Os conspiradores do Exército tinham articulação com a Marinha e a Aeronáutica?
Meu grupo atuava basicamente dentro do Exército. Na Mari- nha tínha os amigos, como Faria Lima. Na Aeronáutica também ha- via oficiais com os quais conversávamos, particularmente Délio Jar- dim de Matos. Mas não havia um plano militar. Achávamos que ia haver um levante geral que dispensaria um planejamento sobre as operações. Não sabíamos quais as resistências que poderíamos en- contrar, mas tínhamos a convicção de que seriam muito poucas e sem consistência, como realmente aconteceu.
E quanto à influência norte-americana no golpe?
Não cheguei a ter contato direto com esse assunto, mas certa- mente houve. O americano estava muito interessado na nossa situa- ção, inclusive na sua estratégia política de evitar a propagação do co- munismo. Era a época em que os Estados Unidos consolidavam o cordão de isolamento ao comunismo, depois da Guerra da Coréia e em plena Guerra do Vietnâ. Achávamos que o governo americano es- tava certo nessa questão e por isso estávamos alinhados com eles. Castelo era amigo do Walters, que tinha servido na guerra como ele- mento de ligação entre a Força Expedicionária Brasileira e o coman- do americano na Itália, ao qual a FEB estava subordinada, e era, na época, adido militar norte-americano no Brasil. O Walters tornou-se amigo não só do Castelo, mas também de outros militares brasileiros.
Em que se traduziria esse apoio ao golpe?
Não sei bem qual era o apoio previsto, mas acho que seria mais uma demonstração americana. Dizem que havia navios de guer- ra e petroleiros americanos, para o nosso abastecimento, se aproxi- mando da costa. Não sei se isso é verdade. Mas parece plausível ad- mitir que, se a revolução tivesse dificuldades, os Estados Unidos nos apoiariam. Disso não tenho dúvidas. Sobretudo com armamen- tos e munição. Tropas não creio, para não criar maiores suscetibili- dades. Não disponho de dados concretos, positivos, para fazer essa afirmação. Estou apenas fazendo uma ilação do que me parece lógi- co, natural. O embaixador americano no Rio, Lincoln Gordon, era também francamente favorável à revolução. #
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O senhor e seu grupo foram surpreendidos pela iniciativa do gene- ral Mourão em Juiz de Fora?58
Não totalmente. Sabíamos que Minas estava conspirando, que o Mourão estava agindo numa propaganda anti-subversiva, mas não con- fiávamos nele pelos seus antecedentes. Eu, por exemplo, conheço vá- rios fatos com relação ao Mourão. Quando eu estava em Curitiba e pas- sei aquele telegrama para o Jair Dantas Ribeiro dizendo que, ao con- trário do que ele dizia, a região do Paraná e Santa Catarina estava em condições de manter a ordem, que não havia qualquer perturbação, o Mourão comandava Santa Maria e não fez nada, ficou calado. Encon- trei-me com ele depois em Porto Alegre e perguntei: "Como é Mourão? E o telegrama do Jair?" Ele me respondeu: "Ah, não! Eu não fiz nada, fiquei na moita. Fiquei calado". Aí fiquei cismado. . . Eu conhecia os an- tecedentes dele, no Plano Cohen59 e no governo do Juscelino. Depois, ele conseguiu ser transferido para São Paulo, para um lugar melhor e mais importante. Uma ocasião fui procurado por civis que vinham fa- lar comigo por sua orientação. Ele estava organizando militarmente ci- vis em São Paulo, procurando armá-los para a revolução, e aquela gen- te queria fazer a mesma coisa no Paraná. Diziam que tinham meios, elementos, que fariam aquilo numa preparação para a revolução. Eu lhes disse: "Não, não coopero. Se houver revolução, vai ser por conta das Forças Armadas. Aqui, por conta do Exército. Se vocês se mete- rem a armar civis e a criar organizações de tipo fascista ou coisa seme- lhante, podem ter certeza de que o Exército vai ser contra. Não se me- tam. Fiquem lá com as suas vidas, se quiserem façam propaganda da revolução, mas não se metam". Pois bem, o Mourão vivia alardeando o que estava fazendo e não acontecia nada com ele. Pouco depois foi no- vamente transferido, agora para Minas. Deram-lhe comandos bons e importantes. E eu ficava cismado. Pensava: o Mourão está aqui se fin- gindo de revolucionário mas não é revolucionário coisa nenhuma. Quando dou acordo de mim, ele faz o levante em Juiz de Fora.
