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após a parada de 7 de setembro, depois do meio-dia, o Grupo-Esco- la voltava para a Vila Militar. Em vez de o regresso ser feito em trem, voltávamos a cavalo. Era um percurso de 30 quilômetros. Ou- vimos então o discurso do Getúlio pelo rádio, dizendo que ele se di- rigia à nação pela última vez como presidente da República. E, no entanto, já estava tramando o golpe de novembro. Isso é política. O político não pode ser muito sincero. Afinal, quando chegou o 10 de novembro ele se "sacrificou", em benefício da nação.
O integralismo apoiou Getúlio no golpe, convencido de que ele poderia pôr em prática as idéias, os princípios integralistas. Havia um general no Exército que era um integralista convicto e muito atuante. Era o Newton Cavalcanti. Influiu muito na adesão do integralismo ao golpe de 37. Mas Getúlio liquidou o partido pouco depois. O chefe Plí- nio Salgado, que, segundo se dizia, ia ser o ministro da Educação, acabou preso. Mais tarde ocorreu o ataque dos integralistas ao palá- cio Guanabara, em 1938. Aquilo foi uma ação muito rápida, logo liqui- dada. Quem reagiu pessoalmente e com muita rapidez foi o general Dutra. Aí ocorreram vários fuzilamentos. Em decorrência disso cres- ceu a guarda pessoal do presidente, que mais tarde, em 1954, provo- cou outra tragédia. Mas vejam bem. Nós não ligávamos muito para as questões de governo nem para o que o governo estava fazendo. Estáva- mos mais absorvidos com o nosso problema militar, alheios a muitas coisas de economia, política e administração. #
5 - A ditadura de Vargas
e o mundo em guerra
Como prosseguiu sua carreira depois de 1937?
Em 1938 fui matriculado na Escola das Armas, para o curso de aperfeiçoamento. Em 1939 fui designado para a Escola Militar do Realengo, onde fui ser instrutor chefe de artilharia e comandante da bateria dos cadetes que faziam o curso da arma de artilharia. Era uma missão muito honrosa e desejada por mim, pois me pro- porcionava a possibilidade de influir na formação dos futuros ofi- ciais do Exército, de pôr em prática certas idéias que vinham desde o tempo em que fui cadete. A Escola continuava a ter seus proble- mas, suas deficiências, principalmente no tocante à alimentação e à falta d'água, mas estava melhor do que no meu tempo. O número de alunos havia aumentado. Na bateria havia cerca de 90, do segun- do e terceiro anos. Na Escola toda devia haver de uns 700 a 800 alunos. Fui instrutor dois anos, e foi uma época de muito trabalho. Saíram duas turmas de oficiais nesse período. Em 1940 fui chama- do para fazer o curso de estado-maior, mas adiei a matrícula por um ano, para poder continuar na Escola Militar e formar a segunda turma. Vários desses oficiais foram depois generais. #
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Quando fui para a Escola Militar, levei comigo três tenentes que eu já conhecia, que haviam servido no Grupo-Escola. Formáva- mos uma equipe de instrutores coesa, unida e dedicada ao traba- lho.29 Todos esses tenentes seguiram depois seu próprio rumo. Só um está vivo, os outros já morreram. Mas formavam um time muito bom. A propósito, vou contar um fato ocorrido que mostra a nossa coesão e a importância do exemplo.
Dois dos tenentes usavam bigode, assim como muitos cadetes. O diretor de ensino, coronel Lima Câmara, insistia comigo na neces- sidade de acabar com o bigode dos cadetes. Não havia, entretanto, dispositivo legal que me permitisse exigir que eles raspassem o bigo- de. Um dia, os tenentes estavam discutindo por divergências de tra- balho, me aborreci com eles, perdi a paciência e disse-lhes: "Aca- bem com essa discussão! E, a propósito: já falei várias vezes sobre o problema do bigode dos cadetes. Quando é que vocês vão raspar o de vocês?" Isso foi de manhâ. Na hora do almoço, com a bateria em forma, os tenentes já estavam sem bigode. Depois do almoço, quando a bateria se dirigia para a instrução, nenhum cadete tinha bigode. Isso mostra o valor do exemplo em toda coletividade, sobre- tudo vindo de cima. Se o chefe tem uma certa ascendência e dá o exemplo, sempre consegue bons resultados.
