regem as nossas atitudes apetitivas (aproximaçäo) ou aversivas (afasta
mento) em relaçäo ao mundo, sem controlo pela vontade. Apesar de o
mecanismo oculto ter sido activado, a nossa @onsciência nunca o chegará
a saber. Além disso, o desencadear de actividade a partir dos núcleos neu
rotransmissores, que descrevi como uma parte da resposta emocional,
pode influenciar de forma oculta os processos cognitivos, e deste modo
também o raciocinio e a tomada de decisöes.
Com o devido respeito pelos seres humanos e com todas as réservas
inerentes a comparaçöes entre as espécies, é notório que, nos organismos
cujos cérebros näo possuem consciência nem raciocinio, os mecanismos
ocultos constituera o cerne do aparelho de tomada de decisäo. Säo uma
maneira de criar «previsöes» acerca de resultados e levar os mecanismos
de acçäo do organismo a comportarem se de um determinado modo, o
que pode bem parecer para um observador extemo como uma escolha.
A HIPOTESE DO MARCADOR SOMATICO 197
Muito provavelmente é assim que as abelhas operárias «decidem» em
que flores pousar para obterem o néctar que precisam de levar para a col
meia. Näo estou a sugerir que lá no fundo dos nossos cérebros esteja um
cérebro de abelha a decidir por nós. A evoluçäo näo é a Grande Cadeia do
Ser e seguiu, sem dúvida, muitos rumos diferentes, um dos quais condu
ziu a nós. Mas acredito que há muito a lucrar com o estudo de organismos
mais simples que efectuam tarefas aparentemente complicadas dispondo
de meios neurais modestes. Alguns mecanismos do mesmo tipo também
podem actuar em nós.
Rosa madressilva!
«Sabe Deus como és doce, minha rosa madressilva ... »*, as
sim reza a letra atrevida de Fats Waller, e assim é o destino da
abelha operária.
O êxito reprodutivo e a sobrevivência derradeira de uma
colónia de abelhas dependem do nivel de eficiência das abelhas
operárias. Se näo conseguirem trazer néctar em quantidade
suficiente, näo haverá mel, e com a reduçäo dos recursos ener
géticos a colónia correrá perigo.
As abelhas operárias estäo munidas de um aparelho visual
que lhes permite distinguir as cores das flores. Dispöem também
de um aparelho motor que lhes permite voar e pousar. Como
o demonstraram investigaçöes recentes, as abelhas aprendem,
após algumas vi ' sitas a flores de diferentes cores, quais säo as
mais susceptiveis de conter o néctar de que precisam. Parece
que, quando estäo no campo, nao pousam em todas as flores a
fim de descobrirem se cada uma delas tem néctar ou näo. Com
portam se como se previssem quais as flores em que é mais
provável haver néctar e pousam nelas com maior frequência.
Nas palavras de Leslie Real, que investigou o seu compor
tamento (Bombtis pennsylvanicus), «as abelhas parecem estabe
lecer as probabilidades com base na frequência do encontro de
diferentes tipos de estudos de recompensa, e começam sem
qualquer estimativa prévia das probabilidades>,". Como é
possivel as abelhas, com os seus modestes sistemas nervosos,
«You're confection, goodness knows, honeystickle rose», no original. (N. da T.)
198 O ERRO DE DESCARTES
gerarem um comportamento que sugere tanto um raciocinio
elevado, aparentemente revelador do uso de conhecimento,
teoria das probabilidades e estratégia de raciocinio orientado
para objectivos?
A resposta é a de que a deliberaçäo é aparentemente al
cançada através de um sistema simples mas poderoso, capaz
do seguinte: primeiro, de detectar estimulos inatamente deíi
nidos como valiosos e que constituera, por isso, uma recom
pensa; e, segundo, de reagir à presença da recompensa (ou à
sua ausência) com um bias que pode levar o sistema motor a um
determinado comportamento (i. e., pousar ou näo) quando
surge no campo visual a situaçäo que desencadeia (ou näo) a re
compensa (digamos, uma flor de uma determinada cor). Foi
proposta recentemente por Montague, Dayan e Sejnowski um
modelo de um sistema deste tipo que utiliza simultaneamente
dados comportamentais e neurobiológicos".
