Código da Vida



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174

No meu escritório da Rua Sete de Abril, não havia sala de espera. Al­gumas cadeiras no corredor, e olhe lá. Nós, os advogados, tínhamos que estar atentos, sempre sem atraso, para não deixar cliente esperando. Marcou hora, atende. A ordem era deixar um longo intervalo entre um cliente e outro, para não atropelar a conversa com o primeiro. Consulta, de preferên­cia no período da manhã, porque as tardes podiam ser complicadas no expe­diente do fórum.

Naquele dia, no período da tarde, sem avisar e sem consulta marcada chegou ao escritório o pai da mulher do Sr. Olavo Brás acompanhado por dois ilustres advogados. E queria ser recebido imediatamente. Dona Daisy minha secretária, quase enlouqueceu. Ela conhecia os advogados que acom­panhavam o cavalheiro. Eram meus colegas e, por certo, eu os receberia assim que pudesse.

Por outro lado, eu estava fechado em minha sala, com ordem de não ser interrompido. Estudava um caso importante e urgente. O Tribunal de Justiça de São Paulo havia decidido contra o Dr. Roberto Marinho, no caso do domí­nio acionário da TV Globo de São Paulo, dando ganho de causa para os des­cendentes de Ortiz Monteiro, um sócio falecido, com pequeno número de cotas, da antiga TV Paulista, que Victor Costa vendera para as Organizações Globo. Menciono o assunto para que se avalie a complexidade da causa e a total impossibilidade de interromper a reunião para atender pessoas inespe­radas. Estava tratando simplesmente do domínio acionário da Rede Globo.

Não houve jeito. Minha secretária entrou e entregou-me um papel escrito:

“Desculpe, Dr. Saulo. Mas o homem lá fora, sogro do Sr. Olavo Brás, quer porque quer ser recebido agora. Eu disse que o senhor está reuni­do com os diretores da TV Globo. Ele falou para interromper a reunião. O que devo fazer?”

— Qual sala se encontra vazia? — perguntei para Dona Daisy.

— Da Doutora Elizabeth. Ela está no fórum, em audiência.

— Ponha-os na sala dela. Mande a Isabel servir café e diga que irei da­qui a alguns minutos. Peça para a Clotilde ir conversando com eles.

Virei-me para os diretores da Globo e comentei:

— É caso de hemorragia. Vou ter que atender um senhor afobado, pois veio acompanhado de dois advogados, meus amigos.

Dentre os diretores da Globo, estava o Dr. Luiz Eduardo Borgerth, profissional de alta competência, rei da simpatia, de longa convivência comigo, pois sempre estávamos às voltas com os problemas de comunicação da ABERT (Associação Brasileira de Rádio e Televisão): legislação, decretos, portarias. Ele, bem-humorado, comentou:

— Você falou em hemorragia, para dar a entender que seu escritório é um pronto-socorro de urgência. Mas, pela pressa dessas pessoas, poderia ser disenteria, o que comprometeria seu local de trabalho — disse ele com algu­ma mordacidade, permitida pela velha amizade de tantos anos.

— Seja sangria, seja tenesmo — respondi —, tenho que atender o caso em homenagem aos colegas que acompanham o cavalheiro que se diz desesperado.

Encerramos a reunião. Borgerth deixou comigo a papelada e o acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo contrário à Globo, condenando-a a des­fazer a compra da TV de São Paulo. O advogado daquela causa tinha sido ou­tro colega. Trabalhara bem. Fizera tudo certinho. Mas o Judiciário de São Paulo deu-lhe uma cacetada. Lembrei-me daquela história de que em bunda de criança e em mão de juiz ninguém pode ter confiança, preceito impor­tante de higiene. Creio que, por isso, Borgerth falou em disenteria. Assumi o compromisso de interpor o recurso especial para o Superior Tribunal de Jus­tiça em Brasília.

Fui para a sala da Doutora Elizabeth. Cumprimentei os colegas, que me apresentaram ao sogro do Sr. Olavo Brás, posudo, arrogante mal contido, canchudo ao extremo, bem vestido, terno de tecido inglês, camisa de seda, sa­patos italianos, ar de superioridade.

— Vim aqui para propor um acordo. Minha filha desiste da ação contra o Olavo Brás, eu pago os honorários de todos os advogados, eles voltam ao regime que vinham vivendo, e estou disposto até a indenizá-lo em alguma coisa, se ele quiser.

