De descartes



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bre as questöes do cérebro/mente näo constitui motivo de desespero e

näo deve ser vista como um sinal de fracasse ilos campos cientificos que

se encontram actualmente empenhados nesse empreendimento cienti 

fico. Muito pelo contrário, o moral das tropas é elevado, uma vez que o

ritmo a que väo surgindo novas descobertas é maior do que nunca. A falta

de explicaçöes concretas e exaustivas näo indica um impasse. Há razöes

para se crer que chegaremos a explicaçöes satisfatórias, mas seria tolice

estabelecermos uma data para quando tal vai acontecer, e seria mais tolice


POSTSCRIPTUM 263


ainda se disséssemos que estäo ali ao virar da esquina. Se existe algum

motive para preocupaçäo, ele deve se näo à falta de progresse mas antes

à torrente de factos novos que a neurociência vai revelando e à ameaça de

que possam submergir a capacidade de pensar com clareza.

Poderá perguntar por que é que, se se possui toda esta profusäo de

factos novos, näo há respostas definitivas? Por que é que näo podemos

apresentar uma descriçäo precisa e exaustiva do modo como vemos e,

mais importante, como é que existe um self que consegue ver?

A principal razäo da demora   poder se ia talvez dizer até que a

única razäo   é a enorme complexidade dos problemas para os quais näo

precisamos respostas. É óbvio que o que queremos compreender depende,

em larga medida, do funcionamento de neurónios, e que dispomos de

conhecimentos substanciais sobre a estrutura e a funçäo desses neuró 

nios, até às moléculas que os constituera e os levam a fazer o que melhor

fazem: disparar com certos padröes de excitaçäo. Até sabemos algumas

coisas sobre os genes que criam esses neurónios e os fazem actuar de de 

terminada maneira. Mas, nitidamente, as mentes humanas dependem da

excitaçäo geral desses neurónios na medida em que constituera agre 

gados de grande complexidade que väo desde circuitos locais, à escala

microscópica, a sistemas macroscópicos que se estendem por vários cen 

timetros. Existera vários milhares de milhöes de neurónios nos circuitos

de um cérebro humano. O número de sinapses formadas entre estes

neurónios é de, pelo menos, 10 triliöes, e o comprimento dos cabos dos

axónios que formam os circuitosneurais atinge várias centenas demilhares

de quilômetros. (Agradeço a Chartes Stevens, neurobiólogo do Instituts

Salk, esta estimativa informal.) O produto da actividade nestes circuitos

constitui um padräo de estimulaçäo que é transmitido a outro circuito. Es 

te outro circuito pode ou näo activer se, o que depende de uma série de

influências, algumas locais, fornecidas por outros neurónios que termi 

nam nas proximidades, outras globais, trazidas por compostes quimicos,

como as hormonas, que chegam pelo sangue. A escala temporal para a

produçäo de impulsos é extremamente pequena   o que quer dizer que,

num segundo da vida dis nossas mentes, o cérebro produz milhöes de

padröes de impulsos numa grande diversidade de circuitos distribuidos

por várias regiöes do cérebro.

É evidente que os segredos da base neural da mente näo podem ser

descobertos através da revelaçäo de todos os mistérios de um único neu 

rônio, por muito tipico que ele possa.ser; ou através do desvendamento

de todos os padröes complicados de actividade localnumcircuito deneu 

rónios tipico. Numa primera aproximaçäo, os segredos elementares da

mente residem na interacçäo dos padröes de impulsos criados por muitos

264 O ERRO DE DESCARTES


circuitos neurais, a nivel local e global, momento a momento, dentro do

cérebro de um organisme vivo.

Näo há uma resposta única e simples para o enigma cérebro/mente,

mas antes muitas respostas, ligadas às inúmeras componentes do sistema

nervoso nos seus diversos niveis de estrutura. A abordagem necessá 

ria para se compreender esses niveis requer diversas técnicas e processa se

em diferentes ritmos. Parte do trabalho pode ser baseado nas experiências

em animais, e estas tendem a desenvolver se com rel@itiva rapidez.