O exemplo é um dos fatores de comando. Outro é a confiança recíproca entre o chefe e o subordinado, que vem da conduta, da maneira de proceder, da capacidade, da convivência. São predicados
que quem lida com problemas coletivos, como o da guerra, deve cul- tivar. Mas, no fundo, o principal é o exemplo.
Os alunos nesse período de 1939/40 ainda eram revolucionários, como no seu tempo?
Não. Não havia mais alunos revolucionários, não havia mais re- volução. O que havia era o começo da guerra. Era mais o quadro da Europa, noticiado pelos jornais e o rádio, que mobilizava as opi- niões.
29 Os três tenentes trazidos do Grupo-Escola eram Francisco Saraiva Martins, Menes- cal Vilar e Carlos Camoirano. Também fazia parte da equipe Newton Castelo Branco, que já servia no Realengo. #
Foi nesse periodo de instrutor da Escola Militar que o senhor se casou, não foi?
Foi. Casei em 10 de janeiro de 1940. Eu estava esperando que a Lucy crescesse! Porque entre nós há uma diferença de idade de 10 anos. Ela é minha prima pelo lado materno, e a conheci criança pequena. A mãe da Lucy, Joana, era minha tia e madrinha. Depois passou a ser tia, madrinha e sogra. Veio a falecer aqui no Rio, onde estava morando conosco, já com oitenta e poucos anos. Seu marido, Augusto Frederico Markus, era comerciante e depois foi político, vá- rias vezes prefeito de Estrela.
Lucy também era professora primária. Quando minha irmã saiu de Bento Gonçalves e foi para Cachoeira, passou a ser professo- ra da Escola Normal. Muitos primos e primas menores foram então morar com ela para estudar em Cachoeira, uma cidade mais desenvol- vida, com mais recursos. Lucy foi uma dessas primas. Já tinha o cur- so primário, e lá fez o secundário e a Escola Normal. A irmã da Lu- cy, mais moça, também estudou mais tarde em Cachoeira. Minha ir- mã, que ficou solteira, supervisionava esses estudos. Ficou mandona.
O namoro efetivo começou quando Lucy veio ao Rio, com mi- nha irmâ e outra colega. Aí tivemos um contato mais cerrado de fa- mília, passeamos muito, e chegamos à conclusão de que nos amáva- mos e devíamos casar. Nosso namoro foi bem diferente do de hoje. Foi um namoro sério, e com a melhor das intenções, para chegar ao casamento. Passeávamos junto com a família, mas às vezes só nós dois. Na época em que ela esteve aqui, era Carnaval. Levei-a pa- ra ver o desfile na avenida Rio Branco, que era próprio daquele tem- po, quando ainda não dominavam as escolas de samba. Havia uns bailes e levei-a a um deles. Fomos os dois sozinhos. Na época não era muito comum os casais de namorados saírem sozinhos, mas tí- nhamos certa liberdade, havia um ambiente de confiança, pois am- bos éramos muito responsáveis. Minha conduta e a dela eram mui- to corretas. As liberdades não passavam além dos beijos.
Mas então ela regressou ao Sul e continuei na Escola Militar. Passamos a nos corresponder. Em julho era o aniversário do pai de- la, meu tio afim, e combinamos noivar nessa data. A meu pedido, meu irmão Bernardo foi a Estrela conversar com meu futuro sogro e pedir, em meu nome, a mão da Lucy. Era o velho sistema. Noiva- mos em julho de 1939. #
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Orlando casou bem antes de mim, no começo de 1932. Henri- que mais cedo ainda, em 1928. Bernardo também, em 28. Um te- nente no Rio Grande era um bom partido. Antes da Revolução de 30, em Santo Ângelo, tive alguns casos, mas sem profundidade. Quando estava na Paraíba também tive alguns namoros, mas muito superficiais, sem importância, inclusive porque eu não queria me radicar no Nordeste. Eu me prezava de conduzir minha vida com se- riedade. Era bom companheiro, convivia fraternalmente com os ca- maradas, gostava de jogar cartas, andar a cavalo, brincar etc., mas um engajamento maior com o sexo feminino, inclusive para chegar a casar, nunca tive. Fui deixando, achando que tinha tempo. Talvez tenha casado um pouco tarde, mas... Era preciso que ela crescesse! Eu me casei com 32 anos, Lucy com 22: 10 anos de diferença.
