Meus pais. I know he is a son of a bitch



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Não devia ser mais de duas horas da tarde quando a amante de Seabra saiu de casa. Para evitar surpresas deste tipo, Seabra colocara um homem de sua confiança, discretamente vigiando todos os movimentos da casa. O sol estava forte e o homem viu quando a mulher, vestida num brilhante vestido de seda verde, pintada e perfumada, abriu o portão e foi caminhando despreocupadamente pela rua. Não fosse pela elegância com que se apresentava, o homem diria que ela apenas dese­java fazer um passeio descompromissado, talvez relaxando das atribulações que experimentara recentemente. Mas a hora, 0 calor e o sol também não eram indicadores propícios a um passeio pela calçada. Por isto, o homem decidiu segui-la sem que ela percebesse. De qualquer modo, a mulher caminhava sem se preocupar com nada, como se não esperasse ser seguida ou estivesse sendo vigiada.

O homem viu que ela dobrava a esquina e que uma lufada de vento inesperado quase lhe tirava o chapéu. Ela segurou o chapéu com a mão e continuou caminhando até desaparecer. 0 homem não se apressou, mesmo quando um automóvel em meia marcha atravessou a rua, a capota de lona preta levantada e trafegando quase no meio-fio. Quando se deu conta, ao chegar na rua em que ela havia dobrado, ela tinha desaparecido e uma nuvem de poeira era o único sinal deixado pelo automóvel que aumentara a velocidade. Ele não podia dizer se ela realmente embarcara no automóvel ou entrara em uma das casas. A rua estava deserta e ele se encostou num poste, atônito e preocupa­do, sem saber o que dizer para o seu chefe sobre o que acabara de acontecer. Estava ali, o corpo escorado no poste e a cabeça matutando desculpas e até articulando uma mentira, quando outro carro, a capota também levantada, surgiu como que do nada e lentamente estacionou quase aos seus pés. Assustado, levou a mão ao revólver que trazia carregado dentro do paletó, mas um homem colocou a cabeça para fora e gritou.

— Calma, companheiro. Nada de besteiras.

Ele ficou congelado, piscando os olhos para o homem que continuava olhando da janela do automóvel.

— Suba — ordenou o homem, abrindo a porta do carro. Ele atendeu sem discutir e sentou-se ao lado do homem.

Não havia mais ninguém no carro, além do homem que lhe tinha falado e que guiava o carro. O veículo arrancou levan­tando poeira e seguiram um itinerário que parecia preestabelecido. Mas ele não podia ter certeza de nada porque as coisas estavam acontecendo de maneira inesperada.

O carro rodou durante algum tempo até que ele criou coragem e virou-se para o chofer.

— Para onde estamos indo?

O chofer olhou para ele e deu um sorriso enrugado. Era forte e o rosto de carnes secas e pele rugosa parecia de um lutador de boxe porque o nariz era quebrado e torto.

— Você vai logo ver — disse o chofer.

O homem estava começando a ficar irritado.

— Que diabo está acontecendo? Quem é você?

O chofer segurou o guidão com uma das mãos e com a outra retirou um papel do bolso do paletó. Mostrou o papel ao homem de Seabra.

— Eu não sei ler — disse o homem com humildade.

— É um documento.

— Estou vendo, e daí?

— Sou oficial do exército. Pena que não possas ler!

O homem deu de ombros e não pareceu nem um pouco impressionado com o fato do chofer ser um oficial do exército.

— Não queres saber o que estou fazendo?

— Não me importo. Talvez estejas me prendendo.

— Por que iria eu te prender? Você não é um dos homens de confiança do Ministro Seabra?

O homem mostrou-se assustado com a pergunta.

— Bem. . . quer dizer. . . — gaguejou o homem.

— É, ou não é? — perguntou o oficial do exército.

— Sou amigo do Dr. Seabra. . .

— E estavas vigiando a menina dele, não é certo? O outro não respondeu e parecia envergonhado.

— Belo trabalho estavas fazendo — recriminou o oficial do exército. — De vias vigiar a mulher e deixas que ela escape.

