Esses estranhos Homens deveriam ficar muito satisfeitos por serem julgados mais maldosos dó que realmente são



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“Nós temos nossos empregos”, disse Tibbett, tentando salvar a situação. “A biblioteca do Três Rainhas. Estamos fazendo a guarda doméstica da literatura. Somos as faxineiras da cultura. Está trabalhando, Senhorita Galinda?”

“Eu acho que devo dizer não”, disse Galinda. “Preciso de um descanso dos meus estudos. Foi um ano angustiante, angustiante. Meus olhos estão ainda cansados de tanta leitura.”

“E quanto a vocês, garotas?”, disse Crope, com uma displicência ultrajante. Mas, elas soltaram apenas risinhos afetados e se recusaram a falar e foram se afastando aos poucos. Era o encontro de sua amiga, não delas. Boq, recuperando a compostura, sentiu o grupo se deslocando em fuga outra vez. “E a Senhorita Elfinha?”, ele inquiriu, para tentar detê-las. “Como anda sua colega de quarto?”

“Voluntariosa e difícil”, disse Galinda severamente, pela primeira vez falando numa voz normal, não num tênue sussurro social. “Mas, graças a Lurline, ela tem um emprego, então, me dá um pouco de alívio. Está trabalhando no laboratório e na biblioteca sob as ordens do Doutor Dillamond. Você o conhece?”

“Doutor Dillamond? Se o conheço?”, disse Boq. “Ele é o mais notável professor de biologia de Shiz.”

“Por falar nisso”, disse Galinda, “ele é um bode.”

“Sim, sim. Eu gostaria que ele fosse nosso professor. Mesmo nossos mestres reconhecem a sua importância. Pelo jeito, há muito tempo, quando houve o reino do Regente, e mesmo antes, ele era convidado anualmente para dar palestras em Briscoe Hall. Mas as restrições mudaram até isso, portanto, nunca cheguei a conhecê-lo. Só tê-lo visto naquela noite poética, no ano passado, de passagem, foi uma coisa e tanto...”

“Bem, o fato é que ele continua por aí”, disse Galinda. “Brilhante ele pode ser, mas não percebe quando fica chato. De qualquer modo, a Senhorita Elfinha trabalha duro, fazendo uma coisa ou outra. Ela vai continuar com isso, também. Eu acho que é contagioso!”

“Bem, um laboratório, ele cria coisas”, disse Crope.

“Sim”, disse Tibbett, “e incidentalmente acrescento que você é adorável tal e qual a perda de fôlego por emoção de Boq. A causa disso deve ser uma imaginação hiperativa nascida de uma frustração afetiva e fisiológica...”

“Você sabe”, disse Boq, “entre a sua Senhorita Elfinha e meus ex-amigos aqui, não temos nenhuma esperança de amizade. Vamos organizar um duelo e matar-nos um ao outro, em vez disso? Contar dez passos, virar e atirar? Isso pouparia muito aborrecimento.”

Mas Galinda não aprovava esse tipo de gozação. Ela balançou a cabeça como que desfazendo a reunião, e o grupo de mulheres se afastou pela trilha de cascalhos, seguindo a curva do canal. Ouviu-se a Senhorita Shenshen dizer numa profunda, alentada voz: “Oh, minha querida, ele é doce, de um modo brincalhão”.

A voz desapareceu, Boq voltou a se apoiar em Crope e Tibbett, mas eles deram para lhe fazer cócegas e todos caíram numa pilha de sobras do almoço. E desde que não havia jeito de mudar aqueles dois, Boq abandonou o impulso de corrigi-los. Realmente, que diferença faziam suas caçoadas joviais se a Senhorita Galinda o achava tão impossível?

Uma ou duas semanas depois, numa tarde de folga, Boq foi à Praça da Ferrovia. Ele lá ficou num quiosque, observando. Cigarros, imitações de talismãs de amor, desenhos sem valor de mulheres se despindo, e pergaminhos pintados com bombásticos crepúsculos, encimados por slogans inspiradores. “Lurline Vive Dentro de Cada Coração.” “Seja fiel às Leis do Mágico, e as Leis do Mágico o Protegerão.” “Peço ao Deus Inominável que a Justiça Chegue a Oz.” Boq observou a variedade: os incitamentos eram pagãos, autoritários e unionistas.