Mas um outro tipo de trabalho só pode ser levado a efeito em seres hu 

manos, com as devidas reservas e limitaçöes éticas, e aqui o ritmo é mais

lento.

Há quem tenha perguntado por que motivo näo alcançou ainda a



neurociência resultados täo espectaculares como os que a biologia mo 

lecular obteve ao longo das últimas quatro décades. Há quem tenha

perguntado qual é o equivalente neurocientifico da descoberta da es 

trutura do ADN e se o facto neurocientifico correspondente foi ou näo já

estabelecido. Näo existe nenhuma correspondência isolada desse género,

embora alguns factos, a vários niveis do sistema nervoso, possam ser

considerados comparáveis, no seu valor prático, ao conhecimento da es 

trutura do ADN   por exemplo, entender de modo satisfatório o que é

um potencial de acçäo. Mas o equivalente, para o cérebro produtor de

mente, tem de ser um plano, de grande escala, do design de circiiitos e de sis 

temas. O plano que envolva descriçöes tanto ao nivel micröestrutural como

ao nivel macröestrutural.

Caso o leitor considere insuficientes as justificaçöes que dei para os li 

mites do nosso conhecimento actual, deixe me mencionar mais duas. Em

primeiro lugar, como indiquer anteriormente, só uma parte das redes de

circuitos nos nossos cérebros é especificada pelos genes. O genoma huma 

no especifica com grande minúcia a construçäo dos nossos corpos, O que

inclui o design geral do cérebro. Mas nem todos os circuitos se desenvol 

vem activamente e funcionam como se encontra estabelecido nos genes.

Uma grande parte das redes de circuitos do cérebro, em qualquer momento

da vida adulta, é individual e única, reflectindo fielmente a história e as

circunstäncias daquele organisme em particular. Naturalmente que isso

näo facilita a revelaçäo dos mistérios neurais. Em segundo lugar, cada or 

ganismo humano funciona em conjuntos de seres semelhantes; a mente

e O comportamento dos individuos que pertencem a esses conjuntos e que

funcionam em meios ambientes culturais e íisicos especificos näo säo

moldados apenas pela actividade das redes de circuitos acima menciona 

dos e säo muito menos moldados exclusivamente pelos genes. Para se

compreender satisfatoriamente o modo como o cérebro cria a mente e

POSTSCRIPTUM 265


comportamento humanos, é necessário considerar o seu contexte social e

cultural. E é isso que toma a empresa täo espantosamente dificil.


«LEVERAGE»* PARA A SOBREVIVENCIA

Em algumas espécies näo humanas, e mesmo näo primatas, em que a

memória, o raciocinio e a criatividade säo limitados, há, mesmo assim,

manifestaçöes de um comportamento social complexe cujo controlo neu 

ral tem forçosamente de ser inato. Os insectes   as formigas e as abelhas

em particular   apresentam exemplos dramáticos de cooperaçäo social

que poderiam facilmente fazer corar de vergonha a Assembleia Geral das

Naçöes Unidas. Mais próximos de nós, os mamiferos exibem manifes 

taçöes semelhantes, e os comportamentos dos lobos, golíinhos e mor 

cegos vampiros, entre outras espécies, sugerem até a existência de uma

estrutura ética nessas espécies. É evidente que os seres humanos possuem

alguns destes mecanismos inatos e que esses mecanismos säo prova 

velrnente a base de algumas estruturas éticas usadas pelo homem. No

entanto, as convençöes sociais e as estruturas éticas mais elaboradas pelas

quais nos regemos devem ter surgido de forma cultural e devem ter sido

transmitidos também de forma cultural.