— Ela saiu tão rápida, não esperava. . . — balbuciou o homem. — Quando virei a esquina ela tinha sumido.

— Apanhou um carro.

— Foi o que eu pensei.

— E ficastes encostado no poste como um cachorro velho. O homem não gostou nada da comparação e fechou a cara.

— Afinal, o que é que o senhor pretende comigo? — Perguntou o homem.

O oficial do exército fez o carro entrar numa rua sem reduzir a velocidade. Estava chegando ao centro da cidade, o movimento de veículos era bem maior mas não impressionava o oficial que continuava a manter uma velocidade alta no veículo.

— Eu também estou encarregado de vigiar a tal mulher

— disse o oficial. — Mas não estou preocupado em saber se ela é fiel ou não ao teu patrão.

O homem tossiu porque a garganta estava irritada pela poeira que o carro levantava.

— É uma mulher bonita, não?

O homem olhou para o oficial do exército com ódio.

— Não cabe a mim saber se a mulher de meu amigo é bonita ou feia.

— Você não é daqui do Rio, estou certo?

— Não, senhor, sou pernambucano.

— Vocês sabem bastante a respeito desse negócio de honra.

— Todo homem que se preza deve saber a respeito de honra.

O oficial começou a reduzir a marcha do carro porque entravam na Avenida Central e o movimento era muito grande.

— Esse negócio de honra, meu caro, não é coisa lá muito especial aqui na Capital Federal. Todos prevaricam e ser hon­rado parece ser exatamente prevaricar o mais possível.

O capanga de Seabra não entendeu nada do que o oficial estava falando.

A larga avenida, movimentada, recebia uma brisa vinda do lado do mar, refrescando as senhoras elegantes e as moci­nhas sorridentes que atravessavam na frente do carro. Os cha­péus dominavam calçadas e janelas. O carro entrou lentamente na Rua 7 de Setembro, desviando-se dos carros puxados a mão carregados de caixas, e dirigiu-se para os lados da Praça Tiradentes.

Parou em frente do que pareceu ao homem um hotel de luxo. O oficial do exército abriu a porta.

— Pode saltar aqui.

— Por quê?

— Está vendo este hotel? Ela está lá dentro. Faz o teu serviço. Entra com cautela, de preferência pelos fundos.

O oficial deu mais algumas instruções, precisando o exato local onde ele a encontraria. O homem entrou por um beco estreito repleto de latas de lixo e desapareceu de vista. A porta do carro foi fechada e o oficial conduziu o veículo em meia velocidade.

O homem chegou aos fundos do hotel e viu que poderia escolher duas portas por onde entrar. Uma, pelo que pode observar, levava à cozinha do restaurante que funcionava no andar térreo, e a outra porta levava para a recepção do hotel para as escadas que conduziam aos andares superiores e ao porão. Poderia ter subido pelo elevador, mas não gostava dessas geringonças modernas e decidiu-se pelas escadas. Procurou fazer como o oficial do exército lhe informara. Era o que podia fazer frente às circunstâncias estranhas que lhe tinham acontecido, perdera de vista a mulher que devia vigiar e um desconhecido lhe aparecera do nada com vontade de ajudar. Não estava certo de se tratar de alguma ajuda e por isto não tirava a mão do revólver, caso se tratasse de alguma armadilha. Não sabia ler, nunca aprendera a decifrar aqueles sinais sobre papel, mas al­guma coisa lhe dizia para levar a sério o documento que o outro havia lhe mostrado. E como era um homem simples, estava acostumado a levar a sério os homens das Forças Armadas. Ainda assim apertava a arma com a mão suada e ia reconhe­cendo o caminho com facilidade porque o outro tinha sido bas­tante detalhado. No final do corredor, exatamente no andar indicado, ele empurrou de leve a porta, o suficiente para fazer uma fina fresta por onde pudesse observar. Não havia luz no interior do quarto mas o sol estava forte e entrava mesmo com as cortinas fechadas.

Mais tarde, na presença de Seabra, com um ar de vitória profissional, pois omitiu prudentemente a ajuda recebida do oficial do exército, ele contou o que tinha visto.