58 Na madrugada do dia 31 de março, o general Mourão Filho, comandante da 4ª Re- gião Militar, sediada em Juiz de Fora (MG), iniciou a movimentação de tropas em di- reção ao Rio de Janeiro. Deflagrada a sublevação, os principais comandos militares se articularam para dar seu apoio à ofensiva de Minas Gerais. 59 O Plano Cohen, contendo instruções para um levante comunista no Brasil, foi pro- duzido por integralistas e divulgado pelo governo de Vargas em 30 de setembro de 1937 como verídico. #
Pensava-se que o movimento fosse sair uns dois ou três dias mais tarde. Tinha havido a revolta dos marinheiros e a audiência dos sargentos no Automóvel Club, e nós achávamos que o problema esta- va maduro, inclusive porque muitos oficiais que eram apáticos ou não se envolviam, a partir daquele momento, sentiram que a situação estava ficando muito ruim e, como nós dizíamos, saíram de cima do muro e vieram para o lado da revolução. De repente, de manhâ, fo- mos surpreendidos pela ação do Mourão, que se revoltara em Minas. Achamos que não se podia esperar mais, porque se o resto ficasse parado e não se fizesse nada, o movimento do Mourão fracassaria, o que seria muito ruim. Resolveu-se então desencadear o movimento no Rio.
E o general Médici tomou a iniciativa de fechar a via Dutra com os cadetes da Aman.
Sim, mas ele não quis envolver a Escola Militar na revolução. Tínhamos o exemplo trágico da Revolução de 22, em que a Escola Militar se engajou, ficou sozinha em Gericinó, e os alunos foram quase todos expulsos. Então, ele não quis sacrificar a Escola Mili- tar. Apenas ocupou a via Dutra para evitar um confronto. E foi ali que o pessoal vindo de São Paulo se entendeu finalmente com o ge- neral Âncora, que desistiu de qualquer reação.
O general Castelo tentoufazer com que o general Mourão voltasse atrás?
Não. Castelo achou que o movimento era prematuro, que o Mourão tinha agido afoitamente, mas que, uma vez iniciado o movi- mento, deveríamos prosseguir. Dizem as más línguas que o Mourão ia ser transferido para a reserva porque tinha chegado à idade limite.
Como foi seu dia 31 de março de 1964?
Nesse dia de manhã nós fomos à casa do Castelo e conversa- mos. Ele tinha algumas notícias. Dali fomos para o Quartel-Gene- ral, e o Castelo foi para o seu gabinete trabalhar. Mais tarde veio a notícia de que ele ia ser preso: "O ministro vai mandar prender o Castelo hoje". Mamede mobilizou alguns oficiais e alunos da Esco- la de Estado-Maior que dirigiram-se armados para o Estado-Maior do Exército, para dar proteção ao Castelo em qualquer eventualida- #
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de. Às quatro horas da tarde, desci com o Castelo para o andar térreo e saímos de automóvel pelo portão principal. O sentinela fez continência e fomos embora. Cordeiro tinha arranjado emprestado, por pessoa de suas relações, um apartamento térreo em Copacaba- na, onde instalamos o nosso comando. Passamos o resto do dia e toda a noite lá com o Golbery e outros, acompanhando a evolução dos acontecimentos e orientando a ação de companheiros que ti- nham comando de tropa. Mais tarde, já na manhã do dia seguinte, nos mudamos desse apartamento para outro no morro da Viúva. Aí prosseguiu a articulação do pessoal que estava ligado a nós, e começamos a ter notícia também do pessoal do Costa e Silva e de São Paulo. Eu e Golbery tínhamos redigido um manifesto que o Castelo e outros generais assinaram, e que foi irradiado naquela noite.
