Logo abaixo dele, expostos em dúzias de portas, janelas e pórticos, vê-se bonecos, marionetes, estatuetas. Criaturas de contos folclóricos. Caricaturas de camponeses e figuras da realeza. Animais e fadas e santos ― os santos de nossa união, Irmão Frexpar, roubados debaixo de nossos narizes! Eu fico furioso. As figuras se movem em rodas dentadas. Elas circulam para dentro e para fora. Elas se curvam na cintura, dançam e param e brincam, flertando umas com as outras.
Quem teria elaborado esse Dragão do Tempo, esse falso oráculo, esse instrumento de propaganda para o mal que desafiava o poder da união e do Deus Inominável? Os manipuladores do relógio eram um anão e alguns lacaios de cintura fina que pareciam ter capacidade mental apenas para tirar o chapéu. Quem por trás do anão e de seus lacaios decorativos estaria tirando proveito da coisa?
A segunda carta do primo avisava que o relógio estava seguindo rumo a Margens Agitadas. Contava uma história mais específica.
O espetáculo começou com um dedilhar de cordas e um chacoalhar de ossos. O público se aproximou, extasiado. Dentro de uma janela iluminada no palco, vimos uma cama de casal, com os bonecos de uma esposa e um marido. O marido estava sonolento e a esposa suspirava. Fazia um movimento com suas mãos entalhadas para sugerir que o marido era decepcionante de tão malservido. A platéia dava risadas estridentes. Aí, a esposa-boneca se recolheu para dormir. Quando ela roncou, o marido-boneco saiu furtivamente da cama.
Nessa altura, lá em cima, o Dragão se moveu na base, e apontou suas garras para a multidão, indicando ― sem sombra de dúvida ― um humilde cavador de poços chamado Grine que havia sido um marido fiel, embora indiferente. Então, o dragão recuou e estendeu dois dedos num gesto de venha-cá, isolando uma viúva chamada Letta e sua filha, moça de dentes pontiagudos. A multidão murmurou e se afastou de Grine, Letta e da moça ruborizada, como se houvesse sido subitamente contagiada por feridas purulentas.
O Dragão parou de novo, mas descortinou uma asa sobre outra arcada, que se iluminou para revelar o marido-boneco, que vagava pela noite. Junto a ele vinha uma viúva-boneca, com cabelo enfeitado e roupa de cores berrantes, arrastando atrás de si uma filha com maus dentes que protestava. A viúva beijou o marido-boneco e baixou suas calças de couro. Ele estava equipado com dois apetrechos de atributos masculinos, um pela frente e outro pendurado na base de sua espinha. A viúva colocou a sua filha na miniatura bélica da frente, e procurou tirar vantagem para si do dispositivo menos ameaçador que estava atrás. Os três bonecos pulavam e balançavam, emitindo guinchos de alegria. Quando a viúva-boneca e sua filha terminaram, desmontaram e beijaram o marido-boneco.
E aí deram joelhadas nele, ao mesmo tempo, para a frente e para trás. Afetado em suas molas e dobradiças, ele tentava recuperar todas as partes danificadas.
A platéia rugia. Grine, o verdadeiro cavador de poços, suava em bicas grandes como uvas. Letta fingia dar gargalhadas, mas sua filha já havia desaparecido, de tão envergonhada. Antes que a noite findasse, Grine foi procurado por seus vizinhos agitados e investigado por sua grotesca anomalia. Letta foi evitada. Sua filha parece ter desaparecido por completo. Suspeita-se o pior.
Felizmente, Grine não foi assassinado. No entanto, quem pode dizer como nossas almas foram afetadas por terem testemunhado um drama tão cruel? Todas as almas são reféns de seus invólucros humanos, mas as almas devem se aviltar e padecer com tamanha indignidade, não concorda?
Às vezes, parecia a Frex que qualquer bruxa itinerante e qualquer profeta tagarela e desdentado de Oz que pudesse lançar o mais transparente dos feitiços tinha se aproveitado dos cafundós de Pedras do Caminho para abrir um negócio. Ele sabia que os moradores de Margens Agitadas eram ignorantes. Suas vidas eram duras e suas esperanças escassas. Enquanto a seca se arrastava, a fé tradicional da união sofria erosão. Frex estava ciente de que o Relógio do Dragão do Tempo combinava os atrativos da ingenuidade e da magia ― e teria de se valer das mais profundas reservas de sua convicção religiosa para combatê-lo. Se sua congregação se provasse vulnerável à assim chamada fé no prazer, sucumbindo ao espetáculo e à violência ― bem, que é que se poderia esperar?
