Fortune, uma mulher impiedosa. Bertrice small



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INGLATERRA E MARY'S LAND, 1632-1635
"Ame a Deus, e faça o que quiser." — Sinto Agostinho
Capítulo 13
Sir William Devers sobreviveu ao atentado, mas nunca mais andou. Assim que superou o risco de morte, foi transferido da casa do Reverendo Samuel Steen em Maguire's Ford de volta para Lisnaskea. Com pouco mais de 20 anos, passava seus dias na cama ou na cadeira feita especialmente para ele, e sua raiva crescia. Queria responsabilizar os católicos por sua condição, mas não fora um deles o autor do disparo. Recebera o tiro pelas costas, e os católicos de Maguire's Ford haviam estado reuni­dos diante dele. Mesmo assim, raciocinava Sir William, se os católicos não vivessem em Maguire's Ford, ele não teria sido forçado a ir até lá, e agora não seria o inválido que era. Não conhecia a identidade de quem havia atirado contra ele, e ne­nhum de seus homens parecia saber quem fora.

Assim, responsabilizava os católicos por seu estado de in-validez e, encorajado pela esposa e pela mãe, planejava uma vingança que nunca poderia concretizar contra os católicos em geral, mas que perpetraria contra o meio-irmão, Kieran, e sua esposa Fortune, porque, se ela nunca houvesse posto os pés em Ulster, nada daquilo teria acontecido. A culpa era toda deles.

Ninguém ia visitar Sir William e sua família. Os criados tra­ziam poucas mensagens. Estava condenado a passar o resto de seus dias em Mallow Court com a mãe e a esposa por compa­nhia. Sir William passou a beber qualquer coisa que pudesse amenizar sua dor e o tédio.

Em Maguire's Ford, Autumn Leslie, nascida na véspera de Todos os Santos — a celebração Samhein dos antigos celtas —, crescia saudável. Jasmine sabia que aquele era seu último bebê, por isso amamentava a filha com devoção, recusando a ajuda de uma ama-de-leite. Fortune adorava a irmã e passava a maior parte de seu tempo com Autumn e a mãe.

— Ela é tão doce — suspirava Fortune. — Adoraria ter uma menina como ela... um dia. Sei que ainda não é o momento cer­to, mamãe.

— Se Kieran vai sozinho para o Novo Mundo, talvez deva engravidar antes disso, minha filha. Assim poderei estar ao seu lado quando a criança nascer. Então, quando puder ir ao en­contro de seu marido na colônia, o bebê já terá idade suficiente para viajar. Mas espere até voltarmos à Inglaterra para tomar sua decisão.

Fortune suspirou novamente. Queria uma vida normal como tinham sua mãe e a irmã, índia. Uma casa, um marido, filhos e paz. Por que não podia ter todas essas coisas? Conhecia a resposta para a questão, que não verbalizava. Casara-se com um homem cuja fé não era aceitável. Teriam de construir uma nova vida em um lugar onde sua fé e a dele pudessem coexistir pacificamente. Mas quando? Por que tinha de demorar tanto? Ela abraçou a irmã de maneira protetora, admirando a perfei­ção em cada detalhe de Autumn. Os cabelos negros com refle­xos avermelhados, os olhos que começavam a apresentar re­flexos verdes, embora ela só tivesse dois meses de idade. Autumn seria batizada pelo Reverendo Samuel Steen tendo por padrinhos a meio-irmã e Adam, seu irmão.

O Natal e o Dia de Reis haviam passado. O inverno era ri­goroso. Maguire's Ford vivia dias de tranquilidade sem a amea­ça vinda de Lisnaskea. Os excessos do outono pareciam ter dre­nado as energias de todos. Para alegria de Kieran, várias famílias se mostraram interessadas em ir com ele e Fortune para o Novo Mundo, incluindo o jovem Bruce Morgan. Eles reconheciam a oportunidade única, apesar dos perigos envolvidos na situa­ção. Os mais velhos, porém, não encontravam coragem para deixar Ulster. Sempre haviam sobrevivido de uma maneira ou de outra, e continuariam assim, argumentavam.

Janeiro deu lugar a fevereiro, e fevereiro deu lugar a março. As colinas verdes se cobriam com os pontos brancos dos car­neiros nascidos no mês anterior. O duque começou a fazer pla­nos para deixar Maguire's Ford e voltar para a Escócia. Deixa­riam a propriedade no dia 15 de maio, um dia depois do 15e ani­versário de Adam Leslie. Os dois irmãos Leslie estavam bem adaptados em Màguire's Ford. O Reverendo Steen fora contra­tado para ser tutor dos meninos. A patente do rei era esperada antes da partida da família, e Jasmine já havia redefinido as fronteiras da propriedade, dividindo a terra igualmente entre os dois meninos. Quando Duncan completasse 16 anos, em mais quatro, uma casa seria construída para ele em local já escolhido.

Março chegou ao fim, e na metade de abril a ordem real chegou, transferindo Maguire's Ford de Lady Jasmine Leslie, a duquesa de Glenkirk, para seus dois filhos, Adam e Duncan Leslie. Cada um deles recebia um título do rei, já que eram fi­lhos de um duque. Adam tornou-se Barão Leslie de Erne Rock. Duncan passava a ser Barão Leslie de Dinsmore, que significa­va da colina fortificada, uma alusão ao local onde seria erigida sua nova residência. Uma cópia do documento foi postada na praça do vilarejo, e Kieran levou a segunda cópia a Mallow Court para mostrá-la ao meio-irmão e à madrasta.

Jane Devers, cuja aparência era de cansaço, cumprimen­tou-o de má vontade.

— Creio que foi informado de que não deveria mais voltar aqui — disparou ela ao recebê-lo no salão.

— Está será minha última visita senhora, garanto. Onde está William? Leve-me até ele, e vá buscar sua nora, também.

Jane Leslie conduziu o enteado ao salão dos fundos, onde William Devers estava sentado em sua cadeira estofada.

— Kieran! — A voz dele era quase entusiasmada.

— Lamento vir incomodá-lo sem me fazer anunciar com antecedência, mas tive receio de que não me recebesse, caso fosse prevenido. Trago aqui uma cópia da patente real para Maguire's Ford. — Ele entregou o documento ao irmão mais novo. — Vai notar que esse papel oficializa a transferência de posse da terra, agora dividida entre Adam e Duncan, ou Sir Adam e Sir Duncan, como devem ser tratados doravante. Não pode haver mais dúvidas quanto à disposição de Erne Rock e suas terras. Tudo agora pertence a dois lordes protestantes cujo tutor é o Reverendo Steen.

— Mas Maguire ainda está lá — respondeu William. — Não está?

— Sim, e lá estará até morrer. Ele não causa problemas e é genial com os cavalos, Willy. Maguire é necessário.

— Ele é católico.

— Seus senhores não são. Não se indisponha com os meni­nos Leslie, William. A Escócia não é tão longe assim, e James Leslie não pensaria duas vezes para matar você.

— Eu estaria melhor se estivesse morto. Não tenho nenhu­ma sensibilidade abaixo da cintura, Kieran. O médico afirma que o bebê que Emily Anne terá em breve é o único filho que vou ter. E se não for um filho? Passo o dia todo sentado nesta cadeira com mamãe e minha esposa por únicas companhias. A bondade e a doçura das duas me irritam. O médico me in­forma que, mesmo morto da cintura para baixo, sou tão sau­dável quanto um cavalo e terei vida longa. Está satisfeito ago­ra, Kieran?

— Lamento, Willy, mas a verdade é que é o único culpado por sua situação. Os protestantes de Lisnaskea o seguiram ale­gremente quando foram inflamados por você, sua mãe e o fi­nado Dundas, mas depois o abandonaram. Ver você os faz lem­brar o que fizeram com amigos e vizinhos cujo único pecado era ser católico. E cada vez que eles o vêem, lembram o que você fez com sua meio-irmã, Aine Fitzgerald. Eu realmente lamento por você, Williy Mas não posso deixar de pensar que seu casti­go é justo e merecido.

— Chora pela filha de uma meretriz, mas não lamenta a sorte de seu próprio irmão! Estou feliz por meu pai estar morto, ou ele o teria feito herdeiro novamente, bastardo!

— Eu não teria aceito, Willy. Ulster é um lugar de tristeza e pesar para mim. Não pertenço mais a tudo isso. Pode ficar com Mallow Court para você e seus herdeiros, e tenha sorte, irmãozinho.

— O que você quer? — Jane Devers e a nora entraram na sala. A voz que se ouvia era de Emily Anne, cujo ventre disten-dido anunciava o nascimento iminente do bebê.

— Bom dia, senhora — cumprimentou Kieran, curvando-se com respeito. — Trouxe uma cópia da patente real que de­creta a transferência de propriedade de Maguire's Ford de mi­nha sogra para seus dois filhos Leslie. A transferência está concluída e é agora um fato. — Ele tomou o documento das mãos de William e o passou para Lady Jane e Emily Anne. — Quando terminarem de ler o documento, eu o levarei de volta. Também vim para me despedir. Minha esposa, os Leslie e eu partiremos para- a Escócia no meio de maio. E pouco provável que um dia eu retorne a Ulster.

As duas mulheres leram o decreto cuidadosamente antes de devolvê-lo a Kieran.

— Lady Jasmine não mentia quando disse que daria Maguire's Ford aos filhos — Jane Devers comentou, como se estivesse surpresa.

— Não, milady — Kieran respondeu. — Ela não mentia.

E então, como nada mais havia a ser dito, ele se despediu de todos e deixou o lar de sua infância para sempre. No alto da encosta, parou e se virou para olhar para Mallow Court. Nunca mais a veria.

No final de abril, um mensageiro chegou para informar Kieran sobre o nascimento prematuro de sua sobrinha, Emily Jane. A criança era saudável, e a mãe sobrevivera com coragem ao parto difícil. Kieran Devers enviou para a sobrinha que nunca conheceria um conjunto de colher e caneca de prata. Mandara um portador a Belfast para comprar vários itens recentemente, e o presente integrara essa lista.

— Pobre William — observou Fortune. — Mas pelo menos tiveram um filho. Acha que também chegou nossa hora de co­meçarmos a procriar, milorde? Devemos nos empenhar mais. Nessas últimas semanas tenho me sentido negligenciada. — Fortune estava sentada na enorme banheira de carvalho diante da lareira. O espaço que a cama não ocupava era tomado pela banheira.

Kieran riu, despiu-se e foi se juntar à esposa no banho. Ela era adorável com os cabelos vermelhos e brilhantes e as faces coradas pelo calor da água.

— Estou disposto a fazer tudo para encontrar uma terra onde possamos viver em paz, livres de preconceito, mas abrir mão dos nossos banhos... isso nunca, senhora!

Fortune riu.

— Felizmente não somos puritanos. Ouvi dizer que eles con­sideram o banho um grande pecado da carne. Alguns cavalhei­ros que conheci na corte eram desagradáveis de ter por perto.

— Espero que nunca diga nada parecido a meu respeito.

— De maneira nenhuma, senhor meu marido — ela o to­cou de maneira provocante embaixo da água.

Inflamado, Kieran a possuiu na banheira, algo que nunca haviam feito antes. Depois do clímax rápido e violento, ele a tomou nos braços e a levou para a cama, onde a penetrou mais uma vez com desejo insaciável.

O quarto era frio, mas ela ardia. Enlaçando-o com as per­nas, movia-se num ritmo alucinante, acompanhando-o na dan­ça sensual que os levaria mais uma vez ao êxtase. Fortune su­focava os gritos de prazer com um punho cerrado, enquanto o outro estava sobre as costas do marido, as unhas marcando sua pele no auge do frenesi. O mundo se desfez diante de seus olhos, desmanchando-se numa explosão de cores, e ela se sen­tiu flutuar.

Alguns minutos se passaram até Fortune estar novamente no controle de si mesma, e então percebeu que ele a banhava amorosamente com as toalhas embebidas em lavanda.

— Aprendeu bem — disse ela sorrindo, sem abrir os olhos.

— Sim, mas ainda quero mais, minha esposa.

Ajoelhando-se, ele tomou o membro nas mãos e o aproxi­mou dos lábios dela. Guiada pelo instinto, ela fez exatamente o que o marido esperava dela. A experiência até então desconhe­cida a despertou novamente para a paixão, e eles fizeram amor mais uma vez. Fortune ainda se surpreendia com a freqüência com que se entregavam ao prazer, pois jamais imaginara ser possível manter aceso fogo tão intenso. Amavam-se como ela jamais sonhara amar alguém, como nunca havia esperado ser amada por um homem. Sabia que, ao lado de Kieran, seria eter­namente feliz, independentemente de onde estivessem.

Quando acordaram, a luz pálida de uma manhã de prima­vera invadia o quarto, espalhando sua luminosidade dourada. O fogo morrera na lareira, e a enorme banheira de carvalho blo­queava qualquer calor remanescente que pudesse brotar das cinzas. Fortune espirrou. E espirrou novamente. Resmungan­do, Kieran levantou-se e foi empurrar a banheira, mas havia pouco espaço para transferi-la. Ele se ajoelhou e revolveu as brasas, mas estavam realmente mortas. Kieran espirrou.

— Merda! — praguejou. — Acho que estou me resfriando. — Eu sei que estou — confirmou Fortune. — Não pode acen­der o fogo?

— Vou ter de descer ao salão para pegar algumas brasas ardentes, porque estas já viraram cinzas. — Ele espirrou mais duas vezes.

Fortune não conseguiu se conter. Ela riu alto, mas tratou de explicar rapidamente sua reação agravante ao marido.

— Acho que há uma lição nisso, Kieran. Não faça amor molhado nem durma na cama úmida em uma noite fria de pri­mavera. Acho que devemos nos vestir e, depois, vamos nos aquecer no salão. Os criados cuidarão de tudo por aqui. Preci­so de uma terrina de mingau de aveia e de uma boa caneca de cidra quente.

— Concordo. Mas que tivemos uma noite inesquecível... Ah, isso é inegável!

Fortune não conteve as gargalhadas.

Abril chegou ao fim, e o tempo dos Leslie em Ulster se abre­viava. Kieran havia reunido diversas famílias católicas e ho­mens e mulheres solitários que se dispunham a fundar um novo lar no Novo Mundo. Eram 14 homens. A maior parte era com­posta por fazendeiros, exceto por Bruce Morgan, que havia sido aprendiz do pai e era um excelente ferreiro. Havia também um oficial de cobre, um curtidor de couro, um sapateiro, duas tece-lãs, dois pescadores e uma médica, a Senhora Happeth Jones, de Enniskillen. Ela havia sido expulsa de sua casa pelos vizi­nhos protestantes, que sugeriam que seus poderes de cura po­diam ser decorrentes de feitiçaria. Antes que o pior aconteces­se, a Senhora Jones havia pegado suas coisas e fugido para Maguire's Ford. Ela não tinha fé declarada, mas ouvira dizer que em Maguire's Ford havia mais tolerância do que em outras partes de Ulster, por isso fora para lá.

— É verdade que pratica bruxaria? — perguntou Kieran sem rodeios.

— É claro que não! — respondeu a Senhora Jones indigna­da. Ela era uma mulher rechonchuda e de rosto redondo emol­durado por cabelos negros, com faces rosadas e brilhantes olhos azuis que tudo estudavam com atenção. — Os ignorantes sem­pre tentam explicar o que não entendem valendo-se do argu­mento da bruxaria, senhor. Sou médica, porque meu pai me ensinou seu ofício. Domino a arte da cura, como minha mãe também o fazia. Ela tinha o dom. Eu também tenho essa habili­dade. Meu sucesso em Enniskillen despertou a inveja dos dois outros médicos da cidade, um deles cirurgião. Foram eles quem começaram os rumores. Não só era médica melhor que eles como sou mulher, e todos nós sabemos que as mulheres só ser­vem para ter filhos e manter limpa e arrumada a casa de um homem — concluiu ela com um sorriso irônico.

— Não tem marido?

— Não tenho tempo para um marido.

— Jones não é um nome de Ulster.

— Meus pais vieram de Anglesey. Meu avô era médico em Beaumaris. O povo de minha mãe era composto por mercado­res que comercializavam seus bens com a Irlanda. Como meu avô Jones tinha dois filhos, e ambos seguiram seus passos, meu pai, que era o caçula, não teve escolha senão deixar Anglesey em busca de um lugar onde pusesse aplicar seus conhecimen­tos. Anglesey é um lugar pobre, e um médico e seu primogêni­to eram mais do que suficientes. Eu sou filha única, e ainda era bebê quando ele se instalou em Enniskillen.

— A vida no Novo Mundo não vai ser fácil, Senhora Jones. Não tem ninguém para acompanhá-la?

— Taffy. — Ela respondeu calmamente. — Ele é o motivo pelo qual todos acreditaram que eu era feiticeira.

— Por quê?

— Taffy é um anão, senhor, e é mudo, mas muito inteligen­te. Entende tudo o que dizem. A mãe o abandonou quando per­cebeu que tipo de criatura ele seria. Eu o criei como se fosse meu próprio filho. Ele me auxilia e é meu farmacêutico. Não é feio. Apenas pequenino. E também tenho meus cães, senhor. Não tenho um gato por razões óbvias — concluiu ela, rindo.

Kieran também riu. Gostava dela e sabia que Fortune tam­bém a aprovaria.

— Há certas coisas que deve levar na viagem — explicou ele. — Tem dinheiro para comprar tudo que é necessário? Se não, podemos ajudá-la. Seus conhecimentos e os de seu assis­tente serão muito valiosos para nós.

— Quando partiremos?

— Minha esposa e eu iremos para a Escócia dentro de al­guns dias e de lá seguiremos para a Inglaterra. Depois, terei de ser apresentado a Lorde Baltimore, que organiza essa expedi­ção. Estou certo de que poderei convencê-lo a nos levar. Meu povo permanecerá em Ulster até que eu mande buscá-lo. Pode ser no verão, ou no próximo ano. Temos os navios, e nosso gru­po embarcará aqui. Não vai ser necessário viajar até a Inglater­ra. Os cavalos irão com vocês.

Adam Leslie celebrou seu 15º aniversário no dia 14 de maio. Agora ele era tão alto quanto o pai e se mostrava muito entu­siasmado com a perspectiva de se tornar senhor de si mesmo. Jasmine, porém, o chamou de lado.

— Você deve manter a paz aqui — disse ela. — Não pode permitir que hajam perseguições de católicos ou protestantes em Maguire's Ford. Muitos virão e tentarão convencê-lo a esco­lher um dos lados, Adam, mas você não deve ceder. Não há fé melhor nem pior que outra, apesar do que dizem certos ho­mens. Santo Agostinho disse: Ame a Deus, efaça o que quiser. É um bom conselho, meu filho. Espero que em um ano você vá a Dublin. Enquanto Rory Maguire estiver aqui, considere-se li­vre para se educar da maneira que julgar mais conveniente.

— Já tenho toda a educação de que preciso, mãe. Duncan ama os livros e os estudos. Eu sou diferente. Sei ler, escrever e fazer contas. Falo francês e italiano, embora não saiba de que isso poderá me servir. Agora quero aprender com Maguire como essa propriedade é administrada e como criar cavalos. Por fa­vor, liberte-me de uma vez por todas do bom, mas tedioso Samuel Steen.

Jasmine riu.

— Muito bem, Adam, está livre. Agora que tem tão grande responsabilidade sobre seus ombros, é melhor aprender a cui­dar dos negócios.

— Serei responsável por Duncan?

Jasmine pensou por um momento. Duncan Leslie tinha 12 anos de idade. Era um menino. Adam ainda era jovem demais para saber usar de autoridade. E o Reverendo Steen era um ho­mem de natureza doce demais para se impor sobre Duncan. Seria facilmente envolvido pelos garotos.

— Cullen Butler ficará responsável por seu irmão. E, quan­do ele não estiver aqui, Rory Maguire será o responsável. Não precisa de mais responsabilidades do que já dei a você, Adam.

— Se houver algum problema, os oponentes vão argumen­tar que um dos proprietários de Maguire's Ford está sob a guar­da de dois católicos. O que faremos se isso acontecer?

— Nesse caso, a autoridade suprema caberá a seu pai, Adam, e ele estará na Escócia. Sendo assim, nenhuma decisão impor­tante com relação a Duncan poderá ser tomada antes de Jemmie Leslie anunciar sua decisão. Estamos entendidos?

Adam riu.

— Sempre admirei sua astúcia, mãe.

Rory Maguire observava mãe e filho conversando. Algum dia voltaria a vê-la? Ou afilha deles? Era por Fortune que temia agora. O Novo Mundo ficava do outro lado do oceano, mas ele não faria essa viagem. Sua menina era uma delicada combina­ção entre ancestrais celtas e um imperador Mugal. E como ela amava Kieran Devers! Rory sorriu para si mesmo. Fortune ti­nha a mesma paixão e o mesmo fogo da mãe. E estava muito animada para começar essa grandiosa aventura com o homem amado.

Mal a conhecia. E ela o conhecia ainda menos. Rory levaria seu segredo para o túmulo. Só no dia em que se encontrassem no paraíso ela conheceria a verdade. Mas sentiria saudades de sua querida Fortune Mary. Aquele ano havia sido o melhor de sua vida, pois ela estava ali, ao alcance de seus olhos, em sua companhia, mas jamais poderia saber disso. Certa vez, no pas­sado, dera adeus à mãe dela e depois havia chorado enquanto tentava se convencer de que um homem não devia chorar. Des­sa vez choraria duas vezes mais, mas teria a satisfação de saber que sua filha seria amada. Não só pela mãe e por James Leslie, mas por aquele imponente filho de Ulster que se casara com ela. E Rory sabia que seu amor iria com ela, sua filha. Fortune Mary teria seu coração para sempre, como a mãe dela o tivera por todos aqueles anos.

A última coisa a ser resolvida antes de eles poderem deixar Maguire's Ford era o casamento de Róis com Kevin Hennessy. A cerimônia foi realizada na capela do castelo na manhã da partida do grupo. O jovem casal acompanharia Fortune e Kieran como criados pessoais, mas, quando chegassem ao Novo Mun­do, Kevin assumiria a responsabilidade pelos cavalos que se­riam levados com eles. Os pais de Kevin estavam mortos havia anos, e isso havia sido parte importante em sua decisão de dei­xar Ulster. Os pais e os avós de Róis a viram casar com seu amor de infância. Michael Duffy enxugou uma lágrima furtiva ao ver a filha casada, mas a mãe dele, Bride, chorava abertamente enquanto a neta proferia os votos. Todos sabiam que Bride cho­rava porque essa seria a última vez que ela veria sua adorada neta, a mais nova, e Róis sempre fora sua favorita.

No salão, todos brindaram aos noivos e desejaram sorte ao casal. Chegava o momento de partir. Jasmine despediu-se dos filhos, prometendo retornar em um ou dois anos para vê-los. O anúncio alegrou os inúmeros amigos que já imaginavam que nunca mais veriam a duquesa de Glenkirk.

— Não — riu Jasmine. — Tenho de me certificar de que esses dois vão fazer o que devem fazer. E um dia terei de en­contrar esposas para eles. Este aqui — ela afagou os cabelos de Adam — já anda olhando para as moças. Pensou que eu não soubesse? Mesmo na Escócia, terei conhecimento de tudo o que fizerem por aqui, meus filhos. — Ela abraçou os dois.

E olhou para Rory.

— Continue como era no passado, velho amigo. Não me enganei quando o elegi como meu homem de confiança em Ulster. Sou grata por tudo que fez, Rory Maguire, e por tudo que ainda fará. Prometo voltar. —Jasmine inclinou-se para bei­já-lo no rosto. — Adeus, Rory. Até nosso próximo encontro.

— Por que está vermelho como uma beterraba, Rory Maguire? — perguntou Fortune rindo quando o abraçou e o beijou. — Mamãe o surpreendeu, não é? Mas não a mim. Já deve saber que o adoro, padrinho. Vou sentir sua falta. Tem certeza de que não quer ir conosco para o Novo Mundo? Imagine que belos cavalos vamos criar com as matrizes que levaremos daqui! Ulster é um lugar triste... Que fica mais triste a cada dia.