O governo do Jango praticamente já tinha acabado. Houve ain- da uma ação do pessoal da Escola de Estado-Maior contra a Artilha- ria de Costa, e outra de um regimento de infantaria da Vila Militar, que fazia parte de um destacamento organizado às pressas sob o co- mando do general Cunha Melo para combater o Mourão, que descia para o Rio com a sua tropa. Cunha Melo, que era "general do po- vo", sob a liderança do general Assis Brasil, levou esse regimento e mais outra tropa até Petrópolis para lá enfrentar, no caminho de Juiz de Fora, a força que vinha de Minas. Quando ele estava reali- zando esse movimento, o comandante do regimento foi a ele e se manifestou pela revolução. Era um oficial muito ligado ao marechal Denys, e o Denys era um dos que estavam fortemente na conspira- ção, um dos que mais se movimentavam. Foi a Minas e estava lá quando houve o levante. Aliás, quando houve o movimento em Mi- nas, Castelo mandou para lá o Muricy. Ele veio com um destacamen- to do Mourão, controlando-o pessoalmente e evitando maiores loucu- ras. Cunha Melo ficou sem ação, de vez que perdeu a força princi- pal de seu destacamento.
Em suma: o "dispositivo militar" de João Goulart não existia.
Era um blefe! Era conversa do Assis Brasil. Ele contava com alguns generais sem maior expressão, que não tinham bom conceito ou capacidade no Exército. Na Aeronáutica, nos Fuzileiros Navais etc., estavam todos minados pela conspiração. Houve a notícia de que os Fuzileiros Navais iam atacar o palácio do governo do Lacer-
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da, mas não foram. Havia ali um sistema de defesa montado pelo Lacerda, com armas, mas não houve ataque algum. Vários oficiais foram lá para ajudar e não foi necessário.
Assis Brasil, que era chefe da Casa Militar do Jango, havia si- do meu companheiro de Colégio Militar, embora fosse mais moder- no e mais moço. Tinha sido muito ligado ao general Osvino e de- pois ao Jair Dantas Ribeiro, e garantiu ao Jango que tinha um dis- positivo militar muito eficiente, capaz de enfrentar os revoltosos. E aí vieram com a história dos "generais do povo". Nós não éramos ge- nerais do povo, eles é que eram... Mas eles eram os generais de me- nor conceito dentro do Exército e não puderam fazer nada. Como o Kruel, o próprio Assis Brasil não fez nada. Estava em Brasília e fi- cou sem ação. Meira Matos veio de Mato Grosso e marchou sobre Brasília.
No dia 31 o grosso do oficialato já estava claramente definido a favor ou contra o movimento, ou ainda havia uma margem gran- de de indecisos?
Havia indecisos, como sempre há. Inclusive os que estão espe- rando para ver de que lado sopra o vento. Não estou falando mal dos militares, porque isso é humano! Isso sempre existe em qual- quer organização: há uns de um lado, outros de outro, e há uma massa amorfa no meio que espera o desenrolar do acontecimento. Essa massa, em grande parte, tomou partido quando houve a au- diência aos sargentos no Automóvel Club. Jango, em vez de se reu- nir com os oficiais qualificados e discutir com eles os problemas pertinentes, foi conversar com os sargentos, foi aliciá-los! O presi- dente da República!
E por que Jangofazia isso? Seria uma estratégia premeditada ou falta de conhecimento dos princípios da hierarquia?
Falta de conhecimento da hierarquia não seria propriamente. Ele podia estar convencido de que os sargentos mandavam mais no Exército do que os oficiais. Porque os sargentos, como eu disse, são os elementos que têm mais contato com a tropa, com os soldados. Embora os oficiais também tenham contato, os sargentos normal- mente já foram soldados e cabos. Talvez Jango pensasse em fazer dos sargentos uma força dentro dos quartéis capaz de se opor à #
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ação dos "gorilas". Foi um erro de avaliação, possivelmente induzido por homens como Assis Brasil e Jair. Relativamente ao Jair, acho que era muito medíocre. Na Revolução de 64, ele se tinha hospitali- zado para fazer uma operação na próstata. Morreu mais tarde, víti- ma de câncer. Quando começou a revolução, o ministério pratica- mente estava acéfalo. Respondia pelo ministério o general Âncora, e a situação por baixo estava de tal forma minada que não havia co- mando capaz de enfrentar o nosso movimento.
E quanto a Brizola? Geralmente atribui-se a ele uma influência muito grande sobre João Goulart.