A ser assim, poderemos perguntar nos qual foi o mecanismo desenca 

deador do desenvolvimento cultural de tais estratégias? É bem provável

que elas se tenham desenvolvido como um meio de mitigar o sofrimento

sentido por individuos cuja capacidade de lembrar o passado e antever o

futuro tinha atingido já um grau notável de desenvolvimento. Por outras

palavras, essas estratégias foram sendo desenvolvidas em indivíduos ca 

pazes de se aperceberem de que a sua sobrevivência estava ameaçada ou

de que a qualidade da sua vida pós sobrevivência podia ser melhorada.

Estas estratégias ter se iam manifestado apenas naquelas espécies, em

número limitado, cujos cérebros estavam estruturados para permitir o se 

guinte: primeiro, uma grande capacidade para memorizar categorias de

objectes e acontecimentos e para memorizar acontecimentos e objectes

únicos, isto é, estabelecer as representaçöes disposicionais de entidades e

acontecimentos ao nivel das c@itegori@is e a do nivel da singularidade. Se 

gundo, uma grande capacidade para manipular as componentes dessas


* Leverageé o movimento feito com uma alavanca para elevar um objecto pesa 

do. O termo é usado metaforicamente em finança com o mesmo sentido. (N. da T.)


252 O ERRO DE DESCARTES


alcançar essa pericia. Mas o facto de se possuir esse impulso näo faz de

nós, automaticamente, peritos.

No caso de estas hipóteses se virem a confirmas haverá implicaçöes

socioculturais para a noçäo de que a razäo näo é de modo algum pura?

Creio que há e que säo claramente positivas.

Conhecer a releväncia das emoçöes nos processos de raciocinio näo

significa que a razäo seja menos importante do que as emoçöes, que de 

va ser relegada para segundo plano ou deva ser menos cultivada. Pelo

contrário, ao verificarmos a funçäo alargada das emoçöes, é possivel

realçar os seus efeitos positivos e reduzir o seu potencial negativo. Em

particular, sem diminuir o valor da orientaçäo das emoçöes normais, é na 

tural que se queira proteger a razäo da fraqueza que as emoçöes anormais

ou a manipulaçäo das emoçöes normais podem provocar no processa de

planeamento e decisäo.

Näo creio que o conhecimento das emoçöes nos tome menos interessa 

dos na verificaçäo empirica. Pelo contra'rio, o maior conhecimento da

fisiologia da emoçäo e da sensaçäo pode tornar nos mais conscientes das

armadilhas da observaçäo cientifica. A formulaçäo por mim apresentada

näo diminui a nossa determinaçäo em controlar as circunstäncias ex 

ternas em proveito dos individuos e da sociedade, ou a nossa vontade de

desenvolver, inventar ou aperfeiçoar os instrumentos culturais com que

podemos melhorar o mundo: a ética, o direito, a arte, a ciência, a tecnolo 

gia. Por outras palavras, nada na minha formulaçäo leva a que se aceitem

as coisas tal como säo ou estäo. Devo realçar este aspecto, pois a referên 

cia às emoçöes cria com frequencla a imagem de uma percepçäo virada

para a própria pessoa, de um certo desinteresse pelo mundo em redor e

de toleräncia para as insuficiências de desempenho intelectual. Na ver 

dade, essa perspectiva encontra se nos antipodes da minha, pelo que

constitui uma preocupaçäo a menos para aqueles que, como o biólogo

molecular Gunther Stent, pensam, justificadamente, que a atribuiçäo de

um valor excessive às emoçöes pode resultar numa menor determinaçäo

no cumprimento do pacto faustiano que tem trazido progresse à humani 

dadel.

O que me preocupa, de facto, é a aceitaçäo da importäncia das emoç ~öes



sem qualquer esforço para compreender a sua complexe maquinaria

biológica e sociocultural. Podemos encontrar o melhor exemplo desta ati 

tude na tentativa de explicar sentimentos magoados ou comportamentos

irracionais através de causas sociais superficiais ou através da acçäo dos

neurotransmissores, duas explicaçöes que predominam no discurso

apresentado pela comunicaçäo social visual e escrita; e na tentativa de

corrigir problemas pessoais e sociais com drogas médicas e näo médicas.