Ele tinha de vencer. Ele era o pastor daqueles fiéis. Ele tinha extraído seus dentes e enterrado seus bebês e benzido seus trens de cozinha por muito tempo. Ele tinha se humilhado por eles. Ele tinha vagado com uma barba em desalinho e uma cuia de mendigo de povoado a povoado, deixando a pobre Melena sozinha a cuidar de seu posto por várias semanas, certa vez. Sacrificara-se por eles. Eles não podiam ser influenciados por essa criatura do Dragão do Tempo. Eles lhe deviam isso.
Ele seguiu caminhando, ombros ajustados, queixo erguido, o estômago num revolto azedo. O céu estava escurecido pela areia e sujeira que ondulavam no ar. O vento soprava no alto das colinas com um trêmulo gemido, como se tentasse transpor uma fissura de rocha, em algum espinhaço que ficava além de qualquer coisa que Frex pudesse enxergar.
O NASCIMENTO DE UMA BRUXA
Era já quase noite quando Frex sentiu-se com coragem o bastante para entrar no povoado em ruínas de Margens Agitadas. Ele suava profusa-mente. Firmava seus calcanhares e bombeava seus punhos apertados, e clamava num tom rouco, carregado. “Escutai, vós de pouca fé! Uni-vos enquanto é tempo, pois a tentação se anuncia para testar-vos dolorosa-mente!” As palavras eram arcaicas, até ridículas, mas funcionavam, pois já se aproximavam dele os pescadores taciturnos, retirando suas redes vazias da doca. Já se chegavam os fazendeiros de subsistência, cujas pobres terras mal tinham se formado ao longo desse ano seco. Antes mesmo que ele tivesse começado o discurso, já olhavam para ele com caras de tão culpados quanto a própria culpa.
Eles seguiram-no até os raquíticos degraus da casa de conserto das canoas. Frex sabia que todos esperavam que o maligno relógio chegasse a qualquer momento; o mexerico era tão contagioso quanto a peste. Ele vociferava sobre a multidão para aumentar a expectativa sedenta. “Sois tolos como recém-nascidos que engatinham, estendendo as mãos para tocar em belas brasas! Sois como ovas do útero do dragão, prontas para sugar tetas de fogo!” Essas eram imprecações clássicas já desgastadas e soaram frouxas nessa noite; ele estava cansado e não em sua melhor forma.
“Irmão Frexpar”, disse Bfee, o prefeito de Margens Agitadas, “poderia por favor reduzir um pouco a sua lenga-lenga até que possamos ver que nova forma a tentação poderá assumir?”
“Vocês não têm fibra para resistir a novas formas”, disse Frex, cuspindo.
“Mas não foi você nosso mestre competente todos esses anos?” disse Bfee. “Nós nunca tivemos uma oportunidade tão boa como essa de provar-nos contra o pecado! Esperamos ansiosamente pela... pela prova espiritual que isso significará.”
Os pescadores riam e zombavam, e Frex intensificava sua carranca, mas ao ouvir o som de rodas inabituais nos sulcos pedregosos da estrada, todos viraram suas cabeças e caíram em silêncio. Ele perdera a atenção do público mesmo antes de começar.
O relógio vinha puxado por quatro cavalos e escoltado pelo anão e sua corte de jovens sicários. Seu amplo teto era coroado pelo dragão. Mas que monstro! Parecia aprumado como se estivesse pronto para saltar, como se realmente possuísse vida. O revestimento do palanquim era decorado com cores carnavalescas, folheadas a ouro. Os pescadores iam ficando boquiabertos à medida que ele se aproximava.
