A Espiritualidade.
No processo de auto-organização, os negros cativos estrategicamente mascararam seus costumes trazidos da África, para preservá-los, uma vez que lhes era proibida qualquer manifestação cultural, sendo do contrário passível de impiedosas punições, não raramente fatais, dos senhores.
Os Orixás, que na África estão ligados á uma região ou país, passam a ter, através da organização dos escravos, uma ligação homogênea com a população cativa. Cada Orixá agora é conhecido e cultivado por todos, tendo como modelo o ritual do culto aos Orixás Nagôs, justificando a língua Ioruba, utilizada nos terreiros brasileiros, como já foi falado.
A prática da religião de matriz africana desde sempre foi proibida e perseguida, pela Igreja Católica, assim como pelos senhores dos escravos, tendo uma justificativa para tal atitude. “As convicções religiosas dos escravos eram entretanto, colocadas a duras provas quando de sua chegada ao novo mundo, onde eram batizados obrigatoriamente ‘para salvação de sua alma’, e deviam curvar-se às doutrinas religiosas de seus mestres” (2002:23). Tal atitude, mostra a imposição da Igreja Católica, para qual não bastava a apropriação do corpo físico dos cativos, mas era necessário também o domínio da alma.
Assim como a justificativa para o tráfico e a escravidão dos africanos, argumentada pelos homens de negócios na Bahia, em 1698, citada por Verger, 2002:
“Constituíam um meio mais seguro e mais desejável de conduzir a igreja às almas dos negros, o que seria mais recomendável do que os deixar na África, onde se perderiam num paganismo degradante ou estariam ameaçados pelo perigo da sujeição herética às nações estrangeiras, para onde seriam, no mínimo, deploravelmente enviados.” (VERGER, 2002:23).
Como se tráfico e escravidão fossem justificáveis, principalmente em nome de Deus. Essa imposição da Igreja Católica durou todo o processo de escravidão e pós-escravatura quando virou caso de polícia, onde as manifestações religiosas de matriz africana eram coibidas com a prisão de seus praticantes e destruição dos terreiros, os ‘ilés’, as casas de santo. Não muito diferente da atualidade, onde os terreiros e os cultos sofrem grande discriminação por sua existência.
O sincretismo foi um elemento a mais que possibilitou ao negro preservar sua religião, conforme Verger, 2002:10: “é difícil precisar o momento exato em que este sincretismo se estabeleceu.” Há algumas discordâncias a respeito da utilização do mesmo, mas o que mais se aproxime do meu imaginário é a semelhança em algum ponto entre os santos católicos e os Orixás, sendo assim Iansã e Sta Bárbara relacionadas com ventos, raios, tempestades; Iemanjá e N.S. da Conceição duas protetoras das águas salgadas e de quem nelas transitam; Ogum e São Jorge, ambos guerreiros e habilidosos com o material de ferro e Oxalá e N. S. do Bom Fim, divindades da criação, acima deles apenas Olorun e Deus que representam o pai maior, criador do orun/céu e da aiyê/terra, e de tudo o que nela existe. O livro Mitologia dos orixás, Prandi/2001 apresenta lendas fabulosas sobre os orixás, dando-nos noção de como era a vida dessas divindades.
A religião africana, de um modo geral, foi a responsável por perpetuar muitos dos costumes africanos, nações e linguagens, explicitam o que contem no mítico-religioso. Fundamentado na mitologia e nos rituais revividos nos terreiros de santo em todas as regiões do Brasil, cada um segue a tradição da matriz cultural-religiosa que lhe corresponde, sem perder de vista a dinâmica do tempo que acompanha e transforma sociedades e culturas.
Uso como exemplo o culto dos ancestrais, que na África têm a casa maior do que de seus descendentes. Como já foi citado, no curso das transformações, este culto hoje no Brasil ficou restrito aos terreiros de santo, onde os ancestrais são cultuados em uma pequena peça, num cômodo construído próximo ao terreiro, não sendo mais enterrados seus restos mortais, mas sim alguns pertences pessoais do falecido, que foi yalorixá/mãe de santo ou babalorixá/ pai de santo, simbolicamente representados. Mas apesar destas adaptações o fundamento permanece, cultuar o fundador de um clã ou terreiro e todos os seus sucessores pós-morte.
