Era a primeira palavra que ela dizia, e foi recebida com silêncio. Mesmo a lua, um círculo luminoso por entre as árvores, pareceu se imobilizar.
“Horrores?”, Elphaba disse novamente, olhando ao redor. Embora sua boca estivesse carrancuda, seus olhos brilhavam; ela havia percebido seu próprio feito. Ela tinha quase dois anos de idade. Os grandes dentes pontiagudos em sua boca não podiam mais manter as palavras trancadas lá dentro. “Horrores”, ela experimentou num sussurro. “Horrores”.
“Venha com a Babá, querida. Venha sentar-se no meu colo e fique um pouco quietinha.”
Ela obedeceu, mas sentou-se mais para a frente, longe do peito acolchoado da Babá, permitindo a esta que enlaçasse sua cintura, mas sem nenhum outro contato. Ela olhava com atenção para Coração de Tartaruga e esperava.
E Coração de Tartaruga falou, numa voz estupefata: “Coração de Tartaruga está achando que a criança falar pela primeira vez”.
“Sim”, disse Frex, desprendendo um anel de fumaça, “e ela está perguntando sobre os tais horrores. Você se importaria de contar-nos?...”
“Coração de Tartaruga falar pouco. Coração de Tartaruga trabalhar no vidro e deixar as palavras para Santo Homem e sua Senhora e a Babá. E agora para a Menina.”
“Fale um pouco, seja como for. Já que você trouxe o assunto à tona.”
Melena tremeu; ela não fora buscar o xale. Não conseguia se mover. Estava pesada como uma pedra.
“Trabalhadores de Cidade Esmeralda e outros lugares, eles vir ao Estado de Quadling. Eles olhar e provar e tirar amostras do ar, da água, do solo. Eles planejar a estrada. Quadlings saber que isso é tempo perdido e esforço inútil. Eles não escutar as vozes dos quadlings.”
“Os quadlings não são engenheiros de estrada, suspeito”, disse Frex tranqüilamente.
“A região é delicada”, disse Coração de Tartaruga. “Em Ovvels as casas flutuar entre árvores. Plantas crescer em pequenas plataformas enganchadas em cordas. Meninos mergulhar na água rasa para colher pérolas. Muitas árvores, e não tem luz o bastante para colheitas e saúde. Poucas árvores e a água sobe e as raízes de plantas flutuando por cima não podem alcançar o solo. Estado de Quadling é região pobre, mas ser rico de beleza. Só sustentar vida por planejamento cuidadoso e cooperação.”
“Portanto, a resistência à Estrada dos Tijolos Amarelos...”
“É só uma parte da história. Quadlings não poder convencer engenheiros da estrada, que querer construir diques de lama e pedra e cortar o Estado de Quadling em pedaços. Quadlings discutir, e implorar, e provar, e não poder vencer com palavras.”
Frex segurava seu cachimbo com as duas mãos e observava Coração de Tartaruga falando. Frex estava cativado por ele; Frex ficava sempre cativado pela intensidade.
“Quadlings planejam lutar”, disse Coração de Tartaruga. “Porque eles achar que isso é apenas o começo. Quando os construtores testar solo e peneirar água, eles aprender o que os quadlings sabem faz tempo, mas ficar quietos.”
“Coisas que você sabe?”
“Coração de Tartaruga falar de rubis”, ele disse, com um grande suspiro. “Rubis debaixo da água. Vermelhos como o sangue do pombo. Engenheiros dizer: Corundum vermelho em grupos de calcário cristalino sob o pântano. Quadlings dizer: o sangue de Oz.”
“Como o vidro vermelho que você faz?”, disse Melena.
“Vidro cor de rubi surgir pela adição de cloreto de ouro”, disse Coração de Tartaruga. “Mas o Estado de Quadling situado bem no topo de depósitos de verdadeiros rubis. E a notícia por certo chegar à Cidade Esmeralda pela boca dos engenheiros. Depois será horror atrás de horror.”
“Como você sabe?” perguntou Melena vivamente.
“Ver no vidro”, disse Coração de Tartaruga, apontando para a rodela que fizera como brinquedo para Elphaba, “é ver no futuro, em sangue e rubis.”
“Não acredito em ver o futuro. Isso me cheira à fé no prazer”, disse Frex raivosamente. “O fatalismo do Dragão do Tempo. Pfahh. Não, o Deus Inominável traçou para nós uma história insondável, e a profecia é mera adivinhação e medo.”