Rory a estreitou entre os braços, saboreando por um mo­mento a doçura de ter uma filha. Depois respondeu:

— Eu não deixei o povo de Maguire's Ford quando minha família partiu de Ulster com os condes há muitos anos. Não vou abandonar tudo agora. Mas agradeço sua oferta. — Ele a beijou no rosto. — Está partindo com um bom marido, Fortune Mary, e isso é, afinal, o que veio buscar em Ulster. — Ele sorriu, fitando seus belos olhos. — Vá com Deus, e que sua viagem seja segura e pacífica. Se quiser escrever para mim de vez em quando, vai me deixar muito satisfeito, e prometo responder às cartas. — Segurando-a pelos ombros, ele a beijou uma última vez na testa.

Fortune sentiu uma súbita e repentina tristeza. Seus olhos se encheram de lágrimas. Olhando para os de Rory Maguire, também os encontrou úmidos.

— Oh, Rory, vou sentir tantas saudades! Prometo que es­creverei — ela soluçou. ,

— Leve sua esposa, Kieran Devers, antes que ela comece a chorar sobre o veludo do meu colete — resmungou Rory, empurrando-a para os braços do marido.

Kieran abraçou Fortune e estendeu uma das mãos para Rory Maguire.

— Adeus, bom amigo. Sabe o que espero que faça por mim, não é?

— Sim, eu sei. Cuidarei dos túmulos, prometo.

Foi a vez de James Leslie despedir-se de Rory Maguire.

— Cuide dos meus garotos — pediu ele. — Sei que Adam vai aprender muito com você.

— Farei tudo o que estiver ao meu alcance, milorde. Bride Duffy, ainda choramingando, deu adeus a todos.

Fergus Duffy conduziria a carruagem até o porto, onde o navio os aguardava.

Jasmine trocou as últimas palavras com o primo, Cullen Butler.

— Tenha cuidado, Cullen. Não quero mártires pesando em minha consciência. Isso tudo é muito delicado, e não quero o fantasma de minha mãe pairando sobre mim, censurando meus atos e minhas decisões.

— Não agi bem todos esses anos, minha querida? — per­guntou o padre.

— Tudo mudou muito nesse último ano que passamos aqui, Cullen. Os protestantes militantes tornaram-se mais ferozes e ruidosos e tendem a fazer mais barulho com o passar do tempo. A Inglaterra comanda a Irlanda, e na Inglaterra o próprio rei está lidando penosamente com os puritanos para manter a ordem. Ele precisa ser muito cauteloso, ou sua rainha francesa católica será acusada de tê-lo influenciado. Vivemos tempos difíceis, não acredito que a situação vá melhorar tão cedo. Cau­tela e previdência são sempre características úteis, mesmo em um sacerdote.

— Deus vai olhar por mim.

— Deus ajuda a quem se ajuda — lembrou ela com um sor­riso triste. — Cuide dos meus meninos. Se alguém tentar inter­ferir ou forçar sua mão, lembre-se de que o duque de Glenkirk é a autoridade final em qualquer questão relativa aos filhos dele, Cullen.

O sacerdote beijou a mão dela.

— Deus a abençoe, prima. Agora vá.

Os Leslie e os Devers partiram para a.costa. A enorme baga­gem que Fortune levara ao castelo no ano anterior era agora ainda maior e já havia sido despachada no dia anterior. Havia apenas um coche de viagem: um veículo que transportava a bagagem necessária, Rohana e Adali. Os dois outros criados, assim como seus senhores, preferiam cavalgar a enfrentar o confinamento da carruagem. Eles evitaram Appleton no cami­nho de volta, percorrendo uma distância um pouco maior para poderem passar a noite na hospedaria Golden Lion, da Senho­ra Tully.

Quando chegaram à costa, encontraram a bagagem já es­perando nas docas, sendo embarcada no navio que os levaria de volta à Escócia. Lentamente, as carroças eram esvaziadas, e os baús e as arcas carregados pela prancha de embarque para serem acomodados no porão do navio.

— Felizmente nos preveniu para virmos vazios, milady — comentou o capitão sorrindo ao cumprimentar Jasmine. — Fico feliz por ver que a jovem senhora encontrou o que veio buscar em Ulster.

A duquesa de Glenkirk sorriu.

— Sim — respondeu. — Fortune provavelmente obteve mais do que esperava encontrar, capitão.

A viagem foi curta. Ao ver desaparecer a costa de sua terra natal, Kieran Devers sentiu um leve aperto no peito, mas não se arrependia por ter decidido partir. Estavam fazendo o que era certo, e antecipava com alegria a aventura que tinham pela fren­te. Nunca havia estado fora da Irlanda, diferentemente de sua jovem esposa, para quem viajar era algo comum e corriqueiro. Especulava sobre o que seria deles. O que fariam se Lorde Baltimore os recusasse? Esperava que a influência do sogro os ajudasse, pois queria saber como era esse Novo Mundo.

Kieran Devers olhou para a costa da Escócia, que agora podia ser vista, depois de dois dias no mar. Seu braço repousa­va sobre os ombros de Fortune, e ela sorria.

— Tudo vai dar certo, Kieran, meu amor. Eu sinto. No fundo do meu coração. Nosso lugar está no Novo Mundo. Lá cons­truiremos uma vida esplêndida e grandiosa, um futuro mara­vilhoso para nós e nossos filhos. Lorde Baltimore certamente nos aceitará. Como poderia nos recusar?

— Nunca em toda minha vida senti o peso da responsabili­dade como agora, Fortune — admitiu Kieran. — Sempre tive de responder apenas por mim mesmo. Morei na casa de meu pai, onde havia proteção e segurança. Agora tudo é diferente. Tenho você para amar, mas não temos um lugar para chamar de nosso, onde possamos viver juntos. Não temo, mas confes­so que me preocupo, meu amor.

— Não precisa se preocupar, Kieran. Já disse: tenho certeza de que o que estamos fazendo é o certo. O mundo é nosso! — e seu sorriso confiante o convenceu de que tudo realmente daria certo.

Capítulo 14
George Calvert era filho de Leonard Calvert, um cavalheiro do campo, e de sua esposa Alicia. Ele nasceu em Yorkshire no ano de 1580.0 pai era protestante, e ele havia sido criado como um, mas a mãe era uma católica que praticava sua fé em silên­cio. Calvert fora educado no Trinity College, em Oxford. Ao concluir seus estudos, partiu numa turnê pelo continente, como era comum entre os cavalheiros de sua posição. Na embaixada inglesa em Paris, teve a sorte de conhecer Sir Robert Cecil, Se­cretário de Estado a serviço da rainha. Cecil gostou do jovem circunspecto e ofereceu a ele uma posição em sua equipe.

Elizabeth Tudor faleceu, e James Stuart foi coroado rei. Cecil foi mantido em sua posição e fez de George Calvert seu secre­tário particular. Aquela altura, George havia contratado um casamento com Anne Mynne, uma jovem de boa família de Hertfordshire. Os Calvert deram ao primeiro filho o nome de Cecil, em honra ao patrono de George. Outros filhos nasceram. Mais três meninos e duas meninas.

Sir Robert tornou-se o Conde de Salisbury, o que só fez ele­var a estatura e a visibilidade de George Calvert. Quando o rei e a rainha fizeram uma visita a Oxford em 1605, Calvert estava entre os cinco homens a receber um diploma da universidade. Os outros quatro cavalheiros eram nobres de elevada posição. O rei passou a enviar o secretário de Sir Robert em seus assun­tos oficiais na Irlanda, pois gostava dele, confiava em sua leal­dade e sabia que era muito competente.

Quando Cecil morreu, em 1612, o rei manteve George em seu posto e, 5 anos mais tarde, sagrou-o cavaleiro. Pouco de­pois, Sir George Calvert foi feito Secretário de Estado do rei e membro do Conselho Privado. O filho do homem do campo chegara bem longe.

Trabalhador esforçado, homem honesto por natureza, Calvert era muito apreciado pelos homens com quem lidava diariamente. Não tinha inimigos, com poucas exceções na cor­te. Com o aumento rápido de sua fortuna, ele e a esposa plane­javam uma casa maior em Kiplin, Yorkshire, onde ele havia cres­cido. Mas Anne morreu no parto de seu sexto filho e, devastado, George Calvert decidiu se voltar para a religião católica de sua mãe em busca de consolo e conforto. Ele mantinha a nova fé em segredo, obedecendo às leis severas impostas aos cidadãos da Inglaterra.

Infelizmente, foi nesse tempo que o Rei James pediu ao fiel servidor que participasse de um comitê que se formava com o propósito de julgar um grupo de homens que se negavam a per­tencer à Igreja da Inglaterra. Alguns eram católicos; outros, pu­ritanos. A consciência e a ética de George Calvert falaram mais alto. Ele não podia assumir aquela tarefa nas circunstâncias re­ligiosas em que se encontrava. Assim, antes falou com seu se­nhor, o rei, e depois anunciou publicamente sua conversão ao catolicismo. Ele se desligou do gabinete, desistindo inclusive do posto de Secretário de Estado, apesar de o rei ter proposto liberá-lo do juramento de supremacia, o que poderia mantê-lo no serviço real. A verdade era que não se encontrava com facili­dade cavalheiros da competência de Sir George Calvert.

Além disso, James Stuart era um homem honrado que va­lorizava as poucas amizades verdadeiras que possuía. Ele sa­bia que, apesar da fé cristã, George Calvert seria sempre leal a ele e a seus herdeiros. Poderia ter enviado o ex-secretário para a torre. Em vez disso, ele o fez barão na linhagem irlandesa, com terras em County Longford. Depois, como o novo Lorde Baltimore sempre havia desejado fundar uma colônia no Novo Mundo, o rei deu a ele uma vasta extensão de terra na penínsu­la Avalon em Newfoundland.

Colonizadores foram enviados para lá e, mais tarde, Sir George seguiu com a nova esposa e a família. Em pouco tempo, descobriu que Newfoundland não era um lugar muito hospi­taleiro. Os ventos se estendiam desde o meio de outubro até o mês de maio. Não havia tempo para plantar e colher grãos. A pesca era excelente e poderia se tornar um empreendimento lucrativo, apesar de os franceses começarem a assediar Avalon. Calvert enviou a família para a Virgínia, no sul, e passou o in­verno na colônia. Com a chegada da primavera, descobriu, ali­viado, que havia conseguido sobreviver. Então, mandou uma carta ao rei explicando a situação e partiu para encontrar a es­posa na Virgínia. Com tristeza, George Calvert deduziu que Avalon não era a colônia que ele desejava fundar.

Uma vez reunido à família em Jamestown, dedicou-se a encontrar território mais propício, onde poderia realizar o so­nho de implantar uma colônia na qual todas as religiões fos­sem igualmente toleradas. Os amigos o receberam bem na Vir­gínia, mas também havia entre muitos a suspeita de que sua escolha religiosa o faria mais leal aos correligionários que se es­palhavam desde a Espanha até o sul da Virgínia do que aos seus compatriotas. Ignorando-os como podia, George Calvert come­çou a procurar por terras no sul, mas, apesar do clima agradável, não havia ali local de águas suficientemente profundas para per­mitir a ancoragem dos navios ingleses que transportariam su­primentos e homens. Aquela altura, uma carta do rei esperava por ele em Jamestown, ordenando que retornasse à Inglaterra.

Porém, antes que pudesse receber a carta, George Calvert chegou ao norte da Virgínia, à região de Chesapeake. O que ele viu o encheu de entusiasmo. Havia ali grandes baías abrigadas e portos onde as ondas não ultrapassavam meio metro em dias normais. As baías, que se encontravam formando uma área bem vasta, eram alimentadas por numerosos rios, alguns navegá­veis até bem perto do continente. A região era repleta de peixes, patos e gansos. Nas florestas que contornavam Chesapeake havia perus, cervos e coelhos. Ele reconheceu numerosas árvo­res cuja madeira serviria para a construção de casas e navios. George Calvert, Lorde Baltimore, acreditava ter encontrado o paraíso onde fundaria sua colônia.

De volta a Jamestown, recebeu a missiva real e retornou imediatamente à Inglaterra, deixando para trás a segunda es­posa e os filhos. Seu objetivo era obter uma licença para ocupar as terras da área de Chesapeake, pois aquele era o local perfeito para sua colônia. Na Inglaterra, James I estava morto, mas Charles I, seu filho, era igualmente apegado a Lorde Baltimore. Ele decidiu que o velho amigo e fiel servidor de seu pai parecia cansado e enfraquecido, e tentou dissuadi-lo da idéia de come­çar uma nova etapa de vida no Novo Mundo. Porém, Charles I finalmente compreendeu que George Calvert não se deixaria dissuadir até que pudesse fundar a colônia sobre a qual falava por tantos anos. Quanto à tolerância religiosa, o rei duvidava de que ela pudesse ser alcançada, mas deixou o cavalheiro fa­zer sua tentativa.

Lorde Baltimore obteve a terra mediante decreto real: até o real meridiano da primeira nascente do Rio Pattowmeck. Criada a propriedade, os direitos do Lorde sobre esse território eram pra­ticamente equivalentes aos de um rei. Ele podia criar leis, for­mar um exército, perdoar criminosos, conferir direitos e distri­buir títulos. E o Rei Charles deu ao amigo de seu pai um direito especial que não havia sido dado nem mesmo à colônia de Vir­gínia: a colônia de Lorde Baltimore poderia negociar com qual­quer país que quisesse; em troca, o rei receberia um quinto de qualquer ouro ou prata encontrados na colônia, bem como o pagamento anual de impostos.

Quando o mapa da nova colônia era traçado, o rei sugeriu que, como o lugar ainda não recebera um nome, talvez Lorde Baltimore pudesse dar à região o nome da rainha. George Calvert concordou. Terra Mariae passou assim a fazer parte do mapa, mas logo passou a ser chamada por seu apelido inglês Mary's Land, ou Terra de Maria.

Lady Baltimore e as crianças foram levadas para lá, mas, depois de uma viagem tranqüila, o navio em que eram trans­portadas naufragou na costa inglesa, desastre que não deixou sobreviventes. Lorde Baltimore ficou devastado. Havia perdi­do duas esposas e vários de seus filhos. Exausto, esgotado por muitos anos de trabalho duro, entristecido além do que era pos­sível descrever, morreu repentinamente em 15 de abril de 1632. Dois meses mais tarde as terras foram designadas oficialmente ao segundo Lorde Baltimore, Cecil Calvert, um belo jovem de 27 anos.

Em Glenkirk, James Leslie havia sido informado sobre tudo isso pelo enteado, Charles Frederick Stuart, duque de Lundy. As notícias chegaram quando Kieran e Fortune se preparavam para seguir viagem para a Inglaterra ao sul.

— Duvido que ele consiga zarpar ainda este ano — disse o duque —, mas não saberão enquanto não conversarem com Lorde Baltimore. Irão primeiro a Queen's Malvern, e Charlie os orientará quanto ao próximo passo. Não conheço essa gente, mas como todos estão ligados à corte, Charles certamente os conhece.

James Leslie e a esposa decidiram que não iriam para o sul com a família na costumeira visita anual de verão. O duque esti-vera afastado de suas terras por muito tempo e não viajaria no­vamente tão cedo. Jasmine ainda se recuperava do parto havia sete meses. Não queria levar um bebê ainda tão jovem quanto Autumn em outra jornada. A viagem de volta para casa já havia sido excessivamente arriscada para uma criança tão adorada e preciosa. Fortune e Kieran iriam sozinhos para a Inglaterra.

Com a aproximação do dia da partida, a duquesa de Glenkirk se entristecia. Quando sua segunda filha se fosse, não teria mais nenhum de seus filhos em casa, exceto Patrick Leslie, agora com 16 anos. Embora amasse a mãe e tolerasse sua preocupação, ele se considerava um homem. A pequena Autumn Rose crescia tão depressa que Jasmine tinha a impressão de que piscaria e a veria adulta, também deixando o lar.

Fortune sentia a tristeza da mãe e tentava alegrá-la.

— Ela é só um bebê, mãe. Ainda a terá em sua companhia por muitos anos. E poderá se dedicar a ela como não conseguiu se dedicar realmente a nenhum de nós. Acho que Autumn tem muita sorte, mãe.

— Sim — respondeu Jasmine, animando-se um pouco. Fortune era muito astuta. Ela sempre havia sido sua filha mais prática. Quando ela e os irmãos eram pequenos, Jasmine esti-vera na corte. Não tivera para nenhum deles o tempo que teria para sua caçula, — Vou sentir saudades — confessou a duque­sa de Glenkirk.

— Eu também, mamãe. Por um lado, estou muito entusias­mada com a idéia de ir para o Novo Mundo, mas, por outro, confesso que tenho um pouco de medo. É uma aventura grandiosa e, como bem sabe, nunca fui aventureira. Nunca planejei viver nada disso. No entanto, aqui estou eu, partindo para o desconhecido com meu querido Kieran. Por que as pessoas não podem conviver com suas diferenças religiosas? Assim eu não teria sido forçada a deixar Ulster. Acha que essa Mary's Land vai mesmo ser um local de tolerância mamãe? E se não for? Para onde iremos, então?

— Voltarão para casa, pára Glenkirk, onde terão nossa pro­teção — respondeu a duquesa com firmeza. Depois, abraçou a filha. — Você e Kieran serão sempre bem-vindos aqui, Fortune. Sempre!

Era tão difícil partir, Fortune pensou no dia em que deixou Glenkirk. Havia grande possibilidade de nunca mais voltar a ver o lugar onde havia crescido. Um oceano a separaria de casa, e, depois de atravessá-lo uma vez, não sabia se teria coragem para repetir a jornada de volta. Como sempre dizia, não era um espírito aventureiro. Mas não era uma aventura o que começa­va a viver? O lugar para onde se dirigiam era selvagem. Não havia castelos, casas, cidades nem comércio. Como sobrevive­riam? E que escolha tinham?

Fortune fingiu grande coragem e despediu-se daqueles que amava. O padrasto, James Leslie; a mãe, Jasmine; o irmão, Patrick Leslie; a irmã caçula, Autumn. Todos os criados chora­vam. Pela primeira vez notou que eles envelheciam. Nunca mais os veria, compreendeu repentinamente. Foi com grande emo­ção que a jovem abraçou Adali, o mordomo que a vira nascer e crescer. Não havia palavras para expressar o que sentia em seu coração. Ele a abraçou em silêncio, depois se virou, mas não com rapidez suficiente para esconder as lágrimas. Rohana e Toramalli a abraçaram e a beijaram chorando profusamente.

Fortune e Kieran deixaram Glenkirk levando em seu rastro uma enorme procissão de carroças contendo arcas e baús. Até os limites de Queen's Malvern o casal viajou protegido por uma tropa armada composta pelos homens de Leslie. A viagem era pacata, sem grandes eventos, mas, para Kieran, Róis e Kevin, era tão excitante quanto havia sido a viagem desde Ulster. Para Fortune era só mais um deslocamento pelo verão inglês.

Charles Frederik Stuart, o duque de Lundy, os esperava em sua casa, Queen's Malvern. A propriedade havia sido dada aos bisavós dele por Elizabeth Tudor e transferida para ele com a bênção de seu avô, o Rei James. Posteriormente, o rei dera ao neto um ducado. Charlie, como a família o chamava, era alto e esbelto, com cabelos claros e os olhos cor de âmbar dos Stuart. Ele era mais parecido com o pai, o falecido Príncipe Henry, do que com a família da mãe. Completaria 20 anos em setembro e era um cortesão tão polido e elegante quanto seu tio-avô Robin Southwood, o conde de Lynmouth, havia sido em sua idade.

— Parece feliz e satisfeita — comentou ele ao cumprimen­tar a irmã mais velha. Havia em seus lábios um sorriso malicio­so e debochado. — É óbvio que o casamento lhe fez muito bem, Fortune.

— Sempre um Stuart, como mamãe gosta de dizer — res­pondeu ela, rindo.—Este é meu marido, Kieran Devers. Kieran, este é Charlie, nosso Stuart não tão real.

Os dois homens trocaram um aperto de mãos e experimen­taram uma simpatia recíproca e imediata.

— Henry chegará de Cadby em alguns dias — contou Charlie à irmã. Em seguida, explicou ao cunhado: — Ele é nos­so irmão mais velho.

Todos se dirigiram ao salão da casa, onde criados já se mo­vimentavam para servir os hóspedes. Reunidos em torno da lareira, visto que o dia de junho era frio, conversavam.

—Papai disse que você saberia como entrar em contato com Lorde Baltimore — disse Fortune ao irmão.

— Ele está no Castelo de Wardour em Wiltshire.

— E como podemos chegar lá? — indagou Kieran, impa­ciente.

— Fortune ficará aqui — anunciou Charlie. — Você e eu seguiremos viagem a cavalo dentro de alguns dias. Mandarei um mensageiro marcar uma entrevista com ele, pois sua expe­dição é extremamente popular e ele é muito assediado por aque­les que estão interessados em acompanhá-lo. Muitos, é claro, querem apenas conquistar terras, propriedades que deixarão aos cuidados dos colonizadores enquanto eles, os proprietá­rios, retornam à Inglaterra e à boa vida da corte. Cecil Calvert, como o pai antes dele, quer colonizadores responsáveis, que se comprometam em permanecer em Mary's Land. Creio que vocês se qualificarão, e isso, além da capacidade de se susten­tar, pesará em favor de uma decisão positiva. Sem mencionar que eu, sobrinho querido do rei, intercederei pessoalmente pe­dindo um lugar para minha irmã e seu marido na expedição.

— Temos navios próprios — lembrou Fortune. — Eu vou com vocês, Charlie. Não vai me deixar aqui enquanto se diver­te com meu marido.

— Wardour não é lugar para mulheres. Uma importante expedição está sendo planejada naquele lugar. Há muitos ho­mens, e agora você é uma respeitável mulher casada, minha irmã.

— Lorde Baltimore não tem uma esposa, Charlie?

— Sim, Lady Anne Arundel.

— Ela está lá?

— É claro que sim! O castelo é do pai dela!

— Nesse caso, vou com vocês. E um cortesão, Charlie, e não sabe muito além das coisas da corte. E meu marido é um cavalheiro do campo recém-chegado de Ulster, ainda não co­nhece o estilo inglês de fazer negócios. Eu tenho de ir. Sou a única aqui com natureza prática, vamos precisar da minha ca­pacidade de negociação.

— Ela está certa — Kieran a apoiou. — E vai ser muito agra­dável ter a companhia de minha esposa.

O jovem duque refletiu por um momento, depois sorriu.

— Como sempre, você está correta, irmã. Havia me esque­cido de que é a mais sensata entre nós. Sim, você vem conosco, mas viajaremos a cavalo. Nada de criados nem roupas elegan­tes. Wardour em Tisbury fica a muitos dias de viagem de Queen's Malvern. Talvez voltemos por Oxton para visitar Ín­dia e a família dela.

— Oh, que notícia encantadora! — respondeu Fortune, en­tusiasmada.

Eles enviaram uma mensagem a Cadby para Henry Lindley, informando que estavam partindo para Wiltshire e que o ve­riam quando retornassem. Róis e Kevin foram deixados aos cuidados dos criados de Queen's Malvern, e o trio partiu numa manhã clara de junho. Kieran surpreendeu-se ao constatar que a esposa era perfeitamente capaz de cuidar de si mesma. Não havia percebido antes, e de repente era forçado a reconhecer que sabia muito pouco sobre Fortune. Eles chegaram ao Caste­lo de Wardour vários dias mais tarde. A construção tinha forma hexagonal e o Grande Salão ficava acima da entrada.

Cecil Calvert os recebeu pessoalmente.

— Charlie! É um prazer vê-lo, milorde! O rei está bem?

— Não vou à corte há um mês — respondeu Charlie. — E hoje estou aqui para pedir-lhe um favor, Cecil. Esta é minha irmã, Lady Fortune, e o cavalheiro é marido dela, Kieran Devers. Kieran era herdeiro de uma encantadora propriedade em Ulster, mas sua madrasta, uma inglesa, decidiu que o filho dela, meio-irmão de Kieran, seria melhor senhor para Mallow Court.

— É católico? — perguntou Lorde Baltimore com tom com­preensivo.

— Sim, milorde, eu sou — respondeu Kieran.

— Eles querem ir com você, Cecil — resumiu Charlie. Lorde Baltimore parecia preocupado.

— Já temos mais gente do que eu havia antecipado.

Fortune decidiu que era hora de falar.