A abelha possui um sistema neurotransmissor näo especi
fico que muito provavelmente usa a octopamina e que näo é
muito diferente do sistema de dopamina nos mamiferos.
Quando a recompensa (o néctar) é detectada, o sistema näo
especifico pode comunicar tanto ao sistema visual como ao sis
tema motor, e assim alterar o comportamento básico destes.
Como resultado, na próxima ocasiäo em que aparecer a cor que
esteve associada à recompensa (digamos, o amarelo), o sistema
motor tende a pousar na flor dessa cor e, muito provavelmente,
a abelha encontrará o néctar. Na verdade, a abelha estará a fa
zer uma escolha, näo consciente e näo deliberada, que usa um
mecanismo automático que incorpora valores naturais espe
cificos, uma preferência. De acordo com Real, dois aspectos
fundamentais da preferência devem estar presentes: «O ganho
elevado esperado é preferivel ao baixo ganho; o risco baixo é
preferivel ao risco alto.» Dada a capacidade de memória mani
festamente pequena da abelha (possui apenas uma memória
de curto prazo que nem sequer é muito volumosa), a amostra
na base da qual o sistema de preferência actua tem de ser extre
mamente pequeno. Aparentemente, bastam três visitas. Mais
uma vez, näo estou a sugerir que todas as nossas decisöes
provenham de um cérebro de abelha oculto, mas creio que é
importante saber que um mecanismo täo simples como o que
acabo de apresentar é capaz de desempenhar uma tarefa täo
complicada como a que aqui descrevi.
A HIPOTESE DO MARCADOR SOMAUCO 199
@ICAO
Ao actuarein a um nivel consciente, os estudos somáticos (ou os seus
substitutos) devem marcar os resultados das respostas como positivos ou
negativos, levando assim a que se évite ou que se prossiga uma determi
nada opçäo de resposta. Mas podern também funcionar de uma forma
oculta, ou seja, fora da consciência. O imaginário explicito relacionado
com um resultado negativo seria entäo gerado, mas, em vez de produzir
uma alteraçäo perceptivel no estado do corpo, inibiria os circuitos neurais
reguladores, localizados no âmago do cérebro, que induzem os com
portamentos apetitivos ou de aproximaçäo. Com a inibiçäo da tendência
para agir, ou o aumento efectivo da tendência de afastamento, seriam re
duzidas as probabilidades de uma decisäo potencialmente negativa. No
minimo, registar se ia um ganho de tempo durante o qual a deliberaçäo
consciente poderia fazer aumentar a probabilidade de se tomar uma de
cisäo adequada (se näo mesmo a mais adequada). Além disso, seria pos
sivel evitar completamente uma opçäo negativa ou tornar mais provável
uma opçäo positiva pelo favorecimento do impulso para agir. Este me
canismo oculto seria a fonte daquilo a que chamamos intuiçäo, o mïste
rioso mecanismo através do qual chegamos à soluçäo de um problema
sem raciocinar, com vista a essa soluçäo.