“Medo e adivinhação é o bastante para fazer Coração de Tartaruga deixar o Estado de Quadling, então”, disse o soprador de vidro sem se desculpar. “Quadlings não chamar sua religião uma fé no prazer, mas eles escutar sinais e observar mensagens. Quando a água correr vermelha com rubis, vai correr com o sangue dos quadlings.”
“Besteira!” Frex reagiu, aborrecido, ficando também avermelhado. “Eles precisam de uma boa conversa.”
“Além disso, o tal Pastorius não é um simplório?”, disse Melena, que, separada dos dois, proclamava uma opinião que corria pela casa real. “O que ele fará até que Ozma alcance a idade certa para reinar além de chefiar caçadas, e comer delícias dos pasteleiros de Munchkin, e tentar transar com as empregadas domésticas que passarem por perto?”
“O perigo é um estrangeiro”, disse Coração de Tartaruga, “não uma rainha ou rei criados por aqui. As velhas mulheres, e os xamãs, e os moribundos: eles ver um estranho rei, cruel e poderoso.”
“O que está o Regente Ozma fazendo, planejando obras rodoviárias naquele lamaçal abandonado por Deus novamente?” Melena perguntou.
“Progresso”, disse Frex, “significa a Estrada dos Tijolos Amarelos cruzar a Terra de Munchkin. Progresso e controle. O movimento das tropas. A regularização das taxas. Proteção militar.”
“Proteção contra quem?”, disse Melena.
“Ahh”, disse Frex, “essa é a pergunta importante.”
“Ahh”, disse Coração de Tartaruga, quase num sussurro.
“Então, para onde você vai?”, disse Frex. “Não que você precise nos deixar, claro. Melena ama a sua presença. Nós todos a amamos.”
“Horrores”, disse Elphaba.
“Quietinha, agora”, disse a Babá.
“A Dama é bondosa e Homem Santo é bondoso para Coração de Tartaruga. Que nunca pretendeu ficar mais que um dia. Coração de Tartaruga estava a caminho da Cidade Esmeralda e se perder. Coração de Tartaruga esperar pedir audiência com Ozma...”
“Ozma Regente, agora”, interpôs Frex.
“... e implorar misericórdia para a Terra de Quadling. E avisar sobre o estrangeiro brutal...”
“Horrores”, disse Elphaba, batendo palmas com prazer.
“A criança lembrar Coração de Tartaruga de seus deveres”, ele disse. “Falar disso trazer obrigações de volta com a dor do passado. Coração de Tartaruga esquecer. Mas quando as palavras são faladas no ar, as ações dever segui-las.”
Melena olhou com ódio para a Babá, que tinha posto a menina no chão e começado a se ocupar com guardar a louça da ceia. Veja o que dá se intrometer e xeretar, Bá? Está vendo? Apenas a destruição de minha única felicidade nesta terra, só isso. Melena desviou seu rosto da criança horrível, que parecia estar sorrindo, ou aquilo era um estremecimento? Ela olhava para seu marido com desespero. Faça alguma coisa, Frex!
“Talvez seja essa a ambição mais elevada que procuramos”, ele estava murmurando. “Deveríamos ir para Quadling, Melena. Deveríamos deixar o luxo da Terra de Munchkin e testar-nos a nós mesmos na fogueira de uma situação de privação verdadeira.”
“O luxo da Terra de Munchkin?”, a voz de Melena era estridente.
“Quando o Deus Inominável fala através de um humilde vaso”, começou Frex, gesticulando para Coração de Tartaruga, que parecia desesperado novamente, “podemos escolher ouvir ou escolher ensurdecer nossos corações...”
“Bem, ouça isto, então”, disse Melena. “Estou grávida, Frex. Não posso viajar. Não posso me mexer. Estou com uma nova criança para cuidar, bem como já tenho Elphaba para criar, é demais você sugerir que a gente fique vagueando lá por aquela Terra de Lama.”
Depois que o silêncio que sobreveio perdeu um pouco de seu impacto, ela continuou. “Bem, não era a minha intenção revelar a coisa assim.”
“Parabéns”, disse Frex friamente.
“Horrores”, disse Elphaba à sua mãe. “Horrores, horrores, horrores.”
“Já basta de conversa fiada por esta noite", disse a Babá, tomando a frente. “Melena, você pegará um resfriado ficando aí. As noites de verão estão ficando mais frias de novo. Vamos para dentro e vamos deixar a coisa rolar.”