Antes que o anão pudesse anunciar quando a apresentação se daria, antes que o grupo de jovens pudesse dar as suas cartas, Frex encostou-se no degrau mais baixo da coisa ― um palco dobrável. Por que isso é chamado de relógio? A única aparência de relógio que tem é rasa, estúpida e perdida em todos esses detalhes tapeadores. Ademais, os ponteiros não se movem; olhem, vejam por vocês mesmos! Estão pintados para permanecer em um minuto antes da meia-noite! Tudo que vocês vêem aqui é pura mecânica, meus amigos: sei disso como fato consumado. Vocês vêem o crescimento de campos de trigo mecânicos, luas minguantes de cera, um vulcão a expelir um pano vermelho revestido de lantejoulas pretas e vermelhas. Com todo esse aparato falso, por que não colocar um par de braços giratórios na frente do relógio? Por que não? Eu pergunto a você, sim, você, Gawnette, e você, Stoy, e você, Perippa. Por que não há um relógio verdadeiro aqui?”
Eles não escutavam, nem Gawnette nem Stoy nem Perippa, nem os outros. Estavam ocupados demais em arregalar os olhos de expectativa.
“A resposta, com certeza, é que o relógio não foi feito para medir o tempo terreno, mas o tempo da alma. O tempo da redenção e da condenação. Para a alma, cada instante é um minuto a menos de julgamento.”
“Um minuto a menos de julgamento, meus amigos! Se vocês morressem nos próximos sessenta segundos, gostariam de passar a eternidade nas sufocantes profundezas reservadas aos idolatras?”
“Barulhão medonho vai rolar por aqui esta noite”, disse alguém nas sombras ― e os espectadores riram. Acima de Frex ― ele girou para ver ― de uma pequena porta, emergiu latindo um cachorro-boneco, com o cabelo tão escuro e crespo quanto o de Frex. O cachorro saltava de uma mola, e o volume de seu latido era irritantemente alto. As risadas aumentaram. A noite ficara mais escura, e ficava menos fácil para Frex distinguir quem estava rindo, quem agora gritava para que ele se afastasse a fim de que o público pudesse ver.
Ele não se movia, portanto, foi mandado embora de seu posto sem maior cerimônia. O anão fez uma saudação poética ao público. “Todas as nossas vidas são atividades sem sentido; nós nos entocamos como ratos e nos contorcemos como ratos vida afora e como ratos somos lançados em nossos túmulos, no final. De vez em quando, por que não ouvirmos a voz de uma profecia, ou vermos a execução de um milagre? Por sob a aparente falsidade e indignidade de nossas vidas de ratos, um padrão e um significado humildes ainda podem ser percebidos! Aproxime-se, minha gente querida, e observe o que um pouquinho de conhecimento extra augura para nossas vidas! O Dragão do Tempo vê o antes e o além e o oculto de seu quinhão de anos neste mundo! Olhe o que ele tem a lhes mostrar!”
A multidão se aproximava. A lua se erguera, sua luz semelhante ao olho de um deus raivoso e vingativo. “Parem, deixem-me passar”, Frex clamava; era pior do que ele tinha imaginado. Ele nunca tinha sido maltratado pela sua própria congregação.
O relógio revelou a história de um homem publicamente virtuoso, com barba como lã de cordeiro e cachos de cabelos pretos, que pregava a simplicidade, a pobreza e a generosidade enquanto ocultava um cofre de ouro e esmeraldas ― nas dobras do peito de uma delicada filha de gente de sangue azul. O crápula foi sendo varrido com uma longa estaca de ferro do jeito mais brutal e entregado a seu faminto rebanho como um Pedaço de Pastor Assado.
“Isso é uma apelação aos seus piores instintos!” Frex vociferou, seus braços dobrados e seu rosto roxo de fúria.
Mas agora que a escuridão era quase total, alguém veio por trás dele para calá-lo. Um braço cercou seu pescoço. Ele se virou para ver qual paroquiano danado tomara tais liberdades, mas todos os rostos estavam cobertos por capuzes. Levou uma joelhada na virilha e dobrou-se, seu rosto caindo no pó. Um pé chutou-o direto entre as nádegas e as vísceras. O resto da multidão, contudo, não estava notando. Os espectadores uivavam de alegria com algum outro entretenimento posto em ação pelo Dragão do Relógio. Uma mulher simpática, envolta num xale de viúva, agarrou seu braço e tirou-o dali ― ele estava muito abobalhado, dolorido demais para se firmar e entender quem era. “Vou lhe colocar no fundo de um porão, debaixo de um saco de aniagem, juro que vou”, murmurou a boa senhora,porque logo eles vão perseguir você com forcados, pelo jeito que a coisa está ficando! Vão procurar você na casinha de pastor, mas não vão procurar no meu quarto de dormir.”