É, mas houve ocasião em que eles brigaram. Brizola tinha lá suas ambições, quis ser ministro da Fazenda, e o Jango não o aten- deu. Indiscutivelmente Brizola, que era cunhado do Jango - sua mulher, Neuza, era irmã do Jango -, tinha suas fichas junto ao Jango, inclusive porque tinha sido o "herói" da posse. Foi quem ca- pitaneou a resistência em 1961. Foi por essa ocasião que ele se can- didatou a deputado pelo Rio de Janeiro e teve a maior votação de todos os tempos. Ele estava em ascensão política, mas o Jango bre- cou, não atendeu às suas pretensões.
Comenta-se também que uma vez deflagrado o movimento, houve uma falta de coordenação muito grande.
Sim, isso acontece, e é próprio de uma revolução com vários chefes. Mas não houve incidente. Na Vila Militar, comandada por Oromar Osório, partidário do Jango, as unidades de tropa acaba- ram aderindo, e ele não teve força nem ação para reagir. Nessa oca- sião o general Muniz de Aragão se deslocou para Marechal Hermes, para cooperar na queda da Vila Militar e obter sua adesão à revolu- ção. Não havia real chefia dos comandos que eram janguistas, e as- sim eles não foram capazes de enfrentar a revolução. Primeiro, pela extensão que esta tinha; segundo, porque eles não se prepararam. Achavam que promovendo os "generais do povo", ou fazendo políti- ca de sargentos, iam resolver o problema. Não avaliaram a repercus- são negativa do governo do Jango - um exemplo é o comício da Central, que teve péssimo reflexo na opinião pública. Principalmen- te, não avaliaram que a maioria do povo estava conosco. #
O senhor assistiu ao comício de 13 de março?
Não. Eu estava no Estado-Maior, que fica nos fundos do Quar- tel-General, de modo que não ouvi nada. Somente depois soube da história!O Castelo e outros generais foram ao Jair antes do comício convencê-lo a não ir lá. Insistiram para que ele não fosse ao palan- que, para que se abstivesse. Procuraram preservar a pessoa do Jair e evitar o envolvimento do Exército. O Jair prometeu que não iria, mas não conseguiu resistir à pressão do pessoal do Jango e foi pa- ra o palanque onde o Jango fez seu discurso demagógico. A revolu- ção foi uma natural decorrência dos erros, desmandos e desencon- tros do governo Jango.
Mas as reformas propostas por João Goulart não eram necessárias?
Acho que algumas eram necessárias, mas ele não tinha con- dições para fazê-las nos termos que queria, com o pessoal que o cercava, todo da esquerda, e sem a participação efetiva do Poder Legislativo. Jango nunca apresentou um projeto com algum detalhe explicativo que o tornasse aceitável. Era sempre uma conversa de- magógica orientada pelo CGT. A reforma agrária, por exemplo, sem- pre gerou reações no Brasil. Sou seu partidário, mas não como eles preconizavam. A reforma agrária seria feita sem critério na discri- minação das propriedades a serem desapropriadas. Isso se prestava a uma ação política, contra adversários. O segundo problema é o da indenização, que, da forma como seria feita, correspondia a uma real expropriação. E, uma vez desapropriada a propriedade, há o problema do assentamento, que exige a aplicação de recursos finan- ceiros para que o colono disponha de casa, de instrumentos indis- pensáveis ao seu trabalho e possa viver com sua família até a pri- meira colheita. Acho que devemos fazer a reforma agrária, mas creio que o regime da pequena propriedade só subsiste para cultu- ras muito especiais. A União Soviética criou o sistema de colcoses e soucoses, habitado por várias famílias, reunidas para terem uma propriedade grande. Puderam ter máquinas, tratores etc., meios pa- ra combater eficientemente as pragas, sementes selecionadas, adu- bos. O que fazer numa pequena propriedade? Um agricultor com a família, mulher e meia dúzia de filhos? Antigamente, na agricultura, a tendência era sempre ter famílias numerosas. Era ter muitos fi- lhos para ter mão-de-obra, porque a agricultura era feita com a en- xada. Cultivava-se com a enxada e o arado puxado por boi ou por #
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cavalo. e o trabalho era manual. Isso acabou. A máquina e a tecnolo- gia tomaram conta da agricultura.
Uma saída seria a cooperativa, mas a cooperativa no Brasil quase sempre tem fracassado. Geralmente degenera por má adminis- tração, feita em benefício pessoal dos administradores com prejuízo dos cooperativados. O sistema de cooperativa é um sistema teorica- mente muito bom, mas recai no homem. E aí volta a velha história: o homem é um bicho terrível.
