermelho, obra que seria publicada quatro anos depois com um enredo completamente diferente do original (1988). Em pequena nota introdutória, à moda de prefácio, o escritor assim se manifesta a respeito do assunto:

Projeto de romance anunciado há cerca de vinte anos, sob o título de A Guerra dos Santos, somente agora no verão e no outono de 1987, na primavera e no verão de 1988, em Paris, coloquei o enredo no papel. Escrevendo-o diverti-me; se com sua leitura, alguém mais se divertir, me darei por satisfeito.”

Só que agora, essa Guerra de Santo sobre a qual Amado escreve é uma outra guerra: divertida, alegre e zombeteira.

Distante da sua Bahia, Amado pinta, como já havia feito em Bahia de Todos os Santos: guia de ruas e mistérios, Salvador como uma cidade misteriosa, cativante, feiticeira, onde todos são amigos do rei, poderão ter a mulher que querem, na cama que escolherão.

Inclusive, no último capítulo da obra – “Saravá três vezes que eu me vou embora”, sub-capítulo “O dia de Ôrunkó, ou o dia de dar o nome”, quando Iansã, no barracão do Gantois, pleno de gente, ergueu-se no ar e anunciou o nome da recém-nascida Manuela – há uma espécie de convite para ver de perto a citada capital do sonho:

Quem quiser saber mais sobre esses assuntos de santeria, de vodun, de candomblé e macumba, de feitas, caboclos e orixás, trate de arrumar um dinheirinho, embarque para a Bahia, capital geral do sonho. Vá a uma casa-de-santo, a um terreiro, ao Engenho Velho, Axé Yá Nassô, ao Gantois, Axé Yá Massê, ao Centro Cruz Santa de São Gonçalo do Retiro, axé Opô Afonjá, à Sociedade São Jerônimo, Ilê Moroialajê ou Alaketu, ao candomblé do Portão, peji de Oxossi e do caboclo Pedra Preta, ao Pilão de Prata, Ilê de Oxumaré, ao Bogum, território da nação jeje, ao Ilê Axé Ibá Ogun, candomblé da Mutiçoca onde brinca o compadre Exu Sete Pinotes, à aldeia de Zumino-Reanzarro Gangajti, de neive branco, ao Bate-Folha, chão Angola no Beiru, reino de Tempo.Vá a qualquer das duas mil casas de candomblé das diversas nações da África e das nações indígena, nagô, jeje, ijexá, congo, angola e caboclo, situadas na Bahia, em todas elas será bem recebido, com largueza e fidalguia: sendo capaz de poder entrar.

Quem for da boa-noite poderá ver de golpe e pela rama a beleza e a liberdade. Se for da benção, vai enxergar muito mais longe, vai vadiar com os orixás. Nesses templos pobres, ainda ontem perseguidos, guardam-se a saga dos escravos, a dança e o canto proibidos, resgata-se a memória condenada. As zeladoras dos orixás são senhoras da Bahia, cada qual mais majestosa, mais bela e sábia, princesas e rainhas, iyás, as mães do povo.

O viajante, seja rico ou pobre, negro ou branco, moço ou velho, erudito ou analfabeto, seja quem for desde que de paz, poderá participar da festa do candomblé, onde deuses e homens são iguais, cantam e dançam a fraternidade universal.

Nos manuscritos da obra, o verso do fólio 98 traz o depoimento de Zélia no rascunho de uma carta, interrompida no meio de uma palavra, dizendo do trabalho de Jorge Amado em O Sumiço e do seu Jardim de Inverno:

Zélia Gattai

Há quatro meses, desde um mês de março, nos encontramos em Paris – Jorge e eu – trabalhando: Jorge escreve um romance, O Sumiço da Santa, onde trata dos problemas: miscigenação e sincretismo religioso, um livro onde são abordados problemas da maior seriedade, falo como leitora e não como esposa. Quanto a mim vou pelo quarto livro de memórias, Jardim de Inverno, encontro-me no momen...2

Em entrevista dada a professora Elizabeth Hazin, em Roma, em 19/11/1993, Amado confirma que começou a escrever O sumiço quando estava em Paris, tentando novamente escrever Bóris:

Depois, já em Paris, em 1987, tentei outra vez retomar O Bóris e mais uma vez não consegui, e foi justamente querendo marcar outra figura que eu queria que aparecesse no romance – a figura de um padre progressista, já que o romance aconteceria dentro do período do regime militar – que escrevi a história que hoje é O sumiço.(HAZIN, 2003)