A mudança e a adaptação sempre fizeram parte da vida do negro, desde sua chegada ao novo mundo, na intenção de resistir e preservar, não só sua vida mas também sua cultura e costumes. Essa luta hoje, cento e dezenove anos após a abolição da escravatura perdura não mais para libertar-se de correntes e açoites, mas para livrar-se das conseqüências que herdou do processo escravocrata.
1.4 Livres das Correntes, Presos à Miséria.
A abolição livrou os negros do cativeiro, mas não da ignorância, miséria e preconceitos. “O negro não é mais escravo, mas não se tornou um cidadão verdadeiramente livre e útil.”(Freitas, 1991: 64). Foram 300 anos de opressão e apropriação de suas vidas, o povo negro ao receber a ‘liberdade’ passou a sofrer as conseqüências desse período de escravidão. O simples fato de receber alforria não garantia direito a nada, nem tampouco apagava a marca de ‘escravo’ para possibilitar oportunidade de emprego ou escola, deixando a população recém-liberta à margem da sociedade, marginalizados, sendo chamados de marginais. Fato que não raramente vemos acontecer nos dias atuais, esta marginalização do negro contemporâneo e todas as suas conseqüências, são heranças que o regime escravocrata nos deixou.
Muito antes da abolição da escravatura, os negros se organizavam e se rebelavam contra o regime escravocrata. Pesquisas da Associação Brasileira de Antropologia (ABA, 1994 ) apontam que em meados de 1590 alguns africanos escravizados romperam os grilhões que os acorrentavam e fugiram para lugares de difícil acesso, organizaram-se em comunidade onde estabeleceram estrutura sócio-política que, segundo estudiosos, eram inspiradas nas formas tradicionais africanas, comprovando a origem dos quilombos no Brasil. “Derivaria de Kilombo, sociedade iniciática de jovens guerreiros Mbundu adotada pelos invasores, estes formados por gente de grupos étnicos desenraizada de suas comunidades.” (Reis, 1996:16). Na África a prática de construir refúgio já era realizada por rebelados buscando liberdade.
Atravessando séculos, os quilombos resistem e abrigam hoje, não mais os que se refugiam do regime escravocrata, mas aqueles que preservam a cultura, é a busca do direito pela terra que de alguma forma, pertencia a seus antepassados.
Moura conceitua como quilombo contemporâneo:
“Uma comunidade impreterivelmente negra, habitada por descendentes de africanos escravizados. A maioria vive de culturas de subsistência, em terra doada, comprada ou secularmente ocupada. Valoriza tradições culturais de antepassados (religiosas ou não) e as recria no presente. Possui história comum, normas de pertencimento explicitas. Consciência étnica.” (MOURA, 2004:64).
Mesmo que re-significado, os quilombos mantêm em sua essência o legado trazido da África e passado pelos seus ancestrais. O Griot, uma das figuras que caracteriza um quilombo, tem a mesma importância que tinha na África, passar a cultura por meio da oralidade aos mais jovens da comunidade.
A Constituição Federal de 1988:62 no seu artigo 68: determina: “Aos remanescentes de quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o estado emitir-lhes os títulos respectivos.” Essa determinação foi resultado da pressão dos movimentos negro, mas é uma luta constante da Fundação Cultural Palmares (FCP), interagindo com a Comissão Nacional de Articulação das Comunidades Remanescentes de Quilombos e uma representação de comunidades tituladas para fazer-se cumprir o referido artigo.
A partir das informações obtidas por Dr. Onir Araújo, advogado das famílias remanescentes de quilombos e representante do Movimento Negro Unificado, temos em Porto Alegre dois quilombos reconhecidos pela Fundação Palmares (Ministério da Cultura), e reafirmando o falava das leis, estão no aguardo de titulação. Entre estes dois, o Quilombo dos Silva é o mais polêmico, por ser o primeiro quilombo urbano em Porto Alegre a solicitar reconhecimento e titulação e por sua localização geográfica, no bairro Três Figueiras, zona nobre da Capital, o Quilombo dos Silva tem como sua principal batalhadora Rita de Cássia. O segundo quilombo reconhecido é o dos Alpes Altos da Glória, também localizado em lugar incômodo, ou seja, no principal morro do bairro Glória. Edwirges Francisca Garcia é a principal lutadora pela família Garcia.