Casamos em Estrela. Fui em férias ao Sul, e o casamento foi muito simples, porque na antevéspera tinha falecido uma prima nos- sa. Foi de manhâ, primeiro o civil e a seguir o religioso, na igreja lu- terana. Depois do almoço familiar fomos de automóvel com um pri- mo até a estação mais próxima, Maratá, e pegamos o trem para Por- to Alegre. Chegamos a Porto Alegre à noitinha, cansados. Ficamos alguns dias lá, num hotel, esperando o vapor para vir para o Rio. Aqui chegando, fomos morar numa pensão na rua Conde de Bon- fim. As coisas eram apertadas. Eu me levantava de madrugada, às quatro horas da manhâ, pegava um bonde, ia para a estação da Cen- tral e tomava o trem para o Realengo. Ficava lá o dia todo e de tar- dezinha voltava. Chegava na pensão na hora do jantar. Era essa a vi- da. Sobrava o domingo, quando geralmente íamos à casa do Orlan- do, que então morava em Jacarepaguá. Mais tarde, consegui alugar uma casa no Realengo, onde passamos a morar. Depois que nos ca- samos, Lucy parou de lecionar. Ficou andando de cá para lá, de ci- dade para cidade, sempre me acompanhando.
Quando fui para a Escola de Estado-Maior, em 1941, aluguei uma casa junto com o Orlando em Botafogo, e durante dois anos as duas famílias ficaram morando juntas. No terceiro ano, tivemos que entregar a casa, que era de um oficial de Marinha que servia em Ma- to Grosso e voltava para o Rio. Aí vim morar num apartamento alu- gado em Ipanema. Conheci Ipanema e Leblon quando aquilo era um areal. Em 30, quando vim com a revolução, havia lotes à venda. Eu olhava para aquilo e dizia: "Isso nunca vai ter futuro, nunca vai ser nada..." Na verdade, eu não tinha nenhum tino comercial... #
Nosso filho Orlando nasceu no início de novembro de 1940, e nossa filha Amália Lucy em janeiro de 1945, já quando eu estava nos Estados Unidos, fazendo o curso em Leavenworth. Nesse perío- do minha mulher ficou no Sul, morando com os pais em Estrela.
O senhor fez o curso da Escola de Estado-Maior junto com seu irmão Orlando?
Sim. Fiz o curso junto com o Orlando, que tinha sido instru- tor na Escola de Aperfeiçoamento e também havia adiado sua matrí- cula. Henrique já tinha feito o estado-maior. Embora fosse mais ve- lho, Henrique era mais moderno que o Orlando. Os dois fizeram juntos o curso da Escola Militar, mas o Orlando foi melhor classifi- cado, de maneira que, na hierarquia, estava na frente do Henrique. O curso da Escola de Estado-Maior era de três anos, e a gente vivia estudando. Aprendia-se muito porque era justamente uma fase de evolução. A Escola de Estado-Maior havia sido remodelada e reorga- nizada pela Missão Francesa, mas estava sofrendo então o impacto da nova guerra, sobretudo da guerra-relâmpago das campanhas da Polônia e da França, a blitzkrieg, uma ação de blindados apoiados pela aviação. Os instrutores, todos eles ainda mais ou menos dentro da orientação francesa, já sofriam o impacto da novidade.
Com a entrada do Brasil na guerra e a organização da Força Expedicionária Brasileira,0 o curso da Escola de Estado-Maior foi abreviado. Devia ir até dezembro de 1943, mas em agosto foi encer- rado. Fizemos as provas finais depois de quase três anos. No primei- ro ano havia algumas disciplinas que não eram propriamente mili- tares. Havia conferências sobre sociologia, problemas geográficos, geopolítica. Um dos conferencistas era o San Tiago Dantas. Os pro- blemas eram mais táticos e, depois, estratégicos. O curso era muito trabalhoso e melhorou a nossa cultura profissional. Quando termina- mos, pude escolher, e meu irmão também, o local onde iríamos ser- vir. Fomos para Porto Alegre, para o Estado-Maior da 3ª Região Mili- tar. Nessa época eu já era major, tinha sido promovido por mereci-
30 Em 9 de agosto de 1943, um ano após a declaração do estado de guerra contra a Alemanha e a Itália [31 de agosto de 1942), foi constituída a Força Expedicionária Brasileira, que em 1944 seria enviada à Itália, sob o comando do general Mascare- nhas de Morais, para lutar contra os países do Eixo. # <88 ERNESTO GEISEL>
mento em maio de 1943. Por ocasião dessa promoção, um colega que também fora promovido convidou-me para irmos agradecer ao ministro Dutra. Respondi-lhe que, se eu merecia a promoção, o mi- nistro apenas tinha cumprido com sua obrigação. Se eu não a mere- cia, ele havia sido injusto, prejudicando outro oficial de maior méri- to. Não cabia qualquer agradecimento e, portanto, eu não podia aten- der ao seu convite.