Seabra ouvia com desagrado, a mulher estava se mostran­do perigosa. Malditas mulheres que não sabiam sossegar com um só homem.

— Ela não estava inteiramente despida, Dr. Seabra. Tinha tirado apenas o vestido, o vestido verde. Usava ainda as roupas de baixo e começava a tirar as meias de seda.

Enquanto falava não tirava os olhos do chefe, sabia que poderia desagradá-lo se fosse inteiramente explícito. Mas não podia deixar de imaginar aquela mulher de corpo atraente em suas roupas brancas e rendadas, despindo as meias como se tirasse a casca de alguma fruta. E a roupa branca também o excitava, eram roupas proibidas à visão dos homens. Como sua mãe, a mulher com quem ele vivia jamais colocava aquelas roupas para secar, quando as lavava, enquanto ele estivesse em casa e pudesse olhá-las. Mas aquela mulher não tinha esses escrúpulos, mostrava-se para o seu amante com uma inocência que ele sentia cheia de perigos. Seabra sacudia a cabeça, entre contrito, uma postura para manter a autoridade frente ao subalterno, e a raiva, atitude mais adequada para aquilo que estava ouvindo.

— Ela devia ter acabado de chegar — disse o homem — Estavam falando, mais ela do que ele. Ela dizia alguma coisa sobre o perigo que estava passando para se encontrar com ele.

— E vistes bem quem era o cabra?

— Muito bem, ele estava de pé, olhando para a dona se despir, bem de frente para a porta por onde eu olhava. Pelo sotaque é gringo, com certeza.

— Ele não é muito alto. . .

— Nem parece um gringo, tem cabelos escuros mas a fala é de gringo, sim senhor.

— Então é ele, Percival Farquhar, o filho da puta.

— Quem é ele, doutor?

— Não interessa.

— Eu só estava pensando que o senhor queria que eu completasse o serviço. Um corretivo no gringo, uns sopapos com luva inglesa.

— Tu está maluco, homem. Não sabes realmente quem é esse filho da puta.

— Pra mim é um cabra igual aos outros, não é porque é gringo que vai ser diferente.

— Mas este é diferente, é poderoso.

— Poderoso? E como foi que eu pude chegar perto dele, observar tudo sem nenhum problema?

— É isto o que eu estou achando estranho.

— Ele estava sozinho com ela, não tinha mais ninguém. Nenhum capanga, nenhum guarda-costas.

— Acho que é o estilo dele, pensa que ninguém teria a coragem de tocá-lo.

— Se o doutor quiser, eu vou lá e acerto as contas.

— Não, eu já sei o que precisava saber. Agora é preciso tirar de circulação aquela mulherzinha sacana. Eu não gosto de putas.

O homem abriu a boca surpreso com a explosão de Seabra.

— É uma boa puta, mesmo — reafirmou Seabra. — se não tomarmos providências ela vai acabar me prejudicando.

Seabra levantou-se e bateu nas costas do homem uns tapinhas afáveis.

— Fizeste um bom trabalho, compadre. O homem sorriu.

— Ela nem desconfiou.

— Gostei de ver.

— Ela saiu de casa sem o menor cuidado. Como se fosse dona do próprio nariz. Nem olhou para trás.

Seabra, o olhar perdido, caminhava com as mãos soltas, respirando forte.

— É o que ela pensa, que é dona do próprio nariz. Mu­lherzinha danada.

— É uma moça muito bonita, doutor — disse o homem.

Seabra gostou do elogio.

— Danada de bonita, mas perigosa.

No outro dia, pela manhã, Seabra entrou no Catete para uma audiência de rotina com o presidente. Não trazia muitas coisas para discutir, dois projetos menores para o Rio Grande do Sul e novos detalhes sobre a visita presidencial à Bahia.

O Marechal Hermes o recebeu com cordialidade mas havia qualquer coisa sombria no ar. Logo à entrada, Seabra viu o Coronel Agostinho conversando animadamente com um grupo de políticos de São Paulo. Ao ver Seabra, afastou-se do grupo e veio receber o ministro com um sorriso dissimulador no rosto. Seabra cada vez gostava menos daquele militar petulante de bigodinho engomado e ares de sumidade européia. A farda en­gomada também lhe irritava por não disfarçar a magreza do coronel. Seabra detestava homens magros. O Coronel Agostinho era suficientemente cínico para ignorar a crescente animosidade da parte do ministro.