Mas nada era diretamente simpático aos monarquistas, que haviam caído em ostracismo nos dezesseis ásperos anos depois que o Mágico arrebatara o poder das mãos do Regente Ozma. A frase de Ozma era de origem gillikinesa, e certamente devia haver ativos bolsões de resistência ao Mágico. Mas Gillikin tinha, na verdade, prosperado sob o poder do Mágico, de modo que os monarquistas permaneciam de bico calado. Além disso, todos tinham ouvido boatos sobre severas ações legais movidas contra os vira-casacas e revolucionários.

Boq comprou uma folha liberal publicada fora da Cidade Esmeralda ― velha de várias semanas, mas era a primeira que via ultimamente ― e se acomodou num café. Leu que a Milícia da Cidade Esmeralda havia suprimido alguns dissidentes Animais, que estavam promovendo um motim nos jardins do palácio. Ele procurou notícias das províncias, e encontrou um “tapa-buraco” sobre a Terra de Munchkin, que continuava a sofrer penúrias de pré-seca; trovoadas ocasionais molhavam os solos, mas a água era insuficiente ou afundava inutilmente no barro. Dizia-se que lagos subterrâneos ocultos subjaziam na região de Vinkus, que as reservas aquáticas de lá poderiam abastecer toda Oz. Mas a idéia de um sistema de canais que cruzasse o país inteiro fazia todos rirem. A despesa em que isso implicaria! Havia grande desacordo entre as Eminências e a Cidade Esmeralda sobre o que devia ser feito.

Secessão, pensou Boq, belicosamente, e, ao levantar os olhos, tinha diante de si Elphaba que, sozinha, sem uma Babá ou uma Ama, olhava para ele. “Que expressão deliciosa você traz no rosto, Boq”, disse ela. “É mais interessante que o amor.”

“É amor, de certo modo”, disse Boq, então caiu em si, e ergueu-se prontamente. “Quer ser minha convidada? Por favor, sente-se. A menos que você se preocupe por não estar trazendo acompanhante.”

Ela se sentou, parecendo um pouco adoentada, deixando que ele pedisse uma xícara de chá mineral. Ela trazia um pacote em papel pardo amarrado com barbante sob o braço. “Uns presentinhos para a minha irmã”, ela explicou. “Ela é como a Senhorita Galinda, gosta do encanto externo das coisas. Encontrei um xale de Vinkus num bazar, rosas vermelhas contra um fundo preto, com franjas pretas e verdes. Estou mandando para ela, junto com um par de meias listradas que Ama Clutch tricotou para mim.”

“Não sabia que você tinha uma irmã”, ele disse. “Ela estava na turma com que a gente brincava quando criança?”

“Ela é três anos mais nova”, Elphaba disse. “Ela virá para Crage Hall dentro em breve.”

“Ela é tão difícil como você?”

“Ela é difícil de um modo diferente. Ela é aleijada, gravemente, é minha Nessarose, e vai dar trabalho. Nem Madame Morrible conhece a completa extensão do problema. Mas, quando ela vier, serei uma jovem terceiranista e terei coragem de encarar a Diretora, imagino. Se algo me deixa fula da vida, é ver as pessoas tornando a vida difícil para Nessarose. A vida já é bastante difícil para ela.”

“Sua mãe está cuidando dela?”

“Minha mãe morreu. Meu pai cuida dela, nominalmente.”

“Nominalmente?”

“Ele é um religioso”, disse Elphaba, e fez o gesto de girar as palmas que significava que você pode pôr para funcionar os moinhos e moinhos que quiser, mas não haverá pedra de mó que possa produzir farinha se não houver grão algum para moer.

“Parece muito difícil para todos. Como sua mãe morreu?”

“Ela morreu quando a criança nasceu, e este é o fim do interrogatório.”

“Fale-me do Doutor Dillamond. Soube que você trabalha para ele.”

“Fale-me você de sua divertida campanha para conquistar o coração de Galinda, a Rainha do Gelo.”

Boq queria realmente saber alguma coisa sobre o Doutor Dillamond, mas foi desarmado pela observação de Elphaba. “Eu vou continuar, Elfinha, eu vou! Quando eu a vejo, fico tão tomado pelos desejos, é como fogo em minhas veias. Não posso falar, e as coisas em que penso são como visões. É como sonhar. É como flutuar em sonhos.”

“Eu não sonho.”

“Diga-me, será que há alguma esperança? O que ela diz? Será que ela chega a imaginar que seus sentimentos por mim podem mudar?”

