Ou talvez ― que fosse fulminado por este pensamento ― ela estaria na verdade rezando para obter orientação e força?
Ela cruzava a Ponte do Tribunal, vagava ao longo do Aterro do Rio Ozma e cortava em diagonal através dos jardins de rosa abandonados da Alameda Real. A neve a importunava; a silhueta de suas finas pernas longas e escuras enfiadas naquelas botas enormes e cômicas se delineava contra o fundo de brancura do Parque dos Cervos de Oz (agora, naturalmente, desprovido de Cervos e mesmo de cervos). Ela marchava, cabeça abaixada, passando pelos cenotáfios e obeliscos e placas de memoriais erguidos em honra aos Magníficos Mortos, aventurando-se aqui e ali. As décadas ― Fiyero pensou, tão apaixonado ou tão temeroso por ela que ele podia tomar a coisa por amor ―, as décadas ali registradas não percebiam a sua passagem. Elas se miravam umas às outras do alto de seus engastes fixos e não notavam a revolução andando a passos largos entre elas, a caminho de seu destino.
Mas o Mágico não devia ser o seu objetivo. Ela devia ter revelado a verdade ao dizer que ela era inexperiente demais, e muito óbvia, para ser escolhida como assassina do Mágico. Ela devia estar envolvida em alguma tática diversionista, ou com a busca de algum possível sucessor ou aliado de alto nível. Pois à noite o Mágico estaria inaugurando a antimonárquica, revisionista Exposição de Luta e Virtude na Academia de Arte e Mecânica próxima ao Palácio. No entanto, no extremo da estrada para Shiz, Elphaba se pôs a caminhar lateralmente, longe do distrito do Palácio, cortando através do pequeno, elegante distrito de Refúgio de Ouro. As residências dos corruptos ricos eram vigiadas por mercenários, e ela passou imperceptivelmente por suas calçadas e pelos trabalhadores de estábulo que estavam do lado de fora varrendo a neve com suas vassouras. Ela não olhava para cima ou para baixo ou para trás sobre o ombro. Fiyero achou que, naquela perseguição, ele era a figura mais ostensiva, andando a passos largos na neve, com sua capa de ópera, a uns cem passos atrás dela.
No limite do Refúgio de Ouro havia um primoroso teatro de pedras azuis, o Mística da Mulher. Na praça frívola, porém elegante, que ficava diante dele, luzes claras de douradas e verdes lantejoulas apareciam em profusão, penduradas de poste a poste. Algum oratório de feriado estava programado ― ele conseguia ler apenas ESGOTADO na tábua que ficava defronte ― e as portas ainda não tinham sido abertas. A multidão estava se aglomerando, alguns ambulantes vendiam chocolate quente em altos copos de cerâmica, e uma horda de adolescentes arrogantes se divertia e importunava algumas pessoas idosas cantando uma paródia de um velho hino unionista da temporada. A neve caía sobre todos, nas luzes, no teatro, nas multidões; aterrissava no chocolate quente, engrossava o mingau, punha gelo nos tijolos.
Corajosamente, tolamente ― sem decisão ou escolha, ao que parecia ― Fiyero subiu os degraus de uma biblioteca particular próxima, para ficar de olho em Elphaba, que sumira entre a multidão. Haveria um assassinato no teatro? Haveria um incêndio premeditado, com os sibaritas inocentes sendo assados como castanhas? Haveria um simples alvo, uma vítima designada, ou rolaria sangueira e catástrofe, quanto mais e pior, melhor?
Ele não sabia se estava ali para evitar o que ela estava para fazer, ou para salvar quem quer que fosse da calamidade, ou para ajudar alguém que fosse ferido acidentalmente, ou mesmo só para testemunhar os acontecimentos, para, assim, ficar sabendo mais sobre ela. E amá-la ou não amá-la, mas, afinal, saber qual das duas coisas escolher.
Ela estava circulando pela multidão, como se tentasse localizar alguém. Ele acreditava, incrivelmente, que ela não sabia que ele estava atrás dela ― seria ela tão determinada em achar a vítima certa, e ele tão incapaz? Ela não sentiria a presença de seu amado na mesma praça a céu aberto a caminhar com ela enquanto o vento soprava as cortinas de neve?
Uma falange de soldados da Tropa da Tormenta surgiu de uma aléia entre o teatro e uma escola vizinha. Eles tomaram seus lugares diante das barreiras de porta de vidro. Elphaba escalou os degraus de um antigo mercado de lã, uma espécie de quiosque de pedra. Fiyero viu que ela trazia algo sob o manto. Explosivos? Algum apetrecho mágico?
