Quando o último Brando da noite tinha-se finado (com o críptico aforismo “Uma bruxa prevenida vale por nove”), Madame Morrible se retirou ao som de aplausos desiguais. Ela autorizou seu serviçal de bronze a servir chá para os convidados, e depois para as jovens, e finalmente para as Amas. Num entrechoque de seda farfalhante com tilintantes cascas de caramujos do lago, ela recebia cumprimentos dos professores e alguns dos rapazes mais corajosos, e pedia-lhes para sentarem-se a seu lado para que pudesse apreciar suas críticas. “Digam mesmo a verdade. Eu exagerei na dramaticidade, não? É a minha maldição. O palco me chamava, mas eu escolhi uma vida de Serviço as Jovens.” Ela baixava suas pálpebras, tomada pela modéstia, enquanto sua platéia cativa murmurava um morno protesto.
Galinda ainda estava tentando livrar-se da companhia embaraçosa de Elphaba, que seguia falando sobre os Brandos e o que eles significavam, e como se fossem algo de proveito. “Como posso saber, como você pode saber, somos jovens primeiranistas, lembra?”, disse Galinda, ansiando por zarpar para o lugar onde Pfanee, Milla e Shenshen estavam espremendo limões nas xícaras de chá de alguns rapazes salientes.
“Bem, sua opinião é tão boa quanto a dela, acho”, disse Elphaba. “Esse é o poder verdadeiro da arte, eu acho. Não pregar sermão, mas lançar desafios. Senão, para que se preocupar?”
Um rapaz se aproximou delas. Galinda achou que ele não valia um grande olhar, mas qualquer coisa era melhor que a sanguessuga verde a seu lado. “Como vai?”, disse Galinda, nem esperando que ele tomasse coragem. “É tão bom conhecê-lo. Você deve ser de... vamos ver...”
“Bem, eu sou de Briscoe Hall, na verdade”, ele disse. “Mas sou munchkinês, de origem. Como pode notar.” E ela podia, porque ele mal chegava a seus ombros. Levando isso em conta, até que ele não tinha má aparência. Um ninho de rolos de algodão de cabelo dourado mal penteado, um sorriso de dentes regulares, um aspecto melhor que o de alguns outros. A túnica de noite que ele usava era de um azul caipira, mas havia salpicos de linhas prateadas sobre ela. A seu jeito, era bem apanhado. Suas botas estavam polidas e ele se curvava, pernas bem separadas, pés avançados.
“Isso é o que eu amo”, disse Galinda, “conhecer gente nova. Isso é o que Shiz tem de melhor. Eu sou gillikinesa.” Ela fazia por não acrescentar isso, claro, porque acreditava que a coisa ficava evidente por sua vestimenta. As jovens de Munchkin tinham o hábito de vestir-se mais discretamente, e isso era tão entranhado que em Shiz eram confundidas com criadas.
“Bem, então, alô para você”, disse o rapaz. “Meu nome é Mestre Boq.”
“Senhorita Galinda dos Arduennas das Terras Altas.”
“E você?”, disse Boq, virando-se para Elphaba. “Quem é você?”
“Estou saindo”, ela disse. “Bons sonhos, para todos.”
“Não, não se vá”, disse Boq. “Eu acho que a conheço.”
“Você não me conhece”, disse Elphaba, pensativa, ao virar-se. “Como é que me conheceria?”
“Você é a Senhorita Elfinha, não é?”
“Senhorita Elfinha!”, exclamou Galinda alegremente. “Que delícia!”
“Como você sabe quem eu sou?”, disse Elphaba. “Mestre Boq da Terra de Munchkin? Eu não o conheço.”
“Eu e você brincávamos juntos quando você era pequena”, disse Boq. “Meu pai era o prefeito da aldeia onde você nasceu. Você nasceu em Margens Agitadas, em Pedras do Caminho, não foi? Você é filha do pastor unionista, esqueci o nome dele.”
“Frex”, disse Elphaba. Ela olhava de esguelha, com cautela.
“Frexpar o Santo!” disse Boq. “Está certo. Sabe que ainda falam dele, e de sua mãe, e da noite em que o Relógio do Dragão do Tempo veio a Margens Agitadas? Eu tinha dois ou três anos e me levaram para vê-lo, mas não me lembro direito. Mas, recordo que você era parceira de brincadeiras comigo quando eu ainda usava calças curtas. Você se lembra de Gawnette? Era a mulher que cuidava da gente. E Bfee? Ele é meu pai. Lembra de Margens Agitadas?”