A funçäo da intuiçäo no processo geral de tomada de decisöes pode
esclarecer se com um texto do matemático Henri Poincaré, cuja visäo
acerca deste assunto se adapta perfeitamente ao quadro geral que tenho
em mente:
Na verdade, o que é a criaçäo matemática? Näo consiste em
fazer novas combinaçöes com entidades matemáticasjá conhe
cidas. Qualquer um poderia executá las, mas as combinaçöes
assim efectuadas seriam em número infinito e a maioria delas
absolutamente sem interesse. Criar consiste näo em fazer
combinaçöes inúteis mas em efectuar aquelas que säo úteis e
constituera apenas uma pequena minoria. Inventar é discemir,
escolher.
já antes expliquer como fazer esta escolha; os factos mate
máticos dignos de serem estudados säo aqueles que, pela sua
analogia com outros factos, säo capazes de nos levar ao conhe
200 O ERRO DE DESCARTES
cimento de uma lei matemática, tal como os factos experimen
tais nos levam ao conhecimento de uma lei física. Säo aqueles
que nos revelam a relaçäo insuspeitada com outros factos, há
muito conhecidos, mas erradamente considerados indepen
dentes dos primeiros.
Entre as combinaçöes escolhidas, as mais férteis seräo nor
malmente as formadas por elementos retirados de dominios
muito afastados. Näo que eu considére que para inventarbasta
reunir os objectes mais diferentes entre si que e possivel; a
maior parte das combinaçöes assim formada seria completa
mente estéril. Mas algumas de entre elas, muito raras, säo as
mais frutiferas de todas.
Comodisse,inventaréescolher;mastalvezestapalavranäo
seja a melhor. Faz nos pensar num comprador diante do qual
expusemos uma grande quantidade de amostras e que as exa
mina, uma apôs a outra, para fazer a escolha. Aqui, as amostras
seriam tantas que uma vida inteira näo chegaria para as exa
minar. Mas a realidade é outra. As combinaçöes estéreis nem
sequer se apresentam à mente do inventor. Nunca surgem no
campo da sua consciência combinaçöes que näo sejam úteis, ex
cepto algumas que ele rejeita mas que, de certo modo, possuem
algumas caracteristicas das combinaçöes úteis. Processa se
tudo como se o inventor fosse um examinador de segundo grau
que apenas teria de interrogar os candidates que tivessem pas
sado num exame prévio".
A perspectiva de Poincaré é idêntica à que estou a propor. Näo há ne
cessidade de aplicar o raciocinio a todo o campo das opçöes possiveis. Há
uma pré selecçäo que é levada a efeito, umas vezes de forma oculta, ou
tras näo. Um mecanismo biológico efectua a pré selecçäo, examina os
candidates e permite que apenas alguns se apresentem a um exame final.
Saliente se que esta proposta está pensada, de forma particular, para os
dominios pessoal e social, para os quais tenho evidência corroborante,
muito embora as afirmaçöes de Poincaré deixem antever que a proposta
poderia bem ser aplicada a outros dominios.
O fisico e biólogo Leo Szilard defendeu algo idêntico: «O cientista
criador tem muito em comum com o artista e o poeta. O pensamento ló
gico e a capacidade analitica säo atributos necessários a um cientista, mas
estäo longe de ser suficientes para o trabalho criativo. Aqueles palpites na
ciência que conduziram a grandes avanças tecnológicos näo foram logica
mente derivados de conhecimento pré existente: os processos criativos
A HIPOTESE DO MARCADOR SOMATICO 201
em que se baseia o progresse da ciência actuam ao nivel do subcons
ciente. »13 jonas Salk apontou para uma ideia idêntica ao defender que a
criatividade assenta numa «fusäo da intuiçäo e da razäo»". É, pois, inte
ressante neste ponto dizer algo mais acerca do raciocinio fora do campo
pessoal e social.
RACIOCINAR FORA DOS DOMINIOS
PESSOAL E SOCIAL
O esquilo no meu jardim, que corre pela árvore acima para se esconder
do aguerrido gato preto do vizinho, näo precisa de rariocinar muito para
decidir a sua acçäo. Na verdade, näo pensou nas suas varias opçöes nem
calculou os custos e os proveitos de cada uma delas. Viu o gato, foi ac
cionado por um estado do corpo e correu. Estou a olhar para ele agora, no
sôlido ramo do meu carvalho, com o coraçäo em tamanho sobressalto que
lhe detecto os movimentos da caixa torácica, agitando a cauda ao ritmo
nervoso do seu medo. Sofreu uma emoçäo forte e agora está transtornado.