Ela teria companheiros espalhados ali pela praça? Estariam se comunicando uns com os outros? A multidão continuava a engrossar, à medida que a hora do oratório se aproximava. Dentro das portas de vidro, a gerência da casa se ocupava aprumando estacas e estendendo cordas de veludo para promover uma entrada de gala no vestíbulo. Ninguém espremia e dava empurrões em espaços públicos como os muito ricos, Fiyero bem sabia.
Uma carruagem veio do canto de um prédio no lado oposto da praça. Não podia ir diretamente às portas do teatro, já que as multidões eram muito densas, mas procedia como se isso fosse possível. Sentindo a presença de alguma autoridade, a multidão recuou e parou um pouco. Poderia ser o evasivo Mágico, ou alguma visita não anunciada? Um cocheiro, portando um capuz de pele, abriu rapidamente a porta, e estendeu sua mão para ajudar o passageiro a apear.
Fiyero prendeu o fôlego; Elphaba virou madeira petrificada. Era esse o alvo.
Pondo os pés na rua coberta de neve, numa vaga provocadora de marés de seda negra e lantejoulas prateadas, surgiu uma mulher enorme; ela era imperiosa e augusta, era Madame Morrible, ninguém mais; Fiyero a reconheceu, embora a tivesse visto uma única vez.
Ele viu que Elphaba sabia que era essa a pessoa que ela tinha de matar; ela sabia disso; num instante, tudo ficou absolutamente claro. Se ela fosse pega e capturada e submetida a interrogatórios, sua motivação não poderia ser mais maravilhosa ― ela era apenas uma estudante enlouquecida do Crage Hall dirigido por Madame Morrible, ela carregava rancor, ela nunca esquecera. Era perfeito demais.
Mas estaria Madame Morrible envolvida em intriga com o Mágico? Ou era apenas uma manobra diversionista, para desviar a atenção das autoridades de algum alvo mais urgente?
A capa de Elphaba se mexeu; sua mão se enfiou nela, como se estivesse preparando alguma coisa. Madame Morrible estava resmungando uma saudação para a multidão, a qual, embora não necessariamente sabendo quem era ela, apreciava o espetáculo, se não a grandeza, de sua chegada.
A Diretora do Crage Hall deu quatro passos em direção ao teatro, agarrada ao braço de um lacaio automático, e Elphaba se moveu um pouco mais para a frente em seu posto no mercado de lã. Seu queixo agora se projetava agudamente para fora do lenço, seu nariz também se salientando; era como se ela fosse capaz de cortar Madame Morrible em pedacinhos, usando apenas as lâminas serrilhadas de suas feições naturais. Suas mãos continuaram a procurar coisas debaixo da capa.
Mas, então, foram abertas as portas frontais do edifício pelo qual Madame Morrible estava passando ― não do teatro, mas da escola adjacente, o Seminário Feminino de Madame Testane. Delas saiu um pequeno e tumultuado ajuntamento de estudantes de classe alta. O que elas estavam fazendo na escola na véspera de Lurlinemas? Fiyero percebeu que Elphaba estava violentamente surpresa. As garotas eram seis ou sete, pequenas massas informes e cremosas de feminilidade incipiente, revestidas com luvas de pele, enfiadas em lenços de pele e equilibradas em botas com bordas de pele. Elas estavam rindo e cantando, rouca e firmemente como as mulheres adultas que ainda se tornariam, e no meio delas havia uma figura de pantomima, alguém que interpretava a fada Preenella. Era um homem, seguindo a convenção, um homem maquilado de maneira boba feito um palhaço, usando um busto postiço de gozação, e uma peruca e saias extravagantes, e um chapéu de palha, carregando uma enorme cesta que transbordava de quinquilharias. “Oh, sociedade...”, ele flautou para Madame Morrible, “a boa Fada Preenella pode ter um presente para o Felizardo Pedestre.”
Por um momento, Fiyero pensou que o homem em farrapos ia tirar uma faca de algum lugar e matar Madame Morrible bem em frente às crianças. Mas, não, a espionagem era organizada, mas nem tanto ― era um acidente verdadeiro, um imprevisto. Eles não haviam imaginado que ali haveria um evento escolar naquela noite, nem que surgiria um grupo estridente de estudantes rebocando ansiosamente um ator vestido com saias e falando em falsete.