Mas Frex se levantou e foi beijar a sua esposa. Não estava claro para ninguém se ele suspeitava que Coração de Tartaruga fosse o pai, nem estava claro para Melena qual deles, seu marido ou seu amante, era o pai. Ela na verdade não se importava. Ela só não queria que Coração de Tartaruga partisse, e ela o odiou com fúria por ficar tão repentinamente dividido pelo sentimento moral por seu povo miserável.
Frex e Coração de Tartaruga conversaram em voz baixa que Melena não pôde captar. Sentaram-se junto ao fogo, cabisbaixos, e Frex pôs o braço sobre os ombros trêmulos de Coração de Tartaruga. A Babá preparou Elphaba para ir dormir, deixou-a lá fora com os homens, e veio depois sentar-se na cama de Melena com um copo de leite quente numa bandeja e uma pequena tigela de cápsulas medicinais.
“Bem, eu sabia que isso ia acontecer”, disse a Babá calmamente. “Beba o leite, querida, e pare de lamuriar. Está-se comportando como uma criança novamente. Há quanto tempo você sabe?”
“Oh, seis semanas”, disse Melena. “Não quero leite, Bá, quero vinho.”
“Você vai beber é leite mesmo. Nada de vinho até o bebê nascer. Você quer gerar outra catástrofe?”
“Tomar vinho não muda a cor de pele dos embriões”, disse Melena. “Eu posso ser uma bobalhona, mas isso de biologia eu sei.”
“É ruim para seu estado de espírito, nada mais nada menos. Beba o leite e engula uma destas cápsulas.”
“Para quê?”
“Eu fiz o que lhe disse que ainda ia fazer”, disse a Babá, numa voz conspiratória. “No último outono eu dei uma xeretada lá pelo Baixo Mundo de nossa capital pensando em te ajudar...”
Melena ficou subitamente alerta. “Bá, a senhora não devia! Que cabeça! Não ficou aterrorizada?”
“Claro que fiquei. Mas esta Babá ama você, não importa quão estúpida você seja. Eu achei uma loja marcada com as insígnias do negócio dos alquimistas.” Ela franziu seu nariz à lembrança do cheiro de gengibre apodrecido e urina de gato. “Eu me sentei com uma velha vendedora de Shiz de jeito atrevido, uma idosa chamada Yackle, e bebi o chá e virei a xícara para que ela pudesse ler as folhas. Yackle mal podia ver sua própria mão, quanto mais ler o futuro.”
“Uma verdadeira profissional”, Melena disse secamente.
“Seu marido não acredita em previsões, portanto, fale baixo. De qualquer modo, eu expliquei o verdor de seu primeiro filho e a dificuldade de saber por que exatamente isso aconteceu. Não queremos uma repetição, eu disse. Assim, Yackle catou algumas ervas e minerais, torrou-os com óleo de gomba, e fez algumas rezas pagas, e tudo que me lembro foi que cuspiu na coisa ― eu não fiquei olhando de muito perto. Mas eu paguei por um suprimento de nove meses, para começar assim que você tomasse ciência da gravidez. Estamos atrasadas em um mês, mas isso será melhor que nada. Eu tenho suprema confiança nessa mulher, Melena, e você deveria ter também.”
“Por quê?”, disse Melena, engolindo a primeira das nove cápsulas. Tinha um sabor de tutano cozido.
“Porque Yackle previu grandeza para os seus filhos”, disse a Babá. “Ela disse que Elphaba será mais do que você acredita, e o segundo seguirá o padrão. Ela disse para você não desistir da vida. Ela disse que a história ainda está para ser escrita, e que sua família tem uma parte nela.”
“O que ela diz sobre meu amante?”
“Você é uma peste”, disse a Babá. “Ela disse para você repousar e não se preocupar. Ela deu a sua bênção. Ela é uma piranha imunda, mas sabe do que está falando.” A Babá não mencionou que Yackle tinha certeza de que o próximo filho seria uma menina também. Havia chance demais de que Melena tentasse abortar, e Yackle parecia completamente segura de que a história pertencia a duas irmãs, não a uma menina apenas.
“E você chegou em casa com segurança? Ninguém suspeitou?”