Os dois quilombos, que já foram reconhecidos como de propriedade dos descendentes de escravos por órgãos federais competentes, enfrentam dificuldade em haver o documento que legitima a titulação. Os movimentos negros organizados denunciam essa demora como proposital pelo temor que o poder público tem em que se formalize essa espécie de reforma agrária urbana, despertando os tantos outros quilombos espalhados pelo país a fora. O fato que mais me chamou a atenção foi que nos dois quilombos temos mulheres a frente das negociações, e segundo Dr. Onir, nas duas comunidades a maioria das mulheres são chefes de família ou famílias monoparentais chefiadas por mulheres. Mas não vou me aprofundar nesta questão, pois é um tema muito amplo e polêmico e que certamente é conteúdo suficiente para um trabalho de conclusão de curso sobre este assunto exclusivamente.
Baseada no que já falei sobre as leis brasileiras, dando vistas à comunidade negra, lembro que para exercer esse papel de liderança familiar e comunitária, auto-ecoorganizaram-se. Mas o direito à terra uma das necessidades das famílias populares em geral, assim como outras políticas públicas, na educação, na cultura, na saúde, na economia, etc... Os mínimos oferecidos pelos governantes não atendem as suas necessidades básicas, assim como as leis que por muitos séculos até os dias atuais, precisam de uma constante pressão de grupos organizados na reivindicação dos direitos muitas vezes consegue uma aprovação apenas parcial. Muitas leis foram homologadas desde a chegada do africano escravizado ao Brasil até os dias atuais, na sua maioria são leis imediatistas, reguladoras, limitadas e excludentes.
Lembro algumas leis para fundamentar o que venho dizendo: Em 1850, a Lei Eusébio de Queiroz que decreta o fechamento de todos os portos do Brasil para comércio de negros, pondo assim, fim ao tráfico dos escravos, não para beneficiar a população cativa, pois isso não pôs fim á escravidão, mas para atender interesses da Inglaterra em ampliar o desenvolvimento industrial. Em 1885, a lei dos sexagenários, outro exemplo, dá liberdade aos escravos com mais de 60 anos, o que não correu de fato, pois, todos os escravos com 60 anos tiveram que indenizar seus ex-donos pela liberdade, trabalhando para ele por mais três anos, só após esse período recebiam a alforria de fato. Contudo, como poucos escravos chegavam á essa idade, e aqueles que, por ventura chegassem, já não tinham mais capacidade para o trabalho, mostrando que essa lei mais uma vez trouxe benefícios aos donos de escravos.
Em 1888 ocorreu, efetivamente, o fim da escravidão no Brasil, onde mais uma vez não estavam pensando em beneficiar a população, agora de ex escravos, mas principalmente por que os custos da escravidão tornaram-se elevados. Com isso, os senhores buscaram alternativas que possibilitassem manter a lucratividade, substituindo a escravidão pela imigração européia. Enquanto os imigrantes vieram para o Brasil com promessas de terras e outros direitos, os negros saiam de um regime de escravidão de 300 anos sem direito algum. “No Brasil, aos libertos não foram dadas nem escolas, nem terras, nem empregos. Passada a euforia da libertação, muitos ex escravos regressaram a suas fazendas, ou à fazendas vizinhas, para retomar o trabalho por baixo salário”. (Carvalho, 2002).
Após 300 anos, mais uma vez a lei veio a favor dos interesses dos senhores, atendendo apenas a uma única necessidade dos cativos, a ‘liberdade’, e nada mais. Não diferente, as leis de hoje mantêm a mesma lógica do tempo da escravidão, as leis são cumpridas parcialmente, como no caso do direito da terra para os remanescentes de quilombos, artigo 68 da constituição federal de 1988, como já foi abordado anteriormente.
Assim como, na sua totalidade através da lei 10.639 de 09 de janeiro de 2003, sancionada pelo presidente da República Luis Inácio Lula da Silva, que alterou a lei 9.394 de 20 de dezembro de 1996 que estabelecia as diretrizes e bases (LDB) da educação nacional, acrescentando dois artigos:
“Art.26-a: Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre história e cultura afro-brasileira.
§1º. O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da historia da África e dos africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro das áreas social, econômica e política, pertinentes á história do Brasil.
§2º. Os conteúdos referentes á história e cultura afro-brasileira serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de educação artística, de literatura e história brasileira.