“Tudo isso é cortina de fumaça e jogo de adivinhação”, disse Elphaba. “Como posso contradizer? Deixe-me dizer o que aconteceu em sua vida antes do que você pode lembrar. Você nasceu como rã.” (Isso era indelicado, porque Boq tinha de fato um aspecto meio anfíbio.) “Foi sacrificado ao Relógio do Dragão do Tempo e se transformou num rapaz. Mas, na sua noite de núpcias, quando a sua mulher abrir as pernas, você se transformará de novo num girino e...”
“Senhorita Elphaba!”, exclamou Galinda, arreganhando o leque para espantar o rubor de vergonha de seu rosto. “Que língua!”
“Oh, bem, eu não tenho infância”, disse Elphaba. “Então você pode dizer o que quiser. Eu cresci na Terra de Quadling com o povo do pântano. Eu me esborracho quando ando. Você não quer conversar comigo. Converse com a Senhorita Galinda, ele é melhor em matéria de salões do que eu. Tenho de sair agora.” Elphaba fez uma saudação de boa noite e os deixou, quase como se fugisse.
“Por que ela disse tudo aquilo?”, disse Boq, sem embaraço, apenas com espanto, na voz. “Claro que me lembro dela. Quantas pessoas verdes há neste mundo?”
“É bem possível”, considerou Galinda, “que ela não gostou de ser re-conhecida por causa da cor da pele. Eu não sei com certeza, mas talvez ela se melindre por isso.”
“Ela deve saber que isso é o que as pessoas lembrariam.”
“Bem, até onde sei, você acertou no que disse sobre ela”, Galinda continuou. “Disseram-me que o avô dela era o Eminente Thropp de Solos de Colwen em Pedras do Ninho.”
“É ela”, Boq disse. “Elfinha. Pensei que nunca mais a veria.”
“Não quer um pouco mais de chá? Chamo o garçom para você”, Galinda disse. “Vamos nos sentar aqui e você me contará sobre a Terra de Munchkin. Estou trêmula de curiosidade.” Ela se empoleirou na cadeira-de-cores-combinadas e fez a sua melhor pose. Boq se sentou, e balançou a cabeça, como se estivesse perplexo com a aparição de Elphaba.
Quando Galinda se recolheu naquela noite, Elphaba já estava na cama, com os cobertores enrolados na cabeça, e emitindo um ronco obviamente teatral. Galinda, contrariada, jogou-se na cama murmurando um “sua corcunda”, irritada por ser ela a rejeitada por uma garota verde.
Na semana seguinte muito foi dito sobre a noite dos Brandos. O Doutor Dillamond interrompeu sua palestra de biologia para instigar seus alunos a darem uma resposta. As garotas não entendiam o que poderia ser uma resposta biológica à poesia e fizeram silêncio às suas principais questões. Ele finalmente explodiu: “Ninguém aqui faz a associação entre a ex-pressão daqueles pensamentos e o que está acontecendo atualmente na Cidade Esmeralda?”.
A Senhorita Pfanee, que não acreditava estar pagando a taxa escolar para ser repreendida, retrucou. “Não temos a menor noção do que possa estar acontecendo na Cidade Esmeralda! Pare de fazer charadas com a gente; se tiver algo para dizer, diga. Não berre desse jeito.”
O Doutor Dillamond arregalava os olhos na direção das janelas e parecia estar tentando controlar o seu temperamento. Os estudantes estavam empolgados pelo pequeno drama. Então o Bode se virou e, numa voz mais suave do que aquela que eles esperavam, contou-lhes que o Mágico de Oz tinha decretado Interditos na Mobilidade dos Animais, efetivados havia vá-rias semanas. Isso significava não apenas que os Animais teriam restrições em seu acesso às comodidades de viagem, alojamentos e serviços públicos.
A Mobilidade a que o decreto se referia era também profissional. Qualquer Animal adulto estava proibido de trabalhar no setor público. Na verdade, eles estavam sendo expulsos de volta para as fazendas ou florestas se quisessem ter trabalho remunerado.
“O que vocês pensam que Madame Morrible estava dizendo quando concluiu aquele Brando com o epigrama Os Animais devem ser vistos e não ouvidos?”, perguntou o Bode concisamente.
“Bem, qualquer um ficaria furioso”, disse Galinda. “Quero dizer, qualquer Animal. Mas, não parece que seu emprego esteja ameaçado, está? Aí está você, nos ensinando.”