— Temos nossos próprios navios, milorde. Meus dois na­vios de comércio. O maior será usado para nosso transporte. O outro levará os cavalos. E temos colonizadores, também. Qua­torze homens. Cinco agricultores, dois pescadores, dois oficiais de tecelagem, um ferreiro, um artesão em cobre, um curtidor, um sapateiro e um farmacêutico. Os cinco agricultores têm es­posas e filhos. Todos são saudáveis, esforçados e de bom cará­ter. E temos uma médica, a Senhora Happeth Jones, mais dois criados pessoais meus. Podemos cuidar das provisões de nos­sa gente e da manutenção de nossas naus, milorde. Por favor, aceite-nos. Não há outro lugar para nós, pois meu marido é ca­tólico, mas eu sou anglicana. Dizem que em Mary's Land to­das as fés serão toleradas. É o lugar perfeito para nós.

Cecil Calvert olhou para a adorável jovem diante dele. Ela usava um traje próprio para montar — uma calça revestida de couro de cervo na parte traseira — que chegava a ser ofensivo aos costumes puritanos da Inglaterra, mas era possível notar que suas roupas eram caras e elegantes. As mãos eram de uma dama. Seu discurso era refinado.

—Não vai ser um lugar muito fácil para viver, Lady Lindley. Terão de construir sua própria casa, e isso vai ser apenas o co­meço. Falamos aqui de uma região ainda por desbravar. E há outros perigos, também. Alguns nativos não são exatamente amistosos, tão propensos à guerra quanto franceses e espanhóis, embora eu tenha esperança de negociar a paz com esse povo. Terá de levar tudo de que possa necessitar, pois não encontrará nada lá. Estará longe de sua família, que, como Charlie já me contou, é grande e amorosa. Não verá seus irmãos e irmãs por muitos anos, se é que voltará a vê-los. Tem certeza de que é isso o que quer, milady? Empreender essa grande jornada para vi­ver em um mundo novo e desconhecido?

— Sim, milorde. Estou certa de que é isso o que quero.

— E eu contrairia com você uma dívida de gratidão, Cecil — anunciou Charlie com expressão significativa.

Lorde Baltimore sorriu.

— Não, Charlie. Será um prazer oferecer à sua irmã e ao ma­rido dela um lugar em minha colônia. Eles são as pessoas que realmente desejo ter comigo. Farão alguma coisa proveitosa da terra que lhes for dada e ficarão para construir a colônia. Venham, vamos conversar em meus aposentos particulares. Contarei tudo que está envolvido na empreitada e o que vocês receberão em troca. — Ele tomou as mãos de Fortune. — Lembro-me de você e de sua irmã Índia na corte. Naquela época, vocês eram duas das mais belas damas naqueles salões. Quando partiu, deixou para trás muitos corações partidos. — Ele os conduziu por um corre­dor de pedras até uma sala de paredes revestidas de madeira. Havia ali um fogo acolhedor. Lorde Baltimore acomodou seus convidados e sentou-se entre eles. — Agora — disse, olhando para Fortune e Kieran — para cada pedaço de terra que eu con­ferir, terei em troca um juramento de lealdade, considerando que sou o proprietário da colônia. Vocês receberão mil acres para cada cinco homens que levarem. Como já têm quinze homens, terão três mil acres, Senhor Devers. Quero vinte libras por cada homem transportado. Mulheres e crianças não pagam pela in­clusão. Cada colonizador do sexo masculino terá cem acres para si mesmo, e se levar a esposa terá mais cem acres. Cinqüenta acres serão acrescidos para cada filho com mais de 16 anos. Eles pagarão vinte pences ao ano como impostos por cada cinqüen­ta acres. Vocês pagarão vinte libras anuais.

Fortune e Kieran ouviam com atenção.

— Cada indivíduo de seu povo deverá ter um mínimo de dois chapéus, dois ternos, três pares de meias, sapatos, um machado, uma serra, uma pá, pedras, uma pedra amoladeira, um espeto, uma grelha, uma panela, uma chaleira, uma frigideira e boa extensão de lona. As mulheres, é claro, levarão ves­tidos no lugar de ternos. Cada homem vai precisar de um mosquete, dez libras de pólvora, dez libras de chumbo, balas, uma espada, um cinturão, uma bandoleira e um recipiente para líquidos. Seu povo, homens e mulheres, terão de saber atirar, pois não poderão depender apenas dos cavalheiros da expedi­ção para se protegerem.

Kieran assentiu.

— Que tipo de suprimentos devemos estocar para nossa alimentação? — quis saber ele.

— Farinha, grãos, queijo, peixe seco, carne e frutas. Barris de cerveja, cidra e vinho. E sementes. Vocês receberão uma lis­ta de tudo que devem levar, pois enfrentaremos um inverno e uma primavera antes de podermos comer de nossa terra.

— Quer dizer que pretende viajar este ano? — Kieran esta­va surpreso. Seu sogro e Charlie haviam dito que acreditavam que a expedição de Lorde Baltimore não partiria antes do pró­ximo ano. Teriam de mandar buscar sua gente e começar os preparativos o quanto antes. Rory Maguire receberia a quantia necessária para providenciar os suprimentos. — Quando? — Estava aflito. Havia muito por fazer.

— No outono. Sei que não é o melhor período para viajar, mas não temos escolha. Diferentemente de meu pai, tenho ini­migos que se opõem à colonização de Mary's Land.

Os representantes da colônia da Virgínia estavam muito agitados. Eles protestavam, alegando ao rei que o estabeleci­mento da colônia de Mary's Land representaria perda de terra e de colonizadores para eles. E se opunham à criação de uma área onde toda gente — católicos, inclusive — poderia praticar sua religião sem interferência. Depois, começaram rumores de que somente católicos seriam aceitos em Mary's Land, e não pouparam esforços para tentar convencer o Rei Charles a res­cindir a permissão concedida a Lorde Baltimore. O rei ouvia todos, mas não perdia de vista a lealdade com que George Calvert servira sua família. Sua jovem rainha católica repetia seus apelos discretos para que ele ignorasse os descontentes.

—A permissão será mantida — disse o rei à esposa. — Creio que os sonhadores que seguem nosso bom Calvert acreditam realmente que podem criar um lugar onde todas as religiões serão toleradas e praticadas em harmonia. Sendo a natureza humana o que é... — ele encolheu os ombros. — Mas eles têm o direito de tentar. E nós vamos orar para que tenham sucesso.

Os detratores de Calvert continuavam trabalhando em si­lêncio, tentando destruir o sonho de Lorde Baltimore. Cecil Calvert compreendeu que não poderia seguir com seus coloni­zadores. Não naquele momento. Ele pôs o irmão mais jovem, Leonard, no comando da expedição, e outro irmão, ainda mais jovem, foi feito governador assistente da colônia. Jerome Hawley e Thomas Cornwallis foram nomeados para auxiliar os Calvert como comissários. Os preparativos prosseguiam tendo em vis­ta a partida no outono. Kieran e Fortune voltaram a Queen's Malvern para se prepararem também. Não havia tempo para irem visitar Índia em Oxton.

Em Queen's Malvern, Fortune percebeu que seu elo com os ciclos da lua se haviam quebrado. Esperava um filho. A des­coberta causou-lhe grande agitação. Sabia que, se soubesse de sua condição, o marido não a deixaria seguir viagem para a colônia antes do nascimento do bebê. Se fosse Índia, teria guar­dado o segredo, mas não era. Era a filha prática e sensata, e ainda assim... Ela suspirou.

— O que foi? — perguntou seu irmão ao encontrá-la senta­da em um banco no jardim de Queen's Malvern. Ele se sentou ao seu lado e segurou sua mão.

— Tenho um problema para solucionar — contou Fortune.

— Está em dúvida sobre se quer mesmo deixar a Inglater­ra? — não entendia a decisão da irmã de ir viver em lugar des­conhecido, selvagem e inóspito. Havia católicos vivendo na In­glaterra. Não era fácil, mas...

— Mary's Land é o lugar onde meu marido e eu viveremos. Nunca me senti realmente em casa em nenhum lugar, e Kieran confessou ter essa mesma sensação. Sabemos que lá seremos felizes. Não é essa a minha dificuldade, meu irmão.

— Então, só posso supor que ainda não contou ao seu ma­rido sobre o filho que está esperando.

Fortune estava perplexa.

— Como soube?

Charles Frederick Stuart riu alto.

— Quantos filhos teve nossa mãe? Eu fui o quarto. Cinco vieram depois de mim, Fortune. Sei quando uma mulher espe­ra uma criança. Para quando é o bebê?

— Não sei. E não se atreva a rir de mim, Charlie! Sempre imaginei que mamãe estaria comigo quando meu primeiro fi­lho nascesse. Ela deveria estar aqui para me dizer quanto tem­po uma criança leva para crescer dentro de uma mulher. O que vou fazer? — ela se levantou e começou a andar de um lado para o outro.

— Quando seu elo com os ciclos da lua se rompeu?

— Não vejo meu fluxo de sangue desde que saímos de Glenkirk.

— Provavelmente, no início da primavera, então, mas vou escrever para mamãe para ter certeza. Enquanto isso, sugiro que fale com seu marido, Fortune. Ele precisa saber.

Fortune não sabia como informaria Kieran da chegada de seu primeiro filho e como o convenceria a lhe permitir que o acompanhasse na viagem para Mary's Land. Não conseguia encontrar a coragem necessária para abordar o assunto. Sabia o que ele diria. Insistiria para que permanecessem na Inglaterra até a criança nascer, pois então poderiam viajar com seguran­ça. Afinal, não havia sido essa a decisão que seus pais tomaram no ano anterior em Ulster? E Autumn era o nono bebê de sua mãe, não o primeiro! Talvez devesse esperar para falar quando já estivessem no mar. Sim! Informaria Kieran sobre sua condição quando já fosse tarde demais para voltar atrás. Era a solu­ção perfeita.

Fortune não disse nada e passou a evitar os olhares curio­sos do irmão.

Acordava faminta todas as manhãs e vestia-se apressada para ir ao salão familiar juntar-se a Kieran e Charlie para a re­feição matinal. Comia com entusiasmo. Uma terrina de mingau de aveia com maçãs secas e creme. Pão quente coberto por man­teiga e acompanhado de uma grossa fatia de queijo cheddar. Dois ovos cozidos com sal e uma caneca de cidra doce. De repente, porém, seu estômago começou a se rebelar. Naquele dia, antes que pudesse se levantar, Fortune vomitou a refeição.

Os dois homens a olharam horrorizados, saltando apressa­dos para não serem atingidos.

— Querida, você está bem? — perguntou Kieran, preocu­pado.

— Ainda não disse a ele, disse? — interferiu Charlie com tom severo.

— Não me disse o quê?

— Sua esposa espera um filho — declarou Charlie, anteci­pando que a irmã poderia inventar uma desculpa qualquer para continuar adiando a revelação. — Ela planejava conversar com você.

— Quando? — indagou Kieran rispidamente. — Quando estivéssemos no mar?

— Sim — reconheceu ela. — Achei que seria melhor. Kieran bufou.

— Poria em risco sua vida e a de nosso filho só para fazer as coisas do seu jeito?

Os criados corriam para limpar o local, e os dois homens levaram Fortune para perto da lareira. Róis, que assistira a tudo, servia para sua senhora uma xícara de chá de hortelã.

— Beba devagar, milady. Vai acalmar seu estômago. De­pois trarei pão seco.

Fortune bebia o chá sentada em uma poltrona estofada. Olhando para o marido furioso, disse:

— Vai partir para Mary's Land sem mim, Kieran?

— É claro que não! — quase gritou para ela.

— Por isso eu não contei antes.

— Não está dizendo coisas coerentes, Fortune.

— Sim, estou, mas você se recusa a me ouvir. E pare de gri­tar comigo, Kieran Devers. Não vou admitir esse tratamento! — ela rompeu em lágrimas, soluçando profusamente.

Kieran não sabia o que fazer. Fortune estava errada e tenta­va envolvê-lo com suas lágrimas. Pois bem, não se deixaria manipular pela esposa. Não fosse pela gravidez, certamente deveria ser punida com a bronca que merecia.

— As mulheres ficam muito sensíveis e emotivas quando esperam um filho — explicou Charlie ao cunhado. — Dê um momento a ela, e tudo vai passar. Fortune, pare de chorar, mi­nha irmã, e explique-nos os motivos de sua decisão.

Ela ainda choramingou por alguns segundos, mas conse­guiu se controlar.

— Se não formos para Mary's Land com os primeiros na­vios, não obteremos as melhores terras. Temos de estar entre os primeiros! Não somos lordes influentes especulando em uma nova colônia, Kieran; estamos entre os poucos colonizadores abastados que pretendem permanecer em Mary's Land. Mui­tos dos nobres que participarão da expedição, se é que real­mente vão participar, em vez de enviar seus agentes, esperam obter lucro rápido. Vão povoar suas terras como puderem, com quem se dispuser a ir, e depois revenderão essas proprieda­des pelas ofertas mais altas. Levaremos nossos cavalos no pró­ximo ano. Precisamos de pastos para eles. Não podemos pas­sar os dias limpando florestas. Se estivermos entre os primeiros colonizadores, teremos os prados e receberemos nossas terras do próprio Lorde Baltimore. Se esperarmos, seremos forçados a comprá-las de outros proprietários. Temos de ir, Kieran! Não podemos ficar aqui!

— Por que não? — reclamou ele. — Há católicos na Ingla­terra. Não podemos comprar uma casa aqui? Teríamos uma vida pacata, simples...

— Você conhece as condições de vida dos católicos na In­glaterra. E os puritanos tornam-se mais poderosos a cada dia. Nem o rei está inteiramente livre de suas articulações, e tudo o que a rainha faz é criticado. E por quê? Porque ela é católica. Considera-me egoísta por desejar partir mesmo estando grávi­da. A Senhora Jones vai cuidar de mim durante a viagem, e eu não tenho medo. E é você o egoísta aqui, Kieran Devers!

— Eu? Como? Por quê? — ele ficou surpreso com a acusação.

— Você mesmo me disse que sua fé não é particularmente forte e que só se agarrou ao catolicismo por ser a única coisa que ainda tinha de sua mãe. Acredito que a decisão também foi uma forma de irritar sua madrasta. Porém, agindo assim, deu a ela a arma perfeita para atacá-lo e roubar de você Mallow Court. Mallow Court tem mil acres e Maguire's Ford tem mais três mil. Teríamos sido uma força indestrutível em Ulster, e certa­mente em toda Fermanagh, Kieran, mas você preferiu se agar­rar ao passado e discutir sobre religião como todos os outros. Amo você, Kieran Devers. Abri mão de uma grande e próspera propriedade para viver ao seu lado e não me arrependo dessa decisão. Terei um filho seu no início da primavera, e se não quer que eu deixe a Inglaterra nessas condições, acato sua decisão e permaneço na terra onde cresci. Mas, por Deus, meu marido, vá você com essa expedição e tome para nós os três mil acres de terra que tiverem melhor irrigação e forem mais férteis! Agora você é um homem com uma família, alguém dé muitas respon­sabilidades. Não sou Lady Jane. Não pode mais se esconder atrás de sua fé e usá-la para justificar seu orgulho, Kieran Devers!

Ele estava sem fala e não conseguiu dizer nada nem mes­mo quando Fortune levantou-se e saiu da sala.

— É seu primeiro sermão, suponho — comentou Charlie com uma tentativa frustrada de humor.

Kieran assentiu.

— As mulheres da minha família são temperamentais. É sensato não desafiá-las, se puder evitar o confronto. Elas são inteligentes e orgulhosas, Kieran. Minha irmã tem razão quan­do diz que você deve seguir para Mary's Land, embora ela mes­ma não possa viajar agora. Não são só vocês dois. Não mais. Toda aquela gente em Maguire's Ford espera uma ordem sua para se lançar numa nova vida. E em breve você será pai. Não pode mais fugir do seu dever, meu cunhado.

— Como alguém tão jovem como você sabe tanto sobre a vida? — murmurou Kieran, recuperando finalmente a capaci­dade de falar.

— Tive bons professores. Minha bisavó, Lady de Marisco. Minha mãe e meu padrasto. E, por natureza, minha linhagem conferiu-me grandes oportunidades. É preciso crescer depres­sa em uma corte real, Kieran, particularmente se seu desejo é sobreviver e prosperar. Ser sobrinho do rei nunca foi suficiente para mim.

— Tudo é muito novo e estranho para mim, Charlie. Não entendi realmente em que tipo de família estava ingressando quando me apaixonei por sua irmã. Somos provincianos de­mais comparados a vocês, mas só percebi a real extensão dessa diferença quando chegamos à Inglaterra. No momento em que vi Fortune, soube que precisava tê-la, mas agora me pergunto se não tentei agarrar mais do que posso controlar. Sou mesmo um homem capaz de formar um império em um mundo novo? Não sei. Vou desapontar Fortune se não tiver essa capacidade? E nosso filho? O que será de nosso filho?

— Em primeiro lugar, você precisa entender que todas as mulheres da nossa família trabalham com seus maridos. Todas têm essa mania irritante de ter e criar filhos enquanto adminis­tram seus negócios com grande competência e sucesso. Aceite essa estranha bênção de Deus, Kieran. Sente-se com minha irmã e decida como vão cuidar dessa tarefa de colonizar o Novo Mundo. Entenda que precisa ir e que ela tem de ficar para ter essa criança. Fortune irá encontrá-lo no ano que vem. Então, você já terá construído uma casa para sua família. Não vai que­rer ficar aqui e deixar a responsabilidade de criar o lar de sua família em mãos estranhas. Não há nada nessa situação que não se possa administrar, meu amigo.

— Não tenho escolha, Charlie. Seguirei seu conselho. Sei que você está certo, mas não me agrada a idéia de deixar Fortune.

— Minha mãe virá para cuidar dela. Ou, melhor ainda, Ín­dia! Fortune estava com ela quando minha irmã mais velha teve seu primeiro filho. Peça a ela que conte essa história em outra oportunidade — ele riu. — Agora, já superou o choque? Não deve ser fácil descobrir que se casou com uma criatura incontrolável e...

— Não sou tão terrível assim — defendeu-se Fortune da porta do salão. — Como pode dizer isso? Kieran sabe que não sou assim.

— É claro que sei, meu amor — riu o marido. — Charlie e eu estivemos conversando... Precisamos nos sentar e decidir como vamos cuidar de tudo com relação a essa viagem. Você vai ter de ficar...

Fortune sorriu para os dois.

— Sabia que veria a razão, Kieran. Fico feliz por Charlie ter lhe dado bons conselhos. Agora, senhor, temos muito a fazer e nenhum minuto a perder.

Charles Frederick Stuart, o duque de Lundy, sorriu malicio­so atrás da irmã. A mensagem para o cunhado era bem clara. Dizia: Entende agora? Tudo o que tem de fazer é seguir o que ela diz!

Capítulo 15

Fortune e Kieran mandaram uma mensagem urgente a Maguire's Ford informando que os homens que pretendiam acompanhá-los deveriam estar prontos para embarcar no Cardiff Rose em poucos meses. Rory Maguire recebeu uma lista com todos os itens que cada homem deveria levar, conforme havia sido re­passado pelo próprio Lorde Baltimore aos Devers. A única mulher no grupo viajaria como acompanhante da Senhora Jones, a médica, porque seus serviços seriam de grande valia nos primeiros meses da empreitada. Ela foi aconselhada a le­var não só suas ervas secas, raízes e sementes, mas mudas de plantas e pés já desenvolvidos também, pois não sabiam dizer que tipo de espécies encontrariam em Mary's Land.

As outras mulheres do grupo e as crianças permaneceriam em Ulster até o verão seguinte, quando o Cardiff Rose retornaria para buscá-las, e então viajariam na companhia do Highlander, a embarcação onde seriam transportados os cavalos e os outros animais de criação. O plano era construir uma casa para os Devers e para os outros durante o inverno, de forma que, quan­do as mulheres chegassem com seus filhos, todos pudessem ser adequadamente abrigados contra os fenômenos atmosféricos.

Assim que alcançassem o destino do outro lado do mar, os homens comprariam um touro da Virgínia, uma vaca leiteira e um cavalo para Kieran. Assim que a primavera chegasse, po­deriam começar a lavrar a terra. Já sabiam que os colonizado­res da Virgínia não seriam muito amigáveis, pois invejavam o status especial conferido a Mary's Land. Fortune sabia, porém, que a quantia adequada superaria qualquer relutância, e por isso aconselhou o marido a negociar com astúcia, mas sempre com o propósito de obter tudo o que fosse necessário para o sucesso da família — ou seu fracasso, dependendo de como as coisas transcorressem no Novo Mundo.

— Você é tão sensata — comentou ele um dia, quando re­visavam juntos uma relação do que já havia sido providen­ciado. — Lamento não poder tê-la a meu lado nesses primeiros meses, minha querida.

Ela sorriu para o marido.

— Quero muito ir com você, mas compreendo que, neste momento, é melhor para todos se eu ficar. Você precisa se con­centrar inteiramente em tornar nossa propriedade lucrativa, Kieran. Eu seria apenas um fardo, uma distração, pois estaria sempre preocupado com minha condição.

Ele tocou o ventre que começava a ganhar forma mais arre­dondada.

— Odeio pensar que não estarei com você quando nosso filho nascer. Meu pai, que Deus o tenha em Sua glória, sempre contava que a parteira tirou-me do útero de minha mãe para colocar-me nas mãos dele. Gostaria de poder viver essa mesma felicidade, minha querida. — Ele acariciou a barriga da esposa. — Meu filho... — disse, quase intimidado.

— Nosso bebê — corrigiu Fortune com ternura. — Pode ser uma menina, Kieran. O que não faz nenhuma diferença para mim, desde que seja saudável.

Ele a beijou nos lábios.

— Concordo, Fortune. Minha adorada... Já pensou que há um ano, nessa mesma época, estávamos nos apaixonando?

Ela riu, um som que o encheu de alegria.

— Você é o homem mais sentimental que já conheci, Kieran Devers. Sabia que estava certa quando decidi viver meu amor por você, mesmo que essa decisão tenha me custado Maguire's Ford.

O verão terminou. Jasmine, com seu bebê Autumn Leslie, seguiu para o sul, para a Inglaterra. Elas iriam para Queen's Malvern, e o duque e seu filho mais velho permaneceriam em Glenkirk. A duquesa não abriria mão de estar com a segunda filha no momento do nascimento de seu filho. Como Autumn já tinha quase um ano de idade, podia viajar com um pouco mais de conforto. Kieran se sentia melhor sabendo que a mãe de Fortune estaria com ela quando seu filho nascesse.

— São muito sensatos, meus queridos — disse Jasmine ao genro. — Adiar a partida de Fortune foi uma decisão correta. Nunca se sabe ao certo quando vai nascer um bebê, especial­mente se ele é o primeiro de uma mulher. É melhor que Fortune permaneça aqui conosco. Charlie partirá para a corte em breve, e nós teremos Queen's Malvern só para nós.

Charles Frederick Stuart comemorou seu aniversário de 20 anos. Seu irmão, Henry Lindley, marquês de Westleigh, a irmã mais velha, Índia, condessa de Oxton, e seu marido, Deveral Leigh, chegaram para participar da celebração. Naquela noite, Jasmine olhou para todos no salão. Ali estavam seus quatro fi­lhos mais velhos. Houve um tempo em que haviam sido muito próximos. Agora eram todos crescidos, e todos se desdobra­vam em atenção e carinho pela pequena Autumn Leslie, a ca­çula da prole.

Jasmine olhou para seu filho Stuart.

— Você é a imagem de seu pai — disse. — Ele tinha 20 anos quando morreu. Graças a Deus você possui uma constituição mais forte. Quando ele nasceu, na Escócia, todos os trataram como se fosse uma espécie de ídolo indiano de minha terra na­tal. Henry foi carregado pelos criados até ter quase 4 anos de idade. Certa vez, contou-me que, à noite, quando ficava sozi­nho sem os criados, levantava-se da cama e corria pelo quarto. Não fosse por isso, suas pernas seriam tão fracas quanto às do irmão, ainda um bebê. Seu próprio tio Charles era menos aven­tureiro e sofreu muito quando aprendia a andar. Deve notar Charlie, que ainda hoje ele manca um pouco.

— Já me havia perguntado qual poderia ser a razão desse estranho caminhar — respondeu Charlie. — Meu pai era mais novo que você, não, minha mãe?

— Três anos e meio, mas ninguém nunca se importou mui­to com isso. Acho que todos ficaram aliviados por ele ter final­mente tomado uma amante, provando assim sua masculinidade. Conhece os rumores que sempre cercaram seu avô, o Rei James. — Ela sorriu. — E você, meu filho? Alguma jovem já roubou seu coração? Charlie corou.