Inegavelmente, o homem era do tipo que entendia resolver tudo pelo dinheiro. Clotilde, visivelmente constrangida, ameaçou sair da sala. Fiz um ligeiro gesto para que ela ficasse. No mínimo seria uma testemunha se algo acontecesse.

Olhei para os meus colegas, aqueles que acompanhavam o pai da mu­lher do Sr. Olavo Brás. Nada disseram. Mudos, de uma mudez inexplicável. Então respondi:

— Não posso sequer tratar desse assunto sem o advogado de sua filha, salvo se ele substabeleceu a procuração para um dos colegas aqui presentes. Substabeleceu?

— Não! — respondeu um deles, quebrando o silêncio.

— Então me resta perguntar se serviram café e se o café estava bom Nada mais temos para conversar.

Um dos advogados tentou justificar:

— Não nos leve a mal. Sabemos perfeitamente que a ética nos obriga a tratar de acordo somente com o advogado constituído pela parte contrária. Apesar disso, viemos pelo nosso velho conhecimento de tantos anos, espe­rando poder colaborar para uma solução amigável.

— Sem o advogado da parte contrária, nada feito. Nem conversar.

— Está certo, está certo — disse o segundo colega, até então o mais ca­lado dos dois. — Nós queremos saber se você aceita refletir sobre um acordo, claro que com o advogado da parte contrária. Mas precisamos conhecer esta preliminar: você aceita estudar um acordo? Somente queremos isso!

— Vocês podiam ter feito essa pergunta pelo telefone. Não precisavam vir até aqui, interromper uma reunião importante com clientes meus, para for­mular uma indagação preliminar de uma hipótese a ser considerada ou não.

— Desculpe — respondeu um dos mudinhos. — Não pretendíamos causar transtornos nem a seus clientes, nem a você. Mas, já que chegamos até aqui, qual a resposta sobre a simples hipótese de estudar um acordo?

— A resposta é não — disse eu, acentuando bem forte o advérbio não.

— Por quê? — indagou o sogro do Sr. Olavo com voz autoritária. Pare­cia um coronel do tempo dos militares.

— Porque — respondi, procurando ser calmo — sua filha acusou o meu cliente de praticar atos obscenos com as próprias crianças, que foram forçadas pela mãe a gravar declarações horríveis contra ele. Não há acordo possível. Meu cliente precisa de uma sentença judicial que o absolva dessa infamante acusação.

— E minha filha ficará como? — perguntou o cavalheiro quixotesco. — Ficará como falsa acusadora? Responderá por falsificação de prova perante o Judiciário? O senhor, se pensa em obter tudo isso, está trabalhando para des­truir uma família, deixar as crianças sem a guarda da mãe, que pode ir presa, e sem a guarda do pai, que pode perder o direito de conviver com elas depois daquelas acusações muito graves. Como pai, sogro e avô, quero evitar tudo isso. Gasto o que for preciso em honorários, para meus netos não passarem por esse horrível constrangimento.

Era claro que o cavalheiro estava sabendo que sua filha poderia perder a causa. Estava, pelo jeito, informado de tudo. E bem rodeado de advogados. Daí os prognósticos sombrios para o futuro da demanda. O plano de “tomar de assalto” meu escritório, na companhia de dois colegas, que me for­çariam a recebê-lo, foi premeditado. A conversa de não medir os custos para acabar com o litígio era grosseira e ofensiva, mas significativa, partindo de um tipo como aquele, grávido de um rei.

— Meu senhor! — ponderei. — Não vamos discutir aqui e agora as questões de mérito do processo proposto por sua filha. Sua interpretação é emocional. Respeito apenas esse aspecto, mas debato a causa apenas nos autos do processo e perante um juiz. Aqui, parece que os senhores vieram indagar sobre a possibilidade de um acordo. A resposta é não. Espero ter sido bastante claro e lhes desejo um bom fim de tarde.

Levantei-me, estendi a mão a cada um deles e pedi que Clotilde os acompanhasse até o elevador.

Fiquei pensando: tenho que ganhar esta causa; do contrário, além do Sr. Olavo Brás voltar a pensar em suicídio, ainda terei que aturar esse sujeito na fase terrível de recurso para o Tribunal de Justiça de São Paulo.

Não há outra hipótese. Tenho que vencer. Clotilde voltou ao meu en­contro e, ao contrário de sua proverbial tranqüilidade, comentou assustada:

— Esse homem me deixou arrepiada. Tive a impressão de estar vendo o demônio disfarçado de gente. Há algo nesse senhor que escapa de uma aná­lise psicológica. Ele tem algo de infernal, que incomoda, repugnante. Não sei bem o que é, mas estou certa que está pensando apenas nele. A história de defender a filha e os netos é balela.