Fiyero virou-se para observar Elphaba. O rosto dela travava intensa luta com a incredulidade. As crianças estavam bem no caminho do que quer que ela estivesse por fazer. Elas eram um pequeno grupo indisciplinado, brincando em torno de Preenella, pulando sobre ele/ela, apoderando-se dos presentes. Eram o contexto acidental ― ruidosas, inocentes filhas de magnatas, déspotas e generais carniceiros.
Ele via Elphaba penando, ele via suas mãos lutando uma com a outra, para fazer qualquer coisa, ou para se abster de fazê-la ― fosse o que essa coisa fosse.
Madame Morrible seguiu avante, como uma enorme embarcação num desfile de Dia da Recordação, e as portas do teatro se abriram para ela. Ela passou grandiosamente para um lado mais seguro. Lá fora, as crianças dançavam e cantavam na neve, a multidão ondulava numa ou noutra direção.
O público formou fila para entrar no teatro. As crianças berravam sua canção nas ruas, inundadas de alegria e ânsia. A carruagem que trouxera Madame Morrible estava pronta para estacionar em frente ao teatro e começar a sua longa espera pelo retorno da Diretora. Fiyero estava imóvel, incerto, não sabendo se havia um plano alternativo, se Elphaba guardava alguma coisa na manga, se o teatro ia explodir.
Então, ele começou a ficar apreensivo com a possibilidade de, nos poucos minutos em que a perdera de vista, ela haver sido cercada pela Tropa da Tormenta. Poderiam ter sumido com ela tão rapidamente? O que ele faria se ela se tornasse um dos desaparecidos?
Num passo rápido, ele se encaminhou às ruas. Misericordiosamente, achou um veículo de aluguel à espera, e fez com que este o levasse diretamente para a rua de armazéns adjacente à guarnição militar do nono distrito da cidade.
Num estado de profunda agitação, ele chegou ao pequeno ninho de ave de rapina no alto do armazém de cereais onde Elphaba se ocultava. Ao subir as escadas, seus intestinos subitamente viraram água, e foi só com muito esforço que ele conseguiu chegar ao reservado do vaso. Suas vísceras se esvaziaram ruidosa e liquidamente, enquanto ele segurava o rosto repleto de suor. O gato estava empoleirado sobre o armário, de olhos arregalados para ele. Esvaziado, purificado, e ao menos razoavelmente refeito, ele tentou agradá-lo com uma tigela de leite. O gato não a quis.
Encontrou algumas bolachas secas, comeu-as penosamente, e então puxou a corrente para abrir a clarabóia, para arejar o aposento. Uns fragmentos de neve caíram e se depositaram ali, sem se derreter, era aquele frio do maldito lugar. Ele se moveu para acender um fogo, abrindo a porta de ferro do fogão.
O fogo se ergueu, e flamejou, e as sombras se destacaram como se fossem movidas por vontade própria, mas eram rápidas, atravessavam o aposento diante dele sem que ele pudesse discernir o que eram. Exceto que havia três, ou quatro, ou cinco, e que estavam usando roupas escuras, e tinham os rostos escurecidos como carvão, e suas cabeças estavam envoltas em lenços coloridos como aqueles que comprara para Elphaba, para Sarima. No ombro de uma delas viu a cintilação de uma dragona dourada: era um membro de alta patente da Tropa da Tormenta. Havia um cacete, e ele desceu sobre a sua cabeça, como o coice de um cavalo, como o ramo quebrado de uma árvore atingida por um raio. Devia sentir dor, mas estava surpreso demais para notar. Aquilo devia ser sangue, esguichando uma mancha cor de rubi sobre o gato branco, fazendo-o recuar. Ele viu os olhos do bicho se abrirem, duas luas de um verde-dourado, combinando com a época, e o gato então fugiu pela clarabóia aberta e se perdeu na noite nevada.
A monja mais jovem era obrigada a abrir a porta do convento se a campainha soasse durante as refeições. De fato, já estava recolhendo as sobras de sopa de abóbora e biscoitos de centeio, as outras monjas rumando, num ânimo disciplinado, em direção à capela do monastério no pavimento superior. Ela hesitou antes de se decidir por atender à campainha ― dentro de mais uns três minutos, também deveria se perder em devoções, e o som da campainha teria passado despercebido. Ela preferia, francamente, lavar os pratos. Mas o espírito do feriado a forçava a ser caridosa.