— Sou sobrinho do rei. Mesmo tendo nascido de uma união ilegítima, ainda sou seu sobrinho, e as damas me tratam sem­pre com muita gentileza.

— Pena que mamãe não tenha se casado com o Príncipe Henry — interferiu Henry Lindley. — Agora você seria rei, e um rei melhor do que o pobre, velho e régio Charles. Ele não é capaz de tomar uma única decisão relacionada à administra­ção do reino sem ruminá-la centenas de vezes! E não se pode discordar dele, porque Charles não aceita sugestões nem críti­cas com facilidade.

— Ele não é um mau rei — Jasmine defendeu o monarca.

— Sim, é — protestou o marquês de Westleigh — mesmo que não seja mal-intencionado, mamãe. De qualquer maneira, pelo menos nosso Charlie não teve de se casar com Henrietta Marie — ele riu. — A rainha é católica, orgulhosa e excessiva­mente piedosa em sua fé. Sua existência causa dificuldades.

— Henry! Não esqueça que seu cunhado é católico. Não o criei para manifestar nem mesmo considerar esse tipo de pre­conceito — Jasmine censurou o filho mais velho.

— Mamãe, não sou contra os católicos. Sou prático, ape­nas, e o que digo é verdade. Diria o mesmo se a rainha fosse uma puritana exacerbada. Extremismo não é bom para um país nem para seu governo. A Inglaterra está mudando, e não sei se gosto muito das mudanças.

— Os ingleses são unilaterais nessas questões religiosas há séculos — manifestou-se Kieran. — Talvez não o povo inglês, mas seus governantes.

— O povo também — disse Henry Lindley com tom fatalista.

— Pensei que estivéssemos aqui para comemorar meu ani­versário — lembrou Charlie, sorrindo. — Não quero discutir política nem religião. Estamos reunidos aqui como nunca mais estaremos. Logo nossa irmã nos deixará para começar sua vida nesse novo mundo que tanto a encanta. Quero comer, beber e construir boas lembranças esta noite. E lembrar tempos doces e cheios de aventura. Lembram-se de quando todos nós fugimos para a França porque meu avô, o Rei James, e minha avó, a Rai­nha Anne, decidiram que Jemmie Leslie seria o marido perfei­to para mamãe?

— Ele levou dois anos para nos encontrar, porque ninguém delatava nosso paradeiro — Índia riu.

— Até Madame Skye acusá-lo de ser cego por não ter nos encontrado ainda — recordou Charlie.

— Ele só nos achou porque seguiu nossa bisavó até a Fran­ça quando ela foi informar mamãe da morte de nosso bisavô — rememorou Fortune. — E papai foi mesmo o marido ideal para nossa mãe, o melhor padrasto que poderíamos ter!

— Exceto quando era mais teimoso que todos nós juntos — disse Índia.

— Índia, ainda está ressentida contra o pobre Glenkirk? — Henry Lindley perguntou, surpreso. — Pensei que o houvesse perdoado há anos! Ele fez o que pensou ser certo.

— Oh, mas eu o perdoei! Estava apenas lembrando como, por causa dele, Dev e eu quase ficamos sem nosso primogênito.

— Prefiro lembrar nossa infância — confessou Fortune. — Como vivemos tempos divertidos na corte com mamãe e como íamos sempre passar um tempo com Madame Skye e vovô Adam. Lembra-se do pônei preto que ganhou dele, Índia?

Ela riu.

— Eu implorava por aquele pônei desde que você nasceu. Cheguei a dizer que preferia um pônei a uma irmã. Lembra-se de quando tinha 3 anos e conseguiu, até hoje não sabemos como, montar meu pônei? Você o tirou da baia e entrou no pátio do estábulo cheia de orgulho, esperando pelos elogios!

— E você ficou furiosa por eu ter ousado montar seu pônei. No dia seguinte, vovô Adam me deu um cinza com manchas pretas nas costas. O nome dele era Fleckles.

— Como conseguiu montar, Fortune? — Índia quis saber.

— Henry me ajudou.

— Henry? — Índia olhou para o irmão. O marquês de Westleigh riu.

— Não podia imaginar que Fortune iria até o pátio. Ela só queria subir no pônei, mais nada. Quase morri de pavor pensan­do no que mamãe faria se descobrisse. Por isso fugi do estábulo pela porta dos fundos e fingi estar tão surpreso quanto todos os outros quando ela apareceu no pátio. Fortune nunca me dela­tou. A propósito, sou grato por sua discrição, irmãzinha.

A mãe deles riu.

— Vocês tiveram sorte por terem nascido todos na mesma família. Minha pobre Autumn vai crescer como filha única. O mais novo de seus irmãos Leslie é 12 anos mais velho que ela. Não há mais ninguém em Glenkirk, exceto o jovem Patrick que, aos 16 anos, está mais interessado em moças com quem possa se deitar do que em ficar de babá.

Todos riram.

No dia seguinte, Henry voltou para sua casa, Cadby, e Ín­dia e o marido partiram para Oxton. Charlie seguiu para a cor­te. À noite, Jasmine, suas duas filhas e Kieran eram os únicos em Queen's Malvern. Havia uma certa melancolia na antiga e sólida mansão de tijolos. Fortune e Kieran preferiam ficar a sós, e Jasmine os entendia. Logo teriam de se separar. A expedição para Mary's Land partiria de Gravesend no meio de outubro.

— É ridículo ir até Londres quando o Cardiff Rose está anco­rado em Liverpool. Pode zarpar de lá, Kieran — opinou Fortune. — O navio vai buscar os colonizadores em Dundalk, e você poderá encontrar o navio de Leonard Calvert em... onde, ma­mãe?

— Cape Clear, na costa da Irlanda — disse Jasmine calma­mente. — A expedição para Mary's Land vai passar por lá quan­do atravessar o Canal de Saint George a caminho do mar aberto.

— Amanhã cedo enviaremos um mensageiro com nossa decisão. Lorde Baltimore não se oporá — disse Fortune. — Con­firmaremos todos os arranjos, e outro homem seguirá para Maguire's Ford para informar nossos homens de que deverão estar em Dundalk no horário determinado. E o mensageiro terá de voltar depois de entregar nossa decisão a Lorde Baltimore, pois assim você terá tempo para cavalgar até Liverpool. E eu vou com você.

— Não — interferiu Jasmine com firmeza. — Eu irei. Você se despedirá de Kieran aqui. Não podemos deslocar uma car­ruagem para transportá-la, e você não pode fazer viagem tão longa a cavalo. É perigoso, Fortune, e sei que deseja ter um fi­lho saudável que possa fazer a longa e perigosa travessia para Mary's Land no próximo verão.

— De acordo, senhora — opinou Kieran Devers sério, olhan­do para a esposa. — Fortune?

Era impossível discordar da sabedoria da decisão de sua mãe. Fortune assentiu relutante.

— Não posso discordar de nenhum de vocês, mas... Oh, como gostaria de acompanhá-lo, Kieran!

No dia seguinte, todos os mensageiros foram despachados, e nas semanas seguintes os portadores iam e vinham numa tro­ca incessante de informações. Rory Maguire mandou avisar que os colonizadores irlandeses estariam em Dundalk na hora e no dia marcados. Aproximava-se a hora de Kieran Devers deixar sua esposa, e Fortune começava a sentir um pavor como jamais havia experimentado antes.

— Ficamos malucos? — perguntou ela ao marido. — Essa jornada pelo oceano é longa e perigosa! E se o navio encontrar uma tempestade? Se naufragar? Nunca mais o verei! — ela cho­rava copiosamente e se agarrava ao marido como se temesse perdê-lo naquele instante.

— Que opção temos? Já falamos sobre isso centenas de ve­zes, Fortune. O Novo Mundo é nosso destino. Não há nada para nós aqui, querida.

— Posso adotar o catolicismo. Fui batizada católica. Então, poderemos ir para a França, ou para a Espanha. Podemos mo­rar em Belle Fleurs, o chateou de minha mãe. Meu avô Adam deixou familiares perto, em Archambault. Seríamos felizes lá! — Ela o fitou esperançosa. Kieran suspirou.

— Talvez você pudesse ser feliz, Fortune, mas eu não seria. Tenho meu orgulho, e tem sido mais do que difícil ignorá-lo nesses últimos meses. Sei que existem pessoas que pensam que me casei com você porque é uma grande herdeira, e não porque a amo. Sim, tenho uma pequena herança graças ao meu pai, mas minha riqueza nem se aproxima da sua. No Novo Mundo cons­truirei uma vida para nós, uma grande propriedade. Talvez não tão grande quanto aquela de que abriu mão por mim, mas eu mesmo terei construído tudo, e ninguém vai me olhar de sos­laio ou com desconfiança. Nunca antes me incomodei com o que as pessoas pensam sobre mim, mas agora somos casados, meu amor, e não quero que digam que vivo da riqueza de mi­nha esposa! Vamos construir nosso caminho juntos, Fortune, e isso só será possível no Novo Mundo. Não aqui. Não na Inglater­ra. Não na Irlanda. Nem na Espanha ou na França. Só em Mary's Land. Entende agora, meu amor, que preciso partir?

— Nunca soube que se sentia tão incomodado, Kieran. O que tenho é seu. E que ninguém ouse dizer o contrário. Se acha que pode ser mais feliz, comprometo-me a transferir todos os bens para o seu nome.

Ele riu.

— Não, minha adorada. Não quero sua riqueza. Sua famí­lia está correta em assegurar bens para as mulheres. Além dis­so, não é esse o ponto. Você tem seu orgulho, eu tenho o meu. Um homem precisa abrir seu próprio caminho no mundo. O que aconteceu com minha esposa tão prática e sensata?

— Não quero que me deixe! Prefiro estar com você, parti­lhando seu destino, a ser deixada aqui na Inglaterra para ter nosso filho sozinha!

— Não estará sozinha, Fortune. Sua mãe estará com você.

— Não quero minha mãe! Quero você!

Jasmine o prevenira para essa possibilidade. Ela o avisara de que a condição de Fortune a tornaria intransigente, às vezes até irracional. Ali estava ela, a bela esposa que o orientara a ir a Mary's Land e obter as melhores terras com o primeiro grupo de colonizadores, chorando e suplicando para que desistisse de todos os planos. Não sabia o que poderia dizer naquelas cir­cunstâncias, por isso decidiu adotar uma atitude que nunca antes havia empregado com ela.

— Não pode me ter, a menos que queira destruir todas as suas chances de sucesso, Fortune. As nossas chances! — res­pondeu ele com tom severo. — Você mesma disse que tudo de­pende de conquistarmos as terras mais propícias para os nos­sos cavalos. Se eu não for agora, como poderei escolher as melhores terras? Você conseguirá sobreviver sem minha mão segurando a sua. Índia não teve o primeiro filho em uma cabana na montanha, tendo apenas duas criadas para ajudá-la? Ter um bebê é um evento natural na vida de uma mulher. Agora, comporte-se como a adulta que é, Fortune.

Ela se surpreendeu com a reprimenda.

— Como pode falar assim comigo?

— E de que outra maneira espera que eu fale, se insiste em se portar como uma criança mimada?

— Jamais o perdoarei por me deixar.

— Quando chegar em Mary's Land no próximo verão e en­contrar uma bela casa esperando por você, grãos plantados e pastos verdejantes para os nossos cavalos, certamente me per­doará. Estou indo por você, Fortune, e por nosso filho. Vai mes­mo se zangar comigo por isso?

— Sim!

— De verdade? — ele a beijou nos lábios.



— Sim!

Kieran insistiu no beijo.

— Mesmo? — Ele a beijou com ardor, inserindo a língua em sua boca e acendendo o desejo. — Tem idéia, Fortune, de como sentirei sua falta? Ouvi dizer que uma mulher perde o desejo quando espera um filho, mas um homem não dispõe desse luxo. Sinceramente, acho que a desejo ainda mais do que antes.

— Nesse caso, devemos aproveitar ao máximo os dias que ainda nos restam, meu marido. Porque sei que não me será in­fiel... certo? — Fortune o puxou de volta para seus braços, mor­dendo levemente a orelha do marido.

— Pode estar certa disso, Fortune. Jamais serei infiel a você, porque a amo.

Ela suspirou. Kieran e Fortune fizeram amor com grande ternura, e ela decidiu que essa história sobre uma mulher per­der o desejo durante a gravidez era tolice. Talvez mais tarde, quando estivesse gorda e pesada, mas não agora.

O dia da partida de Kieran para Liverpool havia chegado. Fortune conseguiu superar a agitação inicial, estava parada no topo da escada da frente da casa oferecendo ao marido uma caneca de viagem. Ele bebeu, devolvendo o cálice de prata com ar solene. Depois, sério, abraçou-a e beijou-a mais uma vez.

— O que faço é por você e pelo bebê — disse. — Porque a amo, Fortune. Reze por nosso sucesso, minha adorada. Se Deus permitir, nos veremos no próximo verão em Mary's Land. — Sem dizer mais nada, montou e partiu, seguido por Kevin.

— Mamãe! — chamou Fortune, e Jasmine virou-se. — Vol­te para casa o mais depressa possível, mas antes dê a ele toda a sabedoria que é capaz de transmitir.

Jasmine assentiu e partiu atrás do genro.

Fortune entrou apressada, incapaz de esperar para vê-los desaparecer além da primeira curva. Sua mãe estaria de volta em uma semana, talvez um pouco mais. Estava praticamente sozinha, com exceção da boa Róis.

— Odeio isso — resmungou ela para si mesma. Depois cha­mou sua criada para ter alguma companhia. Esperava que Róis não estivesse muito mais feliz com a situação. A jovem entrou com os olhos inchados e vermelhos. — Não chore, ou vou cho­rar também. Estou tão triste quanto você, Róis.

— Sei que eles precisavam ir. Kevin diz que, para construir­mos um futuro, precisamos de terras, e em Ulster isso jamais teria sido possível. Mas por que agora? Agora, quando espera­mos as duas o primeiro filho!

— Também vai ter um bebê? — perguntou-se Fortune por que estava tão surpresa. — Quando?

— Pouco depois do seu filho, minha senhora.

— Kevin sabe disso?

— Não. Tive medo de dizer e ele se recusar a partir. Não quis arruinar nossas chances de um futuro melhor.

Fortune começou a rir. Era tudo tão absurdo! Casara-se com o irmão errado porque o amava, perdera seu dote por isso e agora era deixada para trás, grávida, e com uma criada grávi­da, enquanto seu marido e o dela partiam em busca do destino. Se esse cenário houvesse sido pintado há dois anos, ela teria debochado desse destino. Nunca! A prática e sensata Lady Fortune Mary Lindley? Não.

— Bem, Róis, creio que não temos escolha senão esperar e torcer pelo sucesso de nossos escolhidos em suas empreitadas. Faremos companhia uma à outra enquanto esperamos pela che­gada dos bebês. Sabe tricotar? Nunca consegui aprender essa arte, mas sei costurar. Vamos fazer roupas para nossos filhos. É uma maneira de nos mantermos ocupadas e passar o tempo.

A jovem Senhora Bramwell, que ajudava na administração da casa, foi buscar cambraia e todo o material necessário à con­fecção das roupinhas no depósito da mansão. Havia até velhos moldes de papel para facilitar o corte das peças. Rohana, que não acompanhara sua senhora, ofereceu-se para ajudá-las, e as três passaram a semana seguinte cortando e costurando. Autumn engatinhava entre as pernas delas, brincando com retalhos que caíam no chão.

Jasmine retornou a Queen's Malvern oito dias depois da par­tida com sua escolta armada formada por homens de Glenkirk.

— Eles zarparam para a Irlanda — anunciou ela. — O ven­to era excelente, e o mar estava calmo. Não fique tão preocupa­da, minha filha. Levei seis meses para concluir minha viagem desde a Índia e cheguei sã e salva.

— Ele já deve ter aportado em Ulster para recolher os colo­nizadores — respondeu Fortune. — Neste exato momento de­vem estar a caminho do local onde encontrarão Leonard Calvert. Ele certamente já embarcou a esta altura.

De fato, a expedição de Lorde Baltimore deixara Gravesend, mas não fora muito longe. Cecil Calvert tomara a sensata deci­são de permanecer na Inglaterra. Seus inimigos espalhavam rumores de que os dois navios de sua propriedade, o Ark e o Dove, estavam, na verdade, levando freiras e soldados para a Espanha. Lorde Baltimore teve de ir à corte para se defender e proteger sua expedição. Suas naus foram interceptadas por uma embarcação real, forçadas a lançar âncoras em Isle of Wight. Lá ficaram por quase um mês antes de obterem permissão para seguir viagem. O capitão do Ark, sabendo que o Cardiff Rose os aguardava em Cape Clear, mandou informar Kieran Devers, enviando sua mensagem por um navio que rumava para o ex­terior. Ele explicava a demora, sugerindo que o Cardiff Rose pros­seguisse até Barbados, onde deveriam esperar pela expedição de Lorde Baltimore, que logo os encontraria.

No dia 22 de novembro, os colonizadores finalmente parti­ram para Mary's Land. A Inglaterra mal havia desaparecido no horizonte quando foram atingidos por uma violenta tempesta­de, mas logo ela se abateu e o tempo se manteve tão perfeito até chegarem em Barbados que o capitão do Ark comentou o fato. Nunca fizera uma travessia tão tranqüila. A única tempestade violenta que tiveram de enfrentar, porém, os separara dos com­panheiros, todos passageiros da nau menor Dove. Esperavam que estivessem vivos e que se encontrassem em Barbados, onde também estaria o Cardiff Rose.

Kieran Devers e seus companheiros atravessavam o mar sob o céu sem nuvens rumo ao desconhecido. Dia após dia, o sol brilhava forte e, quanto mais se afastavam da Irlanda, maior era o calor. O clima era tão propício, e a viagem era tão suave, que a Senhora Jones e Taffy levaram suas plantas para o con­vés, criando para elas um pequeno cercado na área da proa.

Após seis semanas, o Cardiff Rose aportou em Barbados, onde ficaria esperando pelo restante da expedição.

O governador da ilha, Sir Thomas Warner, foi cauteloso em sua recepção. O Cardiff Rose integrava a frota da companhia de comércio 0'Malley-Small, tendo assim alguma importância. No entanto, estava repleto de católicos irlandeses. Não eram tan­tos que pudessem causar dificuldades, mas a situação o deixa­va apreensivo. Ele convidou Kieran e o capitão da embarcação para jantar, pois assim teria chance de saber mais coisas sobre a chegada do inusitado grupo. Kieran deu aos colonizadores per­missão para visitar a ilha, mas os preveniu sobre manterem con­duta impecável, ou seriam devolvidos ao navio e retidos nele.

— Devemos esperar Lorde Calvert. Eu me sentiria muito mais confortável esperando em terra firme, em vez de perma­necer no navio. Ainda temos um longo caminho a percorrer. Qualquer homem que for encontrado embriagado não terá per­missão para desembarcar novamente até chegarmos em Mary's Land.

Depois de dar as instruções, Kieran Devers se retirou com o Capitão OTlaherty para jantar na casa do governador.

Foram recebidos com cordialidade, e logo todos se sentaram à mesa. Kieran ficou imediatamente fascinado com os longos frutos amarelos que pendiam das árvores além da janela.

Notando a direção de seu olhar, o governador riu.

— São bananas — disse. — É preciso remover a casca ama­rela, e dentro você encontrará um fruto doce cujo sabor não é muito diferente do da marmelada. Pode levar alguns cachos para o navio, se quiser.

— Vamos permanecer na ilha enquanto esperamos pela chegada da expedição de lorde Baltimore, milorde. Se tivermos sua permissão, é claro. Passamos semanas no mar e não somos marinheiros habituados à água. Meus homens são agricultores em sua maioria.

— Qual é o seu destino, se posso saber?

— A nova colônia de Lorde Baltimore, senhor. Mary's Land.

— Soube que esse lugar é só para católicos — comentou Sir Thomas.

— Não, senhor, Mary's Land é para todos os homens de boa vontade, sejam católicos ou protestantes. Ninguém sofrerá perseguição. Por isso vamos para lá, milorde. Muitos passagei­ros de Lorde Calvert são protestantes.

— Não gosto da idéia de uma colônia católica — resmungou o governador. — Já temos problemas demais com a Espanha.

— Mary's Land não é uma colônia espanhola, milorde. É uma colônia inglesa. Somos todos leais súditos de Sua Majes­tade. O meio-irmão de minha esposa é sobrinho de nosso hon­rado rei.

— De fato? — o governador se mostrava um tanto cético.

— Lorde Charles Frederick Stuart, o duque de Lundy. Eles o chamam de "Stuart não tão régio".

— Ah, sim, lembro alguma coisa sobre o Príncipe Henry ter tido um bastardo. Todos elogiavam a beleza da mulher que ge­rou essa criança. Cabelos escuros e olhos azuis como o mar...

— Está falando sobre minha sogra, a duquesa de Glenkirk. Ela ainda não era casada com o duque de Glenkirk quando manteve esse relacionamento com o príncipe, que a amou de verdade.

— Pode permanecer em nossa ilha por quanto tempo for necessário, e seu povo também é bem-vindo, desde que não causem dificuldades — disse o governador a Kieran.

— Obrigado, milorde.

— Excelente — murmurou o Capitão OTlaherty ao seu lado. — A família ficaria orgulhosa de você.

Kieran olhou para o capitão, e os olhos cintilantes que o fitavam pareciam familiares.

— Por Deus! — exclamou ele. — É um deles, então!

— Ualtar OTlaherty, filho de Ewan, neto da grande Skye, bisneto de Dubhdara. Sua esposa e eu somos primos, embora eu nunca tenha tido o prazer de encontrá-la pessoalmente ou de conhecer seus filhos. Conheci apenas minha avó, Skye, e só a vi duas vezes em minha vida. Meu pai é o Senhor de Ballyhenessey, na Irlanda. Sou o único de seus filhos que atendeu ao chamado do mar. Minha avó cuidou para que eu reali­zasse meu desejo, como fez com vários de meus primos. Mui­tos de nós fomos capitães do Cardiff Rose, uma embarcação sólida e segura. Tenho estado basicamente na rota do Mediterrâneo. Paramos várias vezes nos portos de Algiers, San Lorenzo, Mar­selha, Nápoles, Veneza, Atenas, Alexandria, Istambul.

— Por que ninguém me informou sobre quem você é?

— Teria sido importante, senhor? Kieran riu.

— Essa família em que ingressei pelo casamento é mesmo muito estranha, Ualtar OTlaherty.

— Sim, senhor, essa é uma grande verdade.

Dezembro estava no início quando chegaram a Barbados. Lá, passaram o Natal. Não havia sacerdote para celebrar a mis­sa, por isso cantaram canções propícias e fizeram suas preces em silêncio. Um banquete foi arranjado para os homens na praia, onde foi cavado um poço, e um grande porco foi comprado no mercado para ser assado. Um prato com bananas, melão, aba­caxi e melancia foi servido, acompanhado por batatas-doces. Com exceção do porco, os outros alimentos eram desconheci­dos pelos colonizadores. Eles experimentaram tudo com relu­tância, mas, ao constatar que todos os pratos tinham sabor agra­dável, comeram com entusiasmo.

No início de janeiro, o Ark chegou a Barbados e foi recebido com alegria pelos homens que viajavam no Cardiff Rose. Como Kieran Devers e seus homens, tripulantes e passageiros do Ark ficaram fascinados e encantados com o brilhante colorido das flores e das árvores que cresciam na ilha. As aves ruidosas e exóticas também eram maravilhosas. Uma missa de ação de graças foi realizada a bordo do Ark e prestigiada por todos os católicos. Os colonizadores protestantes desembarcaram para ir à igreja do governador.

Ao longo das semanas seguintes, carregaram os navios com milho, batatas e todos os outros alimentos para os quais conse­guiram encontrar espaço, guardando-os em todos os recantos disponíveis. Todos os barris de água foram enchidos nova­mente. Para deleite de todos, o Dove chegou ao porto com um grande navio mercante, o Dragon. Quando a tempestade os atingira, haviam retornado a um porto seguro na Inglaterra, onde esperaram por tempo bom para retomar a travessia. To­dos os que haviam começado a expedição de Lorde Calvert agora estavam reunidos, prontos para seguir para o norte, para Mary's Land. O governador de Barbados não escondeu o alí­vio causado pela partida. Ele, como tantos outros, não conse­guia deixar de acreditar que católicos ingleses e irlandeses eram leais a seus correligionários na Espanha, e não ao rei da Inglaterra Protestante.