Após o devido repúdio ao diabo, deixou-me voltar à reunião.

E, antes que me esqueça, venci a causa da TV Globo no Superior Tribu­nal de Justiça, em recurso especial julgado antes do caso do Sr. Olavo Brás. A Globo de São Paulo continuará nas mãos da família Marinho, para todo o sempre. Que assim seja e abençoada também seja a minha complicada advo­cacia. E exorcizados sejam os demônios que assustaram Clotilde.



175

No início do ano de 1998, março, creio eu, o Brasil recebeu homenagem da França no Salão do Livro de Paris. Fui convidado para publicar uma obra em francês e lançá-la naquele salão, com direito a um dia de autógrafo. Até hoje não entendi o convite. No início, pensei que se tratasse de um livro de Direito. Teria que escrevê-lo rapidamente. Mas não era. Exibam poesia. Fora meu! Salão de Livro, em qualquer parte do mundo, não inclui obras de Direito.

Europeus não querem saber de literatura jurídica da América Latina Nem da América do Norte. Eles sabem tudo.

Livro de poesia para o Salão de Paris? Por que, como, quem teve a idéia? Não sei. Nem me explicaram. Apenas pediram o livro e indicaram a editora francesa que o publicaria: L’Harmattan. Reuni alguns poemas antigos. Entre­guei-os para Anita Clemens, que os traduziu. Anita, inteligente e culta, era casada com Napoleão Sabóia, cearense criado no Maranhão, jornalista, uma peça rara, igualmente inteligente. Foi ser correspondente estrangeiro na França. E por lá ficou.

Tive o cuidado de pedir prefácio para Jorge Amado e Jô Soares. Eles ca­pricharam na apresentação. O livro teve o título: C’Était aujourd’hui [Era hoje]. A edição vendeu alguns exemplares, creio eu, mais pelos prefácios.

No Salão do Livro, somente havia fila para autógrafos do Paulo Coelho. E fila que não acabava mais. Todos os dias. Os demais escritores brasileiros perdiam longe. Eu, nem pensar! Vi um cara comprando um exemplar do meu livro e corri para ver quem era. Só podia ser algum amigo meu. E era. Francisco Rezek, juiz do Tribunal Internacional de Haia, ex-juiz do Supremo Tribunal Federal do Brasil. Havia vindo da Holanda para a feira, isto é, para o Salão do Livro.

Jorge Amado e Zélia, sua encantadora mulher, estavam lá, festejados pelos franceses. Jorge abriu a França para a literatura brasileira desde seu pri­meiro livro publicado em Paris no longínquo ano de 1938, o Jubiabá. Além de consagrado popularmente, muito lido na Europa, Jorge recebeu o título de professor da Sorbonne numa cerimônia emocionante. Meninos, eu vi.

Mas encontrei, entre os brasileiros convidados para promover a cultura do nosso lindo país, dois cantadores nordestinos, conhecidos meus desde aquele célebre congresso de violeiros na Paraíba. Oliveira de Panelas era um deles.

— O que vocês estão fazendo aqui? — perguntei, quando os encontrei em plena Avenida Champs Elysées.

— Estamos olhando os restaurantes.

— Vão almoçar?

— Não. Apenas olhamos para ver como é a tal da comida francesa. Comer mesmo, que é bom, não podemos. Estamos sem grana.

— Mas vocês não foram convidados oficiais?

— Fomos, mas ficamos na honra, que sempre é pobre. Passagem, hos­pedagem numa pensãozinha, onde comemos omelete e sopa. Grana? Nada! É só tirar o pino e ela explode.

— E vocês vieram fazer o quê?

— Cantoria.

— Para francês?

— Para quem quiser ouvir.

Meu Deus! Isso não vai dar certo. Convidei-os a um restaurante bem francês. Comeram, comeram e tomaram vinho até os olhos começarem a dormitar. Vinho e fuso horário.

Ao final me pediram para ir à apresentação deles no Salão do Livro e fa­zer o favor de explicar ao respeitável público o que significava galope à beira-mar, galope alagoano, improviso em quadra de dez versos, mourão trocado, tema desenvolvido em sextilhas. Tudo improvisado. Fui. Havia muita gente, mas quase todos eram brasileiros. E uns poucos franceses, estudiosos de cos­tumes regionais do Brasil. Não entenderiam nada.