A evoluçäo é forreta e remendona. Teve à sua disposiçäo, nos cérebros
de inúmeras espécies, mecanismos de tomada de decisäo que säo ba
seados no corpo e orientados para a sobrevivência, sendo que esses meca
nismos se revelaram úteis numa série de nichos ecológicos. Com o
aumento das contingências do meio ambiente, e à medida que novas
estratégias de decisäo foram evoluindo, teria feito sentido, em termos
económicos, que as estruturas cerebrais necessárias à manutençäo dessas
novas estratégias conservassem um elo funcional com as suas precurso
ras. A sua finalidade é a mesma, a sobrevivência, e os parâmetros que con
trolam o seu funcionamento e avaliam o seu êxito säo também os mesmos:
bem estar, ausência de dor. Há imensos exemplos que demonstram que
a selecçäo natural tende a funcionar exactamente deste modo, conser
vando algo que funciona e seleccionando outros dispositivos preparados
para maior complexidade, sendo muito raro que se desenvolvam meca
nismos completamente novos a partir do zero.
É plausivel que um sistema,
tes de sinalizaçäo que orientera as respostas «pessoais» e «sociais» tenha
sido cooptado para auxiliar «outras» tomadas de decisäo. A maquinaria
que o ajuda a decidir com quem deve travar amizade também o ajudará
a desenhar uma casa cuja cave näo sofra inundaçöes. É claro que os mar
cadores somáticos näo teriam necessariamente de ser percebidos como
202 O ERRO DE DESCARTES
«sentimentos». Mas continuariam a actuar de forma coberta para colocar
em destaque, sob a forma de um mecanismo de atençäo, determinados
componentes em detrimento de outras e a controlar, de facto, os sinais de
avanças parar e inílectir, necessários a alguns aspectos do processo de de
cisäo e planeamento fora dos dominios pessoal e social. Este parece ser o
tipo de dispositivo marcador geral que Tim Shallice propôs para a tomada
de decisäo, embora ele näo tenha especificado um mecanismo neurofi
siológico para os seus marcadores; num artigo recente, Shallice tece
comentários a respeito da possivel súnilitude da sua ideia e da minha".
A fisiologia subjacente poderia ser a mesma sinalizaçäo com base no
corpo, consciente ou näo, na base da qual a atençäo pode ser dirigida e
concentrada.
De um ponto de vista evolutivo, o mecanismo mais antigo de tomada
de decisäo pertence à regulaçäo biológica básica; o seguinte ao dominio
pessoal e social; e o mais recente a um conjunto de operaçöes abstrac
to siinbólicas em relaçäo com as quais podemos encontrar o raciocinio
artistico e cientifico, o raciocinio utilitário constr utivo e os desenvolvi
mentos linguistico e matemático. Mas, apesar dos milénios de evoluçäo
e de os sistemas neurais dedicados poderem conferir alguma indepen
dência a cada um destes «módulos» de raciocinio e tomada de decisäo,
suspeito que eles se encontram todos interligados. Quando presenciamos
sinais de criatividade nos seres humanos contemporäneos, estamos prova
velmente a testemunhar o funcionamento integrado de diversas combi
naçöes desses dispositivos.
COM A AJUDA DA EMOÇÄO,
PARA O MELHOR E PARA O PIOE
O trabalho desenvolvido por Amos Tversky e Daniel Kahneman
monstra que o raciocinio objective que usamos nas decisöes do dia a dia
é muito menos eficiente do que parece e do que deveria serll,. Em termos
simples, podemos dizer que as nossas estratégias de raciocinio säo defei
tuosas, e Stuart Sutherland toca num aspecto importante quando fala da
irracionalidade como um «inimigo que vem de dentro» 17. Mas, mesmo
que as nossas estratégias de raciocinio estejam perfeitamente sinto
nizadas, parece que näo se coadunariam muito com a incerteza e a
complexidade dos problemas pessoais e @iais. Os frágeis instrumentos
da racionalidade precisam realmente de cuidados especiais.