UMA PAIXAO PELA RAZAO

e ÉPreCisarnenteestafaltadecOm reensäodanaturezadasern
razâO (uma das caracter sti p

que suscita alarme. i cas rnal'S salientes da OÇOES e

A concePÇáO de organise «CultUra da queixa»*
Itre emOÇâO e lazäo qUe emerge dos resu relaçä

ren,, "O entanto, que no hurnano esbOÇada neste livro e a

O forta ItadOs aqui discutidos suge

dacla uma maior at lecInento da racionalidale requer que seja


ençäo à vulnerabilidade do mundo interior.
Aumnivelprático,a .

nalidacle fu Çäoa

ciedade s

é este o lo

dizerque,
nal'gaÇáOlnequfvocaentreasemoÇöesactuaiseoscena' in s

futuros, e que a exposiçäo sisti se

nosnotici,   excessiva das liaiiças nos de resultados

arlos e na ficç 


ao audi0visual, desvirtua O valor das einoçöes na

aquisiçäoedesenvol   à ViOlência, na vida real,


facto de tan vlnellto cle cOInPortamentos

taviOlênciagratuitasera   sociais adaptativos O

Presentada se u
moral só ve reforçar a sua acçäo  rn e quadramento
rn ni
dessensibilizadora.
ida às einoç 

öes,,a criaçäo da racio 

dasperguntas

cor, q,e a nossa so 

Çäo e a violência. Näo
s questöes, mas devo

arn serrnelhorados se se

NâO teria

versa sem ter i s'do POssive, apresentar a minha articipaçäo nesta co

acerca do cor @vocado Descartes cornosirnbolo p n 

PO, do cérebro e da me de umconjuntodeideias

COntinuam a nte que, de uma maneira Ou de outra,

illflue,,ciar as ciências e as '

tal Apreocupaçäo huinaniciadesno undooc, e

é dirigida tanto à noçäo dua rn d r,

separa a mente do cérebro e do corpo como lista com a qual Descartes

noçäo:porexemp o,aide às variantes Inodernas desta


mas apenas no se 1 ia de que a mente e O cérebro estäo relacionados

nticlo de a mente ser o rograma

numa parte do haráware chamaclo r o; ou que O cérebro e O c,rpo
de software que corre

sObreviver sem a ina nas nO sentido de O primeiro näo

Quai foi, entá "LtenÇäo que O segundo lhe oferece. conseguir

O, o erro de Descartes? o


Descartes rne estou a referir com u, meihor ainda, a que erro de

Umprotestoe censurá 10por terco ingratidäo? Podería rnos'


.nvencidoos ) Começar com

b'(]OgOs a adoptarem, até

Clilttire Ofcon'Plaint, no original. (N. da T.)
estâO relacionados, mas ape cé ebp

254 O ERRO DE DESCARTES


hoje, uma mecänica de relojoeiro como modelo dos processos vitais. Mas

talvez isso näo fosse muito justo, e comecemos, entäo, pelo «penso, logo

existo». Esta afirmaçäo, talvez a mais famosa da história da filosofia,

surge pela primera vez na quarta secçäo de O Discurso do Método (1637),

em francês («lepense, donciesuis»); e depoisna primera parte de Princípios

da Filosofia (1644), em latim («Cogito ergo sum»)'. Considerada literal 

mente, a afirmaçäo ilustra exactamente o oposto daquilo que creio ser

verdade acerca das origens da mente e acerca da relaçäo entre a mente e

o corpo. A afirmaçäo sugere que pensar e ter consciência de pensar säo os

verdadeiros substratos de existir. E, como sabemos que Descartes via o

acto de pensar como uma actividade separada do corpo, esta afirmaçäo

celebra a separaçäo da mente, a «coisa pensante» (res cogitans), do corpo

näo pensante, o qual tem extensäo e partes mecänicas (res extensa).