Chegaram à Virgínia em março. Lorde Baltimore os acon­selhara a evitar qualquer tipo de contato com os homens dali, gente cujos representantes na corte faziam tudo que estava ao seu alcance para impedir a colônia em Mary's Land. Porém, Leonard Calvert era portador de uma carta do rei para o gover­nador da Virgínia e tinha ordens para entregar pessoalmente a mensagem e os presentes que levava. Os colonizadores passa­ram nove dias na Virgínia, e os locais foram extremamente cor­diais, para surpresa do Governador Calvert. Quando partiram, levaram um mercador local de peles, o Capitão Fleet, para ser­vir de intérprete com os nativos. Ele conhecia bem o território de Chesapeake, e por isso seria também o guia da expedição.

Quando os navios atravessaram a baía de Chesapeake, os colo­nizadores se debruçaram sobre a balaustrada para olhar seu novo lar pela primeira vez. As florestas eram magníficas, reple­tas de madeira de espécies variadas. Kieran Devers sentia que finalmente encontrava seu lugar e estava espantado com a cer­teza daquela sensação. Como gostaria de ter Fortune a seu lado nesse momento! Teria sido esplêndido ver seu novo lar pela primeira vez na companhia da mulher amada. Mas, quando ela chegasse, teria uma casa pronta esperando por ela. Sabia que ela a amaria tanto quanto ele já amava aquela terra. Kieran correu à sua cabine para escrever uma carta para a esposa. As­sim que se instalassem, o Cardiff Rose retornaria à Inglaterra, e queria que a nau que o levara ao novo lar transportasse tam­bém seus pensamentos para Fortune. Escrevera-os diariamen­te para poder dividir com Fortune tudo o que ela deveria estar vivendo. Não sabia nem se seu filho já havia nascido.

Eles aportaram em uma ilha desabitada que chamaram de St. Clement. Os índios que tinham visto nas praias a leste e oes­te nos últimos dias não estavam ali. Uma cruz feita de troncos recém-cortados foi plantada no solo. O sacerdote do Governa­dor Calvert, Padre White, rezou uma missa solene. Posterior­mente, Leonard Calvert tomou posse de Mary's Land em nome de Deus, do Rei Charles I e de seu irmão, Lorde Cecil Baltimore. Era dia 25 de março do ano de 1634.

Nesse mesmo dia, em Queen's Malvern, Fortune entrava em trabalho de parto. Era pouco mais de meia-noite. De acordo com seus cálculos, o bebê devia ter nascido uma semana atrás. Fortune estava agradecida por poder contar com a presença materna, pois Róis, prestes a ter seu próprio filho, não era de grande utilidade.

Jasmine notou a expressão da jovem criada ao entrar no quarto de Fortune e disse:

— Saia. Mande Rohana e Toramalli imediatamente.

Róis lançou um olhar de gratidão para a duquesa e saiu apressada, ou tão apressada quanto era possível, consideran­do seu adiantado estado de gestação.

— Sinto dor, mamãe! — queixou-se Fortune. — Nunca ima­ginei que a dor fosse tão forte! Quando Índia entrou em traba­lho de parto, tive de sair para buscar você e papai. Ai! Quanto tempo vai demorar, mamãe?

— Levante-se — orientou-a Jasmine. — Vamos caminhar um pouco. Isso ajuda a acelerar o processo, meu bem. Lamento ter de dizer isso, mas os bebês não costumam ser razoáveis ou sensíveis na hora do parto. Eles nascem quando nascem, e isso é tudo que se pode prever.

— Não é particularmente animador, mamãe.

A porta do quarto se abriu, e as duas criadas gêmeas de Jasmine entraram.

— A jovem Bramwell manda perguntar onde quer que seja montada a mesa de parto, milady — adiantou-se Rohana.

— Aqui, perto da lareira. E mande-a trazer também o ber­ço, e toalhas e faixas. — Começava a ser tomada de assalto pe­las lembranças. Seu filho, Charlie, havia nascido ali, em Queen's Malvern. O pai dele, o Príncipe Henry, estivera presente. Pri­meiro se mantivera atrás dela, apoiando seus ombros, encorajando-a com suas palavras doces, massageando seu ventre enrijecido com mãos gentis. Ele parecia ser movido por um ins­tinto, como se soubesse naturalmente o que fazer, embora mais tarde houvesse admitido nunca ter visto outro parto antes. E, quando ficara evidente que a criança estava prestes a nascer, ele chamara Adali para ocupar seu lugar, contornara a mesa, empurrara delicadamente a avó dela, Skye, para o lado, e trou­xera ele mesmo o filho ao mundo. Jasmine sentiu as lágrimas brotando em seus olhos e virou-se depressa. Henry Stuart ha­via sido um homem muito doce.

— Mamãe! — gritou Fortune. — Não sei se posso continuar andando. A dor está ficando pior, e as contrações acontecem em intervalos cada vez menores!

O dia começava a clarear o céu do lado de fora da janela, e Fortune estava em trabalho de parto havia horas.

— Vamos ajudá-la a subir na mesa de parto — orientou Jas­mine as criadas.

Toramalli ajudou Fortune a se acomodar, enquanto Rohana se colocava atrás dela para amparar seus ombros.

— Vi sua mãe e seus irmãos nascerem — contou Rohana. — Agora verei seu filho vir ao mundo, milady Fortune. Lamento que tenha de nos deixar. Não verei as outras crianças que você e seu belo marido trarão ao mundo.

— Odeio meu marido! — gritou Fortune. — Como ele pôde fazer isso comigo e depois ir embora para o Novo Mundo en­quanto eu fico aqui, sofrendo e sentindo dores? A criança não vai nascer nunca? Mamãe, está demorando demais!

— Está falando como sua irmã Índia — respondeu Jasmi­ne. — Eu avisei, meu bem, que a criança nasce quando nasce. E isso é tudo o que se pode prever.

Várias horas se passaram, até que, no meio da tarde, a cabe­ça do bebê finalmente apareceu. Jasmine incentivava a filha a fazer força para expulsar a criança de seu corpo. Devagar. De­vagar. Primeiro o topo da cabeça. Depois a cabeça inteira e os ombros. Finalmente, o bebê deixou a proteção do corpo mater­no. Seus olhos se abriram e encontraram os da avó. O grito ul­trajado soou forte no quarto.

— É uma menina — anunciou Jasmine, encantada.

— Menina? — perguntou Fortune. Sua voz soava aliviada e exausta. — Deixe-me vê-la, mamãe. Coloque-a em meus braços.

Jasmine atendeu ao pedido, e Fortune gritou.

— Ela está coberta de sangue, mãe! Está ferida?

— O parto é um negócio sangrento, como minha avó disse certa vez ao Príncipe Henry. Vamos limpá-la em um minuto. Ela está ótima, Fortune, e é saudável e forte. Escute-a chorar e abençoe sua filha.

Fortune olhou para a criança em seus braços. O rosto ver­melho estava contorcido, como se sentisse raiva, e os olhos per­maneciam fechados, embora a boca estivesse bem aberta. Ela chorava furiosamente.

— Shhh, bebê — foram as primeiras palavras dela para a filha. A criança silenciou e abriu os olhos, fitando diretamente os dela. Fortune experimentou uma espécie de choque e foi imediatamente tomada por um amor como jamais imaginara ser possível sentir. — Os olhos dela são azuis! — comentou ela, maravilhada.

— Todos os bebês têm olhos azuis. — comentou Jasmine, satírica. — Deve se lembrar disso, meu bem. Você foi minha terceira filha. Viu muitos irmãos nascerem.

— E ela é careca.

—As meninas normalmente são. Mas já posso ver uma som­bra avermelhada — Jasmine tocou a cabeça da neta. — Que nome vai dar a ela?

— Aine. Ela terá o nome da irmã mais nova de Kieran. Não esperava uma menina, mãe. Tinha certeza de que seria um fi­lho e pretendia dar a ele o nome James, como papai. Agora sin­to que minha menina deve se chamar Aine. Aine Mary Devers é o nome que ela receberá no batismo. E será batizada católica, pois sei que o pai dela desejaria que assim fosse.

— Não pode trazer um padre à casa de seu irmão, consi­derando a posição que ele ocupa. Sua filha terá de ser batiza­da na igreja da Inglaterra. Quando você e sua Aine chegarem a Mary's Land, então poderá fazer o que quiser. Mas aqui, na Inglaterra, seguirá as leis da terra como faz a própria rainha. Entendeu?

Fortune assentiu.

— Agora, deixe-me limpar minha neta, e você também pre­cisa receber os cuidados que sucedem o parto. Precisa expelir a placenta, para que ela seja plantada sob um carvalho na pro­priedade. Assim, Aine Mary Devers será sempre forte. — Jas­mine pegou a criança e a entregou a Toramalli. Depois, encora­jou a segunda filha a terminar seu trabalho de parturiente. Quando mãe e filha foram devidamente limpas, Fortune foi posta em sua cama, e Aine, no berço, com a fiel Rohana sentada ao seu lado para velar seu sono. Jasmine serviu à filha uma bebida revigorante.

Devagar, Fortune sorveu o líquido. Sentia-se cansada, es­gotada. Seus olhos se fecharam, e Jasmine recuperou o cálice vazio. Ela sorriu ao ver a filha adormecida. Como os anos ha­viam passado depressa! Mas sentia-se grata por ter podido es­tar com Fortune naquele momento. Logo sua filha partiria, e era pouco provável que voltasse a vê-la um dia. Não se sentia com disposição para atravessar oceanos. Não mais. Ela acari­ciou a testa de Fortune com enorme carinho, depois se aproxi­mou do berço para estudar as feições da neta mais nova. A crian­ça era clara como a mãe dela havia sido ao nascer. Kieran Devers não ficaria desapontado, e ainda teriam tempo para muitos outros filhos quando Fortune chegasse em Mary's Land.

— Fique aqui cuidando das duas, Rohana — ela orientou a criada. — Em alguns instantes mandarei Joan, ou Polly, e então você poderá descansar.

— Sim, milady. Ela é uma linda menina, não é? É uma pena que não a veremos crescer.

Jasmine suspirou.

— Também lamento muito, mas Aine tem o próprio desti­no a cumprir, e só o tempo poderá revelar qual é ele.

Capítulo 16


— Mamãe! Mamãe! O capitão do Cardiff Rose está aqui! — Fortune gritou, animada. — Oh, senhor, já imaginávamos que não viria nunca! Diga-me, como está meu marido? Porfavor! Quando partiremos para Mary's Land? — Ela se virou. — Róis, temos de começar os preparativos com a bagagem!

— Capitão OTlaherty? Sou Jasmine Leslie — apresentou-se a duquesa de Glenkirk, caminhando para o visitante com a mão estendida.

Ualter tomou a mão fina e beijou-a.

— Somos primos, senhora, netos da gloriosa Skye 0'Malley. Como nunca nos encontramos, quis vir pessoalmente para en­tregar a mensagem de Kieran à esposa, sua filha. Espero que perdoe minha chegada inesperada. Não tive tempo para me fazer anunciar com antecedência. — Ele se curvou com elegân­cia, sorrindo para as duas mulheres e pensando que a beleza de sua prima Jasmine não havia sido exagerada por aqueles que a haviam descrito. O vestido de veludo vermelho que ela usava certamente realçava a intensidade do contraste entre cabelos negros e brilhantes olhos azuis. E a esposa de Kieran era igual­mente bela, com seus cabelos vermelhos e olhos verdes. Tão parecida com Skye 0'Malley!

— Você é muito bem-vindo, primo. Deve ser um dos filhos de meu tio Ewan, não?

— Sou o mais novo — confirmou o capitão.

— Fale-nos de Mary's Land — pediu Fortune.

— Acho que devemos antes oferecer uma bebida e alimen­to ao nosso primo e convidá-lo a se sentar perto da lareira — disse a duquesa à filha. — Junho é um mês desconfortável. Quente num minuto, frio no outro... Chove há três dias. A via­gem deve ter sido gelada e úmida.

— A vida no mar nos ensina a enfrentar qualquer clima sem muitos problemas, especialmente as intempéries, senhora — ele sorriu, aceitando o cálice de vinho que Jasmine oferecia.

Os três se sentaram diante da lareira do salão, e o capitão entregou a Fortune a encomenda de que era portador.

— O que é isso? — perguntou ela, girando o pacote entre as mãos.

— Seu marido manteve um registro diário de suas experiên­cias e agora o envia acompanhado por uma carta, milady Fortune. — OTlaherty saboreava o vinho com prazer e apreciação.

— Ele está bem, capitão? Meu marido...?

— Gozava de excelente saúde e disposição quando o dei­xei, milady. A travessia foi a melhor possível, e soube por ou­tros capitães habituados a essa rota do Atlântico que nenhum deles jamais teve melhor viagem. O povo da Virgínia nos rece­beu bem, e a terra onde será implantada Mary's Land é linda, mais do que se pode descrever. Mas o diário de seu marido con­tém tudo que deseja saber, minha cara senhora. Trouxemos uma carga de peixe salgado que embarcamos na colônia Plymouth, onde fizemos uma parada durante nossa viagem de volta, e peles de castor e de raposa. Assim, faremos dessa viagem uma fonte de lucro para milady.

— Vai permanecer conosco por alguns dias, primo — con­vidou Jasmine.

— Será uma honra, senhora.

Fortune abriu o pacote enquanto conversavam. Era uma grande tentação ler antes a carta de Kieran, mas, em vez disso, começou pelo diário da viagem, compreendendo que ele o ha­via criado com a intenção de integrá-la na empreitada de que não pudera participar, mas que logo seria o ponto de partida para uma nova vida. Ela passou a tarde lendo, e os criados já preparavam a mesa para a refeição noturna quando ela final­mente abriu a carta do marido. A mensagem a fez emitir uma exclamação contrariada e contida.

— Tem idéia do que diz esta carta, capitão?

— Sim, eu tenho — ele confirmou.

— E concorda com a avaliação que meu marido faz da si­tuação? Ele não está piorando o quadro, descrevendo algo mais sombrio do que realmente é a realidade? Sei que Kieran deseja ter tudo perfeitamente arranjado para mim quando eu chegar, mas não precisa ser perfeito, primo.

— Não, milady Fortune. Ele não está equivocado. Mary's Land é selvagem, e a orla norte onde está o primeiro assenta­mento é uma região de floresta densa e fechada. Ainda há mui­to trabalho a ser feito até que se possa tornar a área habitável para pessoas civilizadas. As poucas mulheres que viajaram no Ark e no Dove estão enfrentando grandes dificuldades.

Fortune suspirou, irritada. Não era isso o que desejava ouvir.

— Qual é o problema, afinal? — perguntou Jasmine, curiosa.

— Kieran não nos quer na colônia até o próximo verão. A terra ainda não foi dividida, e ele afirma que estão todos viven­do em um povoado indígena com os selvagens. Eu sabia que devia ter ido!

Jasmine olhou para o Capitão OTlaherty.

— Chegamos ao final de março, somente — ele começou a explicar. — A expedição sofreu um atraso depois de ter ficado um mês retida em Isle of Wight. O Governador Calvert man­dou uma mensagem ao Cardiff Rose, que estava ancorado em Cape Clear, conforme havia sido combinado. Ele nos orientava a seguir viagem para Barbados. Percorremos uma rota mais lon­ga pelo sul, pois precisávamos nos garantir contra a instabili­dade do clima de outono.

— Uma sábia precaução — apoiou Jasmine.

— O Ark só chegou em janeiro. O Dove surgiu no horizon­te dez dias mais tarde. Quando terminamos de providenciar suprimentos e água fresca e partimos pelo mar do Caribe, bus­cando o norte no caminho que passa pelas colônias espanho­las, já era primavera. Paramos nas Virgínias, onde permanece­mos por alguns dias, e depois seguimos para Mary's Land. A colônia foi fundada no dia 25 de março.

— No dia em que Aine nasceu! — exclamou Fortune.

— Aine? — perguntou ele, confuso.

— Aine Mary Devers, minha filha. A criança que me reteve aqui. Tive uma filha no dia 25 de março, e Róis, minha criada, esposa de Kevin, teve um filho, Brendan, dois dias mais tarde, em 27 de março.

— Seu marido ficará muito feliz. Ele se preocupou muito com sua saúde e a da criança, milady. Mal posso esperar para ver a expressão em seu rosto quando eu der a notícia.

— Eu mesma irei dizer a ele — afirmou Fortune.

— Espere, meu bem — interferiu Jasmine, firme. — Quero saber mais sobre as condições de vida em Mary's Land. Como estão as coisas por lá neste momento, primo?

— Os colonizadores encontraram um povoado dos índios Wicocomoco à margem de um pequeno rio ao norte do Potomac. O governador gostou da região e pediu permissão ao chefe local para começar o assentamento ali. A área é irrigada e tem um local de águas profundas para receber os navios. Os índios enfrentavam dificuldades com uma tribo maior, os Susquehanocks, mais belicosos. Eles planejavam transferir o povoado para outra localização. Concordaram em dividir a área conosco, desde que fornecêssemos a proteção necessária até que eles possam se mudar. Os colonizadores estão vivendo em cabanas indígenas, habitações feitas de mato, lodo e galhos, co­bertas por peles de animais. Tudo é muito primitivo e rústico. Quando os índios finalmente partirem, os colonizadores construirão primeiro uma fortificação com um quartel, uma panca­da e um galpão, que servirá de depósito para armazenar comi­da. Esse trabalho vai exigir a cooperação de todos os homens. Ninguém vai poder construir a própria casa até que o forte seja erguido.

"Agora mesmo o Cardiff Rose está embarcando mais supri­mentos para a colônia. O governador deu ordens para que não sejam levadas mais mulheres, e certamente crianças, até o ano que vem, quando a colônia estará mais habitável. Seu marido vai para a Virgínia comprar animais de criação e galinhas. Na verdade, ele já se preparava para viajar quando eu parti. Seus homens trabalhavam duro. A Senhora Jones e Taffy são uma verdadeira bênção para a colônia. E era esse o panorama geral no dia em que deixei o local."

— Se o governador deu ordens, você não pode ir, Fortune — decidiu Jasmine. — É simples. Ou vai comigo para Glenkirk, ou permanece em Queen's Malvern. Sei que Charlie não vai se incomodar se ficarmos. Eu ficarei com você, é claro, até o mo­mento de sua partida, meu bem.

— Como suporta passar tanto tempo longe de papai? Não, mãe. Você deve voltar para Glenkirk.

— Seu pai não vai se opor a mais um verão na Inglaterra, desde que possa voltar à Escócia para a temporada de caça.

Jasmine riu. Ela não tinha a intenção de deixar Fortune. A segunda filha nunca fora tão voluntariosa quanto a primeira, mas sabia que ela seria bem capaz de seguir para Liverpool e embarcar com Róis e as crianças no Cardiff Rose valendo-se da autoridade de proprietária. E isso era algo que ela não podia permitir. Sua filha esperaria até o governador anunciar que mulheres e crianças podiam seguir para Mary's Land.

— É melhor escrever para Rory Maguire e informá-lo dos últimos eventos. As mulheres na Irlanda precisam saber que terão de aguardar um pouco mais pelo momento de partir. Explique as condições primitivas e não se esqueça de dizer que todas vocês viajarão no próximo verão — sugeriu a duquesa.

— Ainda acho que o Governador Calvert está exagerando na cautela — resmungou Fortune.

Jasmine sorriu brandamente.

— Assim vai ser melhor para as crianças, meu bem — justi­ficou ela.

— Mas não para Róis nem para mim. Sinto falta de meu marido em minha cama, e sei que Róis também sente falta de Kevin.

Jasmine e Ualter OTlaherty riram do comentário franco.

É uma alegria constatar que as mulheres da família ain­da têm sangue quente nas veias — comentou o capitão, rindo ao ver Fortune corar violentamente.

James Leslie chegou de Glenkirk para se juntar à esposa e às filhas em Queen's Malvern. Com a neta mais nova nos braços, sorria orgulhoso, e não poupava elogios à beleza da menina. Sua filha mais nova escondia o rosto entre as mãozinhas cada vez que via o pai nas primeiras duas semanas dele em Queen's Malvern. Então, um dia, Autumn sorriu para o pai, e já eram amigos novamente. Foi um alívio para o escocês, que já havia encontrado um local especial para aquela menina em seu cora­ção. Não conhecera Índia nem Fortune nessa idade tão tenra.

— Quero que volte para casa comigo em setembro — disse James à esposa certa noite, quando estavam sentados no salão.

— Receio deixar Fortune sozinha. Temo que ela embarque para o Novo Mundo para ir se juntar a Kieran. Ela sofre com a ausência do marido.

— Fortune é uma mulher adulta. Farei com que ela dê sua palavra de honra de que vai esperar pelo Cardiff Rose para levá-la no ano que vem, querida Jasmine. Quero-a de volta em Glenkirk. Se você e Autumn ficarem aqui, ela me esquecerá novamente. Não posso ficar e deixar Patrick sozinho por tanto tempo. Ele precisa da nossa orientação para um dia poder co­mandar o lugar. Você precisa voltar para casa, Jasmine.

— Não, meu Jemmie, eu devo ficar. Quando Fortune for embora, quando voltarei a vêla? Autumn vai fazer apenas 2 anos. Volte para Glenkirk em setembro e retorne para se juntar a nós antes do Natal. Patrick é um homem. Ele pode cuidar de tudo sem sua ajuda. Vai mesmo ser capaz de voltar para a Escó­cia no final do verão, sabendo que nunca mais verá Fortune? Precisamos de você conosco, meu amor. Serão só alguns meses.

Ele concordou, como Jasmine sabia que seria. O verão che­gou, e no final de agosto, o duque de Glenkirk voltou para a Escócia, prometendo retornar em dezembro. Charlie juntara-se a eles para o verão e agora retornava à corte para apoiar o rei na interminável batalha contra os puritanos. Eles se fortaleciam a cada ano e desaprovavam abertamente tudo que se relacio­nasse ao rei e à sua rainha francesa e católica, apesar de ela já ter dado ao marido e ao reino quatro filhos — dos quais três estavam vivos e dois eram homens — e de estar novamente grávida. Nem mesmo o batismo de cada príncipe e princesa na Igreja da Inglaterra os contentava. O Parlamento fora dissolvi­do anos antes, mas os puritanos eram cada vez mais difíceis e não hesitavam em condenar e criticar o rei.

Em outubro, um cavalheiro chegou a cavalo na entrada de Queen's Malvern. Ele se apresentou como Sir Christian Denby e informou que herdara recentemente uma propriedade vizinha.

— Não sabia que Sir Morton Denby tinha um filho — con­fessou a duquesa, analisando o rapaz diante dela. Ele se vestia com simplicidade e de maneira severa em seus trajes pretos. Só o colarinho branco quebrava um pouco a austeridade do con­junto.

— Ele não teve, milady. Sou filho de seu irmão mais novo. Meu tio foi generoso o bastante para deixar Oakley para mim, já que meu irmão mais velho herdará tudo que pertence a nos­so pai. Vim inspecionar minha propriedade e decidi me apre­sentar aos vizinhos.

— Lamento, mas meu filho, o duque de Lundy, não está na residência, Sir Christian. O tio dele, o rei, solicitou sua presen­ça, como faz boa parte do ano. Sou a duquesa de Glenkirk, e esta é minha filha, Lady Lindley.

Sir Christian se curvou para as duas damas, depois aceitou um cálice de vinho servido por Adali.

— Mora aqui, senhora? — a pergunta era ousada, mas Jas­mine decidiu se divertir com ela, em vez de ficar ofendida. Obviamente, o rapaz tentava entender a situação da terra onde em breve se instalaria.

— Apenas nos meses do verão, senhor. Minha casa fica na Escócia, e minha filha está aqui enquanto o marido está no Novo Mundo. Como ela não pode ir se juntar a ele até o ano que vem, decidi ficar com ela e com minha neta. Trouxe minha filha mais nova comigo porque ela ainda é muito pequena para ser sepa­rada da mãe. E sua esposa, senhor? Não o acompanha?

— Ainda não recebi as bênçãos matrimoniais, madame. Encontrar uma esposa hoje em dia não é tarefa fácil. Gostaria de uma jovem dama que se contentasse com a vida no campo. Ela deve ser devota em sua fé, modesta em sua forma de vestir e falar, obediente à minha vontade, capaz de cuidar de minha casa apropriadamente, capaz de me dar filhos e filhas de boas maneiras e costumes aceitáveis, e também deve ter um dote respeitável. Considero as mulheres de hoje muito irreverentes, ousadas demais.