A HIPOTESE DO MARCADOR SOMATICO 203
A situaçäo é, no entanto, ainda mais complicada do que eu deixei até
aqui antever. Muito embora acredite que é necessário um mecanismo com
base no corpo para ajudar a razäo «íria», também é verdade que alguns
destes sinais com base no corpo podem prejudicar a qualidade do racioci
nio. Ao reflectir sobre as investigaçöes de Kahneman e Tversky, encontro
algumas falhas de racionalidade que näo se ficam a dever apenas a erros
elementares de cálculo mas também à influência de iinpulsos biológicos
como a obediência, a concordäncia, o desejo de preservar a auto estima,
que frequentemente se manifestam como emoçöes e sentimentos. Por
exemplo, a maior parte das pessoas recela muito mais andar de aviäo que
de carro, näo obstante o facto de um cálculo racional do risco demonstrar
de forma inequivoca que somos muito mais capazes de sobreviver a um
voo entre duas cidades do que a uma viagem de carro entre essas duas
mesmas cidades. A diferença é de diversas ordens de grandeza a favor de
se tomar o aviäo em vez de se ir de carro. E, no entanto, muitas pessoas
sentem se mais seguras ao volante do que no aviäo. Este raciocinio defi
ciente provém do chamado «erro de disponibilidade», o qual, na minha
perspective, consiste em permitir que a imagem de um desastre de aviäo,
com todo o seu drama emocional, domine o panorama do nosso racioci
nio, criando uma influência negativa em relaçäo à escolha correcta. O
exemplo pode parecer estar em contradiçäo com o meu argumente prin
cipal, mas näo está. Demonstra que os impulsos biológicos e as emoçöes
podem influenciar a tomada de decisäo e sugere que a influência «nega
tiva» com base no corpo, apesar de desfasada em relaçäo à estatistica
correcta, está, näo obstante, virada para a sobrevivência: os aviöes caem
de vez em quando e sobrevivem menos pessoas nos desastres de avia ~ çäo
do que nos de viaçäo.
Mas, enquanto a emoçäo e os iinpulsos biológicos podem dar origem
a irracionalidade em algumas circunstäncias, eles säo indispensáveis
noutras. Os impulsos biológicos e o mecanismo automatizado do mar
cador somático que deles dependem säo essenciais para alguns compor
tamentos racionais, em especial nos dominios pessoal e social, embora
possam ser prejudiciais à decisäo racional em deterrninadas circunstän
cias, ao criarem uma influência que se sobrepöe aos factos objectivos ou
que interfére nos mecanismos de apoio à decisäo, tais como a memória de
trabalho.
Um exemplo da minha experiência pessoal ajudará a esclarecer as
ideias discutidas atrás. Näo há muito tempo, um dos nossos doentes com
lesöes pré frontais ventromedianas visitou o laboratório num dia frio de
204 O ERRO DE DESCARTES
Invemo. Tinha caido chuva gelada, as estrades estavam escorregadias e
a conduçäo era perigosa. A situaçäo preocupava me e perguntei ao
doente, que viera a conduzir, como fora a viagem, se tivera dificuldades.
A sua resposta foi imediata e calma: correra bem, nada diferente do ha
bitual, excepte ter sido necessária alguma atençäo com os cuidados
indicados à conduçäo sobre o gelo. O doente continuou a referir alguns
desses cuidados e a descrever que vira carros e camiöes despistados
porque näo tinham respeitado esses cuidados. Referiu inclusivamente
um exemplo, o de uma mulher que seguia à sua frente e que apanhara um
bocado de gelo, derrapara e, em vez de procurar sair cautelosamente da
derrapagem, entrara em pänico, travara e fora precipitar se numa vala.