“E quanto a meus filhos? E quanto às minhas crianças?”
“Você tem filhos? Pensei que não fosse casado.”
O Bode fechou os seus olhos. “Não sou casado, Senhorita Galinda. Mas poderia ser. Ou posso. Ou talvez eu tenha sobrinhos e sobrinhas. Eles já foram realmente banidos do estudo em Shiz porque não podem segurar um lápis com que escrever um ensaio. Quantos Animais a senhorita já viu neste paraíso da educação?” Bem, isso era verdade, não havia nenhum.
“Bem, acho que é bem horrível”, disse Galinda. “Por que o Mágico de Oz faria uma coisa dessas?”
“Porque, realmente”, disse o Bode.
“Não, realmente, por quê? É uma pergunta de fato. Eu não sei.”
“Nem eu.” O Bode se virou para sua tribuna e empurrou alguns papéis para lá e para cá, e então foi visto agarrando um guardanapo de uma prateleira mais baixa, e assoando o nariz. “Minhas avós eram cabras de leite numa fazenda em Gillikin. Através de toda uma vida de sacrifícios e labutas pagaram um professor local para me educar e tomar ditado quando fui para meus exames. Seus esforços estão perto de desmoronar.”
“Mas você ainda pode ensinar!”, disse Pfanee petulantemente.
“Estou por um fio, minha querida”, disse o Bode, e dispensou a classe mais cedo. Galinda se pegou olhando de relance para Elphaba, que trazia um estranho olhar fixo. Enquanto Galinda saía da sala de aula, Elphaba foi lá para a frente, onde o Doutor Dillamond estava tremendo em espasmos incontroláveis, os chifres abaixados.
Alguns dias depois, Madame Morrible deu uma de suas ocasionais palestras de abertura sobre Hinos Antigos e Louvores Pagãos. Ela propunha questionários, e a assembléia inteira ficou espantada ao ver Elphaba sair de sua costumeira posição fetal no fundo da sala e dirigir a palavra à Diretora.
“Madame Morrible, dê licença”, disse Elphaba, “nós não tivemos a oportunidade de discutir os Brandos que a senhora recitou no salão na semana passada.”
“Discutir”, disse Madame Morrible com um generoso, embora aversivo, chacoalhar de suas mãos cheias de pulseiras.
“Bem, pareceu-me que o Doutor Dillamond achou que eles eram de gosto duvidoso, devido aos Interditos para a Mobilidade dos Animais.”
“Ai, o Doutor Dillamond”, disse a Madame Morrible, “é um doutor. Ele não é um poeta. Ele é um Bode também, e eu posso lhes perguntar, garotas, seja viram um Bode que fosse grande autor de sonetos e baladas? Ai, cara Senhorita Elphaba, o Doutor Dillamond não conhece a convenção poética da ironia. Você gostaria de definir ironia para a classe, por favor?”
“Eu não acho que possa, Madame.”
“Ironia, dizem alguns, é a arte de justapor partes incongruentes. Re-quer uma distância consciente. A ironia pressupõe distanciamento, de que, ai, no caso dos Direitos Animais, devemos perdoar o Doutor Dillamond por estar desprovido.”
“Então, aquela frase a que ele fez objeção ― Animais devem ser vistos e não ouvidos ― ela era irônica?”, continuou Elphaba, analisando seus papéis e sem olhar para Madame Morrible. Galinda e suas colegas de classe estavam interessadíssimas, pois estava claro que cada uma das mulheres nos extremos opostos da sala teria gostado de ver a outra sucumbir a um súbito ataque do baço.
“Pode-se considerar que era um modo irônico, é uma escolha”, disse Madame Morrible.
“Qual é a sua escolha?”, disse Elphaba.
“Que impertinente!”, disse Madame Morrible.
“Bem, mas eu não tenho a intenção de ser impertinente. Eu quero aprender. Se a senhora ― se qualquer um ― achou que aquela declaração era verdadeira, então não estava em contradição, com a chatice autoritária que a precedeu. Era apenas argumento e conclusão, e não consigo ver onde estava a ironia.”
“Você não vê muito, Senhorita Elphaba”, disse Madame Morrible. “Você deve aprender a pôr-se no lugar de alguém mais culto, e olhar por esse ângulo. Estar preso à ignorância, estar circunscrito aos muros de uma perspicácia limitada, bem, isso é muito triste em alguém tão jovem e tão brilhante.” Ela cuspiu a última palavra, e pareceu a Galinda, de certo modo, um comentário baixo sobre a cor da pele de Elphaba, que hoje estava de fato lustrosa devido ao esforço de falar em público.