— Deduzo que é um puritano, então — arriscou Jasmine com tom simpático.

— Sim, eu sou — respondeu o rapaz desafiante, como se esperasse ouvir algum tipo de crítica.

— Somos anglicanos — revelou Jasmine.

— Seu marido está nas Virgínias? — perguntou Sir Christian a Fortune, que nesse momento tinha a pequena Aine nos braços.

— Em Mary's Land, senhor.

— A colônia católica? O rei não devia permitir isso, e não permitiria, por certo, não fossem as intrigas maldosas de sua rainha e dos amigos dela! Seu marido é católico, então.

— Sim, ele é, mas Mary's Land é um lugar onde todos os homens e mulheres de boa vontade poderão viver em paz. Muitos colonos são protestantes, senhor.

— Sim, é o que querem fazer crer, mas nós conhecemos a verdade. Lorde Baltimore espera invadir as Virgínias e conquis­tá-las para os espanhóis, seus aliados.

Fortune riu alto.

— Nunca ouvi nada mais ridículo, senhor. É um tolo se acre­dita nesses rumores, e é errado repetir mentiras e maledicências.

— Então, por que, madame, se me permite a ousadia, não está com seu marido?

— Porque ainda não há abrigo decente para nós, senhor. Irei na primavera, quando a situação estará um pouco melhor.

Sir Christian olhou para a pequena Aine. Estendendo a mão, tocou o queixo pequenino e redondo do bebê.

— Sua filha será criada na Igreja católica?

Aine olhou para o desconhecido e começou a chorar.

— Tire a mão de minha filha, senhor — exigiu Fortune em voz baixa, confortando o bebê.

— Foi um prazer conhecê-lo, senhor — encerrou Jasmi­ne a visita com toda a polidez de que era capaz naquelas cir­cunstâncias.

Sir Christian levantou-se.

— Como pode permitir que sua neta seja criada católica?

— É atrevido demais em suas indagações, senhor, e devo dizer que tenta se envolver em assuntos que não são de sua alçada.

Sir Christian curvou-se rapidamente e saiu. Finalmente, Aine parou de chorar.

— Que homem desagradável — comentou Fortune. — Es­pero que não tenhamos de voltar a vê-lo.

Autumn Leslie comemorou seu 2º aniversário no final de outubro. Jasmine e Fortune fizeram uma viagem de dois dias a Cadby para conhecerem a jovem que Henry Lindley pensava tomar por esposa. Ele se recusara a revelar à mãe o nome de sua pretendida, provocando-a em suas cartas com a promessa de uma grande surpresa. E realmente foi uma surpresa. Henry Lindley havia decidido se casar com Cecily Burke, a filha de Lorde Burke de Clearfields, que era tio de sua mãe. Cecily era três anos mais jovem que Henry, e muito bonita, com seus ca­belos escuros e os olhos azuis esverdeados da família. Ela era a filha mais nova de Padraic e Valentina.

— Mas como...? — reagira a duquesa com espanto genuíno.

— Entendo sua surpresa, mãe. Não nos víamos desde a in­fância, quando nos encontramos em uma festa grandiosa em Queen's Malvern. Estive na corte no último inverno a convite de Charlie, e lá estava Cecily, dama de companhia da rainha, esco­lhida entre muitas por falar perfeitamente o francês. Foi amor à primeira vista, mamãe. Estive em Clearfields várias vezes, e Cecily esteve aqui em Cadby com sua família em outras ocasiões.

— E você nunca me contou nada? — Jasmine não sabia se devia estar feliz ou zangada. Fortune ria.

— Henry, nunca pensei que fosse um romântico — provo­cou ela o irmão mais velho.

— Oh, prima, ele é o maior dos românticos — Cecily con­tou, sorrindo.

Todos riram do comentário ingênuo da futura noiva.

— Tio — falou Jasmine para Padraic Burke — não podia ter me prevenido? Ainda é capaz de escrever, e não se finja de enfermo ou fraco, porque não vai me convencer!

— O que eu poderia dizer? Eu nem tinha certeza de nada! Não até seu filho pedir minha permissão. Ele estava muito preo­cupado por Cecily ser sua prima, mas como não são primos de primeiro grau, decidi que o laço consangüíneo não é de grande importância. O que pensa sobre tudo isso, minha sobrinha?

— Estou contente com a escolha de meu filho, embora Cecily e eu pertençamos à mesma geração, considerando que é irmão de minha mãe.

Cecily Burke riu.

— Então, os filhos que teremos serão da geração do pai. É isso, senhora?

— Meu Deus! — exclamou o marquês de Westleigh, arran­cando gargalhadas de todos.

Houve uma festa para celebrar o noivado. Para surpresa de Fortune, Sir Christian estava presente. Ele se manteve ao lado de Fortune a noite toda, apesar de ela ter tentado dispensar fria­mente o fervoroso puritano.

— Não devia estar desacompanhada, senhora — comen­tou ele.

— Estou na casa de meu irmão — respondeu Fortune.

— Seu decote é baixo demais — disse ele, incapaz de des­viar os olhos de seu colo alvo.

— Se a visão o perturba, senhor, sinta-se à vontade para olhar para outras coisas.

— Como poderia, se exibe seus dotes com tanta liberdade para todos que quiserem apreciá-los? Pretende tomar um aman­te na ausência de seu marido, senhora? Soube que sua mãe era dada a esse tipo de prática.

Chocada, Fortune o encarou com um misto de ultraje e revolta.

— Ela não foi a meretriz do Príncipe Henry? — insistiu o desagradável convidado.

Fortune o atingiu com uma violenta bofetada. Depois, te­mendo arruinar o noivado do irmão, virou-se e se afastou de Sir Christian. Henry Lindley a alcançou em seguida.

— O que aconteceu? — perguntou ele.

— Por que convidou aquele homem para seu noivado? — perguntou Fortune.

— Ele é primo de um de meus vizinhos e é novo na região. Está procurando por uma esposa, e meu vizinho sugeriu que uma reunião em Cadby seria uma excelente ocasião para Sir Christian observar as beldades locais. Qual é o problema, Fortune? Por que agrediu o homem?

— Porque ele me insultou e insultou mamãe, Henry. — Ela contou ao irmão tudo que Sir Christian havia dito. — Ele é um puritano, Henry. Não devia tê-lo esbofeteado em sua casa, eu sei, mas você devia ter se informado melhor antes de trazê-lo aqui. De qualquer maneira, não quero estragar sua festa exi­gindo que o expulse. Apenas mantenha-o bem longe de mim.

De volta a Queen's Malvern, Sir Christian voltou a procu­rá-las, passando sem se anunciar pelos criados que serviam Jas­mine e Fortune no salão principal.

— Vim pedir desculpas às duas — declarou ele sem rodeios.

Fortune levantou-se.

— Saia! — exigiu furiosa. — Como ousa invadir nossa casa sem ter sido convidado? Não é bem-vindo aqui, senhor.

— É apenas minha preocupação com você, uma mulher sozinha, que me faz agir dessa maneira.

— Não estou sozinha, senhor. Minha mãe e minha irmã me fazem companhia. E tenho uma filha. A casa está cheia de cria­dos que me conhecem desde que nasci, e em breve meu pa­drasto chegará da Escócia para ficar conosco até o dia da mi­nha partida. Como vê, não posso me queixar de solidão.

— Preciso lhe falar em particular, Lady Lindley. Temo por sua filha. Não deve criá-la católica, ou a condenará ao pecado da alma sem chance de salvação. Estará condenando sua filha ao fogo eterno!

— Se acredita nisso, senhor, só posso dizer que lamento por você. Que tipo de Deus adora, afinal? Minha filha é inocente, como todas as crianças. Agora saia daqui e não volte. Nunca mais!

— Adali — chamou Jasmine o mordomo com tom sereno e firme. — Acompanhe o cavalheiro até a saída, e cuide para que sua entrada não seja mais permitida.

— Sim, minha princesa — respondeu Adali, segurando o braço do visitante e levando-o para a porta.

— Meu Deus! — exclamou Fortune, perplexa. — O que faz as pessoas pensarem dessa maneira, mãe? Por que há tanto ódio no mundo contra outras crenças, outros clãs? Jamais entende­rei esses pensamentos.

— Nem eu, meu bem. E seu avô também não entendia. Su­ponho que deva ter pena de Sir Christian, cujo nome é impró­prio, certamente.

— Ele me assusta, mãe. Não gostei do tom que ele usou quando se referiu a Aine. Ele me insultou em Cadby, como sabe. Não quero esse homem perto de minha filha. Ele é a encarnação do mal!

Jasmine concordava com a filha, mas nada disse, preferin­do acalmar Fortune da melhor maneira possível. No entanto, orientou Adali a manter constante vigilância e assegurar a proteção de sua neta em tempo integral.

James Leslie chegou da Escócia pouco antes do início das comemorações de Natal. Henry chegou de Cadby com Cecily e os pais dela, porque havia sido acertado que o jovem casal cele­braria suas núpcias no dia 21 de dezembro, na capela de Queen's Malvern. A comemoração trazia lembranças felizes de tantas outras reuniões familiares presididas naquele mesmo lugar por Skye 0'Malley e seu marido, Adam de Marisco. A capela da família, que já havia abrigado inúmeros casamentos, era clara e iluminada pelo sol de inverno. A pequena Autumn Leslie precedeu a noiva em seu primeiro dever público.

Quando chegou ao altar, ela se virou e perguntou em voz alta:

— Mamãe, o que faço agora? Para onde vou?

Todos riram, e Charles Frederick Stuart, padrinho do irmão, pegou a irmã no colo e murmurou em seu ouvido:

— Para os meus braços, minha pequena Lady Autumn.

Ao ver o sorriso doce da menina, Charlie pensou que tal­vez fosse hora de começar a procurar uma esposa com quem pudesse ter filhos. Mas decidiu que ainda era jovem demais. Afinal, Henry tinha praticamente 26 anos, e ele acabara de con­cluir 22.

O inverno chegou com todo o seu rigor. Os dias foram se tornando mais longos, mas o vento ainda era frio e a neve co­bria os parapeitos das janelas da casa em muitos dias. Porém, quando Aine Marie Devers comemorou seu aniversário, ha­via flores nos canteiros do jardim de Queen's Malvern. Desde a visita do Capitão OTlaherty no último verão, não haviam tido mais nenhuma notícia de Kieran. Fortune sabia, no entanto, que seu tempo na Inglaterra chegava ao fim. Então, um dia, a casa recebeu um visitante.

— Meu nome é Johnathan Kira — apresentou-se ele. — Estou no comando dos negócios da família em Liverpool, milady. — Falava com Jasmine. — Fui informado por sua gen­te na Irlanda de que o Cardiff Rose foi avistado a aproximada­mente cem milhas náuticas de Cape Clear há uma semana. Achei que deveria vir a Queen's Malvern para me informar so­bre como posso ser útil à sua filha, agora que ela se prepara para partir para Mary's Land. E também gostaria de pedir um favor.

— Qual é o favor, Mestre Kira? — indagou Fortune, curiosa.

— Primeiro, tenho uma ou duas perguntas, milady. É ver­dade que Mary's Land vai receber todos os homens, indepen­dentemente de sua religião? E, se sim, aceitaria meu segundo filho, Aaron, em seu grupo de viagem? Se existe mesmo um lugar onde ele possa viver livre de qualquer perseguição, a fa­mília Kira se dispõe a fundar um braço de seus negócios no Novo Mundo. Um judeu seria bem-recebido em Mary's Land?

— Só posso lhe dizer o que sei — respondeu Fortune. — O próprio Lorde Baltimore nos disse que todos, independente­mente de fé religiosa, seriam acolhidos em Mary's Land. Se for mesmo assim, então, certamente haverá um lugar para seu fi­lho, senhor. Será um prazer transportá-lo no Cardiff Rose quan­do eu partir. Sua família faz negócios com a minha há gerações.

— Sou muito grato, milady. — Johnathan Kira curvou-se.

— Ficará conosco esta noite, é claro — disse o duque.

— Agradeço pela hospitalidade, milorde. Porém, espero que não se ofenda se eu comer apenas os alimentos que trago comi­go. Seguimos leis muito severas quanto à nossa alimentação, e quando viajo carrego minha própria comida, pois não quero desrespeitar os mandamentos.

— O que seu filho vai fazer quando estiver a bordo do na­vio, senhor? — perguntou Fortune, preocupada. — Passaremos várias semanas no mar.

— Ele também levará a própria comida. Quando o supri­mento acabar, Aaron fará o que puder para seguir os manda­mentos. Em circunstâncias extraordinárias a desobediência pode ser perdoada. Além do mais, Aaron é jovem. Não tem muitos problemas de consciência — riu Johnathan Kira.

Adali entrou no salão e cochichou alguma coisa no ouvido de sua senhora. Jasmine empalideceu.

— O que foi? — perguntou o duque à esposa. Jasmine olhou para a filha.

— Róis foi encontrada caída no jardim. Inconsciente. Brendam estava bem no cesto, mas Aine desapareceu.

— Meu Deus! — gritou Fortune.

— Róis já recobrou a consciência? — perguntou o duque a Adali.

— Está se recuperando aos poucos, milorde, mas o golpe em sua cabeça foi violento. Foi sorte ela não ter morrido. Nós a trou­xemos para dentro, e Polly está com ela. Brendam ainda dorme.

— Sir Christian Derby! — deduziu Fortune, furiosa. — Juro que vou matar aquele miserável quando o encontrar!

— O que está dizendo, Fortune? — Jasmine espantou-se.

— Mamãe, Aine foi seqüestrada por Sir Christian Derby. Tenho certeza disso! Desde que nos conhecemos, tudo que ele fez foi reprovar minha decisão de criar a menina na fé católica. O homem é um fanático! Você mesma reconheceu!

— Não pode acusá-lo sem provas, querida — lembrou o duque.

— Que tipo de prova espera que eu exiba, pai? Meu instin­to diz que foi ele! Quem mais levaria minha Aine? E por quê? As mulheres desta região são tão fascinadas por crianças que roubam aquelas que não lhes pertencem? Ou está supondo que podem ter sido ciganos? Não temos notícias deles por aqui. Foi aquele homem! Cada fibra de meu ser grita contra ele, papai! Deve montar um grupo imediatamente e encontrá-lo. Encon­trar minha filha! Eu irei com eles!

— Sua filha provavelmente está certa — opinou Johnathan Kira. — Milorde, se me permite falar, há rumores sobre esse homem já há algum tempo.

— Que tipo de rumores?

— Histórias envolvendo crianças, milorde. Bebês. Católicas, anglicanas, uma ou duas judias... Todas desapareceram quando Sir Christian estava nas redondezas. Normalmente, eram todas filhas de pessoas sem importância nem autoridade, sem recur­sos para acusá-lo ou para tentar recuperar seus pequenos. Di­zem que essas crianças são entregues a famílias puritanas para serem criadas apropriadamente. Lady Fortune deve estar certa quando afirma que esse homem levou a pequena Aine. Com sua permissão e a dela, certamente, eu mesmo gostaria de cavalgar até Oakley e conversar com o cavalheiro em questão.

— O que pode fazer para nos ajudar? — indagou o duque.

— Digamos, milorde, que posso exercer uma certa influên­cia sobre Sir Christian. O tempo é de suma importância. Ele ainda não teve tempo para se desvencilhar da criança. Não há famílias puritanas na região. Ele terá de levá-la a algum lugar, e é tarde demais para começar uma viagem. Deixe-me ajudar, milorde.

— Vá, Mestre Kira — adiantou-se Fortune. — Vá agora e traga minha filha de volta!

Johnathan Kira se curvou e saiu apressado.

James Leslie sorriu satisfeito ao vê-lo deixar o salão. Os Kira eram pessoas admiráveis. Não duvidava de que, caso Sir Christian mantivesse Aine em sua custódia, ela seria trazida de volta antes do final do dia, naquela mesma noite, no máximo.

— Adali — chamou ele. — Mande alguns de meus homens com Mestre Kira. Dê a ele toda proteção que for necessária.

Com um sorriso que refletia o de seu senhor, Adali entrou em ação rapidamente.

Johnathan Kira não se surpreendeu ao se ver rapidamente escoltado por uma tropa de homens do clã Leslie. Ele cumpri­mentou o comandante, e depois seguiu em sua jornada silen­ciosa. Era um homem alto e magro, de idade indeterminada, com cabelos muito escuros e barba tão negra quanto seus olhos. Usava roupas escuras de corte muito elegante e atual. Os que não conheciam seu sorriso o consideravam intimidador. Era uma característica que ele considerava útil.

Em uma hora, Johnathan chegou à porta de Oakley Hall, desmontou e ordenou aos acompanhantes que o esperassem ali, do lado de fora. Determinado, foi bater na porta.

Kira foi recebido por um lacaio uniformizado.

— Leve-me ao seu senhor — disse ele com autoridade incontestável.

Intimidado, o criado obedeceu, conduzindo o visitante im­ponente à biblioteca de seu senhor. Quando entravam no apo­sento, o choro de uma criança soou no andar de cima.

Johnathan Kira sorriu. Empurrando o criado de volta ao corredor, fechou a porta da biblioteca.

— Boa tarde, Sir Christian.

O dono da casa ergueu os olhos e, assustado, levantou-se, abandonando sobre a mesa a Bíblia aberta.

— Kira! O que faz aqui? Ainda não estamos na época do pa­gamento do meu empréstimo! Pagarei no prazo determinado.

— Vim buscar Aine Devers, Sir Christian. Dê-me a criança para que seja devolvida à família, e não terá de enfrentar ne­nhuma dificuldade.

— Não sei do que está falando.

— Ah, prefere agir como um tolo. Lamentável. Tem sorte por não ter causado a morte daquela pobre criada, ou seria en­forcado por assassinato. Mas ela está ferida, então... bem, ain­da não pode se considerar totalmente livre. Se houvesse seqües­trado o filho dela, o escândalo teria sido menor, porque o bebê é católico e filho de pais irlandeses. Aine Devers, porém, qual­quer que seja sua religião, é neta de um duque, sobrinha de vários nobres importantes, um deles sobrinho do rei. Não pode esperar escapar ileso dessa empreitada.

— Saia de minha casa! — vociferou Sir Christian.

— Sua casa? Enquanto não pagar o que me deve, Sir Christian Denby, a casa não é sua. E tenho o direito de reclamar paga­mento adiantado. Se eu tomar essa decisão, o que vai fazer? Terá apenas um título sem nenhum valor, uma montanha de dívidas e mais nada. Acha que manter a posse dessa menina vale todo esse transtorno? Como ajudará seus companheiros puritanos a tramar contra o rei se eu tiver de privá-lo do pouco poder que possui agora? Vá buscar a criança imediatamente e entregue-a a mim. Senão, serei forçado a abrir a porta de sua casa para os homens do duque. Eles me acompanharam até aqui e estão armados. Haverá uma busca, eles encontrarão a crian­ça, que já ouvi chorando lá em cima, e então a questão se torna­rá pública, e você, senhor, estará arruinado. Se, porém, devol­ver a criança agora, manteremos o assunto no âmbito privado e não cobraremos o pagamento do empréstimo por enquanto. Vá buscar a menina.

— Servo do diabo! Vocês, judeus sujos, são todos servido­res do mal! Venha comigo, vou lhe dar o que quer!

Sorrindo, Johnathan seguiu o dono da casa até a escada, de onde Christian Denby gritou para alguém sem nome trazer a menina. A ordem foi rapidamente obedecida, e uma mulher surgiu carregando Aine Devers.

Sir Christian arrancou a criança com rispidez dos braços da criada, colocando-a nos de Johnathan Kira.

— Aqui está a criatura que você acaba de condenar a arder eternamente no inferno!

— Obrigado — respondeu Johnathan, calmo. — Sugiro que leia a Bíblia com mais atenção, Sir Christian. Vai descobrir que nós, os judeus, somos chamados de povo escolhido. Também é fato que nosso Yushua, ou o homem que vocês chamam de Je­sus, foi judeu. Boa noite, senhor. — Johnathan Kira deixou a casa levando a menina, que foi entregue ao comandante Leslie. —Agora retornaremos a Queen's Malvern — disse ele. — Hora de voltar para os braços de sua mamãe, pequena Aine.

Aine Mary Devers chorava, mas logo se acalmou, sentin­do-se segura e protegida.

Fortune os esperava na porta e correu para pegar a filha dos braços do comandante, apertando-a contra o peito enquanto soluçava de alívio e gratidão.

— Ma-ma!


— Sim, bebê, sou sua mamãe, e você está em casa, sã e sal­va! — ela olhou para Johnathan Kira. — Diga a seu filho que só precisa embarcar levando a comida especial que respeita seus mandamentos. Todo o restante será providenciado por nós. E quero que transfira o quanto antes um quarto de meus fundos aos cuidados de Aaron, senhor Kira. Quando estivermos em Mary's Land, outro quarto deverá ser transferido. A outra me­tade ficará aqui na Inglaterra. Contem sempre com minha ina­balável amizade e com minha gratidão pelo que fez esta noite. Mas como...?

— Sir Christian herdou uma casa dilapidada, milady, um título que integrava a propriedade, e mais nada. Ele precisava de fundos para restaurar a residência e investir em um empreen­dimento que o tornasse independente e capaz de atrair uma esposa com um bom dote. Procurou minha família, e agora tem uma dívida conosco. Dei a ele a chance de escolher: perder tudo, ou devolver sua filha. Felizmente, ele fez a escolha mais sensata. Eles entraram na casa.

— Graças a Deus estava aqui conosco, ou eu não teria con­seguido recuperar minha filha sem violência.

Fortune entregou a filha a Rohana, porque era hora de levá-la para a cama.

— E sua criada?

— Recobrou a consciência. Ela nos contou que Sir Christian e outro homem, provavelmente um criado, a atacaram. O pri­meiro golpe contra sua cabeça não a deixou inconsciente, por isso ela os viu. Róis tentou gritar, mas foi atingida por um se­gundo golpe. Ela vai ficar bem, com a graça de Deus. Venha, vamos tomar um cálice de vinho, Isso é permitido, não?

— Beberei de minha própria taça — respondeu ele, rindo.

— Há quanto tempo nossas famílias são associadas? Mui­tos anos, suponho.

— Sim, muitos. Uma ancestral de seu padrasto, uma mu­lher muito poderosa e importante, fez amizade com minha an­cestral Esther Kira. As duas ajudaram uma à outra de muitas formas e, pela influência de uma, a outra se tornou poderosa e rica também. Isso, contaram-me, foi o começo de tudo, há mais de um século. Depois, a mãe de sua avó começou a negociar conosco, e descobrimos que também ela era uma mulher de grande intelecto, honra e ética. Isso foi há mais de 70 anos. As duas famílias se ligaram pelo casamento, e os frutos dessa liga­ção continuaram negociando com os Kira. A associação tem sido de muito sucesso para todos os envolvidos, milady.

— Espero que mantenhamos essa tradição no Novo Mun­do — disse Fortune com sinceridade e um sorriso largo.

— Amém — entoou Johnathan Kira. — Amém, milady.

Capítulo 17


Fortune se debruçou sobre a balaustrada do CardiffRose e olhou com interesse para o contorno da terra que seria seu novo lar. Havia uma beleza tão incrível que ela quase chorou. Havia um sentimento de pertença que jamais experimentara. Kieran ti­nha razão. Aquela era a sua casa. Era diferente de tudo o que já vira antes. A baía por onde navegavam era ampla, e a água era muito, muito azul. No céu, o sol brilhava forte sem nenhuma nuvem para encobri-lo. Como tudo era diferente da Inglaterra que havia deixado um mês e meio atrás!

O último dia de primavera tinha sido cinzento e chuvoso, e de repente Fortune Lindley Devers sentira medo. Havia estado no cais com a mãe e o pai que a criara tão bem momentos antes do embarque, notando que os olhos de Jasmine estavam ver­melhos e inchados, evidência de que havia chorado muito, em­bora agora estivesse calma e controlada, como sempre. Até James Leslie se mostrava inusitadamente silencioso enquanto segurava nos braços a pequena Aine.

— Vamos ter de zarpar em breve, prima — Ualtar OTlaherty anunciou, juntando-se a eles. — Logo a maré estará a nosso favor. — Ele se retirou para dar a devida privacidade à família.