Sua classificação no curso de estado-maior foi boa?
Foi. No curso havia as menções "Muito Bem", "Bem", e "Regu- lar". Não pensem que seja gabolice ou vaidade: houve duas menções "Muito Bem", que foram primeiro para o meu irmão e depois para mim. Nesse curso estava o Golbery. Foi aí que o conheci e tive maior contato com ele. Golbery entrou para a Escola de Estado-Maior nu- ma demonstração de seu valor. Para entrar, era preciso ter o curso de aperfeiçoamento e prestar um concurso. Mas quem, na Escola de Aperfeiçoamento, tivesse tido um resultado muito bom, entrava sem concurso. Eu e Orlando fomos dispensados, por causa da nossa clas- sificação. Por outro lado, permitia-se também que aqueles que não ti- vessem a Escola de Aperfeiçoamento entrassem através de um con- curso especial. Foi o que aconteceu com o Golbery. Foi o único que entrou naquele ano sem ter feito o curso de aperfeiçoamento. Era muito inteligente, culto e um excelente profissional.
Uma das relações que as Forças Armadas cultivam, uma das virtudes militares, é a camaradagem. A gente vai formando na Esco- la, na convivência desde o Colégio Militar, laços de amizade que per- duram ao longo da vida. Embora às vezes se passe anos sem encon- trar um companheiro, quando há um reencontro ressurge a lem- brança do passado e se aviva a camaradagem. Essa solidariedade é muito importante, nas crises e principalmente na guerra. Entre che- fes e subordinados, o comando não se exerce apenas com a lei ou o regulamento. Comanda-se também em virtude de uma série de ou- tros atributos, de ordem moral, de ascendência, de capacidade, de convivência, de um conhecimento mais íntimo, de camaradagem.
Nosso grupo primitivo era constituído por Agildo, Juracy Mame- de e eu, todos ligados por uma causa comum. Nesse grupo, eu tinha uma vinculação maior com o Agildo. Passamos quatro anos no Colé- gio Militar, três na Escola Militar, convivendo diariamente, e aí se esta- beleceu realmente um forte vínculo de amizade, embora discordásse- #
mos em várias questôes. Continuou sempre a camaradagem, e as di- vergências de idéias não foram capazes de criar uma inimizade. Como esse, com o decorrer do tempo, novos relacionamentos se formaram e perdurariam anos, numa comunhão de pensamentos e ações. Foi as- sim também minha amizade com Golbery
Qual era a literatura militar que se lia na Escola de Estado-Maior?
Era a americana. Quando começou a ligação militar com os americanos, o Brasil mandou oficiais aos Estados Unidos para fre- quentarem escolas militares americanas. Foram capitães de infanta- ria para Fort Bening, de artilharia para Fort Sill, e assim por dian- te. Os oficiais escolhidos eram os melhores alunos de várias turmas da Escola de Aperfeiçoamento. Mas só foram escolhidos oficiais que tinham terminado a Escola ou antes de mim e do Orlando, ou de- pois de nós. Por que nós não fomos? Porque éramos descendentes de alemâes, presumo. "Esses camaradas são descendentes de ale- mães, o que vão fazer nos Estados Unidos?" Não reclamamos, na compreensão dessa discriminação, embora nos parecesse injustifi- cada pelo nosso procedimento. Mais tarde, mandaram oficiais de es- tado-maior cursar a Escola de Comando e Estado-Maior em Fort Leavenworth, em Kansas. Também não fomos designados. Afinal, em 1944, quando eu servia em Porto Alegre, no Estado-Maior da 3ª Região Militar, recebi um telegrama perguntando se eu estava em boas condições de saúde para freqüentar Fort Leavenworth. Fiquei espantado: "Como é que agora, finalmente, resolveram me indicar para ir para os Estados Unidos?" Depois eu soube que um amigo meu que servia no gabinete do ministro Dutra, na hora das indica- ções, lembrou-se de mim e indicou meu nome. Meu irmão só foi al- guns anos depois. Mas por que isso? Porque havia um preconceito tolo. O Exército americano teve inúmeros oficiais de origem alemã, inclusive generais. Eisenhower é um nome alemão! O preconceito vi- nha do gabinete do ministro Dutra, mas nunca passei recibo.