“Mas eu tentava me pôr no lugar do Doutor Dillamond”, disse Elphaba, quase lamentando, mas não entregando os pontos.
“No caso da interpretação poética, eu arrisco sugerir, deve realmente ser verdade. Os animais não devem ser ouvidos”, replicou Madame Morrible.
“A senhora está querendo dizer isso ironicamente?”, disse Elphaba, mas a Diretora se sentou com suas mãos sobre o rosto, e não voltou a erguê-lo pelo resto da sessão.
4
Quando o segundo semestre começou, e Galinda estava ainda carregando o fardo de ter Elphaba como colega de quarto, ela fez um breve protesto a Madame Morrible. Mas a Diretora não permitia mudança, não permitia um novo arranjo. “Transtorno demais para as minhas outras garotas”, ela disse. “A menos que você queira se mudar para o Dormitório Rosa. Sua Ama Clutch parece, aos meus olhos observadores, estar se recuperando das seqüelas que você descreveu quando nos conhecemos. Talvez agora ela possa supervisionar quinze garotas?”
“Não, não”, disse Galinda rapidamente. “Há recaídas de tempos em tempos, mas eu não as menciono. Eu não gosto de ser importuna.”
“Quanta consideração”, disse Madame Morrible. “Seja abençoada, doçura. Agora, minha cara, pergunto se poderíamos tirar um momento, já que veio para uma conversa, para discutir seus projetos acadêmicos para o próximo outono? Como sabe, o segundo ano é quando as garotas escolhem suas especialidades. Você já pensou nisso?”
“Muito pouco”, disse Galinda. “Francamente, pensei que meus talentos emergiriam naturalmente e tornariam claro se eu deveria tentar ciência natural, ou as artes, ou a feitiçaria, ou talvez apenas história. Não acho que sou talhada para o trabalho ministerial.”
“Não fico surpresa que alguém como você fique em dúvida”, disse Madame Morrible, o que não foi muito estimulante para Galinda. “Mas, posso sugerir a feitiçaria? Você poderia ser muito boa nisso. Eu me orgulho de conhecer essa espécie de coisa.”
“Pensarei nisso”, disse Galinda, embora seu apetite inicial por feitiça-ria houvesse esmorecido assim que soubera que terrível labuta era aprender feitiços e, pior ainda, entendê-los.
“Caso você escolha feitiçaria, talvez seja possível ― só possível ― encontrar para você uma nova colega de quarto”, disse Madame Morrible, “dado que a Senhorita Elphaba já me disse que os interesses dela vão na direção das ciências naturais.”
“Oh, bem, então, vou refletir seriamente sobre isso”, disse Galinda. Ela lutava com indefiníveis conflitos dentro dela. Madame Morrible, com toda aquela fala de classe mais alta e fabuloso guarda-roupa, parecia um tanto ― oh ― perigosa. Como se seu largo sorriso público fosse composto por um relance implícito de facas e lanças, como se sua voz profunda mascarasse o ruído surdo de explosões distantes. Galinda sempre se sentia incapaz de ver o quadro completo. Era desconcertante, e no mínimo para seu crédito sentia dentro de si o rasgar de algum tecido valioso ― seria a integridade? ― quando se sentava na sala de visitas de Madame Morrible e tomava de seu perfeito chá.
“Pois a irmã, pelo que sei, virá para Shiz”, concluía Madame Morrible alguns minutos depois, como se não tivesse havido um intervalo de silêncio, e muitos biscoitos saborosos comidos, “porque nada posso fazer para impedir uma coisa dessas. E isso, pelo que entendo, será horrível. Você não gostará. A irmã, sendo como é, terá de passar sem dúvida muito tempo no quarto da Senhorita Elphaba, terá de ajudá-la.” Ela sorria palidamente. Uma lufada de aroma de pó-de-arroz saía do flanco de seu pescoço, quase como se Madame Morrible pudesse emitir um agradável odor pessoal quando lhe desse na telha.