Ela abriu a porta enorme para encontrar uma figura encurvada como um macaco no canto escuro da varanda de pedra. Mais além, a neve enrugava a fachada da Igreja de Santa Glinda adjacente, fazendo-a parecer um reflexo na água, destacando apenas o lado certo. As ruas estavam vazias e um ruído de corais era filtrado pela igreja iluminada à luz das velas.
“O que é?”, disse a noviça, lembrando-se então de acrescentar: “Feliz Lurlinemas, meu amigo”.
Assim que viu o sangue nos estranhos punhos verdes, e a raiva naquele olhar, a decência associada ao feriado obrigou-a a levar a criatura para dentro. Mas ela ouvia as suas irmãs reunidas na sua capela particular, e a monja-mãe começara a cantar um prelúdio em seu prateado contralto. Era o primeiro grande evento litúrgico da noviça desde que se tornara membro da comunidade, e ela não queria perder um momentinho que fosse.
“Venha comigo, bonequinha”, ela disse, e a criatura ― uma mulher jovem só um ano ou dois mais velha que ela ― conseguiu se endireitar o bastante para andar, ou mancar, como um aleijado, como uma pessoa tão mal-alimentada que suas extremidades não podiam ser flexionadas e seus membros pareciam prestes a rachar.
A noviça parou num lavatório para enxaguar o sangue dos pulsos, e para se assegurar de que aquilo era coisa espirrada pela decapitação de alguma galinha para uma ceia do feriado, e não uma triste tentativa de suicídio. Mas a estranha recuou à visão da água, e pareceu tão desconcertada e infeliz que a noviça parou. Ela optou por uma toalha seca.
As monjas estavam começando as antífonas no pavimento superior! Que coisa irritante! A noviça escolheu a linha de menor resistência. Ela arrastou a coisa desamparada para o salão de inverno, onde as velhas empregadas aposentadas viviam suas vidas numa névoa de amnésia e discretamente plantavam moitas de plantas ornamentais, cujo doce miasma ajudava a mascarar odores de velhice e incontinência. As idosas viviam num tempo todo próprio, não podendo ser levadas lá para o alto, para a capela sagrada, de modo algum.
“Olhe, eu vou colocá-la aqui”, ela disse à mulher. “Eu não sei se você precisa de santuário ou alimento ou um banho ou um perdão, o que for. Mas, você pode ficar aqui, quente e enxuta e segura e silenciosa. Voltarei para cá depois da meia-noite. É por causa do dia de festa, como vê. É o ofício de vigília. Fique e aguarde, e tenha esperanças.”
Ela pôs a perseguida e assombrada mulher numa cadeira macia, e trouxe um cobertor. A maioria das idosas estava roncando, as cabeças tombando nos seios, babando suavemente em peitilhos enfeitados de frutinhas e folhas verdes e douradas. Algumas desfiavam as contas dos rosários. O pátio, que em geral ficava aberto no verão, estava agora protegido do inverno por painéis de vidro, e por isso parecia um tanque quadrado para peixes num aquário; a neve caindo sobre ele sempre infundia tranqüilidade às idosas.
“Olhe, você pode ver a neve, branca como a graça do Deus Inominável”, disse a noviça, lembrando os requisitos pastorais. “Pense nisso, e descanse, e durma. Aqui está um travesseiro. Aqui está uma almofada para seus pés. Lá em cima, nós vamos estar cantando e saudando o Deus Inominável. Rezarei por você.”
“Não...”, disse a hóspede fantasmagoricamente verde, e então deixou sua cabeça cair repentinamente sobre o travesseiro.
“O prazer é meu”, disse a noviça, um pouco agressivamente, e bateu em retirada, bem a tempo de pegar o hino em andamento.
Por um momento, o salão de inverno ficou em silêncio. Era como um aquário em que um peixe novo houvesse sido introduzido. A neve caía como que movida por uma máquina, amável e hipnotizante, com um sussurro tênue. Os botões das plantas ornamentais se fechavam um pouco à medida que o frio aumentava no salão. Lâmpadas de óleo lançavam suas funéreas fitas crepes no ar. No outro lado do jardim ― pouco visível através da neve e das duas janelas ― uma monja decrépita, com uma compreensão mais precisa do calendário que as suas irmãs, começou a murmurar um insolente velho hino pagão a Lurline.