— Bom dia, senhor ministro — disse o coronel, esten­dendo a mão para Seabra.

Ele não correspondeu ao gesto e o coronel ficou com a mão à espera, sem deixar de sorrir.

— O ministro está aborrecido com alguma coisa?

— Não é da vossa conta, senhor coronel. São problemas pessoais.

— Queira desculpar-me, não pretendia. . .

— Ora, não me venha com frioleiras, Agostinho.

O coronel deixou de sorrir, Seabra tinha ido longe demais.

— Senhor ministro, o presidente ontem me deu ordens diretas para investigar uma suposta conspiração em torno de Vossa Excelência.

— Conspiração?

— É o que o presidente foi informado.

Seabra olhou para o coronel como se quisesse pular o pescoço dele.

— Não se meta onde não deve, coronel.

Foram ordens do presidente, senhor ministro. Só estou pedindo que Vossa Excelência seja compreensivo e coopere.

— Só tenho a lhe dizer o seguinte: não se imiscua na vida dos outros ou lhe farei engolir a gravata pelo cu.

— O senhor não necessita elevar a voz nem se tornar grosseiro, senhor ministro. Estou lhe falando como um cava­lheiro e exijo o mesmo tratamento.

— O que é que está acontecendo, coronel? Seus patrões mudaram de tática? Estão com medo?

— Não sei o que o senhor quer dizer com isto! Seabra deu uma risada tão forte que todos voltaram-se para observar os dois que conversavam na ante-sala do presidente.

— Não sabe? E sou eu que vou saber? Pois bem, posso dar algumas pistas para a tua investigação. Há um grupo eco­nômico de origem norte-americana que deu seu apoio à oposição nas últimas eleições e perdeu. Este grupo quer voltar a ter in­fluências no governo e tentou penetrar através de meu minis­tério que por acaso regula a maior parte dos interesses desse grupo. Você está me seguindo?

O coronel sacudiu a cabeça, embora ouvir tudo aquilo lhe irritasse.

— Pois bem — prosseguiu Seabra —, esse grupo tentou bater forte mas a minha tempera é das boas e não machuca assim tão facilmente. Eles se deram mal comigo, embora já tenham colocado um lacaio deles bem ao lado do presidente.

O Coronel Agostinho estremeceu.

— Ao lado do presidente? — Agostinho fez-se incrédulo.

— Exatamente, um sabujo deles está ao lado do presi­dente. O senhor deveria investigar para saber quem é. Creio que não teria grandes dificuldades em saber a identidade do canalha.

O coronel cofiou os bigodes finos.

— Senhor ministro, gostaria de lhe fazer uma pergunta.

— Faça, e logo, tenho de falar com o presidente.

— O senhor considera os interesses deste grupo econômi­co norte-americano lesivos aos interesses da nação?

Seabra pensou por alguns segundos.

— O senhor quer saber de uma verdade crua, coronel. Eu estou cagando solenemente para o fato dos interesses dos gringos serem lesivos ou não aos chamados interesses nacionais. O que eu acho é que esses gringos foram petulantes e tentaram fazer uma grossa sacanagem comigo, e inspirados eu sei exatamente por quem.

— Por quem, o senhor poderia declinar o nome?

— Sem dúvida: aquele anão sifilítico do Ruy Barbosa.

O Coronel Agostinho sorriu, tranqüilizado.

— Senhor ministro, o presidente lhe aguarda — disse fazendo uma vênia.

Mal J. J. Seabra entrou no gabinete do presidente, o Co­ronel Agostinho foi ao seu escritório e pediu uma ligação tele­fônica. O sistema telefônico ainda era meio precário, cheio de ruídos e interferências e ele não gostava de usá-lo porque era obrigado a falar em voz alta, quase aos gritos. Mas naquele instante era a melhor maneira a fazer e seria breve ao telefone. A ligação foi completada.