“A irmã sendo como é.” Madame Morrible estalava a língua, desaprovadora, e sacudia sua cabeça para trás e para a frente enquanto levava Galinda para a porta. “Chato, realmente, mas suponho que devamos nos unir e enfrentar isso. Esta é a fraternidade feminina, não é?” A Diretora apertou seu xale e pôs a mão afetuosamente no ombro de Galinda. Ela tremeu, e teve certeza de que Madame o sentiu, mas a Diretora não deu um sinal que fosse. “Mas, então, esse meu uso de fraternidade ― como é irônico. Espirituoso demais. Depois de um longo tempo, com certeza, e quando se ganhou um conhecimento maior, não há nada que se diga ou faça que não seja irônico no fim.” Ela apertou a espádua de Galinda como se fosse um guidão de bicicleta, quase de uma maneira mais brutal do que era a apropriada para uma mulher. “Só podemos esperar ― ha, ha ― que a irmã use alguns véus! Mas ainda falta um ano. Enquanto não acontecer, teremos tempo. Pense na feitiçaria, tá? Pense mesmo. Agora, adeus, meu amor, e bons sonhos.”
Galinda voltou para seu dormitório lentamente, pensando em como seria a irmã de Elphaba para provocar esses comentários ferinos sobre véus. Ela queria perguntar à própria Elphaba. Mas não conseguia pensar em como fazê-lo. Não tinha coragem.
BOQ
1
“Venha para fora”, disseram os rapazes. “Venha.” Eles estavam encostados na entrada para o quarto de Boq, num bando caótico, iluminados pela lâmpada de óleo do estúdio mais adiante. “Estamos enjoados de livros. Venha conosco.”
“Não posso”, disse Boq. “Estou atrasado em teoria da irrigação.”
“Foda-se a teoria da irrigação quando os botecos estão abertos”, disse o empetecado janota gillikinês chamado Avaric. “Você não vai melhorar suas notas atrasado desse jeito, com os exames quase terminados e os examinadores já quase ‘dando o prego’.”
“Não são as notas”, disse Boq. “É que eu não entendo a teoria ainda.”
“Vamos indo pro boteco, vamos indo pro boteco”, cantaram alguns rapazes que pareciam ter tido um porre inicial. “Foda-se, Boq, a cerveja espera, e já está ficando quente!”
“Digam qual o boteco, então, talvez eu possa ir pra lá dentro de uma hora”, disse Boq, firmemente sentado em sua cadeira e não colocando seus pés no banquinho, pois sabia que isso poderia incitar seus colegas de classe a erguê-lo nos ombros e carregá-lo para fora com eles para uma noite de farra. Sua baixa estatura parecia inspirar esse tipo de molecagem. Os pés diretos no chão faziam-no parecer mais plantado, ele imaginava.
“O Javali e Erva-Doce”, disse Avaric. “Tem uma nova bruxa se apresentando lá. Disseram que ela é quente. Ela é uma bruxa de Kumbric.”
“Hah”, disse Boq, não convencido. “Bem, vão e peguem um bom lugar. Eu irei quando puder.”
Os rapazes caíram fora, sacudindo as portas de outros amigos, entortando os retratos de rapazes mais velhos agora transformados em augustos patronos. Avaric ficou na entrada e esperou mais um minuto. “Podíamos nos livrar de alguns grosseirões e selecionarmos uma turma para irmos ao Clube da Filosofia”, ele disse, sedutoramente. “Mais tarde, quero dizer. É fim de semana, afinal de contas.”
“Oh, Avaric, vá tomar uma ducha fria”, disse Boq. “Você admitiu que estava curioso. Você admitiu. Então, por que não um trato de fim de semestre?”
“Lamento ter dito que estava curioso. Tenho curiosidade quanto à morte, também, mas posso esperar para descobrir o que é, obrigado. Suma, Avaric. Melhor ir se juntar aos seus amigos. Curta as palhaçadas de Kumbric que, aliás, penso que são propaganda enganosa. Os talentos da Bruxa de Kumbric caíram de moda há centenas de anos. Se é que um dia existiram.”
Avaric virou para cima a segunda gola de sua jaqueta-túnica. A parte de dentro era uma faixa de veludo fino de um vermelho profundo. Contra o elegante pescoço barbeado, a faixa parecia uma fita singular a indicar privilégio. Boq descobriu-se, novamente, fazendo comparações mentais entre ele mesmo e o belo Avaric, e concluindo ― bem, concluindo que era inferior. “Ora, Avaric”, ele disse, tão impaciente consigo mesmo quanto estava com seu amigo.
“Algo aconteceu com você”, disse Avaric. “Não sou tão bobo assim. O que há de errado?”
“Não há nada errado”, disse Boq.