“Quem suspeitaria que a velha avozinha inocente estaria comprando substâncias ilegais no Baixo Mundo?”, riu a Babá. “Eu faço meu tricô e cuido de minha vida. Agora, vá dormir, meu amor. Nada de vinho pelos próximos meses. Tome esse remédio direitinho e teremos para você e Frex uma criança decente, sadia, que vai garantir uma recuperação sem-fim para o seu casamento.”
“Meu casamento está perfeitamente bem”, disse Melena, aconchegando-se sob as cobertas ― a cápsula teve um efeito vigoroso, mas ela não queria que a Babá soubesse ―, “desde que não nos ponhamos a chapinhar na lama ao pôr-do-sol.”
“O sol se põe no oeste, não no sul”, disse a Babá brandamente. “Foi golpe de mestre falar da gravidez esta noite, minha cara. Eu não viria visitar-lhes se vocês estivessem remando para o Estado de Quadling, aliás, faço cinqüenta anos neste ano, como sabe. Há algumas coisas em que a Bá é realmente velha demais para fazer.”
“O bom é que ninguém vá a lugar nenhum”, disse Melena, e começou a pegar no sono.
A Babá, satisfeita consigo mesma, lançou um olhar pela janela nova-mente enquanto se preparava para repousar. Frex e Coração de Tartaruga travavam ainda uma profunda conversa. A Babá era mais perspicaz do que deixava transparecer; ela vira o rosto de Coração de Tartaruga quando ele estava lembrando a ameaça feita a seu povo. Ele se abrira como um ovo de galinha e a verdade saltou para fora, palpitando com a mesma inocência de um pintinho amarelo. E com a mesma fragilidade. Não admira que Frex se sentasse ao lado do assediado quadling muito mais perto do que ela considerava totalmente digno. Mas parecia não haver fim para a bizarrice nessa família.
“Mande a menina para cá para eu levá-la pra dormir”, ela falou da janela, em parte para interromper a intimidade dos dois.
Frex olhou ao redor. “Ela está aí, não está?”
A Babá deu uma olhadela. A criança não era dada a brincadeiras de esconde-esconde, nem ali nem com os pirralhos da aldeia. “Não, ela não está com vocês?”
Os homens se viraram e olharam. A Babá pensou ter visto um borrão de movimento nas sombras azuis do teixo selvagem. Ela se ergueu um pouco mais e se apoiou no parapeito. “Bem, saiam à procura dela. É hora de bicho sair para caçar.”
“Não tem nada aqui, Bá, é a sua imaginação exagerada”, Frex falou arrastadamente, mas os homens ficaram rapidamente alertas e olharam ao redor.
“Melena, querida, não durma ainda; você sabe onde Elphaba está? Você a viu sair por aí?”, disse a Babá.
Melena lutou para conseguir se apoiar num cotovelo. Lançou um olhar por entre os cabelos caídos e o ar embriagado. “O que vocês estão dizendo?”, perguntou numa linguagem indecifrável, “quem está andando por aí?”
“Elphaba”, a Babá disse. “Venha, melhor você se levantar. Onde ela pode estar? Onde ela pode estar?” Ela se pôs a ajudar Melena a ficar em pé, mas isso ia muito devagar, e o coração da Babá começara a bater apressado. Ela puxou as mãos de Melena para os pés da cama, dizendo: “Vamos, Me-lena, isso não é nada bom”, e pegou o seu cajado de abrunheiro.
“Quem?”, disse Melena. “Quem se perdeu?”
Os homens estavam chamando no lusco-fusco purpúreo pelo qual vagavam. “Fabala! Elphaba! Elfinha! Rãzinha!” Eles circulavam longe do quintal, longe das brasas mortiças da fogueira feita para a ceia, perscrutando e batendo nos galhos mais baixos dos arbustos. “Cobrinha! Menina-lagarto! Onde está você?”
“É a coisa, a coisa desceu lá das colinas, seja lá o que for!”, gritou a Babá.
“Não há coisa nenhuma, sua velha tola”, disse Frex, mas ele pulava cada vez com mais força de pedra em pedra por trás da casinha, quebrando os galhos ao lado com estalos. Coração de Tartaruga estava imóvel, suas mãos erguidas para o céu, como se estivesse tentando receber a luz desmaiada das primeiras estrelas dentro de suas palmas.
“É Elphaba?”, perguntou Melena da porta, finalmente conseguindo fixar os olhos e dando passos à frente com sua camisola de dormir. “A criança se foi?”