— Percy, alô! É ele mesmo. Falei. Ele já é quase nosso. Desligou o aparelho e esticou-se na cadeira.

No gabinete do presidente havia uma pilha de processos despachados e dois oficiais de serviço arrumavam os papéis. 0 marechal começava o expediente bem cedo e jamais deixava de dar um despacho em todos os processos que chegavam ao seu conhecimento. Seabra entrou e sentiu o estranho ar. O ma­rechal levantou os olhos e não sorriu, mostrava-se grave. Não falou e limitou-se a indicar com a mão que Seabra devia sen­tar-se.

— Muito trabalho hoje, senhor presidente?

— O de sempre, senhor ministro.

O marechal raramente chamava Seabra pelo título de mi­nistro.

Ficaram em silêncio durante alguns instantes, enquanto o presidente examinava um volumoso processo. Despachou rapidamente e entregou a pasta ao oficial. Logo o gabinete ficou vazio.

— Já estou a par do que está ocorrendo, meu caro Ministro Seabra.

As palavras do marechal despertaram a atenção de Seabra.

— A par de quê, senhor presidente?

— Tive uma reunião esta manhã com o Coronel Agostinho. Ele me informou de tudo.

Seabra explodiu.

— Senhor presidente, muito me admira Vossa Excelência confiar num tipo como o Coronel Agostinho.

— Não entendo, Seabra. Ele é um homem honesto.

— Como essas figuras do teatro de revista. O marechal mostrou-se aborrecido.

— O Coronel Agostinho é um homem honesto, posso assegurar. Ele está aqui, servindo ao meu governo, com prejuízo financeiro. Poderia estar na iniciativa privada ganhando uma fortuna.

— Trabalhando para os americanos.

— Exatamente, e não vejo nenhum crime nisto. Mas dei­xou o seu emprego para vir trabalhar aqui, comigo, ganhando o que ganha.

— O senhor é quem sabe, presidente.

— O que eu não estou conseguindo compreender é esta animosidade que você alimenta em relação ao Coronel Agosti­nho. Se você ainda fosse um general, eu poderia entender.

Seabra ficou calado.

— Ainda mais que o Coronel Agostinho está lhe prestan­do um grande serviço.

— Prestando-me um serviço?

Havia uma grande tristeza cansada no rosto do presidente e aquela expressão era como um sinal de perigo para Seabra. Talvez ele estivesse até errado, mas agora as jogadas transfor­mavam-se em passes sutis como numa dança no escuro. Mas Seabra não gostava de danças no escuro, era homem de virar a mesa.

— Não posso acreditar — resmungou Seabra, o rosto avermelhado pelo sangue que fluía para cima puxado pela carga de raiva.

— Ele está lhe ajudando, é o que eu afirmo — disse o presidente.

— E eu afirmo que isto não pode ser verdade.

O presidente sacudiu a cabeça numa demonstração que não pretendia ficar a manhã inteira brincando de sim e não com Seabra.

— Sua Excelência sabe exatamente o que fazia o Coronel Agostinho no Paraná? ...

— No final do governo passado, devido a incompatibilizações com os altos oficiais do exército, o Coronel Agostinho esteve afastado da ativa, trabalhando para uma empresa privada.

— O senhor sabe para que empresa?

— Claro, não recordo agora o nome da empresa. . .

— Deixe que eu refresque a memória de Vossa Exce­lência.

— Pare de me chamar de Vossa Excelência.

— O senhor é o presidente. . .

O presidente explodiu.

— Por isto não me chame de Vossa Excelência. Da ma­neira como você fala parece um insulto.

— Desculpe, marechal.

— E nem me chame de marechal!

— O senhor é marechal, Marechal Hermes.

— Eu sei, e também não gosto da maneira como você me chama de marechal.

— Como posso chamar Vossa Excelência?

— De qualquer coisa, menos de Vossa Excelência ou de marechal. Está me ouvindo, senhor ministro.

— Então pare de me chamar de senhor ministro.

— Mas você é meu ministro, caralho.

— Eu sei, e não precisa ficar me lembrando a todo o momento.

— Muito bem, Dr. Seabra, continue. . .