Elphaba estava com os dois cotovelos apoiados na mesa, as mãos apertadas contra o rosto, os indicadores postos um contra o outro sobre seus finos lábios acinzentados. “Você sabe, Boq”, ela disse, “o problema é que eu aprendi a admirar Galinda. Debaixo de seu amor deslumbrado por si mesma, existe uma mente que se esforça por funcionar. Ela de fato reflete sobre as coisas. Quando sua mente realmente está trabalhando, ela pode, se induzida, pensar em você — até, desconfio, com algum afeto. Eu disse que desconfio. Eu não sei. Mas, quando ela retorna a si mesma, quero dizer, quando retorna à garota que passa duas horas enrolando os cachos daquele belo cabelo, é como se a Galinda inteligente se enfiasse em algum armário interno e fechasse a porta. Ou como se ela batesse em histérica retirada de coisas que são grandes demais para ela. Gosto dela das duas maneiras, mas acho isso bem esquisito. Eu não me importaria de deixar isso pra lá, mas eu não sei que atitude tomar.”

“Eu acho que você está sendo dura com ela, e você é seguramente ferina demais”, disse Boq, seriamente. “Se ela estivesse aqui conosco, acho que ficaria estarrecida vendo-a falar tão livremente.”

“Tento apenas me comportar como uma amiga deve se comportar. Certo, eu não tenho muita prática.”

“Bem, ponho em dúvida sua amizade comigo, se você considera Galinda sua amiga, e se é desse jeito que você retalha um amigo em sua ausência.”

Embora Boq estivesse irritado, achava que essa era uma discussão mais animada que a conversinha fiada convencional que ele e Galinda tinham mantido até ali. Ele não queria espantar Elphaba com críticas. “Estou pedindo outro chá mineral para você”, ele disse, numa voz de mando, na verdade tal e qual a voz de seu pai, “e aí você me falará um pouco do Doutor Dillamond.”

“Deixa pra lá esse chá, eu ainda estou cuidando deste aqui, e aposto que você não tem mais dinheiro que eu”, disse Elphaba, “mas eu lhe falarei do Doutor Dillamond. A menos que você esteja ofendido demais com o gume e o enfoque das minhas opiniões.”

“Por favor, talvez eu esteja errado”, disse Boq. “Olhe, é um belo dia, nós dois estamos fora do campus. Como é que você conseguiu sair sozinha, por falar nisso? Sua saída foi autorizada por Madame Morrible?”

“Tente adivinhar”, ela disse, rindo. “Desde que ficou claro que você poderia ir e vir de Crage Hall pegando o caminho da horta e do telhado do estábulo vizinho, concluí que eu podia também. Ninguém vai dar por minha falta.”

“É difícil para mim acreditar”, ele disse, ousadamente, “porque você não é do tipo que combina com pular árvores. Mas, agora, me fale do Doutor Dillamond. Ele é meu ídolo.”

Ela suspirou, e finalmente pôs o pacote sobre a mesa, e se preparou para uma longa conversa, Ela lhe contou do trabalho do Doutor Dillamond com essências naturais, tentando determinar por metodologia científica qual era a verdadeira diferença entre os tecidos dos animais e dos Animais, e entre os tecidos dos Animais e dos humanos. A literatura sobre o assunto, tal como aprendera fazendo ela mesma o percurso, estava toda expressa em termos unionistas, e em termos pagãos anteriores a estes, que não resistiam a exame científico. “Não esqueça que Shiz no princípio foi um monastério unionista”, disse Elphaba, “assim, apesar da atitude de vale-tudo entre a elite educacional, ainda prevalecem camadas de preconceito unionista.”

“Mas eu sou um unionista”, disse Boq, “e eu não vejo o conflito. O Deus Inominável se acomoda a muitas maneiras de ser, não apenas a humana. Você está falando de um sutil preconceito contra Animais, entrelaçado a alguns primitivos conceitos unionistas, e ainda em funcionamento hoje em dia?”

“Com certeza é isso o que o Doutor Dillamond acha. E ele próprio é um unionista. Explique esse paradoxo e eu ficarei satisfeita em me converter. Admiro o Bode intensamente. Mas o interesse real dessa coisa para mim é o viés político. Se ele puder isolar algum pedacinho da arquitetura biológica para provar que não há diferença nenhuma lá no fundo dos invisíveis bolsões da carne humana e da Animal ― que não há diferença entre nós ― ou mesmo entre nós todos, se você levar em conta a carne dos animais comuns também ― bem, você pode deduzir as implicações.”