“Melena”, ele agourou, “eles a pegarão!”
“Ela será ajudada também”, disse sua vizinha.
“Nós, mulheres, podemos cuidar disso, eu acho!”
Na casinha de pastor, Melena lutava para ficar consciente enquanto duas parteiras entravam e saíam de foco diante dela. Uma era a esposa de um pescador, a outra uma velha encarquilhada; faziam turnos pondo as mãos em sua testa, examinando o meio de suas pernas, e lançando olhares furtivos sobre as pequenas jóias e tesouros que Melena tinha lutado por trazer para casa ao vir dos Solos de Colwen. “Masca esta pasta de folhas de alfineteiro, patinha, faz isso, tá? Você ficará inconsciente rapidinho”, disse a esposa do pescador. “Você vai relaxar, o preciosinho vai nascer, e tudo estará bem de manhã. Pensei que você cheirava a água de rosas e orvalho de fada, mas você fede como todos nós. Masca, minha querida, masca.”
Ao som de uma batida na porta, a velha ergueu culposamente seus olhos, afastando-os da arca diante da qual se ajoelhara e que esquadrinhara implacavelmente. Deixou a tampa se fechar com um estrépito e adotou uma posição fingida de quem estivesse rezando, com os olhos fechados. “Entre”, ela convidou.
Uma moça de pele macia e corada entrou. “Oh, eu esperava encontrar alguém aqui”, ela disse. “Como ela está?”
“Quase pronta, e o bebê também”, respondeu a esposa do pescador. “Só mais uma hora, eu calculo.”
“Bem, me disseram para avisá-las. Os homens estão bêbados e caçando por aí. Foram incitados por aquele Dragão do Relógio Mágico, como vocês sabem, e procuram Frex para matá-lo. Foi o relógio que mandou. Eles estão zanzando aqui por perto. Seria melhor a gente esconder a mulher ― ela pode ser transportada?”
Não, não posso ser transportada, pensou Melena, e se os camponeses acharem Frex para matá-lo, será bom e ruim para mim, porque nunca senti uma dor tão fora do comum, que me fizesse ver sangue diante de meus olhos, como esta que sinto agora. Matem o meu marido por ter me aprontado esta. A esse pensamento, ela sorriu num lampejo de alívio e desmaiou.
“Vamos deixá-la aqui e fugir!” disse a moça. “O relógio disse que era para matá-la também, e matar o pequeno dragão que ela vai parir. Eu não quero ser pega.”
“Temos nossas reputações a manter”, disse a esposa do pesca-dor. “Não podemos abandonar essa coisa metida a dama no meio do parto. Eu não me importo com o que qualquer relógio diz.”
A velha, com sua cabeça de novo enfiada na arca, disse: “Alguém aí quer uma verdadeira renda de Gillikin?”
“Há um carrinho de carregar feno no campo lá embaixo, mas vamos fazer isso agora”, disse a esposa do pescador. “Venham, me ajudem a ir buscá-lo. Você, sua velha mãe bruxa, tira a cara daí dos panos de linho, e venha umedecer este belo rostinho rosa. Certo, vamos lá.”
Poucos minutos depois, a velha encarquilhada, a esposa e a moça estavam empurrando ruidosamente um carrinho de feno por um caminho raramente usado que passava pelas hastes e folhas castanhas das florestas outonais. O vento tinha aumentado. Assobiava sobre os morros desprovidos de árvores de Colinas de Pano. Melena, escarrapachada entre cobertores, arquejava e gemia em dor inconsciente.
Ouviram uma turba bêbada passar, com forcados e archotes, e as mulheres ficaram mudas e aterrorizadas, ouvindo as maldições engroladas. Então, puseram-se a caminho com uma urgência ainda maior e chegaram a um bosque nevoento ― bem à beira de um cemitério para cadáveres não-consagrados. Dentro dele viram os contornos diluídos do relógio. Fora deixado lá pelo anão por uma questão de segurança ― nada bobo, ele; podia adivinhar que esse canto particular do mundo era o último lugar que os aldeões agitados procurariam nessa noite. “O anão e seus lacaios estavam bebendo na taberna também”, disse a moça, sem fôlego. “Não há ninguém aqui que possa deter-nos!”