Durante a guerra, esse preconceito se estendia à colônia alemã no Rio Grande do Sul?
Muito. Houve problemas por lá. Invadiram as casas dos des- cendentes de alemães, quebraram os rádios, queimaram os livros, tomaram as bicicletas, fizeram coisas incríveis. Principalmente em #
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Santa Catarina e também no Rio Grande. Com minha família não houve nada. Meu pai já havia falecido, e minha irmã, aposentada da Escola Normal de Cachoeira, dirigia um colégio vinculado à igreja lu- terana, chamado Rio Branco. Um dia apedrejaram o colégio, apesar de ser um colégio nacional, sem qualquer vinculação alemã.
Também quando se fez a FEB, nem eu nem meus irmãos fo- mos convocados ou indicados para participar. No entanto, éramos oficiais com renome dentro do Exército, tanto na artilharia quanto no estado-maior. Mas havia o preconceito por sermos de origem ale- mã. Nunca me preocupei em ter um esclarecimento. Não é vaidade não, mas eu procurava me colocar acima disso, ser superior a es- sas coisas. Eu podia ir ao gabinete do ministro e conversar com ofi- ciais colegas meus, perguntar-lhes por que meu nome não era indi- cado, criar um caso, mas não fazia isso. Eu, e meus irmãos tam- bém, sempre fomos muito independentes. Nunca fiz parte de grupos que se formavam em torno de um general. Góes Monteiro tinha um conjunto de oficiais que viviam em torno dele, que serviam a ele nas diferentes funções. Dutra tinha seu entourage, seu grupo. Cada um, com louváveis exceções, formava um grupo. Nunca fiz parte de nenhum. Tinha relações cordiais, tinha amigos, mas somente isso. Meus irmãos, a mesma coisa. Era o nosso modo de ser.
Como o senhor via as tendências ideológicas do governo e das principais lideranças militares?
Getúlio, de certo modo, foi germanófilo. Dutra foi germanófilo, Góes também. Não sei se o foram por convicção ou por oportunis- mo, já que a Alemanha estava com os melhores êxitos na guerra de 1939. Getúlio, inclusive, fez um discurso a bordo de um navio de guerra, quando a França caiu, francamente pendente para o Eixo.31 E havia a identidade das ditaduras! Mussolini de um lado, Hitler do outro, e Getúlio também tinha a sua. No fundo era oportunismo.
Em 1938 Góes era chefe do Estado-Maior do Exército e foi convidado a fazer uma visita aos Estados Unidos. Passou lá um pe- ríodo conversando com os chefes militares americanos, eles procu- rando, evidentemente, fazer um entendimento para trazer o Brasil
31 Trata-se do discurso pronunciado a bordo do encouraçado Minas Gerais em 11 de junho de 1940. #
para o lado dos Estados Unidos, oposto ao Eixo. No retorno dessa viagem, estava programada uma viagem à Europa em que a princi- pal visita seria à Alemanha. Estavam escalados para ir na comitiva do general Góes oficiais do estado-maior, o enteado do Dutra - Jo- sé Ulhoa Cintra - e eu. Feitos todos os preparativos, estávamos à espera do navio que viria da escala em Montevidéu, quando estou- rou a guerra. Automaticamente, o próprio Góes viu que não devia mais viajar. Não tinha sentido. Eu conhecia o Góes, como já relatei, desde a Revolução de 30, tive esse contato mais estreito para os pre- parativos da viagem que não houve, e voltamos a ter maior aproxi- mação mais tarde, quando eu servia no Estado-Maior das Forças Ar- madas. Conversávamos muito. Ele era um cético, desiludido com o país, desiludido com o insucesso de muitas iniciativas para a solu- ção dos problemas do Brasil.
Mas o senhorfoi aos Estados Unidos em 1944, não é?