“Ela sumiu, ela foi levada”, disse a Babá furiosamente, “esses dois idiotas estavam flertando como duas colegiais e o animal das colinas vai chegar!”
Melena chamou, suas palavras crescendo em intensidade e terror: “Elphaba! Elphaba, me escute! Vem pra cá neste instante! Elphaba!”
Só o vento respondia.
“Ela não está longe”, disse Coração de Tartaruga depois de um momento. Na escuridão profunda ele estava quase invisível, enquanto Melena, em sua camisola branca de algodão cru, brilhava como um anjo, como que iluminada por dentro. “Ela não está longe, apenas não está aqui.”
“Que diabo você quer dizer”, a Babá disse, chorando, “com seus enigmas e charadas?”
Coração de Tartaruga tombou. Frex havia retornado a ele para lançar um braço em torno dele e erguê-lo, e Melena veio pelo outro lado. Ele se inclinou um pouco, como se estivesse desmaiando; Melena gritou de medo. Mas Coração de Tartaruga conseguiu se aprumar e erguer, e começou a andar, e eles se dirigiram para o lago.
“O lago não, a menina não iria, ela não suporta água, vocês sabem”, lembrou a Babá, mas ela já se apressava em segui-los, usando seu cajado para sentir o chão à sua frente e não tropeçar.
Isto é o fim, pensou Melena. Seu cérebro estava enevoado demais para que pensasse outra coisa, e ela o repetiu seguidamente, como se para impedir que a coisa se concretizasse.
Isto é o começo, pensou Frex, mas de quê?
“Ela não está longe, ela não está aqui”, disse Coração de Tartaruga novamente.
“Castigo para seus pecados, seus hedonistas de duas caras”, a Babá disse.
O chão fazia um declive em direção à margem plácida, recuada, do lago. Primeiro à altura de seus pés, depois de suas cinturas, e mais além, a doca em forma de praia se erguia como uma ponte para lugar nenhum, terminando no ar.
Debaixo da doca, nas sombras, havia uns olhos.
“Oh, doce Lurline”, murmurou a Babá.
Elphaba estava sentada debaixo da doca com o espelho que Coração de Tartaruga fizera. Ela o segurava nas duas mãos, e o fitava com um olho fechado. Ela o perscrutava, envesgava; seu olho aberto estava distante e vazio.
Reflexo da luz nas estrelas que vinha das águas, pensou Frex, ansiou Frex, mas ele sabia que o vazio olho reluzente não era iluminado pelas estrelas.
“Horrores”, murmurava Elphaba.
Coração de Tartaruga caiu de joelhos. “Ela vê o homem chegando”, disse roucamente, “ela vê o homem chegar; ele vir do ar; está por perto. Um balão do céu, da cor de uma bolha de sangue, um enorme globo carmim, um globo de rubi: ele cai do céu. O Regente está caído. A Casa de Ozma caída. O Relógio estava certo. Um minuto para o Juízo.”
Ele tombou, quase no pequeno colo de Elphaba. Ela não pareceu notá-lo. Atrás dela ouvia-se um rosnado surdo. Havia ali um animal, um tigre do topo das colinas, ou algum estranho híbrido de tigre e dragão, com brilhantes olhos alaranjados. Elphaba estava sentada nas suas patas dianteiras como se estivesse acomodada num trono.
“Horrores”, ela disse novamente, olhando sem visão binocular, fixando os olhos no espelho onde seus pais e a Babá não podiam ver nada além de escuridão. “Horrores.”
GALINDA
1
“Wittica, Settica, Curva de Wiccasand, Areia Vermelha, Casa de Dixxi, muda em Casa de Dixxi para Shiz; siga a bordo deste vagão por todos os pontos do Leste; Tenniken, Brox Hall, e todos os caminhos para Traum” ― o condutor parava para tomar fôlego e voltava a falar ― “próxima parada Wittica, Wittica chegando!”
Galinda apertou seu pacote de roupas junto ao peito. O velho bode que se estatelava no assento diante do dela estava perdendo a parada em Wittica. Ela estava satisfeita com o fato de os trens deixarem os passageiros sonolentos. Não queria continuar evitando o seu olhar. No último momento antes que ela entrasse no trem, sua conselheira, Ama Clutch, pisara num prego enferrujado e, aterrorizada com a síndrome da cara-paralisada, pedira permissão para ir à sala de cirurgia mais próxima para tomar remédios e ouvir palavras tranqüilizadoras. “É claro que eu posso ir para Shiz sozinha”, Galinda dissera friamente, “não se preocupe comigo, Ama Clutch”. E Ama Clutch não se preocupara. Galinda esperava que Ama Clutch sofresse uma pequena paralisia no queixo antes que ficasse bem o bastante para aparecer em Shiz e fazer o papel de companheira de Galinda perante qualquer acontecimento que estivesse por vir.