“Diga-me pra cuidar de minha própria vida, diga que eu vá me foder, me peça pra cair fora, vamos lá, diga, mas não me diga que não tem nada errado. Porque você não é um mentiroso lá muito bom, e eu não sou tão estúpido. Mesmo sendo um dissipado gillikinês da nobreza decadente.” Sua expressão era suave, e Boq, por um momento, se sentiu tentado a falar. Sua boca se abriu como se ele pensasse no que estava para dizer, mas, ao som dos sinos das Torres de Ozma, no repique das horas, a cabeça de Avaric se virou por um momento. No que lhe dizia respeito, Avaric não estava inteiramente ali. Boq fechou sua boca, pensou um pouco mais, e disse: “Se quiser, chame de indiferença munchkinesa. Não vou mentir, Avaric, você é bom amigo demais para que eu o faça. Mas não há nada a dizer agora. Agora, saia e vá se divertir. Mas, tenha cuidado.” Ele estava quase acrescentando uma palavra de advertência quanto ao Clube de Filosofia, mas controlou-se. Se Avaric ficasse aborrecido, então a preocupação maternal de Boq poderia provocar fogo contrário e estimular Avaric a ir.
Avaric deu uns passos adiante e beijou-o nas bochechas e na testa, um costume de classe alta nortista que deixava Boq profundamente incomodado. Então, com uma piscada e um gesto obsceno, ele desapareceu.
O quarto de Boq dava para uma aléia de pedras arredondadas, através da qual Avaric e seus camaradas desciam bagunçando e trançando. Boq ficou para trás, nas sombras, mas não precisava ter-se preocupado; seus amigos já não pensavam nele. Tinham chegado a um ponto satisfatório em seus exames e recebido uma folga por alguns dias. Depois dos exames, o campus ficaria vazio, exceto pelas presenças dos professores mais fanáticos e dos alunos mais pobres. Boq já tinha passado por isso. Ele preferia estudar, no entanto, a escovar velhos manuscritos com uma escova de pêlo de texugo de cinco fios, o que ele fora obrigado a fazer na biblioteca do Três Rainhas por todo o verão.
Ao lado da aléia se estendia o muro de pedras azuis de um estábulo privado, pertencente a alguma mansão que ficava a umas poucas ruas de uma praça elegante. Além do telhado do estábulo, viam-se os topos copados de umas poucas árvores frutíferas, na horta da cozinha de Crage Hall, e acima delas as janelas lancetadas dos dormitórios e salas de aula. Quando as jovens se esqueciam de fechar suas cortinas ― o que acontecia com freqüência de pasmar ― podiam ser vistas em vários estágios de nudez. Nunca nuas de corpo inteiro, claro; nesse caso ele teria evitado olhar, ou teria dito severamente a si mesmo que era essa a melhor atitude a tomar. Mas, ah, o róseo e o azulado de roupas de baixo e camisolas, os babados dos trajes básicos, o farfalho das anquinhas e o frufru dos bustos. Era uma educação em matéria de lingerie, se não fosse algo mais. Boq, que não tinha irmãs, simplesmente olhava.
O dormitório do Crage Hall era distante o suficiente para que ele não distinguisse nenhuma garota em particular. E Boq estava cheio de desejo de ver sua paixonite outra vez. Maldição! Dupla maldição! Ele não conseguia se concentrar. Ele seria dispensado se prejudicasse seus exames! Ele causaria desgosto a seu pai, o velho Bfee, e à aldeia, e às outras aldeias.
Inferno e mais inferno. A vida era dura e a cevada pouca. Boq se viu de repente pulando o banquinho, agarrando sua capa de estudante, arremetendo-se pelos corredores, e descendo em giros pela escada de espiral de pedras na torre do canto. Ele não podia esperar mais. Ele tinha de fazer alguma coisa, e uma idéia lhe ocorrera.
Ele cumprimentou o porteiro por dever, passou pelo portão e virou à esquerda, e caminhou apressadamente pela estrada, no lusco-fusco, evitando o melhor que podia as generosas pilhas de estrume de cavalo. Com seus colegas de classe longe dali, divertindo-se, ao menos ele não estaria fazendo-se se de bobo do ponto de vista deles. Não havia viva alma em Briscoe. Então, ele virou à esquerda, e de novo à esquerda, e dentro em pouco caminhava pela aléia ao longo do estábulo. Um paiol de ripas, a ponta saliente de uma persiana maior, o suporte de um guincho. Boq era pequeno, mas era ágil também, e com poucos arranhões em suas articulações, conseguira pular na calha de lata do estábulo, e ali esperneava como um caranguejo do lago sobre o íngreme telhado pontudo.
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