— Um dia voltará para nos ver — exigiu James Leslie de repente.

Fortune sentiu as lágrimas ardendo nos olhos.

— Acho que não, papai. Não sou corajosa nem aventureira, como mamãe e índia. Assim que chegar inteira ao outro lado do oceano, permanecerei lá para sempre. Lembre-se de que sou a filha sensata e prática.

— Sensata! — exclamou Jasmine, áspera. — Se fosse mes­mo, não teria se apaixonado por Kieran Devers. — Seu coração se partia com a certeza de que nunca mais veria a segunda filha dela e de Rowan. Fortune estaria tão longe dela quanto Rowan, embora tivesse o consolo de saber que a filha estaria viva. Jas­mine podia sentir a revolta crescendo. Mas ela a engoliu. Não era culpa de Kieran. Nem de Fortune. A culpa era da ignorân­cia e da mente restrita e pobre de pessoas que não conseguiam aceitar coisas diferentes daquelas em que acreditavam. Pessoas que queriam que todos fossem iguais, pensassem da mesma maneira, adorassem da mesma forma. Almas destituídas de alegria que não conseguiam aceitar um Deus de amor, transformando-o em uma vingativa divindade de fogo que não per­doava nenhuma dissidência. Sentia pena dessa gente, mas, ao mesmo tempo, amaldiçoava-a em silêncio pois essa intolerân­cia tiraria para sempre de sua vida uma de suas filhas.

— Mamãe, chegou a hora — anunciou Fortune. — Você e papai devem desembarcar agora. Temos de nos despedir.

Jasmine olhou para a filha, tomada por um repentino de­sespero. Não, gritava uma voz dentro dela. Fortune falou novamente.

— Quero que saibam que sou grata por todos os bons mo­mentos que tivemos juntos. Sempre me lembrarei disso, ma­mãe, mesmo quando for velha e estiver muito cansada. Não chorem por mim. Estou seguindo meu destino, fazendo o que a vida quer que eu faça. Amo Kieran. E vou amar nossa nova vida em Mary's Land. Mandarei notícias por carta sempre que o Cardiff Rose fizer a viagem entre a colônia e o Velho Mundo. Nem vai notar que estou tão longe, mamãe. Sei que deseja mi­nha felicidade. — Ela abraçou a mãe. — Adeus. Lembre-se sem­pre de que amo você, papai e toda a nossa família. Não me es­queçam. — Ela soltou Jasmine e abraçou o duque com o mesmo carinho. — Adeus, papai. Obrigada por ter criado e amado a última filha de Rowan Lindley como se fosse sua.

Ela o soltou, virou-se e embarcou levando a filha nos bra­ços, temendo ser dominada pelas emoções e perder a coragem que ainda tinha. Então, todos se dissolveriam em um choro de tristeza e dor.

A brisa morna tocou o rosto de Fortune e ela voltou ao pre­sente. Seus olhos estavam inundados por lágrimas provocadas pelas recordações. A travessia desde a Inglaterra fora relativa­mente fácil, sem nenhuma tempestade mais séria, embora hou­vessem tolerado alguns dias de garoa e céu encoberto. Para­ram primeiro na Irlanda, para o embarque das mulheres e crianças de Maguire's Ford e Lisnaskea. O Highlander já havia zarpado de Ulster vários dias antes, com os cavalos e os outros animais de criação que seguiriam para Mary's Land. Rory Maguire fora cumprimentá-la no porto em Dundalk, tendo ele mesmo acompanhado os colonizadores até lá.

— Então, finalmente parte em sua grande aventura — dis­sera ele beijando seu rosto. — Onde está sua filha? Quero co­nhecê-la, Fortune!

Róis apresentou-se com as duas crianças, e os olhos de Rory se iluminaram. Ele pegou a pequena Aine.

— Ah, ela é linda, Fortune! E Róis, olhe para a entrada do porto. Lá está sua avó. Bride Duffy vai subir a bordo para co­nhecer o neto.

— Trouxe todo o vilarejo? — brincou Fortune, caminhando ao lado de Rory e Aine pelo convés.

— Bem, Fergus tinha de dirigir a carroça que trazia mulhe­res e crianças, as bagagens e as provisões de cada grupo. E não teve como impedir Bride de vir com ele... — Rory deu uma risadinha, e Fortune riu também. — Então você está achando en­graçado, não? — Ele fez cócegas em Fortune, despertado nela uma risada ainda maior. Minha neta! Os olhos de Rory se en­cantavam com Aine, depois voltaram-se novamente a Fortune. Minha filha! Nunca mais as veria e não resistira à oportunidade de se despedir das duas. Ele suspirou. Parte dele gostaria de revelar a verdade, mas não podia. Não tinha o direito de des­truir a identidade da filha só para dar ao coração um momento fugaz de alegria. Além do mais, ela poderia odiá-lo por isso. Melhor guardar o terrível segredo.

— Como vão meus irmãos? — perguntou Fortune.

— Bem. — Foi a resposta. — Adam é um homem da terra, sem dúvida, e Duncan continua sendo o estudioso. Os dois são muito queridos na região.

— E a paz ainda reina em Maguire's Ford?

— Sim, mas em nenhum outro lugar da Irlanda. A situação é pior a cada dia, Fortune, e vai continuar piorando até que os ingleses saiam de nossas terras.

— E o irmão de Kieran? A família de meu marido?

Sir William continua exercendo sua tirania, embora preso ao leito. O infortúnio não o tornou mais brando. Pelo contrá­rio, só alimentou sua crueldade. Receio que ele ainda sobrevi­va por muitos anos. Dizem que a mãe e a esposa agora o te­mem. Quanto à filha, ele praticamente nem reconhece sua existência. É triste, mas o homem vai viver eternamente amar­gurado por ter perdido você, e por não ter mais os movimentos da cintura para baixo.

Fortune não sabia se contaria as novidades ao marido ou se simplesmente não diria nada. Logo estaria nos braços de Kieran e, depois de tanto tempo sem sentir o calor dele, não queria perturbá-lo com problemas que ele não poderia resolver.

Ela olhou para a praia. Não havia nenhuma evidência de civilização. Antes do final do dia, ancorariam em St. Mary's Town, o assentamento de Calvert. Mal podia esperar!

As outras mulheres também apreciavam a paisagem.

— Só há árvores!

— Não vejo os índios.

— O que pode ser pior: protestantes ou índios?

— O lugar é bonito.

— Ulster também era.

— Aqui há uma chance de vivermos em paz, de termos nos­sas terras... Para mim, é motivo mais do que suficiente para deixar Ulster sem olhar para trás.

— Teremos um padre?

— Sim, é o que dizem.

— Graças a Deus por isso!

Fortune ouvia a conversa e se divertia com ela. Era bom saber que as mulheres estavam tão nervosas quanto ela. Como seria seu novo lar? O Highlander teria feito a travessia em se­gurança? Todos os seus bens, incluindo os cavalos, haviam via­jado naquela embarcação menor. O que Kieran diria quando visse Aine? Pretendia dar ao marido um filho. E queria engra­vidar logo. Nada da poção por enquanto.

— Vejam! — gritou uma das mulheres. — Vejo construções!

— Uma igreja!

— Graças a Deus!

Ualtar OTlaherty desceu do patamar do leme, onde se mantivera atento, e sorriu para as mulheres.

— Bem, acho que vão querer se apresentar bem para os seus maridos, minhas senhoras. Por que não descem e vão se prepa­rar? Logo ancoraremos em St. Mary's Town.

Todas desceram às cabines levando seus filhos. Aaron Kira juntou-se ao capitão e a Fortune.

— Vejo que o lugar é selvagem, milady. Talvez nem haja negócios a conduzir aqui. O tempo dirá.

Os três ouviram o som de um tiro de canhão distante.

— Eles nos viram — explicou o capitão. — E estão infor­mando todos os cidadãos de nossa chegada. — Ele olhou para Fortune. — Bem, prima, agora está praticamente em casa. Kieran a espera ansioso, e você deve estar preparada. Ele já construiu uma casa para você, eu sei, mas não é nada parecido com o que está habituada. Mais tarde, terá uma casa melhor e mais con­fortável, mas essa primeira residência não deve ser nada do que sonhou ter. As condições ainda são precárias.

— Está me assustando, Ualtar.

— Não é minha intenção. Só quero que saiba que sua nova casa não será como Queen's Malvern, nem como o castelo de seu pai em Erne Rock. Será mais como uma cabana ampla e rústica.

— Desde que eu não tenha de viver numa tenda indígena, como os primeiros colonizadores no ano passado... — disse ela. Então sorriu. — Ualtar, sei que não estamos mais no Velho Mundo. Tudo aqui é novo. Mas uma coisa não é novidade: o amor que Kieran e eu temos um pelo outro.

— E sua coragem — completou ele.

O CardiffRose atracou no porto de St. Mary's. Fortune e Róis seguravam os filhos nos braços, os olhos varrendo a pequena multidão reunida no porto. Em torno delas, mulheres e crian­ças se espremiam, algumas já chorando por terem identificado seus maridos. A prancha para o desembarque foi baixada, e o Capitão OTlaherty acompanhou a prima e seu grupo até a praia, mas não havia nem sinal de Kieran. Então, Kevin surgiu, en­volvendo Róis e Brendam em seus braços, os olhos úmidos de lágrimas de alegria. Fortune esperou enquanto eles se abraça­vam e se beijavam. Brendam não sabia se devia rir ou chorar diante do homem encorpado que o abraçava com força. Final­mente, Kevin percebeu que sua senhora esperava em silêncio e se curvou para Fortune.

— Seja bem-vinda a Mary's Land, milady. Vai gostar de sa­ber que o Highlander ancorou em segurança há pouco mais de uma semana. Os cavalos já estão nos pastos, e seus bens foram seguramente guardados em Fortune's Fancy.

— Fortune's Fancy? Kevin riu.

— É como meu senhor chama a propriedade, milady. Ele construiu uma bela casa para milady e a menina.

— Onde está meu marido? Por que não veio nos receber? — perguntou Fortune, preocupada.

— É uma criada, aquela interminável fonte de problemas, milady. Dissemos mil vezes àquela criatura que não deve va­gar sozinha pela floresta. Hoje ela se embrenhou mais uma vez na mata e acabou se perdendo. Muitas Luas, o velho curandeiro dos Wicocomoco, trouxe-a de volta gritando e chorando, di­zendo que seria escalpelada pelos índios. Meu senhor achou melhor não deixá-la sozinha nessas circunstâncias. Ele sabia que milady entenderia.

— É claro. Pobrezinha — comentou Fortune, embora não sentisse nenhuma piedade dessa criatura sem nome que ousa­ra desobedecer às ordens de seu marido. Quando a senhora de Fortune's Fancy finalmente estivesse no comando da casa, tudo seria diferente.

— Trouxe a carroça, milady — anunciou Kevin. — A tripu­lação do navio já desembarcou sua bagagem e a colocou na car­roça. Devemos ir o quanto antes, pois estamos a oito quilôme­tros da cidade.

— E os outros colonizadores? E Mestre Kira?

— Os homens sabem para onde devem levá-los, milady. Mestre Kira, do outro lado do porto, naquela pequena casa, ali... — apontou ele. — Foi comprada para você, e também contrata­mos um criado.

Aaron agradeceu, despediu-se e seguiu para o lugar que doravante seria seu estabelecimento.

Kevin ajudou a esposa e sua senhora a se acomodarem na carroça, cada uma segurando seu filho, e ele mesmo tomou as rédeas. Ele e Róis falavam sem parar, trocando informações e contando novidades, e Fortune ouvia a conversa sem muito interesse, pensando no marido que havia preferido ficar com uma criada histérica a ir receber a esposa que não via fazia qua­se 2 anos. Por que se dera ao trabalho de vestir seu melhor ves­tido? Cometera um engano casando-se com aquele homem? Logo descobriria. Se ele houvesse mudado, retornaria com o Capitão OTlaherty para a Inglaterra em algumas semanas. Não ficaria ali, a menos que sua presença fosse desejada e ela ainda fosse amada.

Kieran a viu sentada na carroça quando ela despontou na alameda que serpenteava colina acima, para a entrada da casa. Ela estava elegante, imponente... Por que Fortune se casara com ele? Por que fizera uma viagem tão longa para viver em um lugar tão primitivo? Ela ainda o amava? Então notou a criança sentada sobre os joelhos da esposa, vestida exatamente como ela. Seu coração sofreu um sobressalto. Mal conseguia falar quando a carroça finalmente parou diante dele.

— Kieran! — havia esquecido como era o doce o som da voz de Fortune. Ela sorriu. — Temi por sua segurança quando não o vi no cais para nos receber. Não vai nos acolher em nossa casa, senhor?

— Fortune... Como senti sua falta!

O brilho nos olhos de Kieran a fez esquecer todas as dúvidas.

Róis pôs o filho nos braços do pai e pegou Aine, cantando uma canção que a menina apreciava e tentando impedir que ela chorasse. Os pais tinham o direito de trocar beijos e abraços de verdade depois de tanto tempo! Róis podia imaginar o sofri­mento de sua senhora ao desembarcar e não encontrar o mari­do esperando por ela no porto.

O senhor de Fortune's Fancy ergueu a esposa nos braços e beijou-a com paixão. Mal podia esperar para tê-la novamente como antes, ardendo em seus braços! Ela retribuía como se tam­bém estivesse tomada pelo desejo.

— Seja bem-vinda à nossa casa, meu amor. Bem-vinda a Fortune's Fancy! — ele a beijou novamente.

— Ma-ma... — a voz de Aine denotava certa contrariedade. Quem era aquele homem que ousava tirar dela sua querida mãe?

Kieran e Fortune olharam para ela e riam, tomados por sú­bita felicidade. Fortune pegou a menina e a colocou nos braços de Kieran.

— Este é seu papai, querida.

Aine olhou séria para o homem que a segurava. Ela escon­deu o rosto com as mãos e, tímida, espiou por entre os dedos.

— Pa-pa — disse, experimentando a palavra que nunca havia pronunciado. Depois, começou a se debater. — Chão... chão...

Kieran a pôs no chão. — Não qué pa-pa — decidiu Aine, agarrando-se às pernas da mãe.

—Ela... não gostou de mim — murmurou Kieran, devastado. Fortune riu, entregando a filha a Róis.

— Ela não conhece você, meu querido! E não está acostu­mada com a presença masculina. Mamãe e eu passamos prati­camente todo esse tempo sozinhas em Queen's Malvern. Quan­do esteve lá, papai se dedicou mais a Autumn do que a Aine. Nossa filha vai se acostumar com você, querido. Ignore-a, e ela o procurará. Agora, quero conhecer minha casa!

A construção tinha um andar e meio de altura, e era feita de madeira sólida com chaminés de tijolos e telhado de madeira. As janelas eram de vidro e contavam com a proteção de espes­sas venezianas. O Capitão OTlaherty não mentira quando res­saltara a diferença entre o que teria ali e o que havia conhecido no Velho Mundo.

— Há uma adega sob a casa — comentou Kieran, tentando saber qual era a opinião da esposa sobre a casa que havia cons­truído. — Vamos substituí-la por outra em algum tempo, é cla­ro. Teremos uma casa de tijolos. Mas, por enquanto, só pude­mos produzir material suficiente para as chaminés.

Fortune assentiu. Finalmente, perguntou:

— Ela é espaçosa?

— Temos quatro cômodos no andar principal, além de uma pequena despensa e uma sala onde é feita a manteiga e todos os derivados de leite. Os criados dormem no andar de cima, que não é muito grande. Kevin e Róis terão o próprio chalé per­to daqui.

— Criados? — ela se surpreendeu e então se lembrou da mulher que havia impedido seu marido de encontrá-la no momento de sua chegada. — Quantos são?

— Três mulheres na casa e quatro homens no estábulo. São escravos. Eu os comprei na Virgínia no ano passado.

— Escravos? Mas... não são criminosos deportados?

— Alguns, sim, mas muitos foram condenados por ofensas ridículas. E há os que se dispuseram à escravidão porque, de­pois de 7 anos, recuperam a liberdade e recebem terras próprias. A sra. Hawkins, nossa cozinheira, não conseguiu pagar pelos serviços do médico que cuidou de seu marido doente. O ho­mem morreu. O médico a denunciou e exigiu que fosse depor­tada. Dolly, que trouxe para ser babá de Aine, é católica. Comfort Rogers, a terceira criada, foi condenada por ter roubado pão para alimentar os irmãos menores. Os quatro homens que com­prei para ajudar nos campos e com os animais são todos purita­nos. Esses são os crimes cometidos por essa gente. E todos são bem-vindos em Mary's Land. Todos são trabalhadores e esfor­çados. Eu não traria criminosos perigosos para nossa casa, mi­nha querida. Venha, vamos entrar.

Fortune foi inspecionar o interior de sua nova casa. Surpre­sa, notou que as paredes de tábuas haviam recebido um acaba­mento de barro entre as pranchas para impedir a penetração do vento e da chuva. Havia um corredor central que se estendia por toda a casa, e o piso era de madeira sem acabamento. Feliz­mente levara com ela tapetes da índia. O quarto onde dormiria com o marido ficava à esquerda do corredor. A direita ficava o salão. Atrás do dormitório havia outro menor, por onde só se podia chegar atravessando o quarto principal. Na parte dos fundos da casa ficavam os aposentos de serviço.

— As paredes precisam receber revestimento de gesso ime­diatamente — decidiu Fortune com firmeza. — A casa vai ficar muito fria para Aine durante o inverno. E o piso tem de ser lixado e polido. Onde está a mobília que trouxe comigo?

— No salão, com exceção da cama, que já mandei montar — contou ele com um sorriso insinuante.

Fortune corou de prazer.

— Os móveis vão ficar onde estão até revestirmos as paredes. Seria inútil tentar ajeitá-los sobre um piso rústico — disse ela.

— Começaremos amanhã mesmo, antes da chegada da umidade do verão — prometeu ele. — Venha, quero que co­nheça os criados.

Eles se dirigiram ao fundo da casa, onde três mulheres os esperavam. Uma era sorridente, roliça e simpática, com gran­des olhos azuis.

— Esta é Dolly, a nova babá de Aine.

Fortune gostou dela. A criada se curvou diante de sua senhora.

— Quantos anos tem, Dolly?

— Nasci no ano em que tentaram explodir o Parlamento, senhora. Não sei fazer contas.

30 anos, Fortune calculou.

— Não tem importância — disse. — Vai se importar se tiver de cuidar de mais de uma criança? Pretendo ter mais filhos, e você também vai ter de cuidar do bebê de minha Róis. Ele é dois dias mais novo que minha filha. Os dois já andam e estão sempre se metendo em confusões.

— Saberei cuidar deles, senhora. Tive dois filhos, mas os perdi para a enfermidade que os atacou na prisão, onde meu marido também adoeceu.

Fortune respirou fundo, contendo o choro, e segurou a mão de Dolly. Os olhos de ambas se encontraram, compreensivos, e Fortune sorriu para a mulher.

— Esta é a sra. Hawkins, minha querida. Sem ela, não esta­ríamos bem alimentados como estamos — disse Kieran.

Fortune olhou para a mulher alta e forte que se curvava respeitosa.

— Vejo que meu marido tem sido muito bem tratado, sra. Hawkins. Sou grata por seu evidente talento.

— Obrigada, milady. Estou assando um peru para o seu jantar, e será um prazer servi-la.

— E esta é Comfort Rogers, que limpa e arruma a casa. Ela levou um terrível susto esta manhã.

— Eu soube — respondeu Fortune com tom seco, exami­nando atentamente a escrava. Ela mal saíra da infância, e era muito bonita com seus cabelos claros e olhos azuis. — Quantos anos tem, Comfort? Sabe me dizer?

— Dizem que nasci no ano em que a velha rainha morreu. Minha mãe morreu quando teve seu oitavo filho, e meu pai morreu logo depois. Sou a mais velha e fui deportada por ter roubado pão para alimentar meus irmãos.

— O que foi feito deles?

— Não sei. — E ela não parecia estar preocupada.

— Não sabe e não se incomoda — resmungou a sra. Hawkins.

— Não vai mais andar pela floresta, Comfort? — pergun­tou Fortune com tom severo.

A jovem não respondeu. Apenas sustentou o olhar de sua senhora.

— Estou esperando por sua resposta, Comfort.

— Eu não queria me perder. Estava procurando frutas para o desjejum de Mestre Kieran.

— Nunca mais entre na floresta, a menos que esteja com alguém que conheça o caminho de volta.

— Não pode me dizer o que fazer — respondeu a escrava com atrevimento. — Só o mestre pode dar ordens aqui.

Antes que Kieran pudesse repreendê-la, a sra. Hawkins bateu em suas nádegas com uma enorme colher de pau.

— Comporte-se, sua meretriz londrina! Esta é a senhora da casa, e a casa pertence a ela, bem como tudo o que nela existe. E ela quem vai nos dar ordens de agora em diante, e você vai obedecer a todas elas, Comfort Rogers, a menos que deseje ser vendida, o que não seria uma má idéia. — A cozinheira olhou para Fortune. — Ela sabe limpar, senhora, mas não tem ne­nhum respeito por seus superiores. Não aprendeu em casa, se é que teve uma casa.

— Mestre! Oh, mestre! — gritou Comfort, chorando e se agarrando a Kieran. — Não deixe que ela me venda! Por favor, não! — Ela virou o rosto para olhar para Fortune.

— Menina, faça seu trabalho e obedeça à minha esposa, e não teremos problemas. A sra. Hawkins conhece as leis da ter­ra. A casa pertence de fato à minha senhora. Sua lealdade deve ser dela, antes de tudo e de todos. — Kieran se soltou, empur­rando a menina para longe com delicadeza firme.

Fortune segurou o braço do marido.

— Chame-nos quando o jantar estiver pronto — disse à co­zinheira, ignorando Comfort.

— Sim, milady.

— Dolly, vá conhecer as crianças — disse Fortune.

— Vaca! — resmungou Comfort assim que sua senhora se retirou.

— É melhor se comportar, criatura. Nossa nova senhora é paciente, mas pode se dar mal se insistir em desacatá-la. O mes­tre não está interessado em você. Nunca esteve e nunca estará — disse a sra. Hawkins.

— Se ela realmente o amasse, teria vindo com o marido des­de o início, quando ele desembarcou em Mary's Land. Há qua­se dois anos eles estão separados. Se o ama de verdade, por que não veio antes? Não vê como ele olha para mim? Ele me deseja. Conheço os homens.

— Você é tola e presunçosa, Comfort Rogers. O mestre nem olha para você, muito menos de alguma maneira especial. E sua senhora não o acompanhou porque estava grávida. Além disso, o Governador Calvert ordenou que nenhuma mulher ou criança fosse trazida até que houvesse abrigo decente para elas. Somos escravas, fomos trazidas para cá independentemente da nossa vontade, mas o mestre queria garantir a segurança da esposa e da filha. Aposto que haverá outro bebê nascendo nes­ta casa em um ano — ela sorriu. — Esta noite, e por muitas noi­tes ainda, o mestre estará se saciando com sua senhora.

— Odeio você! — disparou Comfort antes de sair.

A sra. Hawkins riu, satisfeita por ter conseguido irritar a jovem. A menina ia causar problemas. Na verdade, ela era fon­te de problemas desde o início. Infelizmente, o pobre mestre não enxergava a realidade da situação, como era comum aos homens. Mas a nova senhora logo compreenderia tudo. Comfort Rogers teria uma dura batalha pela frente... e jamais realizaria seu desejo de se deitar com o mestre.

Fortune ajudou Róis a arrumar o chalé modesto de piso de terra batida e depois decidiu que a criada e o marido come­riam com eles, pois ainda não haviam tido tempo para de-sembalar as panelas e transportar as provisões. Não estavam mais na Inglaterra, na Escócia ou na Irlanda. Fortune's Fancy não era um castelo. Os tempos de isolamento esplendoroso haviam ficado para trás. Era hora de cooperação, trabalho duro e generosidade.

Os quatro criados do estábulo também foram convidados a se juntar a eles. Dolly alimentava as crianças e as entretinha para permitir às mães oportunidade de comer. A sra. Hawkins servia a refeição de peru, batatas-doces assadas na brasa, pão, manteiga, queijo e cerveja e exigia que Comfort a ajudasse, im­pedindo a jovem de se sentar com os outros.

— Quando vou comer? — reclamou Comfort. — Não vai sobrar nada para mim!

— Se não houver mais peru, você pode comer angu de mi­lho. Vai encher sua barriga da mesma maneira.