O espetáculo abriu-se comigo no palco, explicando passo a passo o que eram aquelas complicações poéticas, difíceis de serem entendidas até pelos próprios brasileiros.

Depois disso, dei uma entrevista ao jornal Le Monde, detalhando as téc­nicas, a tradição e o desenvolvimento da literatura de cordel no Brasil. O re­pórter quis comparar nosso repentista com François Villion, poeta francês do século XVI, menestrel, troubadour. E salteador de estradas. Interrompi:

— Nada disso! Cantador brasileiro nordestino é outra coisa. O menes­trel, o trovador de vocês, podia improvisar, sobretudo coisas “já decoradas”, em versos de louvação de pessoas ou feitos. E era monocrático, isto é, agia so­zinho. Cantava ou declamava sem parceria. No cordel, é tudo diferente. Duas são as formas de produção: a escrita, para contar histórias em versos. É publi­cada e fica pendurada nos cordéis das feiras populares para ser vendida. Daí o nome. A outra forma é o improviso em dupla, a mais genial, de pelejas e desafios travados entre esses dois cantadores, que usam versos de técnica ri­gorosa e de formas variadas. Nada decorado. Se alguém usar versos memori­zados, é imediatamente desmascarado, porque até o público é quase sempre o mesmo. O poeta nordestino entende ser uma desonra usar versos deco­rados numa cantoria, seja a de pé-de-parede,93 seja para o grande público.

Estranho debater tudo isso com jornalista francês. Publicada a matéria nada aconteceu e, aliás, nada devia acontecer. Apenas aquele fato fantástico para mim: um sujeito nascido em Brodowsky, paulista, advogado em São Paulo, entrevistado por um jornal de Paris sobre cantadores do Nordeste bra­sileiro. Uma embrulhada de coisas e situações, que nada tinha a ver comigo.

Depois, soube que tive mais sorte do que outros brasileiros. Carlos Hei­tor Cony, por exemplo, também convidado oficial, recebeu, como todos, a comenda de Cavaleiro da Ordem das Artes e das Letras. E somente foi notado dentro do metrô, quando nele esbarrou Luís Fernando Veríssimo, que o reco­nheceu. Mas deu também entrevista a jornal francês. O repórter lhe pergun­tou apenas o que ele pensava do Zidane. Aí deu nó. Cony não sabia quem era Zidane, que somente se tornou celebridade na Copa do Mundo realizada na­quele ano, mas em junho. E o danado do Zidane acabou com a seleção brasi­leira pela primeira vez. Foi o jeito do Cony conhecê-lo. Na segunda vez em que isto aconteceu, em 2006, na Alemanha, Cony, como todos os brasileiros, já conhecia o Zizou, o craque da bola com alguns acessos de bode quando desfere cabeçadas nos outros.

176

Enfim, todos nós tivemos nossas aventuras curiosas naquele evento de Paris. Não posso, porém, negar que tive um momento de glória literária, não pelo livro lançado no salão francês, mas por uma das poesias que dele cons­tou. O jornalista Napoleão Sabóia, que chamamos de Napô, ofereceu, no Pied de Couchon, um jantar a José Sarney e Marly, Paulo Coelho e Christina, Jorge Amado e Zélia, a mim e Eunice.

Napô, além de cultivar com extrema habilidade a arte da convivência, vibra com tudo o que lhe parece bom e inteligente. Estimula os amigos, aplaude, sugere, debate. Sarney não consegue respirar em Paris sem ele.

Como sua mulher, Anita, havia traduzido meu livro, pediu-lhe para ler a poesia que escrevi para a Eunice. Completada a leitura, as mulheres, isto é, Marly, Christina e Zélia, homenagearam-me, atacando seus respectivos maridos: “Você nunca escreveu para mim nada como esse poema!”. As três, em coro, fizeram dura cobrança, impulsionadas por deliciosas doses da quarta garrafa de Petrus 1982, que não existe mais fora de coleções.

Diante de dois membros da Academia Brasileira de Letras, diante de três dos mais consagrados escritores da literatura nacional, com sucesso in­ternacional, censurados por suas mulheres em razão de uma poesia minha, considerei-me consagrado. E pedi ao Napô que me deixasse pagar o vinho. Custou os olhos da cara.

Transcrevo a poesia que escrevi para Eunice e foi motivo de minha con­sagração entre as fantásticas mulheres daquele jantar. A elas, Marly, Zélia e Christina, esposas dos grandes escritores, meus queridos amigos, dedico o poema de minha felicidade. Pode parecer piegas, mas é verdade. O que posso fazer contra a verdade?