A narração de uma Guerra de Santos é encenada em O sumiço com o nome de Guerra de Aluvaiá. Possui vários testemunhos incompletos e três testemunhos completos, ocupando um subcapítulo, quase no final da obra no qual os três encantados – Oxóssi, Xangô e Exu Malé – auxiliam Iansã a montar a rebelde Adalgiza para libertá-la da força que a fazia puritana e frígida. Lutam contra o padre José Antônio que tentava exorcizar Adalgiza do demônio, já que, aos olhos da fé católica, era o demônio que se mostrava nesse corpo em transe. Além do título Guerra dos Santos estão outros três: Execração pública de fanáticos e puritanos, Visitação de Iansã à cidade da Bahia e O Sumiço da Santa. Os quatro subtítulos ligados por uma conjunção alternativa sugerem, na verdade, sempre uma guerra entre forças religiosas – mais infelizes e castradoras, as do catolicismo – e forças religiosas mais alegres e libertadoras – as do candomblé. Dessa guerra, sai vencedora a religião afro-baiana, o candomblé e seus encantados. São, ao mesmo tempo, quatro histórias e, ao mesmo tempo, uma só. No entanto, os itinerários das histórias se misturam de tal forma no tempo e no espaço que é difícil delimitá-los. Narra, de toda forma, episódios ocorridos na Cidade da Bahia na década de 60, em 48 horas, nas vésperas da Festa de Nosso Senhor do Bonfim, conforme o escritor registra na apresentação da obra. E um deles, que serviu de motivação para o desaparecimento da santa, é o roubo de imagens das igrejas da Bahia que foi notícia nos jornais da época. Ao encenar comicamente o roubo de imagens das igrejas e zombar dessa duvidosa máfia, o narrador cria um itinerário mágico e divertido para imagem de Santa Bárbara. Bem guardada, desde o Recôncavo até a Rampa do Mercado em Salvador, devendo figurar na exposição do Museu de Arte Moderna da Bahia, transforma-se em corpo físico de Iansã, desaparece e faz uma visitação a locais e pessoas da Cidade da Bahia, para ensinar a tolerância e a alegria, o bom da vida. Conforme Antônio Olinto (OLINTO, 1989) uma “tolerância que zomba de si mesmo”, mas que é “um hino à alegria de viver”.

Conforme a tradição narrativa dos romances anteriores – Jubiabá, Tenda dos milagres, Teresa Batista e Os pastores da noite –, a obra mostra os deuses do panteão afro-brasileiro participando ativamente da ação, mas no Sumiço, Iansã é personagem principal, orixá guerreira, corpo físico, com a habilidade do deslocamento advindo do movimento dos raios e trovões. Ela está em todos os lugares. Ela vai ao encontro de todas as pessoas. Constitui um ente de relação entre tempos, lugares e gentes desta Cidade da Bahia. Mas não brinca em serviço. Vem guerrear e não abandona o campo de batalha enquanto não alcança a vitória desta guerra através da qual pretende promover a alegria.

3 Um imaginário da baianidade: o que isso tem a ver com a língua?

Deleuze e Guatari, na releitura que fazem de Kafka, na obra Kafka: por uma literatura menor, sugerem um conceito de literatura menor, e o explicam como a possibilidade de instaurar, a partir de dentro, um exercício menor de uma língua vista como maior, ou a valorização de uma trajetória lingüística do nômade ou imigrante de sua própria língua quando ela deixa de ter sentido para ele. A literatura, então, vista desse modo, segundo o autor, passa a ter um caráter revolucionário em devir, à medida em que seja instaurada uma imagem de potência para a atividade cultural subalterna, conferindo-lhe força para reverter a hierarquia cultural e lingüística instituídas. E foi o que Jorge Amado fez em suas obras, ao tematizar a religião afro-brasileira e algumas modalidades do português brasileiro, diferentes da modalidade padrão.

Conforme a pesquisadora Yeda Pessoa de Castro (CASTRO, 2001), há cinco níveis de linguagem usados nos terreiros de Salvador, a saber: a língua-de-santo (língua ritual), a língua usual do povo-de-santo (a língua praticada pelo povo-de-santo no seu dia-a-dia), a língua popular da Bahia, o Português Regional da Bahia (linguagem cuidada e de uso corrente, familiar na Bahia) ou o Português do Brasil em geral. Nos terreiros criados ficcionalmente por Jorge Amado, a linguagem utilizada pelos personagens e pelo narrador transita entre os cinco níveis citados por Castro, embora dando especial relevo à língua-de-santo, à língua usual do povo-de-santo e à língua popular da Bahia.

Os dois estudiosos citados no parágrafo anterior apontam três características que julgam fundamentais para caracterizar uma literatura menor: a) desterritorialização da língua ou a formação de uso lingüísticos menores, não contemplados pela linguagem oficial ou pela norma lingüística ou literária vigentes; b) politização de todas as coisas, em que o meio social não é apenas pano de fundo; c) coletivização de todas as coisas ou seja, literatura na qual tudo tem valor coletivo.