— Não me chame de doutor, eu não gosto.

— Ora, vá se foder, seu nortista de merda.

— Vá você, seu militar de bosta.

Os dois ficaram em silêncio por alguns instantes até que começaram a rir convulsivamente.

Seabra logo controlou seu próprio riso porque tinha con­seguido ganhar um round. O presidente puxou um lenço do bolso e passou na testa.

— Deixe eu prosseguir, senhor. . . — Seabra procurou elo qualificativo mais do agrado do presidente.

— Me trate como você costuma me tratar.

Seabra voltou a rir.

— Qual é a graça?

— Quer que eu lhe trate por esta palavra?

— Que palavra?

— O senhor pediu: bestalhão.

— Então é assim que você me trata?,

— Todos o tratam assim. O bestalhão do Catete!

— E você pensa que também não tem apelido, espertinho.

Seabra estremeceu porque sabia de quase todos os apelidos infamantes a seu respeito e não gostava de nenhum deles.

— Ministro dez por cento!

— Este eu ainda não conhecia.

— Ministro dez por cento — repetiu o presidente com redobrada delícia.

— Marechal Hermes da Fonseca, perna fina e bunda seca

— Este é velho. Rima pobre e me acompanha desde os tempos do Colégio Militar. O sobrenome Fonseca tem esta sina de rimar com a palavra seca à qual se adiciona o substantivo bunda, um africanismo brasileiro. Não me ofende mais. É como aquele ditado: Raimunda, feia de cara e boa de bunda.

O presidente observava Seabra com um meio sorriso de satisfação.

— Além do mais — disse o presidente —, minha bunda não é nada seca, como todos podem ver.

— Gostei da análise léxica da frase.

— Aprendi com Ruy, conhece?

Seabra corou novamente, não conseguia disfarçar o ódio que sentia cada vez que ouvia o nome do advogado baiano.

— Afinal, ó bundinha seca, queres ou não ouvir o que tenho a dizer sobre o Coronel Agostinho.

— Bundinha, não senhor, bunda, ouviu, bunda seca.

— O senhor está com um ótimo humor hoje.

— Estou é furioso, Seabra. Os paulistas estão querendo me pegar pelo saco.

— O senhor tem o apoio do norte.

— O que quer dizer que ter apoio de merda é a mesma coisa.

— A situação está realmente grave?

Seabra estava apreensivo agora, a viagem de Hermes à Bahia podia não ser realizada e seria uma derrota muito pessoal.

— Pelo visto você não tem se interessado muito pelos problemas do governo.

— É o que faço vinte e quatro horas por dia.

— E o que é que você já fez de concreto em relação aos paulistas?

— Bem, soltei todas as verbas pendentes no meu minis­tério para os projetos de São Paulo.

— Soltou todas as verbas?

— Quer que lhe enumere os projetos?

— Não é necessário.

O presidente fica por uns momentos em silêncio.

—Mas afinal, o que querem os paulistas? — perguntou-se o presidente sem esperança de receber uma resposta plausível.

— Querem pegar o senhor pelo saco — disse Seabra.

— Mas não conseguirão! Antes que cheguem perto de mim terei o saco de todos eles. Quer dizer que você soltou todas as verbas?

— Todas.

— Bastante?

— Alguns mil contos de réis.

— Todos os ministérios também fizeram o mesmo. Acho que estamos agindo errado.

— Agindo errado?

— Já soltamos milhares de contos de réis e eles continuam agitando. Aceita um café, Seabra?

— Ótima idéia — respondeu Seabra rindo.

— É café da Colômbia — disse o presidente batendo na campainha sobre a mesa.

Entrou o oficial do dia e o presidente pediu o café. Quan­do o funcionário retirou-se, Hermes abriu uma gaveta e tirou um envelope pardo, lacrado e com o carimbo de secreto. Seabra pensou que metade do Rio de Janeiro já sabia do conteúdo daquele envelope.

— Você estava me falando mesmo sobre o quê, Seabra?

— Sobre nada, o senhor está muito dispersivo hoje.

— Desculpe, diga agora o que tem a dizer.

— É sobre o Coronel Agostinho.