No entanto, já antes do aparecimento da humanidade, os seres eram

seres. Num dado ponto da evoluçäo, surgiu uma consciência elementar.

Com essa consciência elementar apareceu uma mente simples; com uma

maior complexidade da mente veio a possibilidade de pensar e, mais

tarde ainda, de usar linguagens para comunicar e melhor organizar os

pensamentos. Para nós, portante, no principio foi a existência e sá mais

tarde chegou o pensamento. E para nós, no presente, quando vimos ao

mundo e nos desenvolvemos, começamos ainda por existir e só mais

tarde pensamos. Existimos e depois pensamos e só pensamos na medida

em que existimos, visto O pensamento ser, na verdade, causado por es 

truturas e operaçöes do ser.

Quando colocamos a afirmaçäo de Descartes no devido contexte,

podemos perguntar nos por um instante se poderá ter significado dife 

rente daquele que lhe estamos a atribuir. Será que pode ser vista como o

reconhecimento da superioridade da razäo consciente, sem qualquer

compromisso firme no que respeita à sua origem, substäncia ou perma 

nência? É possivel. Näo poderia a afirmaçäo ter servido também o hábil

propósito de aliviar as pressöes religiosas que Descartes podia sofrer? É

possivel, mas näo podemos saber ao certo. (A inscriçäo que Descartes es 

colheu para a sua lapide foi uma citaçäo a que recorria com frequência:

«Bene qui latuit, bene vixit», de Tristia, 3.4.25, de Ovidio. Traduçäo: «Aque 

le que se escondeu bem viveu bem.» Uma renúncia discreta ao dualismo?)

Quanto à primera possibilidade de interpretaçäo, e fazendo o balança fi 

nal, suspeito que Descartes também queria dizer precisamente aquilo que

escreveu. Quando as famosas palavras surgem pela primera vez, Descar 

tes rejubila com a descoberta de uma proposiçäo täo verdadeira que näo

podia ser negada ou abalada por nenhuma dose de cepticismo:


UMA PAIXAO PELA RAZAO 255


[... ] e reparando que esta verdade, «Penso, logo existo», era

täo certa e täo segura que nem sequer as suposiçöes mais extra 

vagantes dos cépticos a conseguiam abalar, cheguei à conclusäo

de que a receberia sem qualquer hesitaçäo como o primeiro

principio da Filosofia que procuraVa4.
Descartes procurava uma fundaçäo lógica para a filosofia, e a afirma 

çäo näo se afastava muito da de Santo Agostinho «Fallor ergo sum » «(Sou

enganado, logo existo») . Mas, umas linhas mais adiante, Descartes escla 

rece a afirmaçäo de forma inequivoca:


Por isso eu soube que era uma substäncia cuja essência inte 

gral é pensar, que näo havia necessidade de um lugar para a

existência desta substäncia e que ela näo depende de algo ma 

terial; entäo, este «eu», quer dizer, a alma através da qual sou o

que sou, distingue se completamente do corpo e é ainda mais

fácil de conhecer do que este último; e, ainda que näo houvesse

corpo, a alma näo deixaria de ser o que é'.
É este o erro de Descartes: a separaçäo abissal entre o corpo e a mente,

entre a substäncia corporal, infinitamente divisivel, com volume, com

dimensöes e com um funcionamento mecänico, por um lado, e a subs 

täncia mental, indivisivel, sem volume, sem dimensöes e intangivel; a

sugestäo de que o raciocínio, o juizo moral e o sofrimento adveniente da

dor fisica ou agitaçäo emocional poderiam existir independentemente do

corpo. Em concrets: a separaçäo das operaçöes mais reíinadas da mente,

para um lado, e da estrutura e funcionamento do organisme biolôgico,

para o outro.