Depois da refeição, os quatro escravos se retiraram. Kevin pegou Brendam, quase adormecido, e se retirou com sua espo­sa para o chalé. Dolly anunciou que ia limpar e acomodar a pequena Aine em sua cama.

Kieran segurou a mão da esposa.

— Venha, quero que veja algo antes de o sol se pôr — disse. Eles saíram de mãos dadas, e Fortune viu os prados com os cavalos e dois campos lacrados com grãos que ela não podia re­conhecer. O ar era suave, como é típico no início do verão, e tudo ali era muito diferente da Inglaterra. E mais quente, também.

— O qüe plantou nos campos, Kieran?

— Tabaco. É muito lucrativo e necessário para uma socie­dade como essa onde vivemos agora.

— Não plantamos comida? — quis saber Fortune.

— Sim, porque a lei de Mary's Land assim exige. Os índios nos apresentaram três culturas que não conhecíamos: feijão e dois tipos de abóbora, e também plantamos milho. Nossas se­mentes crescem bem no solo local. Temos ervilhas, cenouras, beterrabas... e batata-doce, é claro. É uma terra muito fértil.

— Quando construirmos nossa casa com tijolos, ela deve estar voltada para a baía. A vista é tão linda! Nunca antes vi nada parecido. — Ela se virou e olhou para o marido. — Obri­gada, Kieran. Por nossa casa, por essa chance de construirmos juntos os nossos sonhos.

— Senti tanto a sua falta! — confessou ele enquanto a abra­çava. — Não imagina quantas noites passei acordado pensan­do em você, Fortune, especulando se este lugar seria tão propí­cio para você quanto é para mim. Acha que poderá ser feliz em Mary's Land, tão longe de seu povo?

— Você é meu povo. Você e Aine, e os outros filhos que tere­mos. Sim, sinto saudades da minha família, mas, enquanto es­tivermos juntos, saberei suportar todas as faltas. Quanto a este lugar, é o meu lugar. O nosso lugar. Eu sei. Essa terra nos cha­mou, Kieran.

O sol se punha atrás deles, e estrelas começavam a cintilar no céu sem nuvens. Eles voltaram para casa de mãos dadas. Teriam a noite toda para fazer amor e compensar todo o tempo que haviam passado separados. E sabiam que nunca mais ha­veria outra separação.

Nunca!


Capítulo 18
As paredes da casa de Fortune foram revestidas com gesso. O piso foi lixado e polido. Havia tapeçarias nas paredes e tapetes indianos no chão. A mobília que Fortune trouxera da Inglater­ra foi disposta nos melhores lugares. Os colonizadores irlande­ses foram convidados para uma celebração de Lammastide or­ganizada por seu líder, Kieran Devers. Todos comeram, beberam e dançaram. E se mantiveram quietos e solenes enquanto Pa­dre White, o sacerdote jesuíta de Leonard Calvert, abençoava Fortune's Fancy. O sentimento comunitário era forte.

A Senhora Happeth Jones, a médica, deu a Fortune um pre­sente especial: duas lindas roseiras.

— Trouxe uma dúzia da Irlanda, e elas se adaptaram bem ao clima local — contou ela. — Venha vê-las quando puder, milady, e eu lhe darei uma poção fortalecedora para você e o bebê que está esperando. Na próxima primavera teremos mui­tos nascimentos. Parece que todos os maridos se alegraram com a chegada de suas esposas, milady.

Fortune riu.

— Não diga nada a Kieran, por favor. Vou contar a ele hoje. Róis também espera outro filho. Mary's Land não é um lugar maravilhoso, Happeth Jones?

Fortune estava feliz como jamais estivera antes.

Esse Novo Mundo parecia ter sido abençoado. A terra era fértil e generosa. Tudo o que era plantado germinava, crescia e frutificava. Logo começariam as colheitas. A floresta continha uma profusão de aves e animais de caça. A água estava repleta de peixes e frutos do mar, como ostras e mariscos. Havia caran­guejos e lagostas também. Kieran cuidava da propriedade, de tudo que nela era produzido, e dividia o produto de seu traba­lho com aqueles que o ajudavam, distribuindo porções justas para a manutenção das famílias dos colonizadores que para ele trabalhavam. Com os índios, haviam aprendido a moer o mi­lho e a transformá-lo em uma farinha que podia ser usada para fazer pão ou consumida como cereal.

Comfort Rogers não gostava dos índios. Ela dizia ter medo deles, da curiosidade que demonstravam por seus cabelos cla­ros. Fortune não os temia. Deixava os cabelos vermelhos soltos para que eles pudessem inspecioná-los e até chegara a cortar pequenas mechas para dar às mulheres indígenas como pre­sentes que sinalizavam sua boa vontade. Elas a recompensa­ram com um novo nome que, traduzido para seu idioma, que­ria dizer Tocada pelo Fogo.

— Qualquer dia vai acordar sem o escalpe — disse Comfort à sua senhora, tentando amedrontá-la.

Fortune riu.

— Eles são curiosos, só isso. Afinal, as mulheres de seu povo têm cabelos negros e pele morena. Eles nunca viram mulheres com cabelos como os nossos, louros ou vermelhos. Por que os teme tanto?

— Criaturas sujas... Eles me olham de soslaio, como se me desejassem algum mal. Sei em que estão pensando. Imaginam como seria estar em cima de mim, ouvindo-me gemer enquan­to fizessem o que bem entendessem...

— Eles têm belas mulheres, menina. Acho que devia con­trolar sua imaginação fértil. Melhor: temos de encontrar um marido para você. Um homem forte em sua cama vai aplacar seus medos.

— Já escolhi o homem que quero.

— De fato? E quem é ele?

— Meu senhor é o homem certo para mim. Você não vai conseguir viver muito tempo neste Novo Mundo. Vai voltar para sua casa na Inglaterra, e terei o mestre em minha cama. E delicada demais para sobreviver aqui. Não passa de uma vadia mimada e protegida, e não merece esse homem. Mas eu o mereço. E quando o tiver entre minhas pernas, ele a esquecerá rapidamente!

Fortune esbofeteou o rosto da menina com força, espanta­da com sua colocação ousada. Sempre soubera que Comfort tinha um certo interesse por Kieran, mas considerara essa atra­ção uma mera paixão juvenil. Afinal, ele a levara para a colônia e a tratara com bondade, embora fosse uma deportada conde­nada e escrava.

— Mary's Land é meu lar, Comfort, e meu marido nunca será seu homem. Ele não me deixará jamais, em nenhuma cir­cunstância. Temos uma filha. Espero outro bebê. E acho que devo conversar com seu mestre sobre seu comportamento. Tal­vez deva viver em outro lugar que não seja Fortune's Fancy.

— Ele não vai me vender. O mestre gosta de mim. Vejo como ele olha para mim.

— Vá polir a mobília do salão. Está coberta de poeira, e você tem negligenciado suas obrigações.

Naquela noite, quando estava nos braços do marido, Fortune revelou a grande notícia.

— Estou esperando um filho, Kieran.

— Acha que desta vez será um menino? — perguntou ele, eufórico.

— Sim, creio que sim. Eu sinto. Não é como foi com Aine.

— Quando ele nascer, darei a você a lua, as estrelas e tudo que seu coração desejar, minha adorada Fortune.

— Meu coração já tem um desejo, Kieran.

— E qual é?

— Quero vender Comfort.

Ele não se surpreendeu com o pedido.

— O que ela fez para aborrecê-la, Fortune? Sei que a meni­na pensa estar apaixonada por mim, mas ela só tem 16 anos e sempre viveu cercada de muitas dificuldades. Não pode estar enciumada!

— Comfort não é uma criança. Ela é mais experiente que muitas mulheres da minha idade e tem o coração duro e a frie­za de uma meretriz. Sabe o que ela teve a temeridade de me dizer hoje?

Kieran teve receio de perguntar, mas o fez, e ouviu choca­do o relato da conversa entre sua esposa e a escrava. Fortune continuou:

— A sra. Hawkins diz que ela se ausenta por horas, e nin­guém sabe onde se mete. Ela tem negligenciado os deveres do­mésticos e nunca ajuda na cozinha, a menos que seja obrigada. Comfort é a nota dissonante em nossa casa, e eu não a quero aqui. Especialmente agora, quando espero outro filho. Não quero me deixar afetar por essa megera.

— Não vai.ser fácil encontrar alguém que a compre — Kieran comentou, pensativo. — Eu a comprei na Virgínia, e o preço que paguei por ela incluía a passagem. Quando a senten­ça chegar ao fim, terei de dar a ela cinqüenta acres de terra, um machado, uma arma, roupas, sapatos, meias, um avental azul e três barris de milho. Não sei se alguém vai querer arcar com essa dívida.

— Leve-a de volta para a Virgínia, então, e venda-a por lá. Ou, melhor ainda: vamos mandá-la de volta para a Inglaterra a bordo do CardiffRose. Quem saberá que foi deportada por rou­bo? Ela não vai dizer, pois não quer ser presa. Com algum di­nheiro, pode começar um negócio, ou encontrar um marido capaz de saciar aquela febre que a está consumindo.

— Deixe-me ver se consigo vendê-la. Não gosto da idéia de perder todo esse investimento, e ela já trabalhou dois anos da pena. Não vou conseguir recuperar tudo o que paguei por ela, Fortune.

— Não me importa se vai perder todo o dinheiro que pa­gou por ela! Se encontrar alguém que a queira, mande-a embo­ra daqui. Se não encontrar, vamos dar essa tal Comfort de pre­sente para alguém, porque não a quero mais em minha casa!

— Resolverei tudo assim que a colheita estiver em anda­mento — prometeu Kieran.

O tabaco foi colhido em setembro e, depois de seco, foi amar­rado em ramas para ser levado à Inglaterra pelo CardiffRose. A companhia de comércio 0'Malley-Small atuava agora no ramo de tabaco e obtinha bons lucros. O navio também levaria mi­lho, pois a colônia colhia mais do que necessitava, e uma inje­ção de capital era sempre bem-vinda. Outros produtos também eram estocados na adega para serem usados no inverno. Os homens caçavam e salgavam a carne. O Highlander retornou com três vacas leiteiras, duas duplas de touros, duas dúzias de galinhas e um galo.

O inverno se aproximava. Certa tarde, quando Fortune e Róis estavam sentadas do lado de fora costurando roupas para seus filhos, Comfort apareceu. Ela tinha folhas presas aos cabe­los e as roupas sujas de terra.

— Com quem acha que ela pode ter se deitado, milady?

— Não sei. Mas se ela ficar grávida, Kieran não será capaz de mandá-la embora daqui. Vadia!

— Ele decidiu vender a menina? Fico feliz por saber! Já es­tava farta dos olhares que ela lança para meu Kevin. E se esfre­ga nele sempre que pode, a meretriz desavergonhada. Os es­cravos comentam que ela anda se deitando com todos os homens da colônia por uma moeda.

Fortune fechou os olhos e praguejou em silêncio. Depois, olhou para Róis e perguntou:

— Por que não me disse isso antes? Ela é mesmo uma me­retriz, como eu suspeitava. Temos de nos livrar dela, e quanto antes, melhor!

Mas Kieran não conseguira encontrar ninguém que se dis­pusesse a comprá-la, conforme admitiu naquela noite ao ser pressionado pela esposa.

— Ela está se prostituindo — contou Fortune.

— Eu sei. Por isso ninguém quer comprá-la. Nenhuma mulher decente a quer em sua casa. Sinto muito, meu bem. Tudo que quis foi garantir que teria criados, como sempre teve. Não queria que fosse infeliz em Mary's Land.

— Bem, vamos ter de mandá-la para a Inglaterra com al­gum dinheiro. Vamos ficar mal-vistos se parecer que aprova­mos suas atividades e não podemos impedi-la de continuar com isso, a menos que a mantenhamos amarrada. Ei, talvez não seja uma má idéia! Assim ela não sumirá como sempre tem feito! Vamos chicoteá-la e mantê-la acorrentada. Assim todos verão que não aprovamos seu comportamento.

— É extremo demais — disse ele — mas você tem razão. O CardiffRose ainda virá uma última vez este ano e, quando zar­par para a Inglaterra, Comfort Rogers estará a bordo, prometo. Não podemos nos incomodar com esse tipo de problema.

Na manhã seguinte, Fortune reuniu todos os criados da casa.

— Estou ciente de que um de vocês anda se comportando mal. Saibam que não vou mais tolerar esse tipo de improprie-dade em minha casa. Venderei qualquer um que desafie as leis que regem nossa colônia, e minha casa em particular. — Ela olhou para os quatro escravos que, mesmo se dizendo purita­nos, tinham um comportamento dissoluto, como todos os ou­tros. — Comfort Rogers, você não pode deixar esta casa sem minha permissão. Entendeu?

Comfort olhou desafiante para sua senhora, mas não res­pondeu.

Fortune não insistiu. A decisão estava tomada, e Comfort em breve seria informada sobre qual seria seu destino.

— Senhora Fortune — chamou Prosper, um dos escravos. Fortune desviou os olhos de sua costura para atendê-lo.

— Sim? Algum problema?

— Comfort sumiu. Estávamos nos campos quando a vimos entrar na floresta.

— Ora... ela vai se perder outra vez!

— Não, senhora, ela conhece todos os caminhos da colô­nia. Tem uma orientação tão boa quanto a dos índios.

— Ah, sim? — então, ela havia fingido ter se perdido no dia de sua chegada. — Mostre-me onde ela está. Róis, vá avisar Kieran que fui atrás da meretriz, e que amanhã ela será surrada em St. Mary's em praça pública.

— Ela vai voltar, milady. Não perca seu tempo indo atrás dela.

— Ela me desacatou, e diante de todos. Se não a trouxer de volta, perderei o comando de minha casa.

O escravo conduziu Fortune até os campos de tabaco, de onde apontou na direção que Comfort tomara.

— Vou com minha senhora.

— Não! Ela não pode ter ido tão longe, e quero trazê-la de volta eu mesma. Corte uma dessas varas, Prosper.

Ele obedeceu e entregou a ela uma vara com um sorriso compreensivo.

Fortune foi atrás de Comfort. Podia ouvi-la cantar, o que facilitava a perseguição.

Comfort cantava e monitorava o progresso de sua senhora. A rival se perderia e morreria na floresta, enquanto ela aquece­ria a cama de seu senhor. Era um plano perfeito. Ela atravessou um riacho e, usando uma trilha que ligava a floresta ao fundo da casa, voltou para os seus deveres.

Enquanto isso, Fortune estranhava não ouvir mais a voz de Comfort. Estava cercada pelo silêncio e por árvores altas e fron­dosas que tornavam tudo nebuloso, sombrio e confuso.

Estava perdida!

Fortune começou a chorar. Não sabia em que direção se­guir e tinha medo de continuar andando e se afastar ainda mais de sua casa. As chances de que alguém a encontrasse seriam menores se continuasse se afastando. Aine ficaria órfã de mãe, e o filho que crescia em seu útero morreria com ela. Encolhida no solo macio, chorou.

— Tocada pelo Fogo, acorde!

Fortune levantou-se e se viu diante de um dos membros mais velhos da tribo indígena.

— Não tenha medo, Tocada pelo Fogo. Sou Muitas Luas, o curandeiro dos Wicocomoco.

— Fala inglês? Ele sorriu.

A médica de seu povo, Olhos de Vidro, me ensinou, e eu ensinei a ela nossa língua.

Olhos de vidro. Sim, Happeth Jones usava óculos!

— Estou perdida, Muitas Luas. Segui uma escrava desobediente para o interior da floresta e não sei onde estou. Pode me conduzir de volta à minha casa?

— A criada a que se refere é a menina de cabelos cor de palha? Ela é má, Tocada pelo Fogo. Trouxe a doença e a espa­lhou entre os jovens de minha tribo que se interessaram por ela. Ela se deixa usar por eles, que adoecem.

— O nome dela é Comfort, Muitas Luas — revelou Fortune, acompanhando o índio que a salvaria da morte na floresta. — Meu marido vai vendê-la. Ela afirma ter medo de sua gente. Lamento que ela tenha levado a doença ao seu povo, mas tal­vez Happet... Olhos de Vidro possa ajudá-los. Sou grata por ter me encontrado, Muitas Luas. Não teria conseguido voltar para casa sem sua ajuda.

Depois de mais alguns minutos caminhando ao lado do ve­lho curandeiro indígena, Fortune ouviu um chamado distante.

— Fortune! Fortune!

— Aqui! — gritou ela.

Mais alguns passos e os braços de Kieran a acolhiam nos limites entre a floresta e os campos de tabaco.

— Meu Deus! Pensei que a houvesse perdido! — gemeu ele, angustiado.

— E quase perdeu. Mas graças a Muitas Luas... — Ela se virou e não viu o índio. — Ele se foi! Oh, Kieran, queria que pudesse manifestar sua gratidão também. O curandeiro dos Wicocomoco é amigo da senhora Jones e me salvou. Sabe como os índios a chamam? Olhos de Vidro!

— O que fazia na floresta? — perguntou ele quando volta­vam para casa.

— Esta manhã proibi Comfort de sair de casa sem minha ordem, e dei essa ordem diante de todos os criados. Ela me de­sobedeceu, e decidi ir buscá-la para recuperar minha autorida­de. Prosper a viu entrando na floresta e veio me informar. Como soube que eu...?

— Róis foi me contar que você havia ido para a floresta. O que essa menina fazia no meio do mato?

— Ela conhece a floresta como os índios, Kieran. Melhor do que eles, até. E tem se deitado com vários deles, e já infectou muitos com algum tipo de doença. Quero que ela seja chicoteada amanhã em St. Mary's.

— Ela está acorrentada na despensa — informou o marido.

— Oh, milady, graças a Deus voltou! — Róis exclamou cho­rando ao vê-la entrar em casa.

— Tudo acabou bem, minha Róis. E amanhã cuidaremos de Comfort. Ela nunca mais voltará para cá.

— Finalmente, milady!

No começo da manhã, a chorosa Comfort foi retirada da despensa e posta em uma carroça. Kevin acompanharia seu mestre até St. Mary's Town, mas, quando o veículo começou a se mover, a escrava gritou descontrolada.

— Ele está me levando para longe, cadela! Vamos ficar jun­tos e você vai ficar sozinha! Sempre soube que ele me queria! Sempre soube que ele me amava!

— Vadia! — resmungou Róis.

— Sinto pena dela — comentou Fortune. — Mas não o sufi­ciente para desejá-la por perto.

À noite, quando retornaram, Kevin e Kieran contaram que haviam escapado por pouco de terrível destino. Entregue ao governador, Comfort fora chicoteada em praça pública por seu comportamento impróprio e por sua insolência, e passaria o dia ali, presa ao tronco, para embarcar no final da tarde no Cardiff Rose, que a levaria de volta à Inglaterra. Satisfeitos, Kieran e Kevin foram embarcar o tabaco e visitar Aaron Kira, que pros­perava no Novo Mundo.

— O que devo fazer com ela quando chegarmos à Ingla­terra? — perguntou o Capitão OTlaherty mais tarde, quando comiam juntos depois de concluir o trabalho de carga dos bens que seriam transportados.

— Dê a ela o dinheiro que deixei com você e mande-a em­bora. Ela não vai voltar ao local de origem, pois não deseja ser presa e deportada novamente. Só cumpriu dois anos da pena, e não está interessada em seguir escravizada. Não conseguimos vendê-la por conta de sua reputação. Não a quero perto de mi­nha família, pois já atraiu Fortune para a floresta com a intenção de deixá-la perdida. Minha esposa foi salva por um de nossos amigos indígenas. Francamente, Ualtar, não vou me importar se decidir deixá-la no meio do caminho. No oceano. É o que ela merece. Ah, e mantenha a megera amarrada e presa, ou ela vai seduzir sua tripulação e espalhar a doença em seu navio.

Quando Kieran Devers se despedia do capitão, dois cava­lheiros o abordaram no porto.

— Senhor, é'o proprietário de uma escrava chamada Comfort Rogers?

— Por pouco tempo. Ela foi castigada em praça pública e será levada de volta para a Inglaterra.

— Senhor, temos aqui um mandado de prisão. Ela deve ser detida. Essa mulher é uma impostora mentirosa que foi conde­nada à forca por assassinato. Ela trocou de lugar com uma mu­lher que morreu na prisão em Newgate, a escrava que seria de­portada. Ninguém sabia de nada, mas ela enfureceu outra detenta, que também deveria ter sido deportada. Deitou-se com o homem dela, pelo que dizem. E uma vagabunda — comen­tou ele, rindo com malícia.

— Comprei a escrava há dois anos. Por que o governo de­morou tanto a agir?

— A mulher que ela enfureceu não conseguia se fazer ou­vir, até que chegou aqui no Novo Mundo. Ela veio depois, em outro navio. O mestre dessa mulher ouviu sua história, acredi­tou nela e informou as autoridades. Londres tomou as provi­dências, e as autoridades inglesas ofereceram uma recompen­sa a quem pudesse dar informações sobre Comfort Rogers. O dinheiro faz um bem incrível à memória, senhor. Soubemos pelos detentos de Newgate que Comfort Rogers havia morri­do, e sua identidade havia sido usurpada por Jane Gale.

— O que fez essa mulher, afinal?

— Matou sua senhora. Estava convencida de que seu se­nhor a amava e matou a mulher dele para poder tê-lo.

— Mas... ele amava a criada?

— Não, senhor. Tudo existia apenas na imaginação da cri­minosa doente.

— Meu Deus, Kieran! — reagiu Ualtar à perplexidade. — Teve sorte por ela não ter matado Fortune! — o capitão expli­cou então ao cavalheiro o que havia acontecido com a prima no dia anterior.

— Sim, sua esposa é uma mulher de muita sorte — concor­dou ele, dirigindo-se a Kieran.

— A mulher está na praça, senhor, presa. O que pretende fazer com ela? — Kieran não revelou que pretendia despachá-la com algum dinheiro.

— Vamos levá-la de volta à Inglaterra. Sabem onde posso encontrar um navio que aceite nos transportar?

— Partirei esta noite, senhor, e ainda tenho espaço para pas­sageiros — respondeu OTlaherty depressa. — Não vai preci­sar pagar pela passagem, pois minha prima, que é parente dis­tante do rei, é proprietária do navio. Devo sempre colaborar com a autoridade real.

— Perfeito! Aqui está a ordem, senhor.

Kieran analisou o documento oficial emitido em nome de Jane Gale, condenada à morte por assassinato, e o entregou ao Capitão OTlaherty. Aliviado, despediu-se do amigo.

— Tem em mãos a carta de minha esposa para a mãe dela. Voltaremos a nos ver na primavera. Espero que o tabaco seja vendido no mercado londrino. Que Deus o acompanhe.

Os dois apertaram as mãos.

— A família vai ficar feliz com a notícia do novo bebê. Deus abençoe a todos vocês, Kieran. Cuide bem de nossa Fortune.

— Então, Ualter está a caminho da Inglaterra levando a boa e doce Comfort em correntes — deduziu Fortune, depois de ouvir o relato do marido. — Deus se apiede dessa alma!

— E ainda diz isso depois de todos os problemas que ela causou? Seu coração é muito brando, minha adorada.

— Não sou nenhuma tola, Kieran, mas reconheço que fo­mos abençoados. Até chegarmos à Mary's Land, éramos al­mas solitárias vagando pelos caminhos da vida sem saber que direção deveríamos tomar. Comfort fazia o mesmo. Ela só queria ser amada, embora não soubesse como. Eu sempre fui amada, e você, apesar da morte de sua mãe, teve sempre o amor de seu pai e de seus irmãos. Que tipo de vida essa moça teve para se tornar amarga como é? Os bebês nascem inocentes, com o cora­ção cheio de bondade... e a vida os direciona para um ou outro caminho. Espero sinceramente que Deus a ajude, Kieran. E que salve sua alma amargurada.

Ele olhou para os olhos verdes da mulher amada e se sen­tiu inundado de admiração e respeito. Lady Fortune Mary Lindley Devers era uma criatura fascinante e surpreendente.

— Amo você — disse ele. — E vou amá-la para sempre. Estamos em casa, Fortune. Em nossa Mary's Land. Em casa, li­vres do cerco.

Ele a levantou em seus braços e beijou-a com toda a paixão de sua alma celta, e Fortune sabia que ele estava certo. Eles es­tavam em casa. Em casa, livres do cerco.

Era uma sensação deliciosa.


Fim



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