No que concerne à primeira característica de Deleuze e Guatari, lembro que Jorge Amado abala os parâmetros de territorialidade da Língua Portuguesa, e a empurra para a desterritorialização, trazendo-a reterritorializada a partir do emprego de uma infinidade de expressões que misturam todos os níveis sócio-lingüísticos apresentados anteriormente, criando, por conseguinte, uma linguagem pop que explora o polilinguismo ou o multiliguismo de sua própria língua. Essa linguagem mescla cantigas rituais africanas e termos rituais do candomblé jêje-nagô, bem como expressões e sintaxes, principalmente, das outras variantes citadas. Acrescente-se a essas práticas de desterritorialização da língua dita padrão, que todo ritmo lingüístico da obra baseia-se no ritmo da língua oral e não da língua escrita como tal.

Muito embora a crítica ao caráter nagô-centrista, impresso nos estudos etno-gráficos em geral – uma certa preferência pela casas-nagôs e pela casas-jêje – os estudiosos e Jorge Amado, através de sua obra, potencializam essa realidade que chamam de iorubaiana. Os iorubás chegaram em grupos, constante e sucessivamente, em uma zona urbana, o porto de Salvador e arredores que continuou mantendo intercâmbio com a costa ocidental africana. São aspectos importantes para explicar essa centralidade dos códigos jêje-nagôs como códigos da cultura baiana. Vindos de cidades relativamente urbanizadas na África (Lagos, Ibadé, Oió, Ilorin) os iorubanos, em Salvador, sentiram-se à vontade, deixaram um rastro de eficácia ressocializadora e criaram um tipo de escravidão menos rígida.

Referendando essa primeira característica citada pelos teóricos Deleuze e Guatari, lembro Glissant quando afirma que a “oralidade, ao contrário da proposta de um pensamento linear ensetado pela escrita, manifesta-se na repetição, na redundância, na preponderância do ritmo, na renovação da assonância”. (GLISSANT, 2005)

Assim, não há apenas a referência a um léxico ritual popular, mas, o exercício de uma sintaxe própria, uma linguagem que manifesta sua relação com outras línguas do mundo. A sua atitude em relação ao mundo é de abertura, confiança e simbiose entre as várias línguas – crioulas ou não – mas oralizadas, que se apropriam dessa sintaxe repetida, redundante, ritmada, bem como dessa narrativa, que prima pela circularidade, e essa incansável repetição do tema (o lugar-comum) como é próprio do contador de histórias em qualquer parte do mundo.

A prática de toda língua, que se quer outra, que se quer fuga, que se quer nômade de sua própria língua, pressupõe paradoxalmente, a presença das práticas de todas as outras línguas de uma região ou do mundo em geral.

Conforme Glissant (GLISSANT, 2005)

[...] o multilinguismo não supõe a coexistência das línguas nem o conhecimento de várias línguas, mas a presença das línguas do mundo na prática de sua própria língua; é isso que chamamos multilinguismo.

Passo, novamente a citar textualmente Glissant (GLISSANT, 2005) no desenvolvimento dessa idéia:

Falo e sobretudo escrevo na presença de todas as línguas do mundo. Muitas línguas morrem hoje no mundo – por exemplo, na África Negra desaparecem línguas devido ao fato de que aqueles que as utilizam são absorvidos por uma comunidade nacional mais ampla, ou porque a língua em questão não é mais uma língua de produção dos camponeses, ou simplesmente, porque se tornou improdutiva, e então está corroída; ou ainda, pura e simplesmente, porque aqueles que a utilizam desaparecem fisicamente do país onde viviam – mas sabemos que escrevemos na presença de todas as línguas do mundo, mesmo se não conhecemos nenhuma delas. Por exemplo, sou pessoalmente impregnado, poeticamente impregnado dessa necessidade, quando, na verdade, tenho uma terrível dificuldade de falar uma outra língua que não aquelas que uso (o crioulo e o francês). Mas escrever na presença de todas as línguas do mundo não significa conhecer todas as línguas do mundo. Significa que no contexto atual das literaturas e da poética com o caos-mundo, não posso mais escrever de maneira monolíngüe. O que quero dizer é que deporto e desarrumo minha língua, não elaborando sínteses, mas sim através de aberturas lingüísticas que me permitem conceber as relações das línguas entre si em nossos dias, na superfície da terra – relações de dominação, de convivência, de absorção, de opressão, de erosão, de tangência, etc –, como em um imenso drama, em uma imensa tragédia de que minha própria língua não pode ficar isenta e salva. E, por conseguinte, não posso escrever minha língua de maneira monolíngue; escrevo-a na presença dessa tragédia, na presença desse drama. (GLISSANT, 2005)

Com a relação à segunda característica de uma literatura menor, tudo é político, pois tudo está ligado à concretude do momento de vida de um determinado grupo social ou cultural, mas, paradoxalmente, fala para o mundo, é a expressão de uma comunidade abrindo-se em relação à totalidade-mundo.