Mas há quem possa perguntar por que motivo incomodar Descartes e

näo Platäo, cujas ideias sobre o corpo e a mente säo muito mais exaspe 

rantes comopodemosverificarnoFédon?Porquêpreocuparmo noscom

este erro especifico de Descartes? Afinal, alguns dos seus outros erros säo

bem mais espectaculares do que este. Descartes pensava que o calor fazia

circular o sangue, que as finas e minúsculas particulas do sangue se

transformavam em «espíritos animais», os quais conseguiam depois mo 

ver os músculos. Por que näo censura lo por uma dessas noçöes? A razäo

é simples: há muito tempo que sabemos que ele estava errado nestes

aspectos concretas, e as perguntas sobre como e por que circula o sangue

receberam já uma resposta que nos satisfaz completamente. O mesmo ja


256 O ERRO DE DESCARTES


näo sucede com as questöes relativas à mente, ao cérebro e ao corpo, em

relaçäo às quais o erro de Descartes continua a prevalecer. Para muitos,

as ideias de Descartes säo considerados evidentes em si mesmas, e sem ne 

cessitarem de alguma reavaliaçäo.

Pode bem ter sido a ideia cartesiana de uma mente separada do corpo

que esteve na origem, pelo meio do século xx, da metáfora da mente como

programa de software. De facto, se a mente pode ser separada do corpo,

talvez fosse possivel compreendê la sem recorrer à neurobiologia, sem

qualquer necessidade de saber neuroanatomia, neurofisiologia e neu 

roquimica. É interessante e paradoxal que muitos investigadores em

ciência cognitiva, que julgam serem capazes de investigar a mente sem

qualquer recurso à neurobiologia, näo se considerem dualistas.

A separaçäo cartesiana pode estar também sub,,jacente ao modo de

pensar de neurocientistas que insistera que a mente pode ser perfeita 

mente explicada em termos de fenómenos cerebrais, deixando de lado o

resto do organisme e o meio ambiente fisico e social  e, por conseguinte,

excluindo o facto de parte do próprio meio ambiente ser também um

produto das acçöes anteriores do organisme. Protesto contra esta restriçäo,

näo porque a mente näo estej a directamente relacionada com a actividade

cerebral mas porque esta formulaçäo restritiva é forçosamente incom 

pleta e insatisfatória em termos humanos. É um facto incontestável que o

pensamento provém do cérebro, mas prefiro enquadrar esta afirmaçäo e

considerar as razöes por que os neurónios conseguem pensar täo bem.

Esta é, de facto, a questäo principal.

A ideia de uma mente descorporalizada* parece ter também moldado

a forma peculiar como a medicina ocidental aborda o estudo e o trata 

mento da doença (ver o Postscriptilm).

A divisäo cartesiana domina tanto a investigaçäo como a prática mé 

dica. Em resultado disso, as consequências psicológicas das doenças do

corpo propriamente dito, as chamados doenças reais, säo normalmente

ignoradas ou säo levadas em linha de conta muito mais tarde. Mais negli 

genciado ainda é o inverse, os efeitos dos conflitos psicolôgicos no corpo.

É curiosa pensar que Descartes contribuiu para a alteraçäo do rumo da

medicina, ajudando a a abandonar a abordagem orgänica da mente 

 no corpo que predominou desde Hipócrates até ao Renascimento. Que

irritado que Aristótles teria ficado se lhe tivessem dito.

Versöes do erro de Descartes obscurecem as raizes da mente humana

num organisme biologicamente complexe, mas frágil, finito e único;

obscurecem a tragédia implfcita no conhecimento dessa fragilidade,
Disembodied, no original. (N. da T.)

LIMA PAIXAO PELA RAZAO 257


finitude e singularidade. E, quando os seres humanos näo conseguem v.er

a tragédia inerente à existência consciente, sentem se menos impelidos a

fazer algo para a minimizar e podem mostrar menos respeito pelo valor

da vida.


Os factos que apresentei relativos às sensaçöes e à razäo, juntamente

com outros que discuti acerca da interligaçäo entre o cérebro e o corpo

propriamente dito, däo apoio à ideia mais geral com a qual abri o livro:


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