Outra coisa em que o Jango falava era nos direitos dos traba- lhadores rurais. Mas o que ele fez de concreto? Nada. As reivindica- ções apresentadas eram muito teóricas, políticas. e no terreno prático não se concretizavam. Inclusive porque os homens que atuavam nes- sa área, Dante Pellacani e João Pinheiro Neto, não tinham experiên- cia nem capacidade para resolver os problemas.
Os conspiradores discutiram algum plano de governo, para fazer face aos problemas do país?
Não. O objetivo era tirar Joáo Goulart. A idéia sobre o futuro governo era ainda muito superficial: pôr ordem no país, combater a inflação, assegurar o desenvolvimento. Eram sempre idéias muito ge- rais, sem coordenação. Não havia nada previsto nem quanto à ocu- pação dos cargos. Não tínhamos uma proposta de governo. Acháva- mos que esse problema iria ser resolvido depois. Em primeiro lu- gar, tínhamos de derrubar o Jango.
Avaliando hoje, o senhor acha que essafoi uma estratégia ade- quada?
Não foi, mas vejam o seguinte. Muitos estavam ali apenas por serem contra o comunismo. Outros porque viam a nação se desinte- grar e ir para um estado caótico. Era preciso pôr um paradeiro nis- so. Achávamos que este era o problema principal e que, depois de li- quidado, a situação iria se resolver com um governo oriundo da re- volução ou que obedecesse mais ou menos ao seu espírito. Não havia um programa preestabelecido nem se sabia como seria o go- verno, nada estava resolvido. E, como era de se esperar, logo em se- guida surgiram divergências. Aliás, pela maneira como a conspira- ção se desenvolveu, em diferentes grupos, sem uma chefia efetiva,
sem planejamento e com a idéia fixa de derrubar o regime janguis- ta, não era possível traçar uma estratégia para o futuro governo.
Terminada a revolução, o primeiro problema foi a escolha do ministro do Exército: seria ministro o general mais antigo. O gene- ral mais antigo era o Cordeiro. Aí o Costa e Silva retificou: "Não. É o mais antigo em função". Ele tinha função, e o Cordeiro não tinha, estava no limbo. E assim Costa e Silva assumiu. Cordeiro tinha seus amigos, relações de conspiração, mas não tinha comando no Exército. Não tinha tropa e estava, como nós dizíamos, no ar, ao passo que Costa e Silva estava trepado no Ministério do Exército e contava com o apoio de muitos. Encontrou a cadeira vazia, sentou, e o Cordeiro não reagiu. É claro que o Cordeiro não se entendia bem com o Costa e Silva, e isso se prolongou. Mais tarde saiu do governo do Castelo por causa dele.
Em algum momento o senhor teve algum problema de consciên- cia, algum conflito Interno, por estar quebrando a legalidade do país?
Não, porque não havia mais legalidade. O governo do Jango, para mim, pelo que fazia, era ilegal.
O senhor ficava à vontade na hora de conversar com a tropa so- bre a necessidade de uma intervenção?
Nessa época eu não tinha tropa. Meu cargo era administrativo, mas quando estive no Paraná, à medida que os oficiais iam adqui- rindo confiança em mim, conversava muito com eles sobre a situa- ção nacional, revelava a atuação do governo, inclusive na área mili- tar. Problema da mesma natureza eu tive em 1930, quando conduzi a tropa que comandava para a revolução contra o "governo legal" de Washington Luís, e confesso que não tive nenhum escrúpulo em fazê- lo. Ao contrário, parecia-me um dever para com a pátria.
O general Moraes Rego, por exemplo, conversando conosco, falou do dilema interior que viveu para aderir ao movimento.
É porque o Moraes Rego era de outra geração. Não vinha das revoluções de 30, era a primeira vez que enfrentava um problema des- sa natureza. E o Moraes Rego sempre foi muito soldado. Servia na Divisão Blindada e acabou entrando no movimento, talvez, por suas #
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relações de vários anos com o Castelo, a quem era muito ligado. Ser- viu com ele no comando da Amazônia e depois em Recife. Castelo e Moraes Rego, para caracterizar a situação a que tínhamos chegado, assinalavam, com estranheza, que praticamente ninguém defendeu o Jango dentro das Forças Armadas, nem os próprios janguistas. Todos acabaram se entregando sem esboçar qualquer reação. Isso mostra o grau de decomposição a que o governo tinha chegado. O "dispositivo militar" era um mito. Foi organizado na base de satisfazer ambições, e não de devoção, lealdade ou convicção de apoio ao Jango.