Art.79-b. O calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como “dia nacional da consciência negra.” (Moura, 2004:72)
A aprovação da lei foi um dos maiores bens que o povo negro pôde ter, o acesso parte de sua verdadeira história. A comunidade negra vibrou, pois a possibilidade de mostrar para as crianças e adolescentes o quanto é rica a cultura negra e sua importância na formação sócio-histórica da nação, conhecer os heróis e líderes negros, ter a oportunidade de desconstruir o errôneo e negativo conceito sobre a cultura negra, reforçado por uma sociedade ainda discriminatória e preconceituosa.
Mas quatro anos se passaram e as ações relacionadas à lei são modestas, pois esbarram em um problema que está inviabilizando o cumprimento das novas diretrizes na maioria das escolas, a falta de material humano e didático, falta de profissionais capacitados. É esta a realidade enfrentada pela estrutura educacional em nosso país, que não consegue dar conta de uma grade curricular tradicional, quanto mais agregar conteúdos novos que não fazem parte da formação dos profissionais.
Constata-se que uma lei foi aprovada para beneficiar a população negra, mas ao mesmo tempo encontra dificuldades em sua implantação pois, o sistema educacional brasileiro é ineficiente para atender o que já estava posto, menos ainda para uma nova proposta que exige uma reestruturação educacional e pedagógica. Detenho-me então, a falar nas leis, ou melhor, na dificuldade do cumprimento das leis que poderia beneficiar toda a comunidade negra, por estar me referindo especificamente à esta comunidade neste sub-capítulo. Percebo que a desigualdade social, cultural, econômica e a falta de políticas públicas, que possam dar conta das demandas da população vulnerável, atingem não somente á comunidade negra.
Nesse movimento dialógico entre o negro e sua historicidade e a sociedade que evita aceitá-lo, surge a família negra na contemporaneidade, carregada de dificuldades que se iniciaram na escravidão, mas que, em contrapartida traz consigo muitas potencialidades e possibilidades, as quais atuam como agentes transformadores. Neste contexto e através dessas dificuldades, as famílias afro-descendentes vão auto-ecoorganizando-se, utilizando no dia-a-dia algumas estratégias para obter um complemento na renda de casa, ou até mesmo a própria renda da qual provém o sustento da família como, vender flores, recolher e vender materiais recicláveis, cuidar de crianças em casa, entre outras atividades informais. Permitindo assim, novas formas de organização pessoal e familiar, adaptando-se e inserindo-se em uma sociedade multi-étnica, sem perder suas características étnico-culturais. Sendo uma das principais características, o poder que a mulher exerce sobre sua família, um fato muito aceitável nas novas configurações familiares da contemporaneidade, mas muito diferente de outros modelos familiares presentes na evolução histórica da família.
Culturalmente a família negra é comandada nos limites domiciliares pela mulher, independente de o marido ser ou não provedor das necessidades materiais da família. E esta cultura vem de berço africano, onde mesmo antes de os negros serem arrancados de sua terra mãe, a mulher era a figura agregadora e reverenciada de maneira a quase ser endeusada, por deter o poder de prover a vida. Este fato também exemplifica a resistência da cultura negra que, mesmo com o passar do tempo e mudanças das configurações familiares mantém essa característica, na maioria das famílias negras, ando a presença da monoparentalidade feminina.
1.5 Transformações Históricas de Modelos de Família.
A família é considerada a instituição social mais antiga, “mas isso não basta para situá-la como agrupamento humano no contexto histórico-evolutivo do processo civilizatório.” (Osório,1996). A família é uma instituição flexível e variável, que através dos tempos assume formas e mecanismos diferentes uma das outras, dependendo as épocas históricas além dos fatores sócio-políticos, econômicos e religiosos, dentro da evolução de uma cultura. Para isso apresento neste sub-capítulo as mais significativas formas que a família brasileira adotou através dos tempos, transformações que considero pertinente enunciá-las brevemente, para um melhor entendimento da evolução da estrutura familiar, já que esta transforma-se a cada século, acompanhando a evolução do mundo, em uma relação recursiva14. (Morin, 2002)
Durante o século XVII, o Brasil abrigava a família patriarcal, oriunda principalmente de Portugal e Espanha. Numerosa na sua constituição, envolvia sob a tutela do patriarca a esposa, os filhos, os irmãos, os sobrinhos, e também os criados e agregados. Justificando o significado da palavra família, como já foi citado. A família patriarcal tem como figura principal e absoluta o pai, o patriarca, senhor todo poderoso, dono de tudo e responsável por todos que vivem sob seu teto, tendo sobre eles o direito da vida e da morte. A dinâmica estabelecida pela família patriarcal era privilegiada pelo público, não desfrutava da privacidade, tendo no seu cotidiano muitas pessoas envolvidas. “A forma como eram estabelecidas as relações preponderava no convívio social.” (Gomes, 2005:74). Não havendo espaço físico para o isolamento, os aposentos da casa eram compartilhados entre adultos, crianças, criados e etc, até mesmo as ‘intimidades’ dos casais.