— Sobre Agostinho! É incrível como ninguém gosta deste rapaz por aqui.

— Ele é um filho da puta.

— Isto não explica nada, há tantos filhos da puta nesta nação que um só não devia atrair mais atenção.

— Escute o que eu tenho a dizer. Ele é uma raposa esperta, ganhou a confiança do senhor porque aprendeu na França a brincar de soldadinho de chumbo.

— Ele conhece as técnicas de um exército moderno, coisa na verdade bem diferente da tropa de cavalgaduras que temos por aqui. Mais da metade de nossos oficiais generais ainda pensa que está participando da Guerra do Paraguai, a outra parte meteu na cabeça que pode repetir aqui no Brasil o que Luís Napoleão fez na França.

— Todos concordam que as Forças Armadas necessitam acompanhar os tempos. Estão atrasadas e sem disciplina a gestão do senhor no Ministério da Guerra mostrou isto, começou a mudar para melhor. Mas as tais manobras que o Coronel Agostinho inspirou gastaram mais dinheiro que todo o orçamento do Distrito Federal.

— O exército moderno é caro.

— Mas não estou aqui para discutir com o senhor sobre a modernização do exército. Das Forças Armadas, neste instante me interessa apenas o Coronel Agostinho.

— Sempre ele, que mania!

— Marechal. . . desculpe, senhor. O Coronel Agostinho estava no Paraná trabalhando como diretor-presidente da em­presa Southern Brazil Lumber and Colonization Company. E o senhor sabe a quem pertence esta empresa? Ao Sindicato Farquhar.

O presidente mostrava-se impressivo, como se seus pensa­mentos estivessem em outras paragens.

— O Coronel Agostinho é um homem de Farquhar, o mesmo que apoiou a oposição e perdeu. Eles agora pretendem infiltrar-se no governo, continuar a rapinagem. . .

— Desculpe, Seabra — disse o presidente, assustado ao ouvir a palavra rapinagem.

— Eu estou dizendo que o inimigo está aqui mesmo, in­filtrado no Catete, ao seu lado.

— O inimigo?

— Agostinho é um deles, recebe na boca do cofre de Percival Farquhar.

— Este cavalheiro, Percival Farquhar, representa interes­ses econômicos muito grandes, Seabra. Não pode ficar na opo­sição.

— É claro, ele depende de nós, de nossas concessões.

— O meu governo não faz concessões — afirmou o pre­sidente com um orgulho perverso em cada palavra.

— Somos duros, eu sei.

— Você leu o que o Alberto Torres escreveu outro dia. Atacou os bancos hipotecários, disse que nem a Turquia faria tantas concessões.

— Nós não estamos na Turquia.

— Exatamente. Mas os intelectuais são assim mesmo, nunca sabem exatamente onde estão pisando.

Um servente entrou no gabinete carregando a bandeja com o café. Serviu com a solicitude contrariada que Seabra sabia vir de muitos anos de caserna. O servente devia ser algum cabo locado no Catete para servir o presidente. Esses militares estão em todas, pensou Seabra.

—Escute o que eu vou lhe falar — disse o presidente, bebendo um gole de café fumegante. — Tudo o que você me falou do Coronel Agostinho é do meu conhecimento. Não sou tão bestalhão como vocês imaginam. O ponto de vista de vocês é que está errado.

— Errado! — Seabra suspirou fundo.

— Exatamente. O Sindicato Farquhar, no momento, é um dos grupos econômicos mais importantes do país. Tem o capital norte-americano, um país muito promissor, moderno, sem essas frescuras de aristocracias e velhos privilégios históricos. Os de­tratores chamam os americanos de bárbaros. Mas bárbaro para mim é um elogio. Os alemães são também de certo modo bár­baros.

— Há aristocratas também na Alemanha.

— Aristocratas desmoralizados, sem força nem charme. Você sabe o quanto eu conheço da história da Alemanha. Na­quele país a aristocracia perdeu tudo o que tinha. — Hermes sorri. — Imagine, num país como a Alemanha, aparecer um nobre como o Ludwig da Baviera.

— Era louco, não era?