O senhor vê semelhanças entre 1930 e 1964?
Uma avaliação dessas não é muito fácil, mas sei que a Revolu- ção de 30 foi talvez a primeira vez em que houve uma manifestação em todo o território nacional. Desde o Amazonas, o Nordeste, Minas Gerais, São Paulo, o Sul, todos participaram da revolução. O senti- mento nacional se manifestou, o Brasil deixou de ser um conglome- rado de áreas que quase não se intercomunicavam, houve uma co- munhão nacional. Isso durou algum tempo, mas depois começaram a surgir as desavenças, os desacordos etc.
A Revolução de 30 veio com o caráter de renovadora. Osvaldo Aranha fez um discurso dizendo que contra os interesses do país, ou contra a revolução, não havia direitos adquiridos. Por isso a revo- lução podia fazer o que quisesse. A população, de um modo geral, a apoiou e se mostrou favorável a ela. Já a Revolução de 64 teve ou- tra característica, porque era outra época. Foi mais atuante aqui na região Centro-Sul: Rio de Janeiro, Minas Gerais, São Paulo, um pou- co o Rio Grande do Sul. O Norte quase não participou. Houve algu- ma ação em Pernambuco, na Bahia, no Ceará, a deposição dos go- vernadores, mas não foi um movimento tão popular como o de 30.
Esta é uma comparação rápida. Se se refletir, se se ponderar mais, poder-se-á chegar a maiores conclusões. Mas assim, à primei- ra vista, eu tenho essa impressão. A Revolução de 30 foi mais pro- funda, mexeu mais com o povo brasileiro. Em 64 havia muitos adep- tos do Jango, inclusive no operariado. Ao passo que Washington Luís tinha apenas algum apoio político, e nada na camada popular. #
10 - O governo Castelo Branco
No dia 1º de abril de 1964, João Goulart viajou para o Rio Gran- de do Sul, e à noite Ranieri Mazzilli assumiu interinamente a presidência da República. O senhor acompanhou esses primeiros passos?
Sim. Aí fizeram a Junta Revolucionária com o Costa e Silva, que representava o Exército, o ministro da Marinha e o ministro da Aeronáutica. Não havia consenso em torno disso, mas foi aceito na área militar sem muitas divergências. O almirante da Marinha fora para o Ministério do Exército prestar solidariedade aos revolucioná- rios, e, com a idéia de união das Forças Armadas, não sei se por inspiração do Costa e Silva, fizeram um comando revolucionário conjunto. Eram os três ministros militares, e dentre eles o mais for- te era o Costa e Silva, porque o Exército era a força principal.
Costa e Silva era uma liderança expressiva na tropa?
Não. Essa liderança veio depois. Ele tinha ali apenas o poder hie- rárquico. Já contava com o apoio de vários oficiais, de gente trabalha- da pelo Jaime Portela, como Sizeno Sarmento e outros. Mas ele, nessa ocasião, ainda não era muito forte. Fazia reuniôes com a presença dos governadores de Minas e da Guanabara, além de generais, e havia mui- #
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tas discussões. Numa dessas reuniões, Juarez disse uma série de ver- dades ao Costa e Silva; Lacerda, por sua vez, também brigou e se reti- rou em seguida. Disse que não voltaria mais, e foi o Juracy quem aca- bou resolvendo o problema. Houve muitos desencontros: quem seria escolhido presidente? Nós achávamos que devia ser o Castelo, mas al- guns civis também queriam o cargo. No Estado-Maior do Exército, Ma- galhães Pinto, conversando, disse: "Por que não eu?" Lacerda também tinha as suas ambiçôes. Já Ademar de Barros e Ildo Meneghetti esta- vam mais apagados. Houve muitas conversas, que se davam nos esca- lões mais altos que o meu. Eu era apenas um general-de-brigada. Mas conversávamos com o Castelo e ficávamos a par de tudo. 166>164>162>160>158>156>
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