Já no século XVIII, forma-se uma nova organização familiar, mesmo mantendo a concepção de família patriarcal, ou seja: pai, mãe, filhos de um único casamento, onde o homem lidera e sustenta sua família, e a ele cabem as mais diversas decisões, ficando sob a responsabilidade da mulher a educação dos filhos e o apoio ao marido, devendo ser ‘boa esposa’ e ‘boa mãe’. (Neder, 2004:31). É neste século que surge a casa moderna, que tem sua estrutura física alterada, onde as paredes internas servem como divisória para a intimidade de todos que ali residem. Pois ao contrário da família patriarcal que vivia na grande coletividade, sem o experimento de viver só, a família nuclear coloca a sociedade á distância, instituindo regras para ela e para suas famílias. A família passa a priorizar o núcleo familiar. Para Gomes (2005), “inicia-se então o processo de privacidade familiar. A casa começa a ser reestruturada em função da ‘nova preocupação de defesa do mundo’. É a casa moderna, assegurando a independência dos cômodos. Nasce a intimidade, a discrição e o isolamento.” (Gomes, 2005:74).
A autora pontua não só a transformação da estrutura física da casa, mas também a transformação de seus habitantes, que a partir da reestruturação, incorpora novos elementos, possibilitando a morfogênese familiar. A nova constituição interage com o meio do qual é produto e produtor, estabelecendo assim, uma relação de recursividade (Morin, 2000), e através desta interação é que a família nuclear vai acompanhando as transformações da sociedade e auto-ecoorganizando-se. Apesar de a família nuclear ainda ser o modelo padrão de família, não é o único na sociedade brasileira, este modelo cada vez mais abre espaços para novas configurações familiares.
Século XX, palco em que atua a família contemporânea, que se permite organizar a família de forma diferente dos modelos já existentes. A família contemporânea reestrutura papéis na sua organização, não se limitando ao modelo tradicional de pai, mãe e filhos, aqui se abrem possibilidades para construir uma organização autônoma, dependente de sua realidade econômica, cultural e política, em um processo auto-eco-organizacional, (Morin, 2000). As mudanças se fazem necessárias para a sobrevivência e evolução da família.
Quando falamos de família, imediatamente projetamos a imagem que temos registrada em nosso inconsciente, ou seja, visualizamos um pai, uma mãe e filhos. Apesar de ainda tomarmos este modelo como padrão, neste século ele não é único. O surgimento de novas organizações familiares refletem as mudanças que ocorrem na sociedade, “gerando uma flexibilidade das relações, que pode incluir ou excluir membros sem descaracterizar a organização familiar.” (Gomes, 2005). Nesta dialógica de inclusão/exclusão, novos arranjos familiares surgem, como se fosse um grande jogo de quebra-cabeça, onde cada indivíduo tem a possibilidade de montar sua família da forma que desejar, atendendo sua realidade. Com isso surgem na sociedade contemporânea múltiplas formas de organização familiar, pontuo algumas que me parecem melhor expressar esse fenômeno na atualidade.
Cito a família nuclear e sua importância nesse processo transitório, pois foi este modelo de família que abriu espaço para as novas configurações familiares. Foi no modelo nuclear que surgiu o divórcio e as famílias recasadas, iniciando uma nova configuração familiar. Na dialógica de inclusão/exclusão é contemplada a entrada de padrasto/madrasta na família, em substituição de pai e mãe, além dos filhos do novo membro da família; as famílias de homossexuais, que vivem em união estável; famílias monoparentais constituídas por apenas pai ou mãe com seus filhos, sendo a última a mais comum de ser encontrada nas configurações familiares atuais.