Trago novamente Glissant (GLISSANT, 2005), para referendar a afirmação acima:

Praticar uma poética da totalidade-mundo é unir, de maneira remissível, o lugar, de onde uma poética ou uma literatura é emitida, à totalidade-mundo, e inversamente. Ou seja, a literatura não é produzida em suspensão, não se trata de algo em suspensão no ar. Ela provém de um lugar, há um lugar incontornável de emissão da obra literária. Mas, em nossos dias, a obra literária convirá tanto mais ao lugar, quanto mais estabelecer uma relação entre esse lugar e a totalidade-mundo. (GLISSANT, 2005)

Tanto nas obras como nos datiloscritos do escritor Jorge Amado percebe-se esse caráter político de sua literatura, que vem modificando, a partir de Gabriela Cravo e Canela (1958), logo após o rompimento do escritor com o Partido Comunista. Tal atitude revela-se na forma, através da qual, o escritor potencializa a alegria mágica da festa religiosa afro-baiana, pois, através da descrição desse momento festivo, um outro modo de compreensão da vida e do conhecimento – o modo de ser das crenças, dos mitos, das sensibilidades, dos prazeres e dos afetos. Dessa forma, desinstala a racionalidade européia e reinstala uma nova relação com a totalidade-mundo. A escritura, principalmente, de obras como Jubiabá, Tenda dos milagres, Os pastores da noite, Bahia de todos os santos e O sumiço da santa, uma história de feitiçaria investem nessa temática e vão instituindo um projeto ético-político da alegria: essa alegria tão cara às religiões africanas em geral e às religiões afro-brasileiras, afro-haitianas e afro-caribenhas, em particular. Desestrutura, então, a rigidez, a pseudo-moral, e o propagado sofrimento instaurado pelos preceitos religiosos da igreja católica no mundo em geral.

Já no que tange à terceira característica que se propõe a conferir um valor coletivo à escrita para poder instituir-se como uma literatura menor, ao se observar as condições de produção da obra, bem como as de publicação, de distribuição e de recepção, vê-se, através da análise do seu acervo, os variados documentos de pesquisa de amigos seus, colaboradores, editores e divulgadores e leitores que o auxiliaram, de uma ou de outra forma na escritura das obras. Ouvindo-os, lendo-os e reescrevendo-os, passou a rever trechos de seus escritos, em obras subseqüentes. Por isso é que há tantas Gabrielas, tantos Quincas, tantas Donas Flor e tantas Tietas distribuídas pelo mundo afora nas mais diversas materialidades – literárias, musicais, pictóricas, lingüísticas e culturais, sempre se repetindo e se recriando, num movimento de fuga que se instala a partir desse devir solidário. Por outro lado, há tantos Valdeloires, Mirabeaus, Carybés, Ildálsios e outros personagens da vida real que se proliferam como personagens em diversas obras do escritor, estabelecendo um contínuo diálogo entre a realidade e a ficção. Tal atitude demonstra essa propriedade de afetar e de produzir um núcleo de solidariedade ativa conforme os estudiosos citados Deleuze e Guatari.



4 Referência

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AMADO, Jorge. O Sumiço da santa: uma história de feitiçaria. 2. ed. Rio de Janeiro: Record, 1993.

AMADO, Jorge. O Sumiço da santa: uma história de feitiçaria. 3. ed. Rio de Janeiro: Record, 1999.

AMADO, Jorge. O Sumiço da santa: uma história de feitiçaria. Rio de Janeiro: Record, 1988.

AMADO, Jorge. Os Pastores da noite. 44. ed. Rio de Janeiro: Record, 1991.

AMADO, Jorge. Tenda dos milagres. 38. ed. Rio de Janeiro: Record, 1996.

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1 Descrição elaborada a partir dos dados iniciais catalogados pela Pesquisadora Dra. Elizabeth Hazin. In: HAZIN, Elizabeth. Catálogo de manuscritos literários do arquivo Jorge Amado. Projeto Integrado INVENTÁRIO DE ARQUIVOS DE ESCRITORES BAIANOS, processo: CNPq 54075/95-5.

2 Manuscrito de O sumiço, Testemunho A, J/O.ma(b)A49455 V.A por(BR).

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