Um segundo mais tarde, aparentemente nada incomodado com esta cena
arrepiante, o meu doente atravessou a mesma zona de gelo e seguiu
calmamente o seu caminho. Contou me tudo isto com a mesma tranqui
lidade com que obviamente presenciara o acidente.
Näo se duvidará de que, neste caso, o facto de o doente näo ter um mar
cador somático normal foi imensamente vantajoso. A maior parte de nós
precisaria de ter recorrido à decisäo deliberada de näo tocar no traväo, de
näo se deixar perturbar pelo pänico ou pela comiseraçäo com a malograda
condutora que nos precedia. Temos aqui um exemplo de como os meca
nismos automatizados de marcaçäo somática podem ser prejudiciais ao
nosso comportamento e como, em determinados circunstäncias, a sua au
sência constitui uma vantagem.
A outra cena passa agora para o dia seguinte. Estava a falar com o
mesmo doente sobre a sua próxima vinda ao laboratório. Apresentei lhe
duas datas possiveis, ambas no mês seguinte, apenas com alguns dias de
diferença. O doente puxou da sua agenda e começou a consultar o ca
lendário. O comportamento que se seguiu, presenciado por diversos 'M
vestigadores, foi extraordinário. Durante uma boa meia hora, o doente
enumerou razöes a favor e contra cada uma das datas: compromissos an
teriormente assumidos, proximidade de outros compromissos, possivels
condiçöes meteorológicas, praticamente tudo o que se pudesse imaginar
a respeito de uma simples data. Com a mesma calma com que passara por
cima do gelo e narrara o episódio, envolvia nos agora numa análise de
custos e proveitos, numa lista infindável e numa comparaçäo infrutifera
de opçöes e consequências possiveis. Foi necessário uma disciplina tre
menda para escutar tudo aquilo sem dar um murro na mesa e mandá lo
calar se, mas lá acabámos por lhe dizer que deveria vir na segunda das
duas datas alternativas. A sua resposta foi igualmente calma e pronta.
Limitou se a dizer: «Está bem. » A agenda desapareceu no seu bolso e foi
se embora. Este comportamento exemplifica bem os limites da razäo
A HIPOTESE DO MARCADOR SOMATICO 205
pura. É também um bom exemplo da consequência calamitosa de näo se
possuir mecanismos automatizados de tomada de decisäo. Um meca
nismo automatizado do marcador somático teria auxiliado o doente de
diversas maneiras. Para começar, teria melhorado o esboço geral do pro
blema. Nenhum de nós perderia tanto tempo como ele com a questäo,
porque um dispositivo automatizado de marcaçäo somática ter nos ia
ajudado a detectar a natureza inútil do exercicio. Quanto mais näo fosse,
ter nos iamos apercebido do ridiculo do esforço. Num outro nivel, e an
tevendo a inutilidade da abordagem, teriamos optado por uma das datas
altemativas com o equivalente de lançar uma moeda ao ar ou confiar
numa espécie de intuiçäo em relaçäo a uma ou outra data. Ou talvez
pudéssemos ter transferido a decisäo para a pessoa que fez a pergunta e
respondido que näo tinha importäncia, ela que escolhesse.
Em sintese, veriamos que era uma perda de tempo e tê la iamos
marcada como negativa; e imaginariamos as mentes dos outros a obser
var nos e ter nos iamos sentido embaraçados. Tudo leva a crer que o
doente consegue formar algumas dessas «imagens» internas, mas a
ausencia de um marcador näo permite talvez que sejam devidamente
consultadas e considerados.
Se se está agora a interrogar sobre o motivo por que os impulsos bio
lógicos e a emoçäo podem ser tanto benéficos como nocivos, deixe me di
zer lhe que näo seria o único caso em biologie em que um determinado
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