Foi então, exatamente esta família que mais me chamou atenção no campo de estágio, na verdade foi a mulher que chefia a família monoparental que despertou meu interesse pelo tema. A compreensão de como se organiza uma família monoparental feminina é de fundamental importância para conhecer e compreender essa mulher, que abordarei no próximo capítulo. Que para ilustrar, introduzirei no corpo deste trabalho alguns relatos previamente autorizados pelas mulheres chefes de famílias e as de famílias monoparentais chefiadas por mulheres, que participaram do grupo, realizado durante meu estágio na Sociedade de Ação Social Odomode15, no qual os nomes das mulheres foram substituído por nomes de país e cidades africanas.
2. Monoparental e Também Mulher.
No capítulo anterior abordei a evolução organizacional da família e suas múltiplas formas que adotou durante os séculos. Retratei a família negra desde a África até os dias atuais, onde sua organização, mesmo mantendo as características étnicas, culturais, resiste a um sistema escravocrata. Os modelos de família patriarcal, nuclear e contemporânea foram abordados também com o propósito de conhecer mais a dinâmica estabelecida por cada modelo familiar em sua época, até chegar às novas configurações, onde elegi, para dar maior visibilidade neste trabalho, a família monoparental chefiada por mulheres. Que segundo o IBGE, o número de familias monoparentais chefiadas por mulheres no Brasil, são 26,4%16.
Mas convém esclarecer a confusão em torno da mulher chefe de família e família monoparental chefiada por mulher. Segundo Gomes:
“As chefes de família nem sempre são monoparentais. Destaque para essa organização é o fato de serem essas mulheres responsáveis economicamente pelo sustento do lar, ao passo que a monoparentalidade se constitui a partir da organização familiar. Mas as mulheres das famílias monoparentais também recebem uma sobrecarga nos seus papéis, pois, são chefes de famílias.” (2005:86).
Esta é uma confusão comum e compreensível, elucidada pela autora, pois é um fenômeno recente no Brasil, só a partir da década de 70 que a monoparentalidade, através do movimento feminista, torna-se visível. Desta forma mostrando a realidade dessas mulheres que, por serem chefes de família, sem ter com quem dividir as responsabilidades, muitas vezes não dão conta de suprir as necessidades demandadas pelos filhos e seu lar. Lembrando ainda que este modelo anteriormente já era experimentado pela situação de viuvez, diferente da atualidade em que monoparentalidade é, também, uma opção pessoal.
Entretanto, a mulher chefe de família pode ser monoparental, se não contar com o convívio do cônjuge, seguindo o exemplo da viuvez. Mas normalmente ela tem o cônjuge a seu lado, mesmo assim é ela a responsável pela economia da casa, onde o marido recebe um salário menor do que o dela, ou nenhum. Desta forma deixa de ser uma família monoparental e passa a ser considerada uma família chefiada por mulher.
Mas como chefiar uma família, atender a tudo o que ela necessita, sem atender às suas próprias necessidades? Sabe-se que a constituição de uma família monoparental chefiada por mulher, independe da condição social, raça, cor, crença, etnia... No entanto, a monoparentalidade feminina vinculada à pobreza e à etnia “são as que apresentam menores condições de oferecer cuidados básicos para seus filhos.” (Vitale, 2002:51). Isso porque apesar de não haver critérios para uma mulher ser chefe de família monoparental, há fatores que dificultam e fazem a diferença na sobrevivência e organização familiar, pois o fato de ser mulher demanda menor rendimento que o homem e se tratando de ser mulher, negra e pobre, os rendimentos pela falta de recursos econômicos, sociais e culturais para prover sua prole.
E como surgiu a mulher chefe de família e a família monoparental chefiada por mulher?
É difícil precisar o surgimento das famílias monoparentais chefiadas por mulheres ou das mulheres chefes de família, mas creio que, de vários modos e de acordo com a história da cada povo. No entanto, quero me permitir usar como exemplo a mulher negra, que começou a desenhar esse modelo familiar principalmente no período pós-escravatura. Com poucas alternativas para sobreviver, a comunidade liberta auto-eco-organizou-se. (Morin, 2000), tiveram que cuidar de si para cuidar dos seus filhos a partir do que dispunham no meio, sendo assim, alguns permaneceram trabalhando para seus antigos donos, em troca de casa e de comida ou por um salário insignificante, e outros preferiram arriscar a sorte por uma oportunidade na cidade grande, sendo que o que sabiam fazer, principalmente os homens, estava relacionado ao trabalho braçal. Não sabiam, em sua maioria, nem ler nem escrever; não tinha qualificação para o trabalho em indústrias ou no comércio, além do fator de que muitos dos postos de trabalho que poderiam ocupar já havia sido preenchido por imigrantes europeus. Justo para o povo que tem seu trabalho, seu sangue, seu suor e lágrimas impregnados na formação e desenvolvimento do Brasil colônia e império.