A velha disse: “Então, você anda espiando os homens pelas janelas da taberna, sua piranha?” Ela empurrou e abriu a porta na retaguarda do relógio.
Achou um espaço ocupado. Pêndulos se dependuravam na penumbra de forma ameaçadora. Enormes rodas dentadas pareciam preparadas para fatiar qualquer invasor em rodelas de salsicha. “Venham, ponham-na aqui dentro”, disse a velha.
A noite de tochas e nevoeiro deu lugar, no amanhecer, a amplas e escarpadas nuvens de tempestade, dançantes esqueletos de relâmpagos. Lampejos de céu azul apareciam fugazmente, embora de vez em quando chovesse tão forte que o que parecia cair não era água, mas pingos de lama. As parteiras, rastejando com mãos e joelhos lá atrás do vagão do relógio, conseguiram enfim liberar o fardo. Protegeram a criança do gotejamento de calha. “Vejam, um arco-íris”, disse a mais velha, meneando a cabeça. Um lenço enfermiço de luz colorida pendia do céu.
O que elas viram, esfregando os resquícios do saco amniótico e o sangue da pele ― seria apenas um engano causado pela luz? Afinal, passada a tempestade, a grama parecia palpitar com sua própria cor, as rosas zumbiam e pairavam com louca glória em seus caules. Mas mesmo com esses efeitos de luz e atmosfera, as parteiras não podiam negar o que viam. Por baixo da excreção dos fluidos da mãe, a criança cintilava com um escandaloso tom esmeralda-pálido.
Não houve nenhum gemido, nenhum latido de fúria de recém-nas-cido. A criança abriu sua boca, respirou, e se manteve imperturbável. “Geme, seu demônio”, disse a velha, “é seu primeiro trabalho.” O bebê ignorava suas obrigações.
“Outro menino voluntarioso”, disse a esposa do pescador, suspirando. “Devemos matá-lo?”
“Não seja tão ruim com ele”, disse a velha, “é uma menina.”
“Hah”, disse a moça de vista turva, “olhem de novo, aí está o cata-vento.”
Por um momento elas entraram em discórdia, mesmo com a criança nua diante delas. Só depois de uma segunda e terceira esfregada ficou claro que a criança era de fato feminina. Talvez durante o parto um pouco de eflúvio orgânico houvesse sido captado e rapidamente secado no lugar da fenda. Assim que foi enrolada numa toalha, notou-se que ela era belamente formada, com uma longa cabeça elegante, antebraços lindamente torneados, pequenas nádegas boas de beliscar, dedos espertos com pequenas unhas que arranhavam.
E um inegável toque de verde na pele. Havia um rubor salmão nas bochechas e na barriga, um efeito de bege em torno das pálpebras apertadas, uma listra amarelo-castanho no couro cabeludo revelando o padrão de cabelo escasso. Mas o efeito principal era o de se estar diante de um vegetal.
“Olha aí o que a gente arrumou para ter problemas”, disse a moça. “Uma pequena porção verde de manteiga. Por que não a matamos? Vocês sabem o que as pessoas vão dizer.”
“Acho que ela é podre”, disse a esposa do pescador, e examinou para ver se encontrava a raiz de uma cauda, contando os dedos das mãos e dos pés. “Fede como esterco.”
“É esterco mesmo que você está cheirando, sua idiota. Você está se agachando numa bosta de vaca.”
“É doente, é frágil, deve ser essa a razão da cor. Vamos jogá-la no charco, vamos afogar a coisa. A mãe nunca saberá. Está desacordada há horas em seus desmaios de grande dama.”
Deram risadinhas. Embalaram a criança na curva de seus braços, passando-a de uma para outra no teste de peso e equilíbrio. Matá-la seria o mais bondoso plano de ação. A questão era como.
Então a criança abriu a boca, e a esposa do pescador distraidamente deu-lhe um dedo para fazer agrado, e ela mordeu o dedo para arrancá-lo, aproveitando a fraqueza momentânea. Ela quase engasgou na golfada de sangue. O dígito caiu de sua boca sobre a lama como um carretel. As mulheres se puseram imediatamente em ação. A esposa do pescador investiu sobre a menina para estrangulá-la, e a velha e a moça se arrojaram na defesa. O dedo foi retirado da lama com uma escavação e empurrado para dentro de um bolso de avental, talvez para ser recolocado na mão que o per”era. "É um pinto, ela acabou de notar que não tinha um”, gritou a moça, e caiu no chão de tanto rir. “Oh, que se cuide o primeiro menino estúpido que tentar se satisfazer com ela! Ela vai cortar seu tenro broto com uma tesoura para guardar de recordação!”