Fui para os Estados Unidos em outubro de 44 e voltei de lá em maio de 45. Fiz dois cursos. Um de comando e estado-maior em Leavenworth, e outro de ligação com a força aérea em Key Field, Mississipi, além de estágios em outras escolas militares. Foram cur- sos interessantes, em que aprendemos muito sobre a guerra moder- na e a organização militar dos Estados Unidos. Eram cursos muito trabalhosos, feitos juntamente com oficiais do Exército americano e de alguns países da América Latina. Os oficiais americanos selecio- nados vinham do Pacífico e da Europa, onde tinham se distinguido na guerra. Faziam o curso para depois voltar para ofront.
O curso de estado-maior tinha mil alunos. Funcionava dentro de um antigo picadeiro, transformado em uma grande sala, onde tí- nhamos aulas diárias durante oito horas, inclusive aos sábados. Era um curso tático e estratégico. Quando terminava a aula à tarde, rece- bíamos com o programa do dia seguinte uma pilha de documentos, de regulamentos. E, como orientação, informavam-nos o que devia ser apenas folheado e o que devia ser lido e estudado. Não estudáva- mos tudo, por falta de tempo. Embora tivéssemos, em relação aos ofi- ciais americanos, a vantagem de já sermos oficiais de estado-maior, tí- nhamos a dificuldade do idioma, que exigia de nós, na leitura e inter- pretação dos textos, muito mais tempo do que deles. Depois do jantar, nos reuníamos em grupos de dois ou três e íamos estudar, to- mando conhecimento do material que nos fora distribuído, e assim #
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nos preparando para a jornada do dia seguinte. Começávamos pelo que nos parecia mais importante, e quando eram 10 horas da noite, estivesse onde estivesse esse estudo, eu ia dormir. No dia seguinte, durante as aulas, eram distribuídos questionários e temas a serem respondidos, geralmente em curto espaço de tempo. Mais tarde nos eram devolvidos com a adequada correção, em "USA" - "U" insufi- ciente, "S" regular e "A" muito bom.
No grupo de brasileiros que fez o curso comigo, havia oito ofi- ciais do Exército e seis ou oito da Aeronáutica. Entre eles estavam os tenentes-coronéis Inácio Rolim e Hoche Pulcherio, os majores Salm de Miranda, Adauto Esmeraldo e João Gualberto e os capi- tães Meneses Cortes e Hugo Bethlem. Fomos sozinhos. Era tempo de guerra e as famílias ficaram no Brasil. Terminado o curso de co- mando e estado-maior, tivemos uma semana de férias, com um in- verno rigorosíssimo, em Nova York e Washington. Em seguida fomos - os oficiais do Exército - para o curso de ligação com a força aé- rea em Key Field. Visitamos diversas instalações e bases, fizemos muitos vôos, inclusive de planador, e assistimos a demonstrações de emprego da aviação em diferentes missões.
O estágio de brasileiros em Leavenworth começou um pouco an- tes da guerra, quando vários generais foram fazer o curso, e depois da guerra ainda continuou. Mais adiante meu irmão Orlando, quan- do era subdiretor da Escola de Estado-Maior, também fez o curso.
Que mudanças de doutrina militar a guerra trouxe? No Brasil, pelo que o senhor disse, trocou-se a orientação francesa pela ame- ricana.
Houve muitas mudanças. As características da guerra muda- ram muito, principalmente pela evolução dos meios de combate. Pas- sou-se a ter a guerra-relâmpago, caracterizada pelo emprego de gran- de quantidade de forças blindadas e da aeronáutica. Alguns anos an- tes, surgira a doutrina de um italiano, o general Duet, da supremacia da força aérea como instrumento principal da guerra do futuro, em lugar das forças terrestres e das forças navais. As guerras do futuro seriam guerras de aviação. Seria o predomínio da aeronáutica. A avia- ção teve, realmente, uma influência muito grande, não só nas ações isoladas de bombardeio sobre as áreas de retaguarda, as áreas sensí- veis do inimigo, fábricas, indústrias bélicas, mas também no ataque às populações indefesas. Modernamente a evolução foi ainda maior, #
com o emprego da arma atômica e dos mísseis e, por fim, com a es- peculação sobre a "guerra nas estrelas". Quanto às forças terrestres, começamos com uma infantaria andando a pé, em média 24 quilôme- tros numaEtapa de marcha por dia. Depois a infantaria começou a ser transportada até quase a área de combate, passou a ser emprega- da em carros blindados. Foi uma evolução que veio do período final da guerra de 1914-18, quando já se usava a arma blindada, embora em escala reduzida, e a aviação já atuava, principalmente nas mis- sões de reconhecimento. 92>90>88>82>
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