Como uma das poucas alternativas de sobrevivência para o povo negro, agora liberto, restou o trabalho das mulheres, que tinham mais facilidade em consegui-los por conta das atividades disponíveis para esse povo desqualificado e de capacidade inferior, como domésticas, lavadeiras, amas, cozinheiras, faxineiras, etc. Dessa forma, eram as mulheres negras que mantinham a subsistência de suas famílias com seu trabalho. Enquanto alguns homens trabalhavam e se inseriam no mercado informal realizando biscates, outros nem como biscateiros conseguiam trabalhar, e devido à ociosidade e baixa auto-estima17, acabavam se entregando ao jogo, à bebida e muitas vezes, abandonando a família. Como afirma Silveira e Mello:
Ao iniciar o século XX iremos encontrar as mulheres negras geralmente na condição de mantenedoras da família, já que o homem negro era empurrado em massa para o desemprego e a marginalidade em um mercado de trabalho ainda restrito e no qual os trabalhadores brancos imigrantes tinham larga preferência.Nessas condições o emprego típico da mulher negra foram os chamados serviços domésticos, reservados pela elite e pela classe média para as negras, numa explícita e ainda continuada herança do período escravista. (1996:30)
Nesta citação, podemos perceber que já no período pós-escravatura encontramos a mulher chefe de família e família monoparental chefiada por mulher, que dadas as circunstâncias, não lhes restava outra alternativa se não a de assumir sua família. Hoje, esse movimento feminino perdura com mais força e visibilidade, no qual a mulher, independente de qual cultura pertence, assume sua prole no cuidado e no sustento. Reconhecida como família monoparental na Constituição Federam de 1988, no art. 226 parágrafo 4º cita: “entende-se em como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.” Isto permite-nos constatar o respaldo do reconhecimento de que em ambos os casos, mulher chefe de família e família monoparental chefiada por mulher, são de fato consideradas famílias traz a constituição federal. Isso permite-nos constatar que desde o período pós-escravatura até os dias atuais, essa mulher muda de estratégias quantas vezes for necessário para se auto-eco-organizar e assim dar canta de sua família.
“Eu trabalho em 3 casas; em 2 eu faço limpeza e lavo roupa na outra faço a comida, e ainda tenho uns bicos que faço no fim de semana. Não tenho medo de trabalhar, tenho medo é que falte comida pros meus filhos.” (Mali, 51 anos, 3 filhos e dois netos).
O extrato acima deixa evidente que essas mulheres são fortes o suficiente para lutar pela sobrevivência familiar e ao mesmo tempo, fragilizada como mulher, sem identidade feminina, sem auto-reconhecimento nem tempo para simplesmente ser Mulher. Seu tempo integral é absorvido por uma dupla jornada de trabalho.
Essas mulheres, ao interagir com o meio do qual são produto e produtoras estabelecendo uma relação de recursividade (Morin, 2000), não encontram espaço para visualizar suas potencialidades e nem desenvolver suas possibilidades, e mesmo assim, auto-ecoorganizam-se buscando a autonomia18 nas dependências deste meio e com isso constroem sua organização dentro da dialógica indivíduo/sociedade, relação complementar, antagônica e concorrente (Morin, 2000).
Como esperar dessas mulheres o cuidado de si mesmas para poderem cuidar dos filhos se, culturalmente, apenas estão reproduzindo aquilo que provavelmente já vivenciaram? Ou seja, suas mães também não tinham tempo para si. É buscando nas relações e interações com a comunidade, com amigos, com instituições, com a sociedade... na qual estáo inseridas, as oportunidades de mudança, sendo assim viabilizando a auto-ecoorganização um espaço de cuidar de si para depois cuidar do outro. com isso, tem a oportunidade de não reproduzir o que já vivenciou e não quer repetir, como consta na fala abaixo:
As vezes fico tão desesperada que fico pensando como é difícil ser mãe, a gente nunca sabe quando está acertando. Agora é tudo moderno, não pode mais bater, tem que conversar. No meu tempo de criança não tinha conversa, era pau mesmo. Agora tu conversa e não adianta nada, acho que não sei conversar. (Guiné, 37 anos, 5 filhos).