A PRIMEIRA VEZ

“Sobre o muro em ruína

uma roseira em flor”

(Vicente de Carvalho)

Para a Eunice

Afinal deu-se comigo:

nasceu a orquídea no velho tronco,

floriu a hera no muro antigo.

Nem o pavor de ser ridículo

impede-me de amar,

pois é a primeira vez que amo

porque sinto o mesmo desassossegado susto

da primeira vez que amei.

Amar pela primeira vez agora

é igual a qualquer primeira vez antiga,

mas esta primeira vez, no fim da vida,

é a primeira vez mais querida,

parece mais primeira do que as outras

e, pela primeira vez,

tenho a certeza, que me faltou antes,

a de ser esta a última primeira vez.

O velho Nietzsche estava certo quando afirmou haver um pouco de loucura no amor, ressalvando que sempre há um pouco de razão na loucura.



177

Tive uma audiência de instrução — que nunca é de julgamento — difí­cil. Muitos fatos a serem destrinchados, testemunhas complicadas. Empresa de família. Briga entre irmãos. Eu era advogado da senhora, mãe de todos, e Eros Grau era advogado da parte contrária, um irmão dissidente. Briga dura. Ninguém arredava pé. Eros era meu amigo. Eu havia advogado para ele numa questão pessoal, em que ele fora a própria parte litigante.

Mas, ali no litígio judicial, sem possibilidade de acordo, amigos, amigos, deveres à parte. Cada advogado defendia seu cliente com unhas, dentes e cé­rebro. Eros era bom de briga. Incansável. Dava um trabalho danado. Depois melhorou ainda mais no exercício do magistério e, hoje, é Ministro do Su­premo Tribunal Federal.

Naquela audiência, deu-me muito trabalho. Saí de lá cansado, mas re­solvi passar pela Vara de Família, para conversar com o juiz do caso do Sr. Olavo Brás. Achei que estava demorando muito a designação da audiência.

Falei com o escrivão.

— Não existe data prevista — disse ele apressadamente, depois de um “boa tarde” rápido, antes de atender outro advogado que estava no balcão.

Creio que fugia da pergunta invariável que fazia toda vez que estava com ele: “Ficou sabendo se o juiz foi ou não foi visitar as crianças?”. Nem res­pondia mais. Sorria e pedia licença para se retirar.

Entrei na sala do juiz.

Estava em audiência, mas me fez um gesto para que me aproximasse:

— Alguma coisa urgente? — perguntou.

— Mais ou menos, Excelência — respondi em voz baixa, para não ser ouvido pelas pessoas que estavam à mesa e que ficaram me olhando, como se eu fosse um intruso indesejável. Tinham razão. Uma audiência interrompida é sempre um desarranjo na vida das partes e dos advogados.

— Do que se trata? — perguntou o magistrado.

— A data da audiência do caso Olavo Brás. Está demorando muito para ser marcada. O processo está maduro. Temos o laudo pericial e ouvimos a psiquiatra. Só falta partirmos para a instrução e o julgamento.

— O senhor precisa ter paciência, meu doutor. Já recomendei ao escri­vão. Precisamos ter uma tarde inteira para ouvir todos. Precisamos de um dia com tempo razoável.

— O senhor pretende ouvir as crianças?

— Claro! Esse é um detalhe fundamental.

Meu coração bateu de alegria. A ouvida das crianças dava-me a certeza da vitória, isto é, da justiça a ser feita para o meu sofrido cliente. Mas resolvi envenenar:

— Apareceu no escritório um sujeito, evidentemente picareta, oferecendo “seus préstimos” para conseguir a designação rápida da audiência. Não gostei do oferecimento. Como poderia ele saber que o processo, em segredo de Justiça, está parado?

— Com toda razão. Depois o senhor passe por aqui, amanhã, na primeira hora, e me dê o nome do sujeito. A sua audiência somente poderá ser marcada para depois das férias de julho.

Agradeci e no dia seguinte não apareci. Já havia cutucado a onça. Não poderia contar mais nada. Se voltasse lá e falasse tudo — a invocação do tio dele, a proposta de doação para a Igreja — ia causar uma confusão dos dia­bos. A audiência não sairia mais. Haveria inquérito policial. Teria que denun­ciar o safado que se ofereceu a intermediar a doação. Pauleira geral.