Seu próprio queixo estava duro, ela acreditava, revelando um aborrecimento enorme com a viagem de trem. Na verdade, ela nunca estivera mais que um dia de viagem de carruagem longe da casa de sua família na pequena cidade comercial de Frottica. A linha ferroviária, construída havia uma década, fizera com que as fazendas de laticínios fossem retalhadas em propriedades estatais para os comerciantes e fabricantes de Shiz. Mas a família de Galinda continuara a preferir a Gillikin rural, com seus covis de raposas, seus vales encharcados, seus isolados templos pagãos em honra a Lurline. Para eles, Shiz era uma ameaça urbana distante, e mesmo a comodidade do transporte ferroviário não os seduzia a assumir os riscos das complicações, curiosidades e costumes malignos da cidade.
Galinda não via o mundo verdejante que se descortinava pelo vidro do vagão; em vez dele, via seu próprio reflexo. Ela tinha a miopia da juventude. Raciocinava que, por ser bonita, era importante, embora o que ela importasse, e para quem, não fosse claro ainda. O vaivém de sua cabeça fazia os longos anéis cremosos de seus cabelos balançar, captando a luz, como uma pilha de moedas que se entrechocassem. Seus lábios eram perfeitos, tão bicudinhos como uma dedaleira a desabrochar, e coloridos de um rubro cintilante. Seu roupão de viagem verde almofadado em musselina ocre sugeria riqueza, enquanto o xale negro caindo tão bem em seus ombros era um sinal de suas inclinações acadêmicas. Afinal, ela estava a caminho de Shiz porque era inteligente.
Mas havia mais que uma maneira de ser inteligente. Ela tinha dezessete anos. A cidade inteira de Frottica a vira partir. A primeira garota de Pertha Hills a ser aceita em Shiz! Ela se saíra bem nos exames iniciais, escrevendo uma meditação em Aprendendo a Ética do Mundo Natural (“As Flores Ficam Sentidas ao Ser Colhidas para Formar um Buquê? As Chuvas Praticam Abstinência? Os Animais Podem Escolher Ser Bons? Ou: Uma Filosofia Moral para a Primavera.”) Ela extraíra citações da Ozíada em ex-cesso, e sua prosa arrebatada cativara a mesa de examinadores. Uma bolsa de estudos de três anos em Crage Hall. Não era um dos melhores colégios ― esses eram ainda fechados para mulheres. Mas era a Universidade de Shiz.
Seu companheiro no compartimento, despertando quando o condutor retornou, esticou os calcanhares para bocejar. “Você faria o favor de pegar a minha passagem, está na parte de cima”, ele disse. Galinda se ergueu e encontrou a passagem, consciente de que a velha coisa barbuda estava examinando sua atraente figura. “Aqui está”, ela disse, e ele respondeu, “Não para mim, queridinha, para o condutor. Sem polegares opostos, não tenho esperança de pegar um pedacinho de cartolina.”
O condutor perfurou a passagem e disse: “Você é o único animal que está autorizado a viajar de primeira classe”.
“Oh”, disse o bode. “Faço objeção ao termo animal. Mas as leis ainda permitem que eu viaje de primeira classe, presumo?”
“Dinheiro é dinheiro”, disse o condutor, sem má vontade, perfurando a passagem de Galinda e devolvendo-a a ela.
“Não, dinheiro não é dinheiro”, disse o bode, “não se levarmos em conta que minha passagem custou o dobro da dessa jovem senhora. Nesse caso, dinheiro é um visto. Acontece que eu tenho um aqui.”
“Indo para Shiz, não é?”, disse o condutor para Galinda, ignorando a observação do bode. “Eu posso notar pelo xale acadêmico.”
“Oh, bem, é algo a fazer”, disse Galinda. Ela não se importava de conversar com condutores. Mas quando ele se afastou, seguindo para o fundo do vagão, Galinda descobriu que gostava menos ainda do maligno olhar que o bode lançava sobre ela.
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