Essa fala denota a auto-ecoorganização, pois se ela simplesmente reproduzisse, usando a autoridade como sua mãe, com a certeza de que esta é a única forma e não o diálogo com o caminho para se dar conta das questões dos filhos ela teria cristalizado suas ações e permaneceria ó reproduzindo, sem encontrar outra forma de organizar família. Com isso, percebo que é na dialógica da ordem / desordem / organização que a mulher chefe de família ou a família monoparental chefiada por mulher, tem que buscar sua auto-organização para serem cuidadoras e cuidadas, se alimentando de novas possibilidades extraídas da interação com o meio, buscando mudanças para conquistar transformações pessoais e depois as familiares. É fundamental que ocorra a auto-organização que terão condições de viabilizar a organização familiar.
Conforme Giddens Aput Vitale, 2002:60: “Entre todas as mudanças que estão se dando no mundo nenhuma é mais importante do que aquelas que acontecem em nossas vidas pessoais, na sexualidade, nos relacionamentos, no casamento e na família. É uma revolução que avança de uma maneira desigual em diferentes regiões e culturas, encontrando muitas resistências”. O autor nos traz a importância e dificuldades das mudanças pessoais, por que elas não dependem simplesmente da vontade, mas envolvem também o meio e a cultura em que o individuo está inserido. Assim, é necessário que essas mulheres saiam da homeostase não permaneçam sempre da mesma forma e que aceitem as mudanças, mesmo que enfrentando desafios e limites, se auto-eco-organizando.
Neste contexto fui estimulada a abordar o tema “Mulher” em meu projeto de intervenção. Com o objetivo de buscar novos elementos para fortalecê-las como mulher, sujeito independente de suas outras funções e papéis. Direcionando-as para que descubram em sua espiritualidade, corporalidade e ancestralidade a transformação e autoconhecimento através de um grupo. Oferecendo um espaço onde possam experimentar a convivência social e consigo mesma, em uma atmosfera com acolhida feminina, propícia para expressar suas emoções, aflições, potenciais em, além disso, exercitar seus limites. Neste sentido, Faleiros aponta “ O “Fortalecimento da Identidade” e cita:
“Identidade é uma direção estratégica no empowernwnt que contempla as relações simbólico culturais, o imaginário individual e social que caracterizam o senso do Eu (identidade) e a concepção que os outros atores sociais têm deste Eu (identificação). A autonomia contempla as relações da família, solidariedade, trabalho. A cidadania contempla as relações sujeito-Estado” (FALEIROS, 2003:64).
Relacionando os dizeres do autor com a prática em campo de estágio, busquei através dos encontros do grupo fortalecer a identidade das mulheres, tanto no que se refere ao Eu, identidade, como me percebo; quanto ao Eu, identificação, como sou percebida; através das reflexões grupais que aconteciam nos encontros, numa perspectiva de que a identidade é construída na alteridade pessoal e social (Faleiros, 2003). Para exemplificar estas ações, cito o fato de em uma destas reflexões, termos feito uma atividade na qual cada uma falava o que percebia em si. Quando chegou a vez de Mali fazer seu relato, não conseguia achar as palavras, pois é muito tímida, quase sempre calada mas atenta as coisas do grupo. Luanda, muito extrovertida disse:
“a Mali é muito quieta, não gosta de falar, mas eu que sempre tive muito próxima dela, percebi o quanto ela mudou. Antes dos encontros do grupo, ela só andava de casa pro serviço e do serviço pra casa, tudo o que fazia era pensando nos filhos e nos netos; não se reunia com as vizinhas, nem nas rodas de chimarrão e nem no pátio do condomínio, jamais ia a uma festinha de aniversário. De repente ela começou a freqüentar as rodas de chimarrão, é verdade, pouco falava, mas estava ali com a gente. Quando convido ela pra ir no centro, se ela pode, ela vai. Se é convidada pra alguma festinha, ela vai; ela está muito diferente; ela sorri, coisa que antes não fazia; até a fisionomia dela remoçou.
Através deste relato percebo a auto-ecoorganização de Mali, o fortalecimento da sua autonomia e de sua identidade, como mulher, sujeito de direitos e não só de deveres. Mali percebeu que as outras funções que ocupa em sua vida, se faz necessário para a sobrevivência de sua família, mas agora se reconhece como mulher e como tal tem seu espaço.
Dostları ilə paylaş: |