— Pior, era pederasta. Enquanto fazia as dele com sua guarda, os homens de negócios foram tomando conta do país. Hoje a Alemanha é o único país moderno da Europa. Como os Estados Unidos.

O presidente tomou outro gole de café e prosseguiu.

— Confesso que de início sentia desejos de vingança para com o Sindicato Farquhar, afinal, eles tinham apoiado a oposição. Mas é crime apoiar a oposição? Não, não é crime, velho. Eles foram mal orientados, foram envolvidos pela retórica de Ruy. São poucos os que conseguem escapar da retórica de Ruy. Eu mesmo já me deixei levar pelas palavras manhosas dele. Mas eu agora tenho uma outra visão quanto ao problema do Sin­dicato Farquhar

Aconselhado por Agostinho, é claro!

— Sim, foi Agostinho quem me abriu os olhos. Você sabe nunca se conforma com uma derrota e agora contava com um aliado poderoso. Esses americanos, por serem bárbaros, topam uma boa luta no jogo das influências. — Hermes apanhou o envelope e abriu, retirou algumas folhas de papel ordinário, repletas de um manuscrito quase indecifrável, embora Seabra estivesse certo de que metade do Rio de Janeiro já tinha conhecimento do que se tratava, menos ele mesmo. — Aqui está a chave.

Seabra esperou, era o momento decisivo.

— Você, meu caro Seabra, é o único duro dentre os meus ministros, que não se deixa dobrar facilmente.

Seabra deixou que a vaidade lhe dominasse.

— O ódio que você sente por Ruy misturou-se com o ódio que você passou a cultivar pelo Sindicato Farquhar. Ruy viu aí uma oportunidade de criar uma crise ministerial bem no momento em que estamos enfrentando os paulistas. Se você persistisse na dureza com relação ao Sindicato Farquhar, haveria sérios problemas e talvez você acabasse saindo do ministério.

Seabra viu a vaidade transformar-se em gélida expectativa.

— Mas a simples saída não era suficiente para Ruy. Você tinha de sair desmoralizado, enlameado. E a mente daquele homenzinho não é brincadeira. Veja só o que ele tramou — disse o presidente baixando os olhos para consultar o dossiê secreto que metade da Capital Federal já devia conhecer. — Espalhou que você mantinha uma amante, de casa e tudo, no bairro de São Cristóvão. Quando eu soube, fiquei bastante irri­tado porque não admito essas coisas no meu governo. Posso admitir tudo, menos infidelidade conjugal. Pois bem, o Coronel Agostinho, que você detesta e ele sabe disso, a despeito de tudo, foi mais fiel ao meu governo que à eventual antipatia que podia alimentar contra você. Ele, pessoalmente, comandou as inves­tigações. Foi diretamente ao endereço da suposta amante que você mantinha em São Cristóvão. Veja o que ele apurou.

O presidente, virando as páginas manuscritas, entregou-as a Seabra. Ele apanhou e começou a ler. Não podia acreditar que aquilo estivesse mesmo escrito ali. O relatório chegava à con­clusão que tudo não passava de uma calúnia primária. No ende­reço citado, fora encontrada uma família, composta de oito pessoas, o pai, inválido, chamava-se Fabiano Lobato, e tinha trabalhado para a família Seabra em Pernambuco. Emigrara para o Rio de Janeiro em 1901, com a mulher, Anastácia, e seis filhos menores. Em dificuldades financeiras e impossibilito de continuar trabalhando, já que acidentara-se como servente de pedreiro durante as obras da Avenida Central, procurara o Ministro J. J. Seabra, padrinho de uma das crianças, de quem solicitara ajuda. O Ministro J. J. Seabra, na época, ainda depu­tado federal, conseguira a casinha de São Cristóvão e ajudava mensalmente com uma quantia que lhes permitia sobreviver modestamente, uma espécie de pensão ao inválido.

— O Coronel Agostinho estava comovido, Seabra. Jamais pensou que você fosse homem de fazer caridade.

— Eu não sou de fazer caridade — respondeu Seabra perplexo

— E o que diabo foi isto que você fez para esta família?

— Caridade, senhor!


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