Uma das idosas se aproximou à trêmula figura da recém-chegada, avançando aos poucos numa cadeira de rodas. Ela se encostou e farejou. Do manto de um cobertor xadrez, azul e marfim, ela pôs desajeitadamente suas velhas mãos sobre os descansos. Daí, alcançou e tocou a mão de Elphaba.
“Bem, a pobre bonequinha está doente, a pobre bonequinha está cansada”, disse a coisa vetusta. Suas mãos tatearam, como as da noviça, à procura de feridas nos pulsos. Nada. “Embora esteja intacta, a pobre bonequinha está sofrendo”, ela disse, como se aprovasse. Uma cúpula de couro cabeludo recém-raspado apontou debaixo do capuz do cobertor. “A pobre bonequinha está fraca, a pobre bonequinha está vacilando”, ela continuou. Ela chacoalhou um pouco e pressionou as mãos de Elphaba entre as suas, como que para aquecê-las, mas era duvidoso que seu anêmico e incompetente velho sistema circulatório pudesse aquecer um estranho quando mal podia aquecer a si mesmo. Mesmo assim, ela prosseguiu. “A pobre marionete é a desgraça em pessoa”, ela murmurou. “Felizes festas para todos. Venha, minha querida, encoste-se no peito da velha Mãe. A Velha Monja-Mãe vai dar um jeito nas coisas.” Ela nem podia puxar Elphaba de sua posição de sofrimento insone e sem sonhos. Ela conseguia apenas manter as mãos de Elphaba fortemente agarradas às suas, como uma sépala se encaixa nas dobras de uma pétala tenra. “Venha, minha preciosa, e tudo ficará bem. Descanse no peito da louca Mãe Yackle. Mãe Yackle tomará conta de você.”
A JORNADA
1
No dia em que a monja de sete anos estava para partir, a irmã Bursar tirou a enorme chave de ferro de seu peito e destrancou a despensa, e disse: “Venha”. Ela puxou da prensa três mudas de roupas negras, seis camisolas, luvas e um xale. Ela também lhe passou a vassoura. Finalmente, para emergências, um cesto de coisas básicas ― ervas e raízes, tinturas, arruda, pomadas e bálsamos.
Havia papel, também, embora não muito; umas doze páginas ou algo assim, de diferentes formas e espessuras. Papel estava sempre faltando em toda parte de Oz. “Faça-o durar, trate-o com a devida importância”, advertiu a irmã Bursar. “Você é alguém especial, por todos os seus amuos e silêncios.” Ela encontrou uma caneta. Uma pluma de fênix, famosa pela durabilidade e a força da pena. Três potes de tinta preta, selados com salientes envoltórios de cera.
Oatsie Mão-Ferida estava esperando no ambulatório com a velha Monja Superiora. O convento estava pagando uma quantia decente por esse serviço e Oatsie precisava da remuneração. Mas ela não gostou da aparência da taciturna monja que a irmã Bursar trouxe. “Esta é a sua passageira”, disse a Monja Superiora. “Seu nome é Irmã Santa Elphaba. Ela passou muitos anos em vida solitária e cuidando de doentes. O hábito de conversar está perdido. Mas já é tempo de ela mudar, e mudar é o que ela vai fazer. Você não terá problemas com ela.”
Oatsie olhou bem para a passageira e disse: “O Expresso da Trilha de Relva não garante a sobrevivência desta pessoa, Monja. Eu chefiei duas dúzias de viagens nesses últimos dez anos ou quase, e houve mais acidentes do que gosto de admitir”.
“Ela está partindo de livre e espontânea vontade”, disse a Monja Superiora. “Caso ela queira retornar de algum ponto, vamos recebê-la de volta. Ela é uma de nós.”
Ela não pareceu uma de coisa nenhuma para Oatsie, nem gente nem bicho, nem idiota nem intelectual. Irmã Santa Elphaba apenas olhava fixamente para o chão. Embora parecesse ter cerca de trinta anos, tinha uma aparência adoentada, adolescente.
“E há a bagagem ― você pode carregá-la?” A Monja Superiora apontou para a pequena pilha de suprimentos no imaculado espaço defronte ao monastério. Depois, virou-se para a monja que partia. “Doce filha do Deus Inominável”, disse a Monja Superiora, “Você nos deixa para realizar um exercício de expiação. Você acha que há uma penalidade a cumprir antes que possa encontrar a paz. O silêncio inquestionável do claustro não é mais o que você precisa. Você está retornando a você mesma. Portanto, deixamo-la ir com nosso amor e com nossas esperanças de que tenha sucesso. Vá com Deus, minha boa irmã.”