“Não”, disse Boq. “Eu acho que não consigo.”

“Como podem os Interditos da Mobilidade Animal serem sustentados se o Doutor Dillamond puder provar, cientificamente, que não há nenhuma diferença intrínseca entre humanos e Animais?”

“Oh, esse é um projeto para algum impossível futuro utópico”, disse Boq.

“Pense nisso”, disse Elphaba. “Pense, Boq. Com quais argumentos o Mágico poderia continuar a decretar esses Interditos?”

“Como ele poderia ser convencido a não fazê-lo? O Mágico dissolveu a Sala de Aprovação indefinidamente. Eu não acho, Elfinha, que o Mágico esteja aberto a argumentos diversificados, nem mesmo quando oferecidos por um Animal augusto como o Doutor Dillamond.”

“Mas é claro que ele deve estar. Ele é um homem no poder, sua função é levar em conta as oportunidades de conhecimento. Quando o Doutor Dillamond obtiver a prova, ele escreverá ao Mágico e começará a fazer lobbies pela mudança. Não há dúvida que ele fará o que puder para que os Animais do país saibam o que ele está pretendendo, também. Ele não é bobo.”

“Bem, eu não disse que ele é um bobo”, disse Boq. “Mas, em quanto você acha que ele pode estar se aproximando da evidência concreta?”

“Eu sou uma estudante auxiliar”, disse Elphaba. “Eu nem entendo o que ele quer dizer. Sou apenas uma secretária, uma amanuense ― você sabe que ele não consegue escrever, não pode manejar uma caneta com seus cascos. Eu faço anotações e arquivo e corro para a biblioteca de Crage Hall para fazer pesquisas.”

“A biblioteca de Briscoe Hall seria um lugar melhor para caçar esse tipo de material”, disse Boq. “Mesmo a de Três Rainhas, onde trabalho neste verão, tem pilhas de documentos das observações dos monges sobre vida animal e vegetal.”

“Sei que eu não tenho uma aparência tradicional”, disse Elphaba, “mas creio que devido ao fato de ser uma garota eu esteja excluída da biblioteca de Briscoe Hall. E que devido ao fato de ser um Animal, o Doutor Dillamond também o esteja. Portanto, essas fontes valiosas estão fora do nosso alcance.”

“Bem”, disse Boq, displicentemente, “se vocês souberem exatamente o que querem... eu tenho acesso às pilhas das duas bibliotecas.”

“E quando o bom Doutor concluir sua investigação da diferença entre Animais e gente, eu vou propor a ele que aplique os mesmos argumentos no campo das diferenças entre os sexos”, disse Elphaba. Então ela se deu conta do que Boq dissera, e estendeu-lhe a mão, quase o tocando. “Oh, Boq. Boq. Em nome do Doutor Dillamond, aceito sua generosa oferta de ajuda. Vou conseguir a primeira lista de fontes a pesquisar ainda nesta semana. Apenas deixe meu nome de fora disso. Eu não me importo muito em atrair a ira da Horrível Madame Morrible sobre mim, mas eu não quero que ela desforre sua irritação sobre minha irmã, Nessarose.”

Ela engoliu o resto de seu chá, apanhou seu pacote, e se retirou quase antes que Boq pudesse se levantar. Vários fregueses, que prolongavam suas pequenas refeições lendo seus próprios jornais ou romances, pararam para olhar a jovem deselegante que empurrava as portas. Quando Boq voltou a sentar-se, ainda mal se dando conta da coisa em que acabara de entrar, percebeu, lenta e detalhadamente, que nessa manhã não havia Animais tomando seu chá da manhã ali. Não havia Animal de espécie alguma.

4
Nos anos vindouros ― e Boq viveria uma vida longa ― ele se lembraria do resto do verão como algo marcado pelo cheiro do mofo de velhos livros, um tempo em que antigos manuscritos nadavam diante de seus olhos. Ele investigou sozinho as pilhas emboloradas, ele flutuou sobre as gavetas de mogno cheias de pergaminhos. Ao longo de toda a estação, as janelas em forma de losango entre fasquias e cruzetas de pedras azuis foram diluídas cada vez mais pelas manchas de chuva leve, mas contínua, quase tão quebradiça e irritante como areia. Aparentemente, a chuva não chegava lá na Terra de Munchkin ― mas Boq tentava não pensar nisso.

Crope e Tibbett foram coagidos a pesquisar para o Doutor Dillamond, também. A princípio tiveram de ser dissuadidos de insistir na pilhagem de apetrechos de disfarce ― falsos pincenês, perucas empoadas, mantos de golas altas, todos fáceis de encontrar no bem abastecido cofre da Sociedade Terpsicoreana e Teatral dos Estudantes do Três Rainhas. Mas, quando foram convencidos da seriedade da missão, engajaram-se nela com gosto. Uma vez por semana se encontravam com Boq e Elphaba no café da Praça da Ferrovia. Elphaba aparecia, durante essas semanas nevoentas, completamente enrolada num manto marrom com um capuz e um véu que escondiam tudo, exceto seus olhos. Ela usava luvas cinzentas longas e puídas que se gabava de ter comprado de segunda mão de uma funerária, baratas por terem sido usadas em serviços fúnebres. Ela forrara suas pernas de varas de bambu com meias de algodão de dupla espessura. A primeira vez que Boq viu Elphaba desse jeito, disse: “Eu acabo de lutar para convencer Crope e Tibbett de abrir mão de suas tralhas de espionagem, e você me aparece igual à Bruxa de Kumbric original.”

“Não me visto para a aprovação de vocês, rapazes”, ela disse, tirando seu manto e dobrando-o às avessas de modo que a lã molhada nunca a tocasse. Quando um freguês qualquer passava, espirrando água de um guarda-chuva, Elphaba sempre recuava, esquivando-se mesmo se fosse atingida por gotas esparsas.

“É por convicção religiosa, Elfinha, que você se mantém tão seca?”, disse Boq.

“Eu já lhe disse, eu não compreendo religião, embora convicção seja um conceito que estou começando a entender. Em todo caso, alguém com uma convicção religiosa verdadeira é, digamos, um sentenciado convicto, e merece a cadeia.”

“Deriva daí”, observou Crope, “sua aversão a toda espécie de água. Sem você saber disso, pode ser um salpico de pia batismal que você teme, pois aí a sua liberdade de uma agnóstica livre-pensadora seria diminuída.”

“Eu pensei que vocês viviam absorvidos demais por si mesmos para notarem minha patologia espiritual”, disse Elphaba. “Agora, turma, o que temos pra hoje?”

Boq sempre pensava: que bom se Galinda estivesse aqui também. Pois a camaradagem espontânea que crescera entre eles durante aquelas semanas era tão refrescante ― um modelo de conforto e mesmo inteligência. Contra a convenção, eles tinham abolido o uso de honoríficos. Eles interpelavam-se e riam e sentiam-se corajosos e importantes devido à natureza secreta de sua missão. Crope e Tibbett pouco ligavam para Animais ou Interditos ― eram ambos rapazes da Cidade Esmeralda, filhos, respectivamente, de um coletor de impostos e de um conselheiro de segurança do palácio ― mas a crença apaixonada de Elphaba naquele trabalho os animava. Ele imaginava Galinda formando fileiras com eles, perdendo sua reserva de classe superior, deixando seus olhos brilhar com um propósito secreto e compartilhado.

“Pensei que conhecesse todas as formas de paixão”, Elphaba disse numa tarde clara. “Quero dizer, sendo criada com um pastor unionista como pai, você acaba achando que a teologia é o fundamento sobre o qual todos os outros pensamentos e crenças se baseiam. Mas, rapazes! ― nesta semana, o Doutor Dillamond fez alguma espécie de avanço científico. Não sei bem o que foi, mas envolvia lentes manipuladoras, um par delas, de modo que ele podia perscrutar partículas de tecido que ele tinha colocado num vidro transparente e iluminado com luz de vela. Ele começou a ditar, e ele estava tão excitado que cantava suas descobertas; ele compunha árias inspiradas naquilo que estava vendo! Recitativos sobre estrutura, sobre cor, sobre as formas básicas de vida orgânica. Ele tem uma horrível voz de lixa, como você pode imaginar num Bode; mas como ele gorjeava! Trêmulo nas anotações, vibrato nas interpretações e sostenuto nas implicações: longas, triunfantes vogais abertas de felicidade pela descoberta! Eu estava certa de que alguém acabaria ouvindo. Eu cantei com ele, eu li as suas notas para ele como uma estudante de composição musical.”

O bom Doutor estava encorajado por suas descobertas, e ele pedia que a pesquisa deles ficasse mais e mais direcionada. Ele não queria anunciar qualquer avanço até que houvesse descoberto o meio mais politicamente vantajoso de apresentá-lo. Próximo ao fim do verão, o impulso era encontrar os relatórios dos lurlinistas e primeiros unionistas sobre como os Animais e os animais haviam sido criados e diferenciados. “Não é uma questão de revelar uma teoria científica elaborada por um grupo pré-científico de monges unionistas e sacerdotes e sacerdotisas pagãos”, explicou Elphaba. “Mas o Doutor Dillamond quer autenticar a maneira pela qual nossos ancestrais pensavam sobre isso. O Direito do Mágico de impor leis injustas poderá ser melhor enfrentado se soubermos como os velhos lunáticos explicavam a coisa para eles mesmos.”

Era um exercício interessante.

“De uma forma ou de outra, nós todos conhecemos alguns mitos de origem que precedem a Ozíada”, disse Tibbett, jogando suas louras melenas para trás com um floreio teatral. “O mais coerente deles traz nossa cara pretensa Lurline Rainha das Fadas fazendo uma viagem. Ela estava cansada de viajar pelo ar. Ela parou e invocou das areias do deserto uma fonte de água que estava oculta nas profundezas das dunas secas do solo. A água obedeceu em tal abundância que, da Terra de Oz em toda a sua febril variedade, brotou quase instantaneamente. Lurline mergulhou num estupor e subiu para um longo repouso no topo do Monte Runcible. Quando ela despertou, urinou copiosamente, e isso se tornou o Rio Gillikin, a correr pelas vastas extensões da Grande Floresta de Gillikin e a contornar as margens orientais do Vinkus, vindo a desembocar em Água Mansa. Os animais eram terrícolas e, portanto, de uma ordem inferior à de Lurline e sua comitiva. Não me olhem desse jeito, eu sei o que essa palavra quer dizer ― eu pesquisei. Significa aquilo que vive na terra ou perto dela.

“Os animais surgiram como coágulos de terra enrolados que foram desalojados da exuberante vida vegetal. Quando Lurline se aliviou, os animais pensaram que a torrente furiosa fosse um dilúvio, mandado para afundar seu mundo recém-nascido, e desesperaram da existência. Em pânico, atiraram-se nas águas e tentaram atravessar a urina de Lurline a nado. Aqueles que ficaram intimidados e voltaram à terra permaneceram animais, bestas de carga, abatidos devido à carne, caçados por esporte, avaliados como possível lucro, admirados pela inocência. Aqueles que continuaram nadando e chegaram à praia mais distante receberam os dons da consciência e da linguagem.”

“Que dom, ser capaz de imaginar sua própria morte”, resmungou Crope.

“Então, tornaram-se Animais. A convenção, desde o começo da história, estabelece uma divisão entre os animais e os Animais.”

“Batismo pelo mijo”, disse Elphaba. “Não será uma maneira sutil de explicar os talentos dos Animais e denegri-los ao mesmo tempo?”

“E que é que dizem dos animais que se afogaram?”, perguntou Boq. “Eles devem ter sido os verdadeiros perdedores.”

“Ou os mártires.”

“Ou os fantasmas que vivem em subterrâneos agora e interrompem o suprimento de água para que os campos da Terra de Munchkin fiquem secos.”

Todos riram e mais chá foi trazido à sua mesa.

“Descobri algumas escrituras mais recentes com um viés mais unionista”, Boq disse. “Elas contam uma história que imagino que seja derivada da literatura pagã, mas foi um pouco expurgada. O dilúvio, ocorrendo algum tempo depois da criação e antes do advento da humanidade, não foi uma mijada monumental de Lurline, mas o mar de lágrimas chorado pelo Deus Inominável na única visita que fez a Oz. O Deus Inominável percebeu o sofrimento que se abateria sobre a terra indefinidamente, e gritou de dor. Oz toda estava afundada em ondas de água salgada de uma milha de profundidade. Os animais conseguiam flutuar valendo-se de uma barca estranha, a árvore de raízes para cima. Aqueles que engoliram das lágrimas do Deus Inominável em quantidade suficiente se impregnaram de uma simpatia notável por seus parentes mais próximos, e começaram a construir jangadas dos destroços. Salvaram sua espécie por obra de misericórdia e, devido à sua bondade, tornaram-se um novo e consciente grupo: os Animais.”


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