Conformei-me com a informação de que haveria audiência depois das férias de julho, o que equivalia à promessa para o segundo semestre. Ao me­nos essa notícia me deixara aliviado. Seria antes do Natal. Julho era o mês que, invariavelmente, eu aproveitava para passear na Europa com minha família. Comuniquei a conversa ao Sr. Olavo Brás e disse-lhe que tivesse paciência.

Não protestou. Recebeu a notícia até com certa resignação, incomum nele, sempre movido por uma insubjugável ansiedade à espera da audiên­cia. Dizia-me ser a oportunidade não apenas de resolver o problema, mas de ver seus filhos. Quando lhe avisei que somente no segundo semestre a audiência se realizaria, agradeceu e saiu completamente conformado. Es­tranho, mas tudo na vida muda.

Depois descobri. Clotilde e Casé inicialmente desconfiaram e finalmen­te confirmaram. O Sr. Olavo Brás, além da empregada doméstica, havia colo­cado na sua folha de pagamento também o motorista que levava e trazia as crianças da escola. Em alguns dias da semana, ele se encontrava com os filhos em lugares diferentes, previamente combinados com seu novo cúmplice.

E não me disse nada. Não sei o que passa pela cabeça dos clientes, quando fazem essas coisas escondidas do advogado. Talvez pensem poder prejudicar a causa. E decidem por própria conta o que podem ou o que não podem fazer. Muitos se dão mal.

No caso dele, avaliei. A proibição da liminar atingia o regime formal das visitas da separação judicial. Se alguém descobrisse que ele estava encon­trando os filhos, mesmo em locais públicos, praças, jardins, tudo poderia se complicar. Mas, no fundo, eu acreditava que o juiz havia feito a inspeção ju­dicial e já estava convencido da falsidade da acusação. Corri o risco. Fingi que não sabia de nada. Mas anotei: pelos filhos, esse homem mente até para o advogado que aceitou sua causa a fim de evitar seu suicídio.

178

Desci a rampa do Palácio do Planalto com Sarney, no último dia do Go­verno dele. Primeiro dia do Governo Collor. Lá fora, a multidão vibrava com o presidente escolhido em eleições diretas, depois de vinte e cinco anos de Colégio Eleitoral. Esperávamos vaia na saída. Não haveria outro jeito. Collor se elegera xingando Sarney, acusando-o de corrupto, prometendo devassa geral nos negócios do primeiro presidente civil que o Brasil havia tido depois da ditadura.

Preparei-me para o pior. Não deixaria meu amigo descer aquela rampa simbólica sem estar ao seu lado. Possivelmente jogariam ovos; e povo, trei­nado em campos de futebol, podia jogar garrafas, pequenos objetos, copos de plástico. Que nada! De repente, palmas. Sarney caminhou, tirou um lenço do bolso e acenou para a multidão. A resposta materializou-se com palmas e vivas. Foguetório e alegria. Coisa estranha. A manifestação popular vem da intuição. Não interessava o que fora dito na campanha política. O povo feste­java o momento democrático. Um presidente passando o poder a outro pre­sidente eleito em eleições diretas e livres. Era o que contava.

Sãos e salvos, chegamos aos carros. As pessoas precisam acreditar em al­guma coisa. Collor acreditava em Cabral e em Paulo César Farias. Problema dele. À tarde, fui ao Ministério da Justiça transmitir o cargo para o Deputado Bernardo Cabral, que Collor escolhera para a função, por ser o maior conhe­cedor do Direito Constitucional da Nova República, já que havia sido o relator do projeto na Constituinte, embora destituído das altas funções e substi­tuído por José Lins, Deputado pelo Ceará. Não havia relatado coisa alguma.

Acabou o Governo Sarney. Fomos para São Paulo. Enfim, longe de Bra­sília. Minha advocacia querida estava me esperando. Pretendia descansar uma semana e voltar com tudo ao meu escritório. Quatro anos longe dele fo­ram demais. Nunca pensei que um agravo de instrumento me fizesse tanta falta. Que chegasse a sentir saudade de um recurso extraordinário, do prazo para uma apelação, de uns embargos infringentes, de confrontar jurispru­dências. Nisso não existe o menor lirismo, mas que saudade! Senti falta até da testemunha mentirosa, menos de juiz burro e Ministério Público arrogante. O resto, porém, coisas simples, mentirinhas da parte contrária, agravo retido nos autos dos processos, argüição de preliminares, tudo me deixava ansioso pelo reencontro com a profissão. Que falta me faziam uns embargos de declaração!

Descansaria uma semana e voltaria.



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