As parteiras se arrastaram de volta para o relógio e deixaram a coisa no colo da mãe, medrosas de cogitar de um crime de misericórdia devido ao pavor do que o bebê ainda poderia morder. “Talvez ela retalhe uma teta dessa vez, isso vai trazer a Dona Sonolenta Delicadeza de volta à realidade bem depressa”, a velha cacarejou. “Que criança, chupa sangue antes mesmo da primeira mamada no leite da mãe!” Deixaram uma panelinha de barro com água por perto e, protegidas pela rajada da tempestade seguinte, foram embora de vez para procurar seus filhos e maridos e irmãos, e repreendê-los e surrá-los se estivessem à mão, ou enterrá-los se não os encontrassem.
Nas sombras, a criança, de olhos arregalados, erguia a cabeça para olhar para os dentes lubrificados e regulares do relógio do tempo.
MOLÉSTIAS E REMÉDIOS
Melena passou dias sem conseguir olhar para a coisa. Ela a segurava por dever de mãe. Esperava que o manancial de afeição maternal brotasse e a dominasse. Não chorava. Mascava folhas de alfineteiro, para flutuar muito longe do desastre.
Era uma ela. Era uma mulher. Melena praticava mutações em seu pensamento quando estava sozinha. O fardo contraído e infeliz não era masculino; não era neutro; era uma mulher. A coisa dormia, parecendo uma pilha de folhas de repolho lavadas e deixadas para enxugar sobre a mesa.
Em pânico, Melena escreveu para Solos de Colwen para tirar a Babá de sua aposentadoria. Frex se adiantou, indo de carroça apanhar a Babá na estação do caminho de Ponta de Espato. Na viagem de volta, ela perguntou a Frex o que andava errado.
“O que há de errado.” Ele suspirou e ficou perdido em pensamentos. A Babá percebeu que tinha escolhido mal as palavras; agora Frex estava desatento. Ele começou a resmungar de modo genérico sobre a natureza do mal. Um vácuo provocado pela inexplicável ausência do Deus Inominável e dentro do qual o veneno espiritual deve se alojar. Um vórtice.
“Estou perguntando qual é o estado da criança!”, retorquiu a Babá, explosivamente. “Não é sobre o universo, mas sobre uma simples criança que eu quero saber alguma coisa, se é que vou ser de alguma ajuda! Por que Melena chama a mim e não à mãe dela? Por que não há uma carta para seu avô? Ele é o Eminente Thropp, pelo amor de Deus! Melena não deve ter esquecido seus deveres tão completamente, ou a vida no campo é pior do que pensávamos?”
“É pior do que nós pensávamos”, disse Frex, sombrio. “O bebê ― é melhor se preparar, Bá, para não dar um grito —, o bebê é desgraçado.”
“Desgraçado?” A mão da Babá ficou mais apertada em sua valise e ela olhou para as árvores de folhas avermelhadas de fruta-pérola que ladeavam a estrada. “Frex, pode me contar tudo.”
“É uma menina”, disse Frex.
“Desgraça de fato”, disse a Babá, brincando, mas Frex, como sempre, não via graça. “Bem, pelo menos o legado da família fica preservado para outra geração. Ela tem todos os membros?”
“Sim.”
“Alguma coisa além do necessário?”
“Não.”
“Está mamando?”
“Nós não deixamos. Tem dentes fora do comum, Bá. Tem dentes de tubarão, ou algo parecido.”
“Bem, ela não será a primeira criança a ser criada com uma garrafa ou um trapo em vez de um peito, não se preocupe com isso.”
“A cor é que está errada”, disse Frex.
“Qual cor é a cor errada?”
Por uns momentos, Frex conseguia apenas balançar a cabeça. A Babá não gostou e na verdade não gostava dele, mas procurou atenuar. “Frex, não pode ser tão ruim assim. Sempre há uma solução. Diga para mim.”
“É verde”, ele disse, finalmente. “Bá, a coisa é verde como musgo.”
“Ela é verde, você quer dizer. É uma ela, pelos céus.”
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