A passageira manteve seus olhos experientes no chão e não respondeu.
A Monja Superiora suspirou. “Devemos voltar às nossas devoções”. Ela tirou algumas notas de um rolo de dinheiro mantido nos recessos de seus véus, e passou-as para Oatsie Mão-Ferida. “Isso deve bastar, e até vai além.”
Era uma ótima quantia. Oatsie se aprumou por ganhar esse tanto para escoltar essa mulher taciturna através dos Kells ― ganhar mais que de todo o resto do grupo que levaria. “A senhora é boa demais, Monja-Mãe”, ela disse. Pegou o dinheiro com sua mão firme, e fez um gesto de deferência com a frouxa.
“Ninguém é bom demais”, disse a Monja Superiora, mas simpaticamente, e se recolheu com rapidez surpreendente atrás das portas do monastério. A Irmã Bursar disse: “Você está livre agora, Irmã Elfinha, e oxalá todas as estrelas brilhem em seu caminho!”, e desapareceu do mesmo jeito. Oatsie se moveu para carregar a bagagem e os suprimentos para o vagão. Havia um pequeno, atarracado garoto maltrapilho dormindo atrás do baú. “Fora daqui”, disse Oatsie, mas o garoto murmurou: “Eu tenho de ir também, foi o que me disseram”.
Vendo que a Irmã Santa Elphaba nem confirmava nem negava esse plano, Oatsie começou a entender por que o pagamento para levar embora a monja verde havia sido mais que generoso.
O Claustro de Santa Glinda estava localizado em Pedras Ralas, doze milhas ao sul da Cidade Esmeralda. Era um monastério em posto avançado, sob a proteção do outro que ficava na cidade. A Irmã Santa Elphaba passara dois anos na cidade e cinco anos ali, de acordo com a Monja Superiora. “Você ainda quer ser chamada de Irmã, agora que foi libertada daquele santo cárcere?”, perguntou Oatsie quando estalou as rédeas e atiçou os cavalos.
“Elfinha está bom”, disse a passageira.
“E o garoto, que nome ele tem?”
Elfinha deu de ombros.
A carruagem encontrou o resto da caravana a poucas milhas à frente. Havia quatro vagões ao todo, e quinze viajantes. Elfinha e o garoto foram os últimos a chegar. Oatsie Mão-Ferida delineou a rota proposta: ao sul pelas bordas do Rio Kells, a oeste através do Desfiladeiro de Kumbricia, ao norte pelas Pastagens Milenares, parando em Kiamo Ko, e depois hibernando num ponto mais a noroeste. O Vinkus era uma terra selvagem, Oatsie lhes disse, e havia grupos tribais a temer: os yunamatas, os scrows, os arjikis. E havia animais. E havia espíritos à solta. Eles precisariam ficar unidos. Precisariam confiar uns nos outros.
Elfinha não dava sinal de que escutasse alguma coisa. Ela brincava ociosamente com a pluma de fênix e traçava desenhos no solo a seus pés, elaborando formas espiraladas como dragões retorcidos e fumaça ascendente. O garoto estava acocorado a oito ou dez pés de distância, cauteloso e fechado. Ele parecia ser seu pajem, pois carregava suas malas e atendia às suas necessidades, mas não olhavam um para o outro, nem se falavam. Oatsie achou isso estranho ao extremo, e esperou que não fosse augúrio de algo ruim.
O Expresso da Trilha de Relva partiu ao pôr-do-sol, e avançou umas poucas milhas até sua primeira parada para acampar num leito de rio. O grupo ― gillikeneses, na maioria ― tagarelava nervosamente, espantado ante a própria coragem de ir para tão longe da segurança de Oz central! Todos por diferentes motivos: negócio, necessidades de família, pagar uma dívida, matar um inimigo. O Vinkus era uma fronteira, e os winkies um povo bélico, sedento de sangue, que sabia pouco sobre o asseio de interiores ou as regras de etiqueta com os quais o grupo se deleitava em loas a si mesmo. Oatsie tomou parte da conversa por pouco tempo, mas ela sabia que dificilmente haveria entre eles quem não preferisse ter ficado onde estava e evitar as profundezas de todo o Vinkus. Exceto talvez aquela Elfinha, que estava cuidando muito bem de si mesma.
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