Esses estranhos Homens deveriam ficar muito satisfeitos por serem julgados mais maldosos dó que realmente são



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“Coma essa coisa”, ela disse por fim. “Eu não tenho fome. Você come, vamos lá.”

“Diga-me uma coisa”, ele pediu. “Você nos deixou em Shiz ― desapare­ceu como a neblina da manhã. Por que, para onde e para quê?”

“Como você é poético”, ela disse. “Tenho a impressão de que a poesia é a forma mais elevada de auto-engano.”

“Não mude de assunto.”

Mas ela estava agitada. Seus dedos se contorciam; ela chamou o gato, e se irritou com ele e fez com que se escafedesse de seu colo. Finalmente, disse: “Oh, bem, foi tudo isso, então. Mas você não vai nunca mais voltar aqui. Eu não quero procurar um outro lugar, este é bom demais para mim. Você promete não revelar?”.

“Vou concordar apenas em pensar na promessa, é tudo. Como posso prometer mais que isso? Eu não sei nada ainda.”

Ela disse, apressadamente: “Bem, eu estava de saco cheio de Shiz. A morte do Doutor Dillamond me deixou vexada, e todo mundo lamentava, mas ninguém fazia nada. Não mesmo. Não era o lugar certo para mim, de qualquer jeito, com todas aquelas garotas cretinas. Embora eu goste de Glin­da. Como ela anda?”.

“Não tenho tido contato. Continuo esperando abordá-la algum dia em alguma recepção do Palácio ou qualquer outra. Fiquei sabendo informalmen­te que ela se casou com um baronete de Paltos.”

Elphaba pareceu perturbada e suas costas se enrijeceram. “Apenas um baronete? Nem um barão ou visconde, pelo menos? Que decepção. Suas aspirações iniciais não deram resultado, então.” Tentando ser engraçada, sua observação era dura e deselegante. “Ela se tornou mãe?”

“Eu não sei. Sou eu quem pergunta agora, lembra?”

“Sim, mas recepções no Palácio?”, ela disse. “Você está mancomunado com o Nosso Glorioso Mágico?”

“Soube que ele é um recluso, na maior parte do tempo. Nunca o co­nheci”, Fiyero disse. “Ele aparece de vez em quando na ópera e ouve a música por trás de um biombo portátil. Em seus próprios jantares sociais ele janta à parte, numa câmara ao lado, atrás de uma grelha de mármore entalhado. Vi só o perfil de um homem imponente que caminhava por um passeio público. Se era o Mágico, é tudo que conheço dele. Mas, você, você: você. Por que rompeu com todos nós?”

“Eu os amava demais para continuar tendo contato com vocês.”

“O que isso significa?”

“Não me pergunte”, ela disse, debatendo-se um pouco, seus braços como remos agitados na azulada escuridão da noite de verão.

“Pergunto sim. Você continuou vivendo aqui desde então? Durante cinco anos? Você estuda? Você trabalha?” Ele esfregava os braços ao tentar imaginar: o que ela estaria fazendo? “Você está associada à Liga de Proteção dos Animais ou a alguma daquelas pequenas organizações humanitárias rebeldes?”

“Eu nunca uso as palavras humanista e humanitária, já que me parece que ser humano é ser capaz dos mais hediondos crimes na natureza.”

“Você está fugindo outra vez.”

“É o meu trabalho”, ela disse. “Aí está, é uma pista para você, querido Fiyero.”

“Aumente isso.”

“Eu fui para a clandestinidade”, ela disse suavemente, “e ainda estou nela. Você é a primeira pessoa a violar meu anonimato desde que eu disse adeus para Galinda há cinco anos. Por aí você pode compreender por que não posso dizer mais nada, ou por que você não pode me ver novamente. Por tudo que sei você me levaria à Tropa da Tormenta.”

“Hah! Aqueles milicos! Você pensa muito mal de mim se acha que eu...”

“Como eu sei, como eu posso saber?” Ela contorceu seus dedos, fechan­do-os uns contra os outros, formando um quebra-cabeça de varetas verdes. “Eles marcham com aquelas botas sobre os pobres e os oprimidos. Eles ater­rorizam as famílias no meio da madrugada e desaparecem com os dissidentes ― e arrebentam as impressoras com seus machados ― e fazem julgamentos gozadores por traição à meia-noite e executam os condenados pela manhã. Eles investigam cada pedaço desta bela e falsa cidade. Eles fazem uma boa colheita de vítimas mensalmente. E o governo pelo terror. Neste exato mo­mento, podem estar pelas ruas, se juntando. Nunca me perseguiram, mas podem ter perseguido você.”

“Você não é tão difícil de ser perseguida como pensa”, ele disse. “Você é boa na coisa, mas nem tanto. Eu posso lhe ensinar umas coisinhas.”

“Aposto que pode”, ela disse, “mas não vai, porque não vamos encontrar­-nos outra vez. É perigoso demais, tanto para você quanto para mim. É o que quero dizer quando digo que eu amava demais a todos vocês para manter algum contato. Você acha que a Tropa da Tormenta é incapaz de torturar amigos e familiares para obter informações pertinentes? Você tem uma mu­lher e filhos, e eu sou simplesmente uma velha amiga de colégio que conheceu. Muito inteligente você me seguir. Não me faça isso outra vez, está bem? Vou mudar de endereço se notar que você está me seguindo. Posso sair daqui agora mesmo, e estar longe em trinta segundos. Faz parte do meu treinamento.”

“Não faça isso comigo”, ele disse.

“Somos velhos amigos”, ela disse, “mas não somos nem especialmente bons amigos. Não transforme isso num encontro sentimental. É um prazer rever você, mas eu não vou querer que isso aconteça de novo. Tome conta de você mesmo e cuidado ao estabelecer altas ligações com os bastardos, por­que, quando a revolução chegar, não vai haver misericórdia para bajuladores lambe-cus.”

“Aos ― quantos? vinte e três anos? ― você está bancando a Senhora Rebelde?”, ele disse. “Não é conveniente.”

“É inconveniente mesmo”, ela concordou. “Uma palavra perfeita para minha nova vida. Inconveniente. Eu, que sempre fui inconveniente, acabei ficando à margem das conveniências. Embora eu assinale que você tem a mesma idade que eu, e esteja bancando o arrogante, como um príncipe. Mas, você já comeu? Temos de nos despedir agora.”

“Não vamos nos despedir”, ele disse, firmemente. Ele queria pegar as mãos dela nas suas ― ele não se lembrava de jamais tê-la tocado. Corrigiu-se ― ele sabia que nunca a tinha tocado.

Era quase como se ela pudesse ler o seu pensamento. “Você sabe quem você é”, ela disse, “mas não sabe quem eu sou. Você não pode ― quero dizer que você não pode e não pode ― porque é uma coisa proibida para um, e, para o outro, trata-se de uma impossibilidade. Vá com Deus, se é que eles usam essa frase lá no Vinkus ― se lá isso não significar um xingamento. Vá com Deus, Fiyero.”

Ela lhe passou seu traje para a ópera, e estendeu sua mão para apertar a sua. Ele apanhou sua mão, olhou em seu rosto, que só por um segundo se abrira. O que ele viu nele fez com que se arrepiasse e aquecesse, em estontean­te simultaneidade, com a forma e a intensidade da carência que ali havia.

“Que é que você sabe do Boq?”, ela perguntou, na vez seguinte em que se encontraram.

“Você simplesmente não vai responder a nada do que eu lhe perguntar sobre você mesma, não é?”, ele disse. Ele se reclinava com os pés sobre a sua mesa. “Por que você finalmente aceitou que eu voltasse se permanece muda como uma prisioneira?”

“Eu gostava de Boq, isso é tudo.” Ela riu. “Deixei você voltar para poder arrancar informações a respeito dele e dos outros.”

Ele contou a ela o que sabia. Boq havia se casado com a Senhorita Milla, entre outras viradas surpreendentes. Ela fora arrastada para Pedras do Ninho, e odiara a coisa. Várias vezes tentara suicídio. “Suas cartas mandadas nos festejos de Lurlinemas todo ano são histéricas; elas registram suas tentativas de se matar como uma espécie de relatório anual de família.”

“Isso me faz pensar o que minha mãe não terá passado, nas mesmas cir­cunstâncias”, disse Elphaba. “A infância privilegiada num grande lar da classe superior, e, depois, o rude choque de uma vida de penúria lá na terra-de-­ninguém. No caso de mamãe, a mudança de Solos de Colwen para Margens Agitadas, e daí para os pântanos de Quadling. É realmente uma penitência da espécie mais dura.”

“Tal mãe, tal filha”, disse Fiyero. “Você também não deixou uma boa quan­tidade de privilégios, para viver aqui, feito um caracol? Escondida e reclusa?”

“Lembro-me da primeira vez que o vi”, ela disse, pingando gotas de vinagre sobre as raízes e vegetais que preparava para a ceia. “Foi na sala de aula daquele ― qual era o nome? ― Doutor...”

“Doutor Nikidik”, disse Fiyero. Ele avermelhara.

“Você tinha aquelas belas marcas no rosto ― nunca vira nada igual. Você calculou aquela entrada para ganhar lugar em nossos corações?”

“Juro por minha honra que, se pudesse ter feito qualquer outra coisa, teria sido melhor. Eu estava ao mesmo tempo mortificado e aterrorizado. Sabe que cheguei a pensar que aqueles chifres enfeitiçados iam me matar? E o vaidoso Crope e o ágil Tibbett foram a minha salvação.”

“Crope e Tibbett! Tibbett e Crope! Eu me esquecera deles. Como estão?”

“Tibbett nunca mais foi o mesmo depois daquela aprontada no Clube de Filosofia. Crope, eu acho, passou a trabalhar numa casa de leilão de artes, e ainda dá umas flertadinhas com a turma do teatro. Eu o vejo de vez em quando nesses lugares. Não conversamos.”

“Nossa, você está severo!” Ela riu. “Claro que, sendo tão interessada em sexo quanto qualquer ser humano, eu sempre me pus a imaginar o que vocês teriam achado do Clube de Filosofia. Você sabe, em outra vida eu bem que gostaria de rever a turma toda. E Glinda, querida Glinda. E mesmo o nojento Avaric. O que foi feito dele?”

“Com Avaric eu ainda converso. Na maior parte do ano, ele fica lá nas terras do margrave, mas tem uma casa em Shiz. E, quando ele vem à Cidade Esmeralda, freqüentamos o mesmo clube.”

“Ele continua um grosseirão presunçoso?”

“Nossa, você é que dá uma de severa agora!”

“Suponho que sim.” Eles fizeram a ceia. Fiyero esperou que ela pergun­tasse mais sobre a sua família. Mas eram as suas respectivas famílias que eles estavam escondendo um do outro, aparentemente: a esposa e os filhos dele em Vinkus, e, dela, o círculo de agitadores e revolucionários.

Da próxima vez que voltasse, ele pensou, deveria usar uma camisa aber­ta no pescoço, para que ela pudesse ver que a tatuagem de diamantes azuis em seu rosto continuava inviolável perto de seu peito... Já que ela parecera apreciar aquilo.

“Com certeza, você não fica o outono inteiro aqui em Cidade Esmeral­da?”, ela perguntou numa certa noite, quando o frio estava chegando.

“Mandei dizer a Sarima que os negócios estão me prendendo aqui in­definidamente. Ela não se importa. Como iria se importar? Arrancada de um imundo caravançarai e casada já em criancinha com um príncipe de Arjiki? Sua família não era estúpida. Ela tem comida, criados, e as sólidas muralhas de pedra de Kiamo Ko como defesa contra as outras tribos. Ela está ficando um pouquinho gorda depois do terceiro filho. Ela realmente nem nota se eu estou ou não em casa ― bem, ela tem cinco irmãs, e todas moram juntas. Casei-me com um harém.”

“Não!”, Elphaba parecia intrigada e um pouco embaraçada com a idéia.

“Você está certa, não, não é bem assim. Sarima disse uma ou duas ve­zes que suas irmãs mais jovens podiam e teriam prazer em esgotar minhas energias à noite. Depois que você ultrapassa os Grandes Kells, o tabu contra essa prática não é tão forte quanto parece ser no resto de Oz, portanto, pare de me olhar com essa cara de chocada.”

“Não posso evitar. Você fez isso?”

“Eu fiz o que?” Ele estava provocando-a.

“Você dormiu com suas cunhadas?”

“Não”, ele disse. “Não por causa de elevados padrões morais, ou por falta de interesse. É só porque Sarima é uma mulher sagaz, e tudo em casamento é compromisso. Eu ficaria sob controle dela muito mais do que já estou.”

“E isso é uma coisa ruim?”

“Você não é casada, portanto, não sabe: sim, é uma coisa ruim.”

“Eu sou casada”, ela disse, “só que não com um homem.”

Ele ergueu as sobrancelhas. Ela pôs as mãos em seu rosto. Ele nunca a vira daquele jeito ― como se suas palavras houvessem chocado a ela mesma. Ela teve de virar sua cabeça por um momento, limpar a sua garganta, assoar o nariz. “Oh, merda, lágrimas, elas ardem como fogo”, ela gritou, subitamente tomada de fúria, e correu em busca de um cobertor para enxugar seus olhos antes que a umidade salgada descesse pelo seu rosto.

Ela ficou curva como uma mulher idosa, um braço ao contrário, o co­bertor caindo de seu rosto ao chão. “Elfinha, Elfinha”, ele disse, horrorizado, e cambaleou em direção a ela, abraçando-a. O cobertor ficou no meio deles, da cabeça aos pés, mas quase se queimou com a chama, ou se transformou em rosas, ou numa fonte de champanhe e incenso. Estranho como as mais ricas imagens surgem naturalmente na cabeça quando o próprio corpo se encontra no seu máximo despertar...

“Não”, ela gritou, “não, não, eu não sou um harém, eu não sou uma mulher, eu não sou nem mesmo uma pessoa, não.” Mas, seus braços se move­ram por vontade própria, como velas de um moinho de vento, como aqueles chifres enfeitiçados, não para matá-lo, mas para prendê-lo apaixonadamente, para encostá-lo à parede.

Malky, com um raro gesto de discrição, subiu ao peitoril da janela e olhou para outra direção.

O romance entre os dois desenrolou-se no aposento acima do pequeno armazém de cereais abandonado enquanto o tempo de outono vinha a passos trôpegos do leste: num dia havia calor, noutro dia sol, e depois eram quatro dias de ventos gelados e chuva fina.

Dias se enfileiravam sem que eles pudessem se ver. “Eu tenho compro­missos, eu tenho trabalho, confie em mim ou eu vou desaparecer de sua vida”, ela dizia. “Escreverei para Glinda e lhe perguntarei como fazer o feitiço de de­saparecer numa nuvem de fumaça. Estou provocando, mas falo sério, Fiyero.”

Fiyero + Fae, ele escrevia na farinha que transbordava quando ela enro­lava massinha de pastel. Fae, ela tinha sussurrado, como se para impedir que o gato ouvisse, era seu nome de código. Ninguém em sua célula podia saber o nome verdadeiro que o companheiro tinha.

Ela não deixava que ele a visse nua na claridade, mas, desde que tampou­co podia visitá-la durante o dia, mal chegava a ser um problema. Ela esperava por ele nas noites combinadas, nua debaixo do cobertor, lendo ensaios de teoria política ou filosofia moral. “Eu não sei se os entendo, leio-os como se fossem poesia”, ela admitiu uma vez. “Gosto do som das palavras, mas não espero que minha penosa e tortuosa impressão do mundo seja mudada por aquilo que eu leio.”

“E pela maneira como você vive, ela não muda?”, ele perguntou, apagan­do a luz e se livrando das roupas.

“Você pensa que tudo isso é novo para mim”, ela disse, suspirando. “Você pensa que sou tão virgem.”

“Você não sangrou da primeira vez”, ele observou. “Então, o que eu ia pensar?”

“Eu sei o que você pensa”, ela disse. “Mas, quão experiente és, oh, Senhor Fiyero, Príncipe Arjiki de Kiamo Ko, Supremo Guardião das Pastagens Mi­lenares, Chefe dos Chefes nos Grandes Kells?”

“Eu sou massa em suas mãos”, ele disse, confiantemente. “Eu me casei com uma criança prometida e, para preservar a minha força, não tinha sido infiel. Até agora. Você não é como ela”, ele disse. “Você não sente como ela, eu não sinto o mesmo. Você é mais secreta.”

“Eu não existo”, ela disse, “portanto, você também não está sendo infiel.”

“Vamos não ser infiéis agora mesmo, então”, ele disse. “Mal posso es­perar”, enlaçando as suas costas, descendo ao plano firme de seu estômago. Ela sempre conduzia aquelas mãos para seus magros, expressivos seios; não queria ser tocada por mão alguma abaixo de sua cintura. Eles se moviam juntos, como diamantes azuis num campo verdejante.

Ele não tinha o bastante que fazer ao longo dos dias. Sendo o chefe do povo de Arjiki, sabia que era do interesse político deste permanecer ligado inelutavelmente ao centro comercial da Cidade Esmeralda. No entanto, os in­teresses comerciais de Arjiki requeriam apenas que Fiyero aparecesse social­mente, em reuniões de empresa e recepções financeiras. O resto do tempo ele apenas vagueava pela cidade, procurando afrescos de Santa Glinda e outros santos. Elphaba-Fabala-Elfinha-Fae nunca lhe contara o que estava fazendo na capela de Santa Glinda ligada ao monastério na Praça de Santa Glinda.

Um dia ele encontrou Avaric e almoçaram juntos. Avaric sugeriu um show de garotas como sobremesa, e Fiyero declinou. Avaric estava opiniático, cínico, corrupto e bonitão como sempre. Não extrairia dele conversa provei­tosa que pudesse levar a Elphaba.

O vento arrancava as folhas das árvores. A Tropa da Tormenta conti­nuava a empurrar os Animais e colaboradores para fora da cidade. As taxas dos bancos de Gillikin estavam nas alturas ― bom para investidores, mau para aqueles que tomavam empréstimos. Execuções de hipotecas num monte de valiosas propriedades do centro da cidade. Bem depressa o comércio come­çou a acender as luzes verdes e douradas de Lurlinemas, tentando atrair os cautelosos e deprimidos cidadãos ao interior das lojas.

Mais que tudo, ele queria caminhar pelas ruas da Cidade Esmeralda com Elphaba ao lado ― não havia lugar melhor para apaixonados, especial­mente quando ao crepúsculo as luzes das lojas se acendiam, reluzindo em ouro sobre o céu de um azul-purpúreo da noitinha. Ele nunca estivera apaixo­nado, e só agora o notava. Isso o humilhava. Isso o assustava. Não conseguia suportar quando a ausência forçada chegava a quatro ou cinco dias.

“"Beijos para Irji, Manek e Nor”, ele escrevia no fim de sua carta semanal para Sarima, que não podia respondê-la porque, entre outras coisas, nunca fora alfabetizada. De certo modo, o silêncio da esposa parecia-lhe uma tácita aprovação de seu interlúdio extraconjugal. Ele não escrevia beijos para ela, tampouco. Esperava que os chocolates cumprissem esse papel.

Ele rolava, puxando o cobertor para seu lado; ela o puxava de volta para si. O ar no aposento era tão frio que parecia enregelar. Malky, na ponta, tolerava as pernas que se debatiam a fim de ir ficando por perto, recebendo calor, dando o que nos gatos passa por afeição.

“Minha querida Fae”, disse Fiyero. “Acho que você já sabe disso, e eu não vou me tornar um co-conspirador do que quer que você esteja fazendo ― reduzindo multas de biblioteca ou revogando a necessidade de coleiras para gatos ou seja lá o que seja. Mas eu mantenho meus ouvidos atentos. Os quadlings estão sob as patas da milícia avançada outra vez. Ao menos é o que ouço dizer lá no saguão do clube, entre jornais e murmúrios. Parece que uma divisão do exército entrou no Estado de Quadling, chegando até Qhoyre, efetuando alguma espécie de missão arrebenta-e-queima. Seu pai, seu irmão e Nessarose ― eles ainda vivem por lá?”

Elphaba ficou sem resposta, por um momento. Ela parecia estar pen­sando não só no que iria dizer, mas talvez até no que era possível lembrar. Sua expressão era de espanto, até de irritação. Ela disse: “Vivemos em Qhoyre um certo tempo, quando eu tinha perto de dez anos. É uma pequena cidade engraçada, construída em solo encharcado. Metade das ruas são canais. Os telhados são baixos, as janelas são grelhadas ou com venezianas para dar privacidade e ventilação, o ar é úmido e a flora excessiva ― folhas de palmas em formato de enormes rodelas, quase parecidas a travesseiros acolchoados, fazendo um som característico ao baterem umas nas outras ao vento ― tirr, tirr, tirr, tirr”.

“Eu não sei se restou muito de Qhoyre”, disse Fiyero cuidadosamente. “Se o boato que eu ouvi tiver fundamento.”

“Não, Papai não está lá agora, graças ― graças a sei lá quem, a sei lá o que, graças a nada”, continuou Elphaba. “A menos que as coisas tenham mudado. O bom povo de Qhoyre não foi lá muito receptivo aos esforços missionários. Convidavam Papai e eu, serviam-nos bolinhos úmidos e chá morno de hortelã vermelha. Nós nos sentávamos em almofadas baixas e emboloradas, espan­tando lagartixas e aranhas para os cantos mais escuros. Papai se punha a falar monotonamente sobre a generosa natureza do Deus Inominável, emitindo seu ponto de vista xenofílico básico. Ele me apontava como prova. Eu sorria com horrível doçura e cantava um hino - a única música que Papai aprovava. Eu era miseravelmente tímida e envergonhada de minha cor, mas Papai me convencera do valor desse trabalho. Invariavelmente, os gentis cidadãos de Qhoyre sucumbiam por causa de sua hospitalidade. Aceitavam fazer orações ao Deus Inominável, mas você não podia dizer que o faziam de coração. Eu acho que eu percebia muito mais - de um modo bem menos desanimador que o meu pai ― como nós tínhamos pouca penetração”.

“Então, onde eles estão agora? Papa, Nessarose e o garoto ― seu irmão, qual é mesmo o nome dele?”

“Shell, este é o seu nome. Bem, Papai sentiu que seu trabalho seria mais efetivo ao sul do Estado de Quadling, bem lá nos confins. Tivemos uma série de pequenas moradas modestas em torno de Ovvels ― as Choupanas de Ovvels, como as chamávamos ―, que era uma zona agreste lúgubre, primi­tiva, cheia de sanguinária beleza.”

Diante da expressão intrigada de Fiyero, Elphaba prosseguiu. “Quero dizer, há quinze, vinte anos, Fiyero, os especuladores de Cidade Esmeralda descobriram lá depósitos de rubi. Primeiro foi sob o Regente Ozma, e, en­tão, depois do golpe, sob o governo do Mágico: as mesmas práticas sujas de negócios.

Embora, sob o Regente Ozma, a exploração não exigisse crime e brutali­dade. Usando elefantes, os engenheiros transportaram seixos, obstruíram nas­centes, aperfeiçoaram um complicado sistema de mineração a três pés abaixo de terrenos encharcados de água salobra. Papai achava que esse desarranjo na comunidade pantanosa abria um terreno perfeitamente propício para o tra­balho missionário. E ele estava certo. Os quadlings lutaram contra o Mágico com proclamações precárias, recorreram aos totens, mas suas únicas armas militares eram estilingues. Por isso, agruparam-se em torno do meu pai. Ele os converteu, e eles foram à luta com o zelo dos recém-convertidos. Foram desapropriados e desapareceram. Tudo com a bênção da graça unionista.”

“Nossa, como você é amarga.”

“Ele foi um instrumento. Meu querido pai me usou ― e a Nessarose um pouco menos, por causa de seu problema para se mover ―, ele me usou como objeto de sua pedagogia. Com a aparência que eu tinha, mesmo sa­bendo cantar ― confiavam nele em parte como reação à minha esquisitice. Se o Deus Inominável podia amar a mim, amaria muito mais a eles, os não deformados.”

“Então, minha querida, você não se importa com onde ele possa estar, ou com o que esteja acontecendo com ele agora?”

“Como você pode dizer isso?” Ela se ergueu, bufando. “Eu amava o velho bastardo cheio de viseiras. Ele realmente acreditava naquilo que pregava. Ele chegava a achar que o cadáver de um quadling, encontrado a flutuar em algum laguinho de água salobra ― desde que portasse uma tatuagem em alguma parte a indicar que era um convertido ―, era muito melhor que um sobrevi­vente. Sentia que a morte do coitado não passava de um simples passaporte para a assembléia do Outro Mundo, presidida pelo Deus Inominável, que ele fornecera. Acho que considerava isso trabalho bem-feito.”

“E você não acha?” Fiyero tinha uma vida espiritual bem anêmica; sen­tia-se desqualificado para emitir uma opinião sobre a vocação do pai de El­phaba.

“Talvez fosse trabalho bem-feito”, ela disse tristemente. “Como posso saber? Mas não era trabalho bem-feito para mim. Povoado após povoado, fomos ceifando os convertidos. Povoado após povoado, as turmas de en­genheiros vinham, para detonar a vida comunitária. Não houve clamor de protesto algum em toda Oz. Ninguém ouviria. Quem se importava com os quadlings?”

“Mas o que o levou para lá, a princípio?”

“Ele e Mamãe tinham tido um amigo, um quadling, que morrera em minha casa ― um quadling andarilho, um soprador de vidro.” Elphaba fez uma carranca e fechou os olhos, e nada mais disse. Fiyero beijou as pontas de seus dedos. Beijou o V entre seu polegar e seu indicador, lambeu-o como se fosse fatia de limão. Ela recuou, em entrega, para deixá-lo desfrutar muito mais de seu corpo.

Um pouco depois, ele disse: “Mas, Elfinha-Fabala-Fae ― você não está mesmo preocupada com seu pai e Nessarose e o irmão pequeno